A Terceira - Jacques Lacan [PDF]

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Zitiervorschau

A terceira1

In: http://www.freudlacan.com/Champs_specialises/Langues_etrangeres/A_terceira A tradução é outra, mas pode ser referenciado como: Lacan, J. Conferência A terceira [1974]. Cadernos Lacan. Porto Alegre: APPOA, 2002. v. 2. Ou ainda em espanhol: LACAN, J. (1975/1985) "La tercera", in Actas de la Escuela Freudiana de Paris. Barcelona: Petrel, 1980 p. 159-186.. No original: LACAN, J. La troisième. Lettres de l’EFP, Paris, n. 16, p. 178-203, nov. 1975.

Nota sobre a tradução O grupo de tradução francês-português, criado por iniciativa do Cartel da América Latina da Association Freudienne Internationale, constituiu-se a partir de setembro de 1995 para traduzir Litturaterre (Lacan, 1971). A confrontação com o estilo de Lacan e especialmente com este texto em que a letra está em primeiro plano abriu uma trilha que, de Lituraterra à Terceira, levou-nos a elaborar um estilo de tradução de Lacan em português que ora apresentamos e submetemos ao leitor brasileiro. Este estilo acaba sendo o resultado teimoso de tentar sustentar algumas apostas. A primeira delas seria a de trazer para o português a virulência significante do texto original, ou seja, uma tradução que levasse em conta a própria teoria lacaniana da linguagem da qual alguns aspectos são ressaltados por Lacan na Terceira: "... a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, contornando-se de uma maneira da qual afinal de contas não posso dizer que não dou aqui o exemplo. Não se deve acreditar que, ao aceitar o desafio lançado por ela, ao marcar em tudo que nos concerne até que ponto nós dependemos dela, não se deve acreditar que faço isso assim de bom grado. Acharia melhor que isso fosse menos tortuoso". Esta concepção lacaniana vem, ao nosso ver, determinar seu estilo, e a tradução só pode acompanhar e não simplificar - aclimatando, desfazendo as torsões, as inversões e as repetições - em nome de uma suposta legibilidade. A tradução aqui não se pretende uma hermenêutica do texto lacaniano mas, antes de tudo, vem testemunhar a prevalência da letra e do jogo do significante. Esta seria nossa única fidelidade, aceitando o risco de tornar o texto estranho em português, mas não estrangeiro à língua. Isto não quer dizer que seja uma tradução "ao pé da letra", mas antes uma tradução que pretende não escamotear o real da letra como impossível. Trazer para o interior mesmo da tradução do texto de Lacan o impossível como categoria lógica afasta-nos de uma certa linha de tradução que, face ao real da letra, trabalha no luto ou na impotência.

Lacan, é preciso que se saiba, forçou a língua francesa, subverteu expressões, criou neologismos semânticos e lexicais, propôs ele próprio traduções nada ortodoxas, forçou a ortografia e a sintaxe. Assim, reproduzimos a variação dos estilos - ora coloquial, ora formal -, mantivemos as repetições e pausas sempre que percebemos sua função enfática no contexto e aceitamos até mesmo o desafio de deixar, como no original, frases inconclusas. Seguindo a mesma lógica, preferimos também, tanto quanto foi possível, não carregar o texto com notas de tradução. Ao invés de explicar em nota o significado de um neologismo, buscamos criar, a partir das leituras possíveis e com os recursos de nossa língua, um termo neológico. Essa opção pode ser exemplificada pela criação da forma verbal gossou. Em francês, ela se apresenta na palavra-valise je souis, onde se pode ler je suis (eu sou) e je jouis (eu gozo). Calcados na fórmula cartesiana que, em português, dispensa o pronome de primeira pessoa - "penso, logo sou" - unimos em uma nova forma verbal as duas possibilidades. Por outro lado, mantivemos, por exemplo, a tradução de semblant por semblante, tentativa de preservar a raiz latina sem/um, importante de guardar neste conceito já que não há outra unidade a não ser o próprio significante. Tentamos, pois, laborar nossa língua para fabricar um texto em que os rastros deste trabalho de Lacan com a linguagem não fossem apagados. Que esta tradução seja mais um convite para a discussão da tradução de Lacan no Brasil, que vem ocupando todos aqueles interessados pela transmissão da psicanálise. Tradução : Ângela Jesuino Ferretto, Celina Ary Mendes Garcia, Gilles Garcia, Luiz Alberto de Farias, Maria Roneide Cardoso Gil e Patricia Chittoni Ramos - Grupo inscrito na Association Freudienne Internationale.

A terceira Jacques Lacan - 31/10/1974

31 de outubro, 1o, 2 e 3 de novembro de 1974 - Roma - Sessão de 31 de outubro de 1974, quinta-feira O Congresso é aberto às 14 horas pelo Dr. Jacques Lacan. J. Lacan - Direi algumas palavras de abertura porque me pediram. Serei breve, espero. Convencionou-se chamar de sucesso o bruaá, isto é, o que faz multidão. Convencionouse isso no público. Mas para nós, analistas, este sucesso não tem nada a ver com o que nos interessa; e este sucesso é algo bem diferente do que seria o nosso, quero dizer, aquele ao qual nós nos referimos quando falamos daquilo que somos feitos para registrar, ou seja, o fracasso. O fracasso é o que opomos ao sucesso. Mas o sucesso que assim supomos somos bem forçados a supô-lo, já que o que nos caracteriza é na maioria das vezes o fracasso e sobre isso sabemos um tanto - este sucesso, portanto, que é nosso pólo suposto na medida em que partimos do fracasso, este sucesso nada tem a ver com nenhum sucesso, sucesso assim: um ajuntamento. O sucesso, para nós, limita-se ao que eu chamarei de resultado. Devo dizer que sobre isso, sobre resultados, aqueles que contam, eu registrei alguns, até mesmo bem recentemente. Aconteceu de me enviarem - recebi, não sei se seu autor está presente - um magnífico trabalho sobre a escritura e a psicanálise. É de um autor que mora no sul da França. E, por causa disso, ele só consegue ecos do que eu ensino. Não pode estar presente todo o tempo quando eu falo. Então, há de certo modo uma coisinha que não tem nada a ver, o que me garante, pois, que o resto é bem de sua autoria; o que não tem nada a ver é a maneira como as citações que ele faz de mim não colam. Mas o que ele fez é realmente excelente. Ele está, por assim dizer, na onda; a onda de que se trata não tem nada a ver com o fato de que vocês façam de mim um sucesso. Seria conveniente, é claro, que eu lhes agradecesse, mas afinal de contas por que vocês não agradeceriam a vocês mesmos? A função da mensagem é ser recebida sob uma forma invertida, e quando se diz a alguém "coitadinho" é sempre de si que se lamenta. Então, agradeçam a vocês! A onda em questão, esta onda que forçosamente, devo dizer, não me desagrada, é aquela pela qual me encontro no momento, graças ao sucesso, um pouco encarregado. Mas, como já lhes disse, isso dá resultados, resultados positivos quando uma coisa se mantém, como esse texto que acabo de citar e que vou me esforçar para que seja publicado em algum lugar, em minha revista, espero. A onda em questão, sei que sou responsável por ela. O que aprecio antes de tudo naqueles que querem entrar nessa onda é o modo como eles a pegam, é a autenticidade de sua navegação. Espero, estou até mesmo certo, por já ter conhecimento, de que vocês terão testemunhos disso aqui. Vamos começar hoje pelo que é seu objeto, ou seja, este seminário sobre o real, do qual vocês sabem, suponho, ao menos alguns de vocês, que esta é uma das categorias às quais

me refiro. Solange Faladé que está aqui e que é uma das maiores a saber entrar nessa onda, vai presidir esta sessão e levá-la a seu termo.

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A terceira (é o título). A terceira, ela retorna, é sempre a primeira, como diz Gérard de Nerval. Objetaremos que isso faça disco? Por que não, se isso diz (o) quê. Ainda é preciso, esse "diz (o) quê", escutá-lo, por exemplo, como o disco-urso de Roma. Se injeto, assim, um pedaço a mais de onomatopéia n'alíngua, não é que ela não tenha o direito de me retorquir que não há onomatopéia que já não se especifique de seu sistema fonemático n'alíngua. Vocês sabem que, para o francês, Jakobson o calibrou. É grande assim. Em outras palavras, é por ser do francês que o discours de Rome pode ser escutado disque-ourdrome. Atenuo isso observando que "urdroma3" é um ronrom que admitiriam outras alínguas, se aceito de ouvido tal de nossas vizinhas geográficas, e que isso nos sai naturalmente do jogo da matriz, a de Jakobson, que eu especificava há pouco. Como não posso falar por muito tempo, dou uma dica para vocês. Isso me dá a oportunidade simplesmente, esse urdroma, de pôr a voz sob a rubrica dos quatro objetos ditos por mim "a", isto é, de (re)esvaziá-la da substância que poderia haver no ruído que ela faz, ou seja, recolocá-la por conta da operação significante, aquela que especifiquei dos efeitos ditos de metonímia. De modo que a partir daí a voz - se assim posso dizer - a voz está livre, livre para ser outra coisa que substância. É isso. Mas é uma outra delineação que quero apontar ao introduzir minha Terceira. A onomatopéia que me veio de um modo um pouco pessoal me favorece - batamos na madeira - me favorece pois o ronrom é, sem dúvida alguma, o gozo do gato. Quer passe pela laringe ou por outro lugar, não sei. Quando os acaricio, parece ser com todo o corpo, e é o que me faz entrar naquilo de onde quero partir. Parto daí, o que não lhes dá forçosamente a regra do jogo, mas isso virá depois. "Penso logo se goza". Isso rejeita o "logo" usual, aquele que diz "gossou". Faço uma brincadeirinha sobre isso. Rejeitar aqui é para ser ouvido como o que eu disse da foraclusão, que rejeitar o "gossou", isso reaparece no real. Isso poderia passar por um desafio na minha idade, na minha idade na qual, há três anos - como se diz quando se quer jogar isso na cara de alguém - há três anos, Sócrates já estava morto! Mas mesmo que eu defuntasse em seguida - isso poderia muito bem me acontecer, aconteceu com Merleau-Ponty, assim, na tribuna - Descartes nunca ouviu dizer a respeito do seu "gossou" que ele gozava da vida. Não é nada disso. Que sentido tem isso, seu "gossou"? Exatamente o do meu sujeito, o "eu" da psicanálise.

Naturalmente ele não sabia, o pobre, ele não sabia, é claro, é preciso que eu interprete: é um sintoma. Com efeito, de que é que ele pensa antes de concluir que (segu)é - a música do ser, sem dúvida? Ele pensa do saber da escola com o qual os jesuítas, seus mestres, encheram-lhe os ouvidos. Ele constata que é fraco. Seria farinha do melhor saco, é claro, se ele se desse conta que seu saber vai bem mais longe do que crê após a escola, que tem água na gasolina, se posso dizer assim, pelo fato de que ele fala, pois, ao falar alíngua, ele tem um inconsciente, e ele está largado, como qualquer um que se respeite; é isso que eu chamo um saber impossível de alcançar para o sujeito, enquanto que ele, o sujeito, há somente um significante que o representa junto a esse saber; é um representante, se posso dizer, de comércio, com este saber constituído, para Descartes, como era usual na sua época, de sua inserção no discurso em que nasceu, ou seja, o discurso que chamo do mestre, o discurso do fidalgote. É bem por isso que ele não sai disso com seu "penso logo gossou". Ainda assim, é melhor do que o que diz Parmênides. A opacidade da conjunção do noein e do, ele não sai disso, esse pobre Platão; se não fosse ele, o que saberíamos de Parmênides? Mas isso não impede que ele não saia disso, e que se ele não nos transmitisse a histeria genial de Sócrates, o que tiraríamos dela? Quanto a mim, eu derreei durante essas pseudoférias com o sofista. Devo ser sofista demais, provavelmente, para que isso me interesse. Deve ter aí alguma coisa em relação à qual eu sou tapado. Não aprecio. Faltam-nos uns troços para apreciar. Falta-nos saber o que era o sofista naquela época. Falta-nos o peso da coisa. Retornemos ao sentido do "gossou". Não é simples. O que, na gramática tradicional, se põe a título da conjugação de um certo verbo ser - para o latim, então todo mundo se apercebe disso, fui não se soma com sum. Sem contar com o resto do bricabraque. Eu passo. Eu passo adiante tudo o que aconteceu quando os selvagens, os gauleses se puseram a ter que se virar com isso. Eles deslizaram o est para o lado do stat. Eles não são os únicos por sinal. Na Espanha, eu acho que foi a mesma coisa. Enfim, a lingüisteria se vira com isso tudo como pode. Não vou agora repetir o que faz os domingos de nossos estudos clássicos. Resta, no entanto, que podemos nos perguntar de que carne esses seres - que são aliás seres de mito, cujo nome coloquei aí: Umdoiseuropeus, eles foram inventados de propósito, são os mitemas - podemos nos perguntar o que eles podem meter na cópula deles (em toda parte salvo em nossas línguas, é simplesmente qualquer coisa que serve de cópula) - enfim, alguma coisa como a prefiguração do Verbo encarnado? Diremos isso, aqui! Isso me chateia. Acharam que iam me agradar fazendo-me vir a Roma. Eu não sei por quê. Há locais demais para o Espírito Santo. O que o Ser tem de supremo se não por essa cópula? Enfim, eu me diverti em interpor o que se chama de pessoas e toquei num negócio que me divertiu: me-és-tu-me; mas-tu-me; isso dá para se embrulhar: me amas-tu hum? Na realidade, é a mesma coisa. É a história da mensagem que cada um recebe sob sua forma invertida. Eu digo isso há muito tempo e isso provocou risadas. Na verdade, eu o devo a Claude Lévi-Strauss. Ele se virou para uma de minhas excelentes amigas que é sua mulher, que é Monique, para chamá-la pelo seu nome e lhe disse, em relação ao que eu

expressava, que era isso, que cada um recebia sua mensagem sob uma forma invertida. Foi Monique que me contou. Eu não podia encontrar uma fórmula mais feliz para o que queria dizer naquele momento. Mesmo assim, foi ele quem me deu a dica. Vejam vocês, pego o que constitui meu bem onde o encontro. Eu passo sobre os outros tempos, sobre a sustentação do imperfeito. Eu era. Ah! O que é que você sustenta desse era? E depois o resto. Passemos, porque é preciso que eu avance. O subjuntivo, ele é engraçado. Que seja - como por acaso! Descartes não se engana: Deus é o dizer. Ele vê muito bem que Deuzer é o que faz ser a verdade, o que dela decide como quer. Basta deuzer como eu. É a verdade, não há como escapar. Se Deus me engana, azar, é a verdade pelo decreto do deuzer, a verdade de ouro. Bom, passemos. Faço aqui, até agora, algumas observações em relação às pessoas que arrastaram consigo a crítica para o outro lado do Reno para acabar beijando o traseiro de Hitler. Isso me faz ranger os dentes. Então, o simbólico, o imaginário e o real, isso é o número um. O incrível é que isso tenha tomado sentido; e tomado sentido arrumado assim. Nos dois casos, é por minha causa, do que chamo de vento do qual sinto que não posso nem mesmo mais prevê-lo, o vento com o qual se enfunam as velas em nossa época. Logo, é evidente, no início, o sentido não falta. É nisso que consiste o pensamento: palavras introduzem no corpo algumas representações imbecis. Pronto, vocês têm o troço, vocês têm aí o imaginário, e que além do mais bota as tripas pra fora - isso não quer dizer que temos o rei na barriga, não, ele desembucha novamente o quê? Como por acaso uma verdade, uma verdade a mais. É o cúmulo. Que o sentido se aloje nele nos dá ao mesmo tempo os dois outros como sentido. O idealismo, cuja imputação todo mundo repudiou assim, o idealismo está por detrás disso. As pessoas só pedem isso, isso as interessa, visto que o pensamento é bem o que há de mais cretinizante a agitar o guizo do sentido. Como tirar da cabeça de vocês o emprego filosófico de meus termos, isso quer dizer, o emprego sujo, quando, por outro lado, é preciso que isso entre, mas seria melhor que isso entrasse em outro lugar. Vocês imaginam que o pensamento está nos miolos. Não vejo por que os dissuadiria disso. Quanto a mim, estou certo - estou bem certo, é negócio meu - que isso se passa nos subcutâneos frontais no ser falante, exatamente como no ouriçocacheiro. Adoro os ouriços-cacheiros. Quando vejo um, coloco-o no meu bolso, no meu lenço. Naturalmente, ele mija. Até que o leve para o gramado na minha casa de campo. E aí, adoro ver se produzir esse pregueado dos subcutâneos frontais. Depois do quê, exatamente como nós, ele se ouriça. Enfim, se vocês podem pensar com os subcutâneos frontais, vocês podem também pensar com os pés. Pois bem, é aí que gostaria que isso entrasse, já que afinal de contas o imaginário, o simbólico e o real, isso é feito para que aqueles desse agrupamento que são os que me seguem, para que isso os ajude a trilhar o caminho da análise. Essas rodinhas de barbante que me matei de tanto desenhar para vocês, essas rodinhas de barbante não se trata de fazê-las ronronar. Seria preciso que isso servisse a vocês, e que isso servisse justamente à errância da qual lhes falava esse ano, que isso servisse para vocês se darem conta da topologia. Esses termos não são tabu. O que seria preciso é que vocês sacassem. Eles estão aí muito antes daquela que implico em dizer a primeira, a primeira vez que falei em Roma;

tirei-os, esses três, depois de ter cogitado bastante, tirei-os bem cedo, muito antes de me ter metido nisso, no meu primeiro discurso de Roma. Que sejam essas rodinhas do nó borromeu, isso não é tampouco uma razão para que vocês aí tropecem. Não é isso que chamo pensar com os pés. Haveria que deixar aí alguma coisa bem diferente de um membro - falo dos analistas - haveria que deixar aí este objeto insensato que especifiquei de "a". É isso, o que se pega no cerramento do simbólico, do imaginário e do real como nó. É ao pegá-lo bem que vocês podem responder ao que é sua função: oferecê-lo ao analisante como causa do desejo dele. É isso que se trata de obter. Mas se vocês ficam com a pata presa aí também não é muito bom. O importante é que isso se passe às custas de vocês. Para dizer as coisas claramente, após esse repúdio do "gossou", eu me divertirei dizendo a vocês que esse nó, é preciso sê-lo. Então, se ainda acrescento o que vocês sabem depois do que eu tinha articulado durante um ano sobre os quatro discursos sob o título "O Avesso da Psicanálise", resta que do ser, é preciso que vocês dele só façam o semblante. Isso é forte demais! É tanto mais forte que não basta ter dele a idéia para dele fazer o semblante. Não imaginem que tive, quanto a mim, a idéia disso. Eu escrevi "objeto a". É completamente diferente. Isso o aparenta à lógica, quer dizer que isso o torna operante no real a título do objeto do qual precisamente não se tem idéia, o que, é preciso dizê-lo, era um buraco até agora presente em toda teoria, seja ela qual for, o objeto do qual não se tem idéia. É o que justifica minhas reservas, as que fiz há pouco a respeito do pré-socratismo de Platão. Não é que ele não tenha pressentido isso. O semblante, ele banha nele sem o saber. Isso o obseda, mesmo que ele não o saiba. Isso só quer dizer uma coisa, é que ele o sente, mas não sabe por que é assim. Donde esse insuporte, esse insuportável que ele propaga. Não há um só discurso onde o semblante não conduza o jogo. Não se vê por que o último a chegar, o discurso analítico, escaparia a isso. Mesmo assim, isso não é uma razão para que nesse discurso, sob o pretexto de que é o último a chegar, vocês não se sintam à vontade a ponto de fazer dele, segundo o uso no qual se engonçam seus colegas da Internacional, um semblante mais semblante que o natural, afixado; lembrem-se mesmo assim que o semblante do que fala como tal está sempre aí em toda espécie de discurso a ocupá-lo; é mesmo uma segunda natureza. Então relaxem, sejam mais naturais quando vocês recebem alguém que vem lhes pedir análise. Não se sintam tão obrigados a darem uma de importante. Mesmo como bufões, vocês estão justificados. Só precisam assistir à minha televisão. Sou um palhaço. Tomem exemplo nisso e não me imitem! A seriedade que me anima é a série que vocês constituem. Vocês não podem ao mesmo tempo estar nela e sê-la. O simbólico, o imaginário e o real, isso é o enunciado do que efetivamente opera nas suas falas quando vocês se situam a partir do discurso analítico, quando analistas vocês são. Mas esses termos somente emergem verdadeiramente para e por esse discurso. Não tive que colocar intenção nisso, só tive que seguir, eu também. O que não quer dizer que isso não esclareça os outros discursos, mas isso também não os invalida. O discurso do mestre, por exemplo, seu fim, é que as coisas andem no passo de todo mundo. Pois bem, isso não é de modo algum a mesma coisa que o real, porque o real, justamente, é o que

não anda, é uma pedra no meio do caminho, bem mais, é o que não cessa de se repetir para entravar essa marcha. Eu disse isso inicialmente sob essa forma: o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar. A ênfase deve ser dada ao "retorna". É o lugar que ele descobre, o lugar do semblante. É difícil instituí-lo só do imaginário como em princípio a noção de lugar parece implicá-lo. Felizmente, temos aí a topologia matemática para nos servir de apoio. É o que tento fazer. Num segundo tempo, ao defini-lo, esse real, foi do impossível de uma modalidade lógica que tentei apontá-lo. Suponham, efetivamente, que não haja nada de impossível no real. Os doutos fariam uma cara esquisita, e nós também! Mas que caminho foi preciso percorrer para se aperceber disso! Durante séculos, acreditou-se que tudo era possível. Enfim, não sei, talvez alguns de vocês tenham lido Leibniz. Ele só escapava dessa pelo "compossível". Deus fez o que pôde, era preciso que as coisas fossem possíveis juntas. O que há de trama e mesmo de tramóia por trás de tudo isso não é imaginável. Talvez a análise nos leve a considerar o mundo como o que ele é: imaginário. Isso só pode ser feito ao se reduzir a função dita de representação, ao colocá-la lá onde ela está, ou seja, no corpo. Disso se suspeita há muito tempo. É mesmo nisso que consiste o idealismo filosófico. Só que o idealismo filosófico chegou a isso, mas enquanto não havia ciência isso só podia fechá-la, não sem uma sobrinha: resignando-se, eles esperavam os signos do além, do númeno, como eles chamavam. Foi por essa razão que, mesmo assim, alguns bispos entraram na história, o bispo Berkeley notadamente, que na sua época era imbatível, e a quem isso convinha muito bem. O real não é o mundo. Não há nenhuma esperança de atingir o real pela representação. Não vou começar a argüir aqui a teoria dos quanta, da onda, do corpúsculo. Seria melhor de qualquer forma que vocês estivessem por dentro, mesmo que isso não lhes interesse. Mas para ficar por dentro, façam isso vocês mesmos, basta abrir alguns livrinhos de ciência. O real, da mesma maneira, não é universal, o que quer dizer que ele só é todo no sentido estrito de que cada um de seus elementos seja idêntico a si mesmo, mas não podendo se dizer "todos". Não há "todos os elementos", só há conjuntos a determinar em cada caso. Não vale a pena acrescentar: é tudo. Meu S1 só tem o sentido de pontuar isto aí, este significante - letra que escrevo S1, significante que só se escreve fazendo isso sem nenhum efeito de sentido. O homólogo, em suma, do que acabo de dizer do objeto "a". Enfim, quando penso que me diverti um tempo jogando com esse S1 que tinha elevado à dignidade do significante Um, que joguei com este Um e o "a" enodando-os pelo número áureo, isso é o máximo! É o máximo, quero dizer que isso ganha em importância ao ser escrito. Na verdade, era para ilustrar o quanto é vão qualquer coito com o mundo, isto é, do que se chamou até aqui de conhecimento3. Com efeito, não há nada a mais no mundo que um objeto "a", cocô ou olhar, voz ou teta que fende o sujeito e o maquia em dejeto, que ele ex-siste ao corpo. Para fazer disso o semblante, é preciso ter talento. É particularmente difícil, é mais difícil para uma mulher do que para um homem, contrariamente ao que se diz. Que a mulher seja o objeto "a" do homem de vez em quando, isso não quer dizer de jeito algum que tenha gosto em sê-lo. Mas, enfim, isso acontece. Acontece de ela se parecer com ele naturalmente. Não há nada que se pareça mais com um cocô de mosca do que Anna Freud. Isso deve lhe servir!

Vamos falar sério. Voltemos a fazer o que estou tentando. Preciso sustentar esta Terceira a partir do real que ela comporta, eis por que lhes coloco a questão da qual vejo que as pessoas que falaram comigo, antes de mim, suspeitam um pouco, não somente suspeitavam mas até mesmo disseram - o fato de terem dito assinala que suspeitavam disso - a psicanálise é um sintoma? Vocês sabem que quando faço uma pergunta é porque tenho a resposta. Mas, enfim, seria melhor que fosse a resposta certa. Chamo de sintoma o que vem do real. Quer dizer que isso se apresenta como um peixinho cujo bico voraz só se fecha ao colocar sentido entre os dentes. Então, de duas uma: ou isso o faz proliferar (Crescei e multiplicai-vos, disse o Senhor, o que é mesmo assim algo um tanto exagerado, que deveria nos fazer torcer o nariz, este emprego do termo de multiplicação: ele, o Senhor, sabe no entanto o que é uma multiplicação, não é essa abundância de peixinho), ou então ele morre disso. O que seria melhor, é ao que deveríamos nos esforçar, é que o real do sintoma morresse disso e aí está a questão: como fazer? Numa época em que me propagava em serviços que não nomearei (embora nas minhas folhas eu faça alusão a isso, que será impresso, preciso pular um pouco), numa época em que eu tentava fazer com que se entendesse nos serviços de medicina o que era o sintoma, eu não dizia isso exatamente como agora, mas mesmo assim talvez seja um Nachtrag, mesmo assim acho que já sabia disso, ainda que não tivesse feito surgir daí o imaginário, o simbólico e o real. O sentido do sintoma não é aquele com o qual nós o alimentamos para sua proliferação ou extinção, o sentido do sintoma é o real, na medida em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem, no sentido de que elas dão conta de si mesmas de maneira satisfatória - satisfatória ao menos para o mestre, o que não quer dizer que o escravo sofra com isso de alguma maneira, longe disso; ele, o escravo, nesse caso, está numa boa muito mais do que se crê, é ele que goza, contrariamente ao que diz Hegel, que deveria ainda assim se dar conta disso, visto que foi por isso mesmo que se deixou levar pelo mestre; então Hegel lhe promete ainda por cima um futuro; ele está plenamente satisfeito! Isso também é um Nachtrag, um Nachtrag mais sublime do que no meu caso, se posso dizer assim, porque isso prova que o escravo tinha a felicidade de já ser cristão na época do paganismo. É evidente, mas assim mesmo é curioso. É o maior lucro! Tudo para ser feliz! Nunca mais se encontrará isso. Agora que não existem mais escravos, nós estamos reduzidos a raspar o tacho, enquanto pudermos, das comédias de Plauto e de Terêncio, tudo isso para termos uma noção de que eles estavam bem, os escravos. Enfim, estou me dispersando. Não é, no entanto, sem perder o fio do que ela prova, essa dispersão. O sentido do sintoma depende do futuro do real, logo, como disse à imprensa, do êxito da psicanálise. O que lhe pedimos é que ela nos livre tanto do real quanto do sintoma. Se ela sucede, tem sucesso neste pedido, podemos esperar tudo - digo isso assim, vejo que há pessoas que não estavam nessa entrevista à imprensa, é para elas que digo isso - ou seja, um retorno da verdadeira religião, por exemplo, que como vocês sabem não parece estar definhando. Ela não é louca, a verdadeira religião, todas esperanças lhe servem, se assim posso dizer; ela as santifica. Então é claro, isso lhe é permitido. Mas se a psicanálise tem êxito, ela se apagará por não ser senão um sintoma esquecido. Ela não deve se espantar com isso, é o destino da verdade tal qual ela mesma o coloca no princípio. A verdade é esquecida. Logo, tudo depende de que o real insista. Para isso, é preciso que a psicanálise fracasse. É preciso reconhecer que ela toma esta via e que ela

tem, pois, ainda boas chances de permanecer um sintoma, de crescer e de se multiplicar. Psicanalistas não mortos, segue carta! Mas, de qualquer forma, desconfiem. Talvez seja minha mensagem sob uma forma invertida. Talvez também esteja me precipitando. É a função da pressa que coloquei em evidência para vocês. No entanto, o que lhes disse pode ter sido mal entendido, o que acabo de lhes dizer, entendido de maneira a ser tomado no sentido de saber se a psicanálise é um sintoma social. Há apenas um sintoma social: cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso com que fazer laço social, em outras palavras, semblante. Foi ao que Marx remediou, remediou de uma maneira incrível. Dito e feito. O que ele emitiu implica que não há nada a mudar. É bem por isso, aliás, que tudo continua exatamente como antes. Socialmente, a psicanálise tem uma outra consistência que a dos outros discursos. Ela é um laço a dois. É nisso que ela se encontra no lugar da falta de relação sexual. Isso não basta de modo algum para fazer dela um sintoma social já que uma relação sexual falta em todas as formas de sociedade. Isso está ligado à verdade que estrutura todo discurso. É exatamente por isso, aliás, que não há uma verdadeira sociedade fundada sobre o discurso psicanalítico. Há uma escola, que justamente não se define por ser uma sociedade. Ela se define pelo fato de que eu nela ensino alguma coisa. Por mais engraçado que isso possa parecer, quando se fala da École Freudienne, é alguma coisa no gênero do que fizeram os estóicos, por exemplo. Inclusive, os estóicos tinham ainda assim algo como o pressentimento do lacanismo. Foram eles que inventaram a distinção do signans e do signatum. Em contrapartida, devo a eles meu respeito pelo suicídio. Naturalmente, não digo isso pelos suicídios fundados numa brincadeira, mas nessa forma de suicídio que, em suma, é o ato propriamente dito. Não se deve malográ-lo, é certo. Sem o quê, não é um ato. Em tudo isso, então, não há problemas de pensamento. Um psicanalista sabe que o pensamento é aberrante por natureza, o que não o impede de ser responsável por um discurso que solda o analisante - a quê? Como alguém disse muito bem hoje de manhã, não ao analista. O que ele disse de manhã, eu o exprimo de outro modo, estou contente que isso convirja; ele solda o analisante ao par analisante-analista. É exatamente a mesma coisa que alguém disse hoje de manhã. O instigante de tudo isso é que seja do real de que depende o analista nos anos que virão e não o contrário. Não é de forma alguma do analista que depende o advento do real. O analista tem por missão detê-lo. Apesar de tudo, o real poderia muito bem desembestar, sobretudo desde que ele tem o apoio do discurso científico. Este é até mesmo um dos exercícios do que se chama de ficção científica, que, devo dizer, não leio nunca; mas muitas vezes nas análises me contam do que se trata; é inimaginável! O eugenismo, a eutanásia, enfim, todo tipo de eubrincadeiras diversas. Mas onde isso se torna engraçado é quando os próprios doutos são tomados não, é claro, pela ficção científica, mas tomados por uma angústia; mesmo assim isso é instrutivo. É bem o sintoma típico de todo acontecimento do real. E quando os biólogos, para nomeá-los, esses doutos, impõem a si próprios o embargo de um tratamento de bactérias em laboratório sob o pretexto de que se fossem produzidas duras e fortes demais, elas poderiam muito bem escapulir pelo vão da porta e limpar pelo menos toda a experiência sexuada, limpando o falasser, isso é ainda assim algo de muito instigante. Esse acesso de

responsabilidade é formidavelmente cômico; toda e qualquer vida reduzida finalmente à infecção que ela realmente é, segundo toda verossimilhança, isso é o cúmulo do "ser pensante"! A dificuldade é que nem por isso eles percebem que a morte se localiza ao mesmo tempo no que n'alíngua, tal como a escrevo, faz disso sinal. Seja como for, os "eu" sublinhados acima por mim de passagem nos colocariam, enfim, na apatia do bem universal e supririam a ausência de relação que eu disse impossível para sempre por esta conjunção de Kant com Sade, da qual acreditei dever marcar num escrito o futuro que está na cara e não se vê, ou seja, o mesmo futuro onde a análise tem de qualquer jeito o seu assegurado. "Franceses, mais um esforço, se quereis ser republicanos". Caberá a vocês responderem a essa objurgação - embora eu fique sem saber se este artigo fez o mínimo efeito em vocês. Foi só um fulaninho que se debateu com ele. Não deu em muita coisa. Quanto mais eu como meu Dasein, como escrevi no fim de um dos meus seminários, menos sei o tipo de efeito que ele causa em vocês. Essa terceira, estou lendo, ao passo que talvez vocês possam lembrar que a primeira que aqui retorna tinha pensado dever pôr nela minha falância, já que a imprimiram depois, sob o pretexto de que vocês todos tinham o texto em mãos. Se hoje só faço ourdroma, espero que isso não crie obstáculo demais para entenderem o que leio. Se ela é demais, me desculpo. A primeira, então, a que retorna para que não cesse de se escrever, necessária, a primeira, "Função e campo...", disse nela o que precisava dizer. A interpretação, emiti, não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. Eis por que dei destaque ao significante na língua. Eu o designei de instância da letra, isso para me fazer entender apesar do pouco de estoicismo de vocês. Disso resulta, acrescentei depois sem mais efeito, que é d'alíngua que se opera a interpretação, o que não impede que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem, uma dessas linguagens das quais justamente é o negócio dos lingüistas levar a crer que alíngua é animada. A gramática, como eles chamam geralmente, ou quando é Hjelmslev, a forma. Isso não funciona por si só, mesmo que alguém que me deve a trilha disso tenha dado destaque à gramatologia. Alíngua é o que permite que o voeu [voto] (anseio), considera-se que não é por acaso que esse seja também o veut [quer] de querer, 3a pessoa do indicativo, que o non [não] da negação e o nom [nome] nomeante também não seja por acaso; que d'eux [deles] "d" antes de "eux", que designa aqueles dos quais se fala, seja feito do mesmo modo que o número deux [dois] não é puro acaso, nem muito menos arbitrário, como diz Saussure. O que é preciso conceber aí é o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca a partir do manejo por um grupo de sua experiência inconsciente. Alíngua não é para ser dita viva porque está em uso. É antes mesmo a morte do signo que ela veicula. Não é porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem que alíngua não tenha que jogar contra seu gozar, já que ela se fez desse próprio gozar. O sujeito suposto saber que é o analista na transferência não é por nada que é suposto se ele sabe em que consiste o inconsciente, em ser um saber que se articula d'alíngua, o corpo que aí fala só estando nela enodado pelo real do qual ele se goza. Mas o corpo deve ser compreendido no natural como desnodado desse real que, para existir aí a título de fazer seu gozo, nem por isso lhe fica menos opaco. Ele é o abismo menos notado do que seja alíngua que, esse gozo, o civiliza, se ouso dizer, entendo por isso que ela o leva a seu efeito desenvolvido, aquele pelo qual o corpo goza de objetos cujo primeiro, aquele que escrevo com "a", é o objeto mesmo, como eu dizia, do qual não se tem idéia, idéia como tal, entendo, exceto a quebrá-lo, esse objeto, neste caso seus pedaços são identificáveis

corporalmente e, como estilhaços do corpo, identificados. É somente pela psicanálise, é nisso que esse objeto constitui o cerne elaborável do gozo, mas ele só se sustenta da existência do nó, das três consistências de toros, de rodinhas de barbantes que os constituem.

O estranho é esse laço que faz com que um gozo, seja ele qual for, o suponha, esse objeto, e que assim o mais-gozar, visto que foi assim que acreditei poder designar seu lugar, ou seja, a respeito de nenhum gozo, sua condição. Fiz um esquema. Se é o caso, no que concerne ao gozo do corpo na medida em que é gozo da vida, a coisa mais surpreendente é que esse objeto, o "a", separa esse gozo do corpo do gozo fálico. Para isso, é preciso que vocês vejam como é feito o nó borromeu.

JA = Jouissance de l'Autre (GO = Gozo do Outro) Jf = Jouissance phallique (Gf = Gozo fálico) Que o gozo fálico se torne anômalo ao gozo do corpo, isso é algo que já foi percebido mil vezes. Não sei quantos caras aqui estão um pouco por dentro dessas histórias babacas que nos chegam da índia, kundalini, como eles chamam. Há os que designam assim esta coisa trepadeira ao longo de toda sua medula, como eles dizem, porque desde então se fizeram alguns progressos em anatomia, enquanto os outros explicam isso de um modo que concerne à espinha do corpo, eles imaginam que é a medula e que isso sobe aos miolos. O fora-do-corpo do gozo fálico, para ouvi-lo - e nós o ouvimos esta manhã, graças ao meu prezado Paul Mathis, que é igualmente aquele a quem eu fazia um grande

cumprimento pelo que li dele sobre escritura e psicanálise, ele nos deu um formidável exemplo disso hoje de manhã. Não tem muitas luzes, esse Mishima. E para dizer que foi São Sebastião que lhe deu a oportunidade de ejacular pela primeira vez, é realmente preciso que isso o tenha impressionado, essa ejaculação. Vemos isso todos os dias, gente que nos conta que sua primeira masturbação, eles lembrarão sempre, que isso arrebenta a tela. De fato, compreende-se bem por que isso arrebenta a tela, porque isso não vem de dentro da tela. Ele, o corpo, se introduz na economia do gozo (foi daí que parti) pela imagem do corpo. A relação do homem, do que se chama por esse nome, com seu corpo, se há algo que sublinha bem que ela é imaginária, é o alcance que aí toma a imagem e, no início, sublinhei bem isso, é que era preciso para tal, mesmo assim, uma razão no real, e que a prematuração de Bolk - não é minha, é de Bolk, eu nunca quis ser original, quis ser lógico - é que não há, para explicá-la, senão a prematuração, essa preferência pela imagem que vem do fato de que ele antecipa sua maturação corporal, com tudo o que isso comporta, é claro, a saber, que ele não pode ver um só de seus semelhantes sem pensar que esse semelhante toma seu lugar, logo, naturalmente, que ele o vomita. Por que ele é assim, tão enfeudado à sua imagem? Vocês sabem a trabalheira que me deu numa época - porque naturalmente vocês não se aperceberam - a trabalheira que me deu para explicar isso. Quis absolutamente dar a essa imagem não sei qual protótipo num certo número de animais, a saber, o momento em que a imagem tem um papel no processo germinal. Logo, fui buscar o gafanhoto peregrino, o peixe-espinho, a pomba ... Na realidade, não era de jeito nenhum algo como um prelúdio, um exercício. Ou diremos: são petiscos, tudo isso? Que o homem goste tanto de olhar sua imagem, aí está, basta dizer: é assim mesmo. Porém o que há de mais espantoso é que isso permitiu o deslize do mandamento de Deus. O homem é ainda assim mais próximo de si mesmo no seu ser do que em sua imagem no espelho. Então, o que é essa história do mandamento "amarás o próximo como a ti mesmo" se isso não se baseia nessa miragem, que mesmo assim é algo engraçado, mas como essa miragem é justamente o que o leva a odiar não o seu próximo mas o seu semelhante, é uma coisa que passaria um pouco ao largo se não se pensasse que pelo menos Deus deve saber o que diz e que há alguma coisa que se ama mais ainda para cada um do que a sua imagem. O que é impressionante é o seguinte: é que se há alguma coisa que nos dá a idéia do "se gozar" é o animal. Não se pode dar nenhuma prova disso, mas enfim isso parece estar bem implicado pelo que se chama de corpo animal. A questão vem a ser interessante a partir do momento em que é ampliada e em que, em nome da vida, nos perguntamos se a planta goza. É mesmo assim algo que tem um sentido, porque foi mesmo assim aí que nos deram o golpe. Deram-nos o golpe do lírio dos campos. Eles não tecem nem fiam, acrescentaram. Porém é certo que, agora, não podemos nos contentar com isso, pela simples razão de que justamente o que fazem é tecer e fiar. Para nós, que vemos isso no microscópio, não há exemplo mais manifesto de que isso é fiado. Então, talvez seja disso que eles gozem, de tecer e de fiar. Mas isso deixa, mesmo assim, o conjunto da coisa inteiramente flutuante. Resta decidir se vida implica gozo. E se essa questão resta duvidosa para o vegetal, isso só faz valorizar ainda mais que ela não o seja para a fala, que alíngua onde o gozo se deposita, como já disse, não sem mortificá-la, não sem que ela se apresente como madeira morta, testemunha mesmo assim de que a vida, cuja linguagem rejeita, nos dá muito bem a idéia que é algo da ordem do vegetal.

É preciso observar isso de perto. Houve um lingüista que insistiu bastante sobre o fato de que o fonema, isso nunca faz sentido. O chato é que também a palavra não faz sentido, apesar do dicionário. Eu garanto que, numa frase, se possa fazer com que qualquer palavra venha dizer qualquer sentido. Então, se podemos fazer com que qualquer palavra venha dizer qualquer sentido, onde parar na frase? Onde encontrar a unidade elemento? Visto que estamos em Roma, vou tentar aqui dar-lhes uma idéia do que gostaria de dizer sobre o que é esta unidade do significante a ser buscada. Há, vocês sabem, as famosas três virtudes ditas justamente teologais. Aqui as vemos apresentarem-se às muralhas exatamente em todo lugar sob a forma de mulheres planturosas. O mínimo que se pode dizer é que após isso, a tratá-las de sintomas, não se força a barra, porque definir o sintoma como o fiz, a partir do real, é dizer que as mulheres o exprimem também muito e muito bem, o real, visto que justamente insisto a respeito de que as mulheres não são todas. Então, sobre isso, a fé, a esperança e a caridade, se eu as significo de "feira", "largaesper-ogne"(lasciate ogni speranza4 é um metamorfema como qualquer outro, já que há pouco vocês deixaram passar ourdrome) denominá-los assim e terminar com a rata típica, a saber, "arquirratada5", parece-me que é uma incidência mais efetiva para o sintoma dessas três mulheres. Isso parece-me mais pertinente do que - no momento em que se comece a racionalizar tudo - formula-se por exemplo como estas três questões de Kant com as quais eu tive que me virar na televisão, a saber: o que posso saber? O que me é permitido esperar? (é realmente o cúmulo!) e o que devo fazer? É mesmo muito curioso que ainda estejamos aí. Não é que eu considere que a fé, a esperança e a caridade sejam os primeiros sintomas a serem colocados na berlinda. Estes não são sintomas ruins, mas, enfim, isso mantém perfeitamente a neurose universal, quer dizer que no final das contas as coisas não vão tão mal assim, e que estamos todos submetidos ao princípio da realidade, isto é, à fantasia. Mas a Igreja está aí velando, e uma racionalização delirante como a de Kant é pelo menos o que ela tampona. Tomei este exemplo para não me atrapalhar no que tinha no início começado a dar a vocês como jogo, como exemplo do que é preciso para tratar um sintoma, quando disse que a interpretação deve sempre ser - como se diz, graças a Deus, aqui e ontem ainda, a saber Tostain - o ready-made, Marcel Duchamp, que ao menos vocês ouçam disso alguma coisa, o essencial que há no jogo de palavras, é isso que nossa interpretação deve visar para não ser aquela que alimenta o sintoma de sentido. E vou confessar-lhes tudo, por que não? Esse troço, esse deslizamento da fé, da esperança e da caridade para a feira - digo isso porque houve alguém na entrevista à imprensa que achou que eu ia longe demais nesse assunto de fé e de feira; é um dos meus sonhos, eu tenho decerto o direito, tal como Freud, de lhes contar meus sonhos; contrariamente aos de Freud, eles não são inspirados pelo desejo de dormir, é mais o desejo de despertar que me move. Mas, enfim, é particular. Enfim, este significante-unidade é capital. É capital, mas o que há de sensível é que sem isso, é manifesto, o próprio materialismo moderno, podemos estar certos de que ele não teria nascido, se há muito tempo isso já não inquietasse os homens, e se nessa

inquietação, a única coisa que se mostrasse estar ao seu alcance fosse sempre a letra. Quando Aristóteles como qualquer um começa a dar uma idéia do elemento, é preciso sempre uma série de letras, rsi, exatamente como nós. Não há alhures nada que dê de início a idéia de elemento, no sentido do grão de areia que, creio, eu evocava há pouco (talvez esteja também num desse troços que pulei, pouco importa) a idéia do elemento, a idéia da qual disse que só se podia contar e nada nos pára nesse gênero; por mais numerosos que sejam os grãos de areia - já houve um Arquimedes que o disse - por mais numerosos que sejam, chegaremos sempre a calibrá-los - tudo isso só nos vem a partir de algo que não tem melhor suporte senão a letra. Mas isso quer dizer também, porque não há letra sem alíngua, é mesmo esse o problema, como é que alíngua pode precipitar-se na letra? Nunca fizemos nada de muito sério sobre a escritura. Mas mesmo assim valeria a pena, porque aí está exatamente uma junção. Então, que o significante seja posto por mim como representando um sujeito junto a um outro significante é a função que se verifica disso, como há pouco alguém também notou, fazendo de alguma forma trilha ao que posso lhes dizer, é a função que só se verifica numa tal decifração que, necessariamente, é à cifra que retornamos, é que é esse o único exorcismo do qual é capaz a psicánalise, é que a decifração se resume ao que faz a cifra, ao que faz com que o sintoma seja algo que antes de tudo não cessa de se escrever do real, e que ir domá-lo até o ponto em que a linguagem possa fazer dele equívoco, eis aí o meio pelo qual é ganho o terreno que separa o sintoma do que vou lhes mostrar nos meus desenhozinhos, sem que o sintoma se reduza ao gozo fálico. Meu "se goza" de introdução, o que é o testemunho disso para vocês, é que o analisante presumido de vocês se confirma ser tal pelo fato de que ele retorna; por que, pergunto a vocês, por que ele retornaria, haja vista a tarefa em que vocês o colocam, se isso não lhe desse um prazer louco? Afora que, ainda por cima, muitas vezes ele acrescenta, a saber, é preciso que ele ainda faça outras tarefas para satisfazer a análise de vocês. Ele se goza de alguma coisa, e de jeito nenhum se "eugoza", porque tudo indica, tudo deve mesmo indicar que vocês não lhe pedem de jeito algum para "daseinar", para estar aí, como eu o estou agora, mas antes e muito pelo contrário para pôr à prova esta liberdade da ficção de dizer qualquer coisa que em retorno vai se verificar ser impossível, quer dizer que o que vocês pedem a ele é exatamente para deixar essa posição que acabei de qualificar de Dasein e que é simplesmente aquela com a qual ele se contenta; ele se contenta justamente em se queixar disso, isto é, em não ser conforme ao ser social, a saber, que haja algo que fique atravessado. E, justamente, que algo fique atravessado, é isso que ele percebe como sintoma, e como tal, sintomático do real. Então, ainda há a abordagem que ele faz de pensá-lo, mas isso é o que chamamos de benefício secundário em toda neurose. Tudo o que digo aqui não é obrigatoriamente verdadeiro para a eternidade; aliás, isso me é completamente indiferente. É que a própria estrutura do discurso que vocês só fundam ao reformar, até mesmo reformar os outros discursos, enquanto que ao de vocês eles ex-sistem. É no discurso de vocês que o falasser esgotará esta insistência que é a dele e que nos outros discursos fica faltando. Então, onde se aloja esse "isso se goza" nos meus registros categóricos do imaginário, do simbólico e do real?

Para que haja nó borromeu, não é necessário que minhas três consistências fundamentais sejam todas tóricas. Como talvez tenha chegado aos seus ouvidos, vocês sabem que uma reta tem a possibilidade de se morder o rabo ao infinito. Então, do imaginário, do simbólico e do real, pode haver um dos três, o real seguramente que se caracteriza justamente pelo que eu disse: por não fazer todo, isto é, por não se fechar.

Suponham até que seja a mesma coisa para o simbólico. Basta que o imaginário, a saber, um dos meus três toros, manifeste-se como sendo bem o lugar onde certamente se anda em roda para que, com duas retas, isso faça nó borromeu. O que vocês vêem aí talvez não seja por acaso que se apresente como o entrecruzamento de dois caracteres da escrita grega. Talvez seja também algo inteiramente digno de introduzir o nó borromeu. Rompam a continuidade da reta assim como a continuidade do círculo. O que resta, quer seja uma reta e uma roda, ou quer sejam duas retas, é inteiramente livre, o que é bem a definição do nó borromeu. Dizendo-lhes tudo isso, tenho a impressão - até mesmo anotei no meu texto - de que a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, contornando-se de uma maneira da qual afinal de contas não posso dizer que não dou aqui o exemplo. Não se deve acreditar que ao aceitar o desafio lançado por ela, ao marcar em tudo o que nos concerne até que ponto nós dependemos dela, não se deve acreditar que faço isso assim de bom grado. Acharia melhor que isso fosse menos tortuoso. O que me parece cômico é que simplesmente não se perceba que não há nenhum outro meio de pensar e que psicólogos à procura do pensamento que não seria falado suporiam de certo modo que o pensamento puro, se ouso dizer, seria melhor. No que há pouco avancei de cartesiano, o penso logo sou, nomeadamente, existe um erro profundo, é que o que o inquieta é quando ele imagina que o pensamento é extensão, se assim se pode dizer. Mas é bem o que demonstra que não há outro pensamento, se posso dizer, puro, pensamento não submetido às contorções da linguagem, senão justamente o pensamento da extensão. E, então, àquilo ao qual gostaria de introduzi-los hoje e que, afinal de contas, depois de duas horas, só fracasso, só rastejo, é o seguinte: é que a extensão que supomos ser o espaço, o espaço que nos é comum, a saber, as três dimensões, por que cargas d'água isso jamais foi abordado pela via do nó? Dou uma escapadinha, uma evocação citatória do velho Rimbaud e do seu efeito de barco bêbado, se posso dizer: "Senti-me libertar dos meus rebocadores". Não há nenhuma necessidade de rimbarco, nem de poata, nem de Etiopoata, para se levantar a questão de saber por que as pessoas que incontestavelmente talhavam pedras - e isso é a geometria, a geometria de Euclides por que essa gente que tinha ainda assim que

erguê-las em seguida no alto das pirâmides, e não o fazia com cavalos; todos sabem que os cavalos não puxavam lá grande coisa enquanto não se tinha inventado a coleira, como é que, essa gente que puxava ela mesma todos esses troços não foi em primeiro lugar a corda e conseqüentemente o nó que veio em primeiro plano na sua geometria? Como é que não viram o uso do nó e da corda, essa coisa na qual a matemática, mesmo a mais moderna, é o caso de se dizer, perde a corda, pois não se sabe como formalizar o que tange o nó; existe um monte de casos onde se perdem as estribeiras; não é o caso do nó borromeu; o matemático percebeu que o nó borromeu era simplesmente uma trança, e o tipo de trança do gênero mais simples. É evidente, pelo contrário, que esse nó aqui eu o coloquei para vocês no alto (Figura 3) de uma maneira tanto mais impressionante que nos permite que nem todas as coisas dependam da consistência tórica do que quer que seja, mas ao menos de uma; e essa ao menos uma é ela que, se vocês encurtarem indefinidamente, pode lhes dar a idéia sensível do ponto, sensível pelo fato de que se não supomos o nó manifestar-se já que o toro imaginário que coloquei aqui se encurte, encurtasse ao infinito, não temos nenhuma idéia do ponto, porque as duas retas tal como acabo de inscrevê-las para vocês, as retas às quais aplico os termos do simbólico e do real, elas deslizam uma sobre a outra, se posso dizer, a perder de vista. Por que é que duas retas sobre uma superfície, sobre um plano, se cruzariam, se interceptariam? Bem que a gente se pergunta! Onde é que já se viu o que quer que seja que pareça com isso? Salvo ao manejar a serra, claro, e imaginar que o que faz aresta num volume basta para desenhar uma linha, como é que fora deste fenômeno do serrar, pode-se imaginar que o encontro de duas retas é o que faz um ponto? Parece-me que é preciso ao menos três delas. Isso, claro, nos leva um pouco mais adiante. Vocês lerão este texto que vale o que é, mas que ao menos é divertido. É

preciso

ainda

assim

que

mostre

para

vocês.

Isso

certamente designa a maneira como o nó borromeu, afinal de contas, vai bem ao encontro dessas famosas três dimensões que imputamos ao espaço, sem aliás nos privarmos de imaginar tantas quantas quisermos e vermos como isso se produz. Um nó borromeu se produz justamente quando o colocamos nesse espaço. Vejam aqui uma figura à esquerda, e é evidentemente fazendo deslizar de uma certa maneira esses três retângulos (Figura 5) que, aliás, fazem perfeitamente nó por si só, é fazendo-os deslizar que se obtém a figura de onde sai tudo o que diz respeito ao que lhes mostrei há pouco do que constitui um nó borromeu, tal como somos obrigados a desenhá-lo.

Então, esforcemo-nos mesmo assim para ver do que se trata, a saber, que neste real produzem-se corpos organizados e que se mantêm na sua forma; é o que explica que corpos imaginam o universo. No entanto, não é surpreendente que fora do falasser não tenhamos nenhuma prova de que os animais pensam além de algumas formas às quais supomos que eles sejam sensíveis ao que eles respondem de maneira privilegiada. Mas aí está o que não vemos e que os etologistas, coisa muito curiosa, colocam entre parênteses (vocês sabem o que são os etologistas, são pessoas que estudam os hábitos e costumes dos animais): não é uma razão para que imaginemos que o mundo é mundo, o mesmo, para todos os animais, se posso dizer assim, enquanto que temos tantas provas de que mesmo que a unidade do nosso corpo nos force a pensá-lo como universo não é evidentemente mundo que ele é, ele é imundo. Mesmo assim, é do mal-estar que Freud nota em algum lugar, do mal-estar na civilização, que procede toda nossa experiência. O que há de impressionante é que o corpo, para esse mal-estar, contribui de um modo que sabemos muito bem animar animar se posso dizer - animar os animais de nosso medo. De que temos medo? Isso não quer dizer simplesmente: a partir de que temos medo? De que temos medo? De nosso corpo. É o que manisfesta esse fenômeno curioso sobre o qual fiz um seminário um ano todo e que denominei angústia. A angústia é justamente alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo. Como, mesmo assim, é muito curioso que essa debilidade do falasser tenha conseguido chegar até aí, percebeu-se que a angústia não é o medo de qualquer coisa da qual o corpo pudesse se motivar. É um medo do medo, e que tão bem se situa em relação ao que hoje gostaria de poder, mesmo assim, dizer-lhes - porque há 66 páginas que fiz a estupidez de parir para vocês, naturalmente não vou me meter a falar assim indefinidamente - gostaria de pelo menos mostrar-lhes isso: no que imaginei para vocês ao identificar cada uma dessas consistências como sendo a do imaginário, do simbólico e do real, o que faz lugar e assento para o gozo fálico, é esse campo que, ao colocar em plano o nó-borromeu, especifica-se na intersecção que vocês vêem aqui

Essa própria intersecção, tal como as coisas figuram-se do desenho, comporta duas partes, já que há uma intervenção do terceiro campo que dá esse ponto cujo cerramento central define o objeto "a". Como lhes disse há pouco, é sobre esse lugar do mais-gozar que se liga todo gozo; e então o que é externo em cada uma dessas intersecções, o que num dos campos é externo, em outros termos, aqui o gozo fálico, o que aqui escrevi do JF, é isso que define o que qualifiquei há pouco como sendo seu caráter fora-do-corpo. A relação é a mesma que a do círculo da esquerda, onde jaz o real, em relação ao sentido. É nisso que insisto, que insisti, notadamente na entrevista à imprensa, é que ao nutrir o sintoma, o real, de sentido, não se faz outra coisa senão lhe dar continuidade de subsistência. É, ao contrário, enquanto algo no simbólico se cerra do que chamei o jogo de palavras, o equívoco, o qual comporta a abolição do sentido, que tudo o que concerne ao gozo, e notadamente ao gozo fálico, pode igualmente se cerrar, pois isso não anda sem que vocês se apercebam do lugar do sintoma nesses diferentes campos.

Eis aí tal como ele se apresenta ao se colocar em plano o nó borromeu (Figura 7). O sintoma é irrupção dessa anomalia em que consiste o gozo fálico, na medida em que aí se mostra, se desabrocha essa falta fundamental que qualifico de não-relação sexual. É como na interpretação, é unicamente sobre o significante que porta a intervenção analítica que alguma coisa pode recuar do campo do sintoma. É aqui no simbólico, o simbólico, na medida em que é alíngua que o suporta, que o saber inscrito d'alíngua, que constitui propriamente falando o inconsciente, se elabora, ganha sobre o sintoma, isso não

impedindo que o círculo marcado aí com S não corresponda a algo que, desse saber, não será nunca reduzido, é, a saber, o Urverdrängt de Freud, o que do inconsciente jamais será interpretado. Em que consiste o que escrevi, em nível do círculo do real, a palavra "vida"? É que, incostestavelmente, da vida, depois desse termo vago que consiste em anunciar o gozo da vida, da vida não sabemos nada mais, e tudo ao que nos induz a ciência é a ver que não há nada de mais real, o que quer dizer nada de mais impossível, do que imaginar como pôde dar sua partida essa construção química que, de elementos repartidos no que quer que seja e que de algum modo queiramos qualificá-la pelas leis da ciência, começaria de repente a construir uma molécula de DNA, ou seja, alguma coisa que para vocês ressaltei que muito curiosamente é aí que já se vê a primeira imagem de um nó, e que se há algo que deve nos surpreender é que se tenha notado tão tarde que alguma coisa no real - não pouca coisa, a vida mesma - se estrutura de um nó. Como não se surpreender que, depois disso, não encontremos em lugar algum, nem na anatomia, nem nas plantas trepadeiras que pareciam expressamente feitas para isso, nenhuma imagem de nó natural? Vou lhes sugerir algo: isso não seria aí um certo tipo de recalque, de Unverdrängt? Enfim, mesmo assim, não vamos sonhar demais, temos muito o que fazer com nossos rastos. A representação, até e inclusive o pré-consciente de Freud, separa-se então completamente do Gozo do Outro (JA), Gozo do Outro enquanto parassexuado, gozo para o homem da suposta mulher, e inversamente para a mulher, que não temos que supor já que a mulher não existe, mas para uma mulher, ao contrário, gozo do homem que, ele, é todo, infelizmente, ele é mesmo todo gozo fálico; esse gozo do Outro, parassexuado, não existe, não poderia, não poderia mesmo existir senão por intermédio da fala, fala de amor, notadamente que é bem a coisa, devo dizer, mais paradoxal e mais surpreendente e da qual, evidentemente, é completamente sensível e compreensível que Deus nos aconselhe a não amar senão a seu próximo e não de modo algum a limitar-se à sua próxima, pois se se fosse a sua próxima ir-se-ia simplesmente ao fracasso (é o princípio mesmo do que chamei há pouco de arquirratada cristã); esse gozo do Outro, é aí que se produz o que mostra que tanto o gozo fálico é fora do corpo quanto o gozo do Outro é fora da linguagem, fora do simbólico, pois é a partir daí, a saber, a partir do momento em que se capta o que há - como dizer - de mais vivo ou de mais morto na linguagem, ou seja, a letra, é unicamente a partir daí que temos acesso ao real. Esse gozo do Outro, todos sabem a que ponto é impossível, e mesmo contrariamente ao mito que Freud evoca, a saber, que o Eros, isso seria fazer um, justamente é isso que mata a gente, é que em nenhum caso dois corpos podem fazer um, por mais que se apertem; não cheguei a ponto de colocá-lo no meu texto, mas tudo o que se pode fazer de melhor nesses famosos enlaces é dizer "me aperte forte !", mas não se aperta tão forte que o outro acabe morrendo disso. De forma que não há nenhuma espécie de redução ao um. É a mais formidável piada. Se há algo que faz o um é mesmo assim o sentido do elemento, o sentido do que tem a ver com a morte. Digo tudo isso porque se faz certamente muita confusão por causa de uma certa aura em torno do que exponho, se faz certamente muita confusão sobre o sujeito da linguagem: não acho de jeito nenhum que a linguagem seja panacéia universal; não é porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem, quer dizer, que é o que há de melhor, que por isso o inconsciente não dependa estreitamente d'alíngua, quer dizer, do que faz com que toda alíngua seja uma língua morta, mesmo que ela esteja ainda em uso. É

somente a partir do momento em que alguma coisa se decape dela que se pode achar um princípio de identidade de si para si, e não é alguma coisa que se produza no nível do Outro, mas no nível da lógica. É na medida em que se chega a reduzir toda espécie de sentido, que se chega a essa sublime fórmula matemática da identidade de si para si, que se escreve: x=x. No que concerne ao gozo do Outro, há apenas uma única maneira de preenchê-lo e, propriamente falando, é o campo onde nasce a ciência, onde a ciência nasce na medida em que, bem entendido, como todo mundo sabe, foi unicamente a partir do momento em que Galileu fez umas pequenas relações de letra a letra com uma barra no intervalo, quando definiu a velocidade como relação de espaço e tempo, foi só a partir desse momento, como mostra bem um livrinho que minha filha cometeu, que se saiu de toda essa noção de uma certa forma intuitiva e emperrada do esforço, que fez com que se pudesse chegar a este primeiro resultado que era a gravitação. Fizemos desde então alguns pequenos progressos, mas no que é que isso dá, afinal de contas, a ciência? Isso nos dá alguma coisa para colocar no lugar do que nos falta na relação, na relação do conhecimento6, como dizia há pouco, nos dá nesse lugar, afinal de contas o que, para a maioria das pessoas, todos aqueles que aqui estão em particular, se reduz a engenhocas: a televisão, a viagem à Lua e, ainda assim, a viagem à Lua vocês não farão, só existem alguns selecionados. Mas vocês vêem isso na televisão. É isso, a ciência parte daí. E é por isso que tenho esperança no fato de que, passando por baixo de toda representação, chegaremos talvez a ter sobre a vida alguns dados mais satisfatórios. Então aí o círculo se fecha sobre o que acabo de lhes dizer há pouco: o futuro da psicanálise é algo que depende do que advirá desse real, ou seja, se as engenhocas, por exemplo, ganharão verdadeiramente a dianteira, se chegaremos a ser, nós mesmos, verdadeiramente animados pelas engenhocas. Devo dizer que isso me parece pouco provável. Não chegaremos a fazer com que a engenhoca não seja um sintoma, pois ela o é, por enquanto, muito evidentemente. É bem certo que se tem um automóvel como uma falsa mulher, faz-se questão absoluta de que isso seja um falo, mas isso não tem relação com o falo senão pelo fato de que é o falo que nos impede de ter uma relação com alguma coisa que seria nosso respondente sexual. É o nosso respondente parassexuado, e todos sabem que o "para" consiste em que cada um fique do seu lado, que cada um fique ao lado do outro. Resumo-lhes o que havia aí, nas minhas 66 páginas, com minha boa resolução inicial que era a de ler; fazia isso com uma certa intenção porque, finalmente, açambarcar a leitura era igualmente desencarregá-los disso, e talvez fazer com que vocês pudessem, é o que espero, ler alguma coisa. Se vocês chegarem verdadeiramente a ler o que há nessa colocação em plano do nó borromeu, penso que isso seria topar algo que lhes pode ser útil tanto quanto a simples distinção do real, do simbólico e do imaginário. Desculpem por ter falado tanto tempo. (aplausos entusiasmados) (A sessão é encerrada às dezoito horas e trinta minutos) Agradecemos a J. Lacan a autorização de reproduzir aqui este texto a título de introdução ao Congresso. Texto integral, não revisto pelo autor.

1 trad. Ângela Jesuino Ferretto, Celina Ary Mendes Garcia, Gilles Garcia, Luiz Alberto de Farias, Maria Roneide Cardoso Gil e Patricia Chittoni Ramos 2Título original: "La Troisième" - Jacques Lacan - Rome 1er novembre 1974 (après-midi) - 7e Congrès de l'École Freudienne de Paris - Lettres de l'École Freudienne de Paris, 1975, n°16, pp. 177-203. 7° Congresso da École Freudienne de Paris - A Terceira - Roma, 1° de novembro de 1974 - Intervenções de J. Lacan extraídas de Lettres de l'École - Documento de Trabalho da Association Freudienne Internationale - Lettres de l'École n°XVI, pp. 178-203. 3Em português, traduzir-se-ia "discurso de Roma" e "disco-urdroma". Pode-se escutar também ürtraum (em alemão). 4O que quer dizer em português: larga aí toda esperança. 5Em francês, archiraté: anagrama de charité (caridade) e onde se lê/ouve archi-raté, ou seja, arquirratada. Cf. Campos, Augusto de, Rimbaud livre, São Paulo, Perspectiva, 1993, coleção Signos, 2a ed. 6Na transcrição, aparece o termo conséquence [conseqüência], mas na alocução original ouve-se connaissance [conhecimento]. (N. T.).