36 0 25MB
Coleção
~,.,:;
~ . (
Platão e o orfismo
)
'
As origens do pensamento ocidental
Diálogos entre religião e filosofia
Direção Gabriele Cornelli Conselho Editorial: André Leonardo Chevitarese Delfim Leão Fernando Santoro
f
A coleçfo Archai é espelho do trabalho do grupo Archai: as origens do pensamento ocidenral, agora promovido a Cátedra UNESCO Archai. Há quase dez an os, desde 2001, o grupo Archai - desde 201 1 Cátedra UNESCO A rchai - pro1nove investigações, organi1.,a sem inários e publicações (entre eles a revista Archai) com o intuito de estabelecer uma metodologia de trabaJho e de constituir um espaço interdisciplinar de reAexão filos6fic.1 sobre as origens d o pcnsam cnro ocidental. A presente coleção - parte do selo ed.irorial Annablume Clássica - q uer contribu ir para a divulgação no Brasil de p roduções editoriais que busquem compreender, a partir de uma perspecriva culrural mais ampla, nossas origens. Nesse sentido, visando uma apreensão rigorosa d o processo de formação da filosofia, e, de modo mais amplo, do pensamento ocidental, as obras que aqu i são apresenrndas p rocuram confrontar uma tradição excessivamente presentista de contar a h istória do processo de fo rm ação da cultura ocid ental. Noradamentc daquela que pensa a filosofia como um saber "estanque", independente das condições de possibilidade históricas que permit iram a aparição desse tipo de d iscurso. En raizando o "n ascimento da filosofia" na cultu ra antiga, contrapo ndo-se às _lições de uma h isroriogra.fia filosófica racionalista que, anacronicam cntc, projeta sobre o con texto grego valores e procedimentos de u ma razfio instrumental estranha às nu'ilri plas formas do logos antigo, a coleção Archai pretende contri buir para o l:mçamcnro de um o lhar novo sobre os p rimórdios d o pensamenro ocidental, em busca de novos camin hos hermenêm icos de nossas identidades intelectuais, éticas, artísticas e culturais.
ALBERTO B E RNABÉ
Tradução para o português de DENNYS GARCIA XAVIER
Conheça os títulos desta coleção no final do livro.
li•
Universidade de Brasma do,.~~
~-;:,-RO_ ... _..__..........
•e:::.:.,! ~
/\N~UME
,
CLÁSS
I CA
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: "PLATÃO IMITA O RFEU"
15
PRI MEIRA PARTE: PLATÃO SE REFERE A O RFEU E A SEUS SEG UIDORES
1. REFERJl.NCLAS DE PLATÃO A ORFEU l. 1. A LlN HAGEM DE ORFEU
1.2. ORFEU, POETA, PROFETA E MÚSICO MARAVILHOSO 1.3. ORFEU, DESCOBRIDOR 1.4. O IU'EU DESCE AOS INFERNOS 1.5. A MORTE DE ORFEU 1.6. REl:'ERf.NCLAS A O BRAS OE O RFEU 1.7. UM ALTER EGO, MUSEU 1.8. PL.A:l'ÃO FAZ REFERf.NCLA A O BRAS DE ORFEU 1.9. CONCLUSÕES SOBRE AS REFERJl.NCLAS PLATÓN ICAS A ORFEU
31 33 33 37 42 43 49 52 58 60 70
2. REFERf.NCIAS DE PLATÃO A SEGUIDO RES DE ORFEU
2. 1. DIVERSAS FORMAS DE SEGUIR ORFEU 2.2. SEGUIDORES PO ~T ICOS DE O RFEU
79 80
2.3. A "VIDA ÓRFICA"
82
ADIVINHOS, MAGOS E CHARLATÕES
DA ALMA
85 106
2.6. UM "CATÁLOGO" DE SEGUIDORES DE ORFEU 116
8 fo8m
7 .5. DE QUEM É A ETIMOLOGIA DE A PARTIR DE
11 9
196
7.4. SOBRE O VALOR DE
2.7. CONCLUSÕES SOBRE AS REFE~NCIAS PLAJ"ÔNICAS A SEGUIDORES DE ORFF.U
189
7 .3. O CORPO COMO "SINAL" OU "MANIFESTAÇÃO"
2.4. PROFISSIONAIS DAS TELETAJ, M ENDIGOS,
2.5. INTr-RPRETES DA PALAVRA ÓRFICA
7.2. O CORPO COMO SEPULTURA DA ALMA
7.6.
199
awµa
CTWL( w?
2 00
UM PARALELO: INTERPRETAÇÃO DE UM TEXTO HESIÓDICO
203
SEGUNDA PARTE: ECOS DAS DOTRJNAS ÓRFICAS F.M PLATÃO 12 1
7.7. A QUEM "ALGUNS" SE REFEllE?
3 . QUEST ÕES DE MÉTODO
7 .8. O CORPO-CÁRCERE E A AI.MA SOB CUSTÓDIA213
123
206
3. 1 . ORDENAÇÃO DO MATERIAL
123
7 .9. O CASTIGO DA ALMA
223
3.2. UMA BUSCA EM DUAS DI REÇÕES
127
7. 10. CONCLUSÕES
225
4. MITOS COSMOGÔNICOS E TEOGÔNICOS
129
8. O MITO DE D ION ISO E OS T ITÃS
23 1
4. 1. UM COMEÇO
129
8. [ . A "NATUllEZA TITÂNICA"
23 1
4.2. PRIME.I RAS GERAÇÕES D E DEUSES
133
8 .2. O MITO ÓRFICO DE DlONISO F. OS TITÃS
234
4.3. GEOGRAFIA INFERNAL
143
8.3. DÚVIDAS SOBllE A ALUSÃO AO M ITO ÓRFICO
4.4. llEFERflNCIAS DUVIDOSAS
146
E TEOGÔN ICOS 5 . MODELOS DO COSMOS 6. A IMORTALIDADE DA AUvlA E A T RANSMIGRAÇÃO 6.1. IMORTAi.iDADE E T RANSMIGRAÇÃO DA ALMA
EM PLATÃO 8.4. OUTRA PASSAGEM DAS LEIS
4.5 . BALANÇO SOBRE OS M ITOS COSMOGÔNICOS 148
J 55
238
8.5. OUTROS TEXTOS PLATÓN ICOS COERENTES COM NOSSA INTERPRETAÇÃO
15 1 1 55
236
8.6. BALANÇO 9. VISÕES DO ALÉM: PR.ÊMIOS E CAST IGOS DA ALMA
242 245 247
6.2. UMA IDÍ"A ESTRAN l-lA PARA OS GREGOS
17 0
9.1. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
6.3. ÓRFICOS F. PITAGÓRI COS
172
9.2.
6.4. A HIERARQUIA DAS llEENCARNAÇÔES
174
9.3. O ALÉM NO FÉDON
260
177
9.4. ESCATOLOGIA NA REPÚBLICA
275
6.6. A NORMA DIVINA QUE PRESIDE A REENCARNAÇÃO 180
9.5. A ESCATOLOGIA DO AXÍOCO
284
6. 7. CONCLUSÕES
9.6. RECAPITULAR E COMPARAR
292
6.5. O LONGO PERíODO ATÉ A LLBERTAÇÃO
7. ALMA E CORPO:
awµa-a~µa
7.1. UMA DISCUSSÃO ETIMOLÓGICA
18 1
185 185
o
247
IMAGINÁRIO ui.:n~UNDANO NO GÓRGIAS250
10. JUSTIÇA E RETRIBUIÇÃO
l 0 . 1. l'REPAI~ÇÃO
3 01 3·01
UFRJ INSTITUTO 01
flLOSí'!'"lt' 1 CIENC;'f~_Si>OCJAII
10.2. UMA PASSAGEM DAS LEIS
302
TERCEIRA PARTE: A TRANSPOSI ÇÃO PLATÓN ICA
365
10.3. PUREZA E JUSTIÇA
307
13. MÉTODOS DA TRANSPOSIÇÃO PLATÓNICA
367
l 0.4.
13.1.
A TRANSPOSIÇÃO
367
13.2.
A MANEIRA DE APRESENTAR A CITAÇÃO
368
13.3.
OMISSÃO
370
320
13.4.
ADIÇÃO
372
323
13.5.
MODIFICAÇÃO
374
13.6.
RECONTEXTUALIZAÇÃO
375
13.7.
INTERPRETAÇÃO DE ENI GMAS
376
13.8.
ETIMOLOGIA
380
13.9 .
MITOLOGIA
385
IDEIAS ASSOCIADAS: CASTIGO E COMPENSAÇÃ03 10
10.5. ALUSÕES CÓM ICAS A PR.ÊMIOS E CASTIGOS NO ALÉM 10.6. JUSTIÇA NA TCONOGRAFIA APULIA 10.7. CONCLUSÃO 11.
A
314
IMAGEM DE ZEUS
325
1 1. 1. O ZEUS DAS LEIS
325
11.2 . APERFEIÇOAMENTO DA FIGURA DE ZEUS E DOS DEUSES 11.3. A ELABORAÇÃO PLATÔNlCA ] 2 . RITOS ÓRFICOS E INICIAÇÃO FILOSÓFICA
327 330 333
QUARTA PARTE: SÍNTESE
12. 1. ATlTUDE PLATÓNICA DIANTE DOS RITOS ÓRHCOS
333
12.2. REFERÊNCIAS A RITOS E UTERAfURA IUTUAL ÓRFJCA
334
12.3. IN ICIAÇÃO
338
12.4. PURJFICAÇÃO
340
12.5 . U BERTAÇÃO
34 1
1 2.6. MÚSICA E DANÇA
343
12.7. "JoGos'.'
347
12.8. ENTRONIZAÇÃO
348
12.9. MAG IA
349
12.10. ADIVINHAÇÃO
35 1
12.11. MISTAS E BACOS
352
12. 12. UMA ATlTUDE DEPRECIATIVA E U MA POSS IBILIDADE DE AVALIAÇÃO POSITIVA
356
360
c,ld'
14. AT lTUDES DE PLATÃO FRENTE@ ORFISMO
389 39 1
14.1.
INTRODUÇÃO
39 1
14.2.
O PERSONAGEM DE ORFEU
392
14.3.
SEGUIDORES DE ORFEU
394
14.4.
A LITERATURA ÓRHCA
397
14.5.
CONTEÚDOS DA DOUTRINA ÓRFICA: VISÃO GERAL
14.6.
398
RECEPÇÃO DO ORFJSMO ANTES DE PLAfÃO 403
14.7.
O ORFISMO EM PÍN DARO
405
14.8.
EMPÉDOCLES
407
1 4.9.
EURfPIOES
408
14. 10. RECEPÇÃO PLATÔN lCA DA LITERATURA E DAS DOUTRINAS ÓRFICAS
409
14. 11 . LITERATURA TEOGÓNICA E COSMOLÓGICA 410 14.12.
12. 1 3. TRANSPOSIÇÃO l'LATÔNICA DE MODELOS ÓRFICOS
386
13. 10. BALANÇO
Kmá.~cxaLç E LEQoi.AóyOL
14.13. LITERATURA IUTUAL; ENSALMOS
411 4 11
14.14. LITERATURA EXEGJ!:rtCA l 4.1 5. TEORIAS SOBRE A AI.MA 14. J 6. D EPOIS DE PLATÃO 14.1 7. CONCLUSÃO
412 413 414 415
APtND! Ct:: TEXTOS E TRADUÇÕES
41 7
BIBLIOGRAFIA
515
ÍNDICE DE PASSAGENS CITADAS
549
INTRODUÇÃO "PLATÃO IMITA ORFEU"
E Platão imita Orfeu em todas as parte.,·1•
A &ase
de Olimpicxloro que nos serve de froncispício revela que o filósofo neoplatônico do VI d.C. estava convencido de que Platão p raticava com o orfismo uma imitação, que naturalmente não entenderemos como uma paródia burlesca, mas como uma fo rma de alusão, com certas al terações e com uma intenç:ío determinada, a conteúdos próprios da religião e d a literatura órficas, conhecidos como tais por quem os ouvia ou lia. Insiste, além disso, que tal proceder afeta toda a sµa obra. Situei a frase como po nto de partida desta indagação porque, em grande medida, é d isso
l.
O lympiod. in J'L. l'hned. 10.3 ( 14 1 Wesrerin k = OF338 ll). Repete quase que lice.-almcntc a frase c m 7. 10 (I 15 Wesrcrink = OF 576 Til).
que se trata: de determinar em que consiste tal "imitação" e de ver se o seu alcance é tão grande como pretendia O limpiodoro quando considerava que se encontra "em todas as partes". A questão não é ociosa. Em primeiro lugar, porque parece fora de discussão que as referências de Platão são imprescindíveis para a reconstrução da literatura e da religião órficas na época clássica, motivo pelo qual é preciso avaliar em que medida podemos confiar em seu testemunho. Em segundo lugar, porque se dá o paradoxo de que, não obstante o inAuxo ó rfico sobre Platão ser algo dado por certo2 , são raros os casos em que o tema foi especificamente tratado. Um primeiro balanço da questão foi feito por Weber, no fim do século XIX, em um trabalho de pouco m ais de quarenta páginas, limitado às notícias sobre Orfeu e as referências explícitas sobre a sua obra 3• N ão seria necessário dizer qu e tal balanço ficou sumamente datado, o que não impediu qu e, no interior da imensa bibliografia platônica, sigam sendo pouquíssimos os trabalhos dedicados especifi camente a valorizar o influxo órfico sobre Platão'.
2.
3. 4.
Cf., entre outros muitos exemplos que se poderiam apresentar, Robin 1923, 220; Rohde 1907, prwirn; Fríedlander 1928-1930, cap. 111; G ernet- Boulanger 1932, 387-389; Guthrie 1952, 238244. Weber 1899. Pod em ser citados: 13oyancé 1942; Masaracchía 1993; Casadesüs 1995; 2008; além de Corn ford 190 3, limitado a questões muito concretas e muito discutível em d iversos aspectos; Kingslcy 1995, cap. 10 "Plato and O rphcus", 1 l2- 132, que se restringe ao mito
16
M ais ainda, mesmo q ue todos os que se referem a esta questão pareçam ter ideias claras sobre ela, a leitura aleató ria de apenas dois ou três trabalhos sobre o tema nos mostraria profundas divergências, e não apenas nos detalhes, que existem entre os numerosos quadros do Orfismo, cada um deles supostamente claro, reconstruídos por diferentes comentadores. Para uns, os vestígios do orfismo na filosofia platônica são muito profundos, para outros, ao contrário, a influência órfica em nosso filósofo diminui até quase desaparecer. Uma demonstração recente do extremo de tais tendências é um livro editado por Partenie (2009), cujos autores, em mais de 250 páginas dedicadas aos mitos de Platão, se calam cuidadosamente sobre qualquer conexão entre eles e os mistérios, como se fossem uma cri ação ex novo ou como se as alusões aos paralelos órficos contaminassem a impoluta imagem do filósofo. Poscuras tão extremas na interpretação não são estranhas aos que se interessam pelo o rfismo. É sobremaneira sabido que os estudiosos deste capítulo da história rel igiosa e literária dos gregos passaram por profundas idas e vindas interpretativas, desde a "moda órficà' q ue caracterizou o século XIX e o começo do XX5, passando pela crítica que fez Wilamowitz ao in-
do Fédon, e Edmonds 2004 , que se circu nscreve ao rema da viagem da alma para o Além, também no Fédon, e que, ademais, não crê que exista um inHuxo órfico sobre o fi lósofo. Cf., sobre este último, 13ernabé 2006a. 5. O interesse pelo orfismo parte do livro seminal de Lobeck l 829, segu ido por trabalhos como H arrison 1903; Rohde 1907 ou
17
controlado "pan-orfismo"6 que levou às atitudes desaforadamente céticas dos anos centrais do séc. XX, até chegar à recuperação do interesse pela questão nos últimos anos, provocado sobretudo pela descoberta de alguns novos testemunhos de importância capital, como as lâminas de osso de Ólbia, o Papiro de Derveni e várias pequenas lâminas de ouro7 • Dado que farei referência a eles reiteradas vezes ao longo deste livro, vale a pena dizer algumas palavras sobre cada um desses documentos. As lâminas de osso de Ólbia são três pequenas peças (a maior 5,lx4, l x0,2 cm), datadas do século V a.C., e encontradas em 195 1 em Ó lbia, antiga colônia d e Mileto, fundada por volta do VII a.C. e situada na margem ocidental do Dnieper, perto de onde desemboca no Mar Negro, também conhecida pelo nome de Borístenes. Não foram publicadas até 1978 e o conhecimento sobre elas não se generalizou até que voltaram a ser editadas, dois anos mais tarde, em uma
6. 7.
Dieterich 1913, até chegar no livro sobre Orfeu, de Kern 1920 e à edição fundamental dos fragmentos órficos do mesmo autor (Kcrn 1922), ainda que o representante extremo de ral visão tenha sido Macchioro 1922 e 1930. Mantiveram posturas mais brandas Nilsson 1935; G uthrie 1952, Z iegler 1939 e 1942, assim como 13ianchi 1974. Especialmente Wilamowitz-Moellendorff 193 1-1932, seguido por Linforch 1941; Dodds 1951; Moulinier 1955 ou Zunrz 1971. Não considero pertinente estabelecer aqui um estado da questão sobre os estudos acerca do o rfismo nos ülcimos anos. A este propósito, podem ser consultadas as resenhas bibliográficas de Bernabé 1992 e de Sancamaría 2003.
18
publicação e maior difusão. Elas têm graffiti que, não obstante sua brevidade, documentam crenças de um grupo de fiéis de Dioniso que se autodenominavam 8 ó rficos e postulavam uma existência post-mortem • O Papiro de Derveni foi encontrado em 1962 na localidade de mesmo nome, a aproximadamente 12 km ao noroeste de Salônica, entre os restos de uma cremação na assim denominada tumba A. Data-se do IV a.C. e traz referências a determinados ritos iniciáticos em suas primeiras sete colunas e na XX, enquanto q ue as outras se dedicam a um extenso com entário exegético de uma teogonia em verso atribuída a Orferu (e que deve datar-se antes do V a.C.) realizado sobretudo de um ponto de vista físico e filosófico. O autor do comentário é desconhecido, no entanto, parece conhecer as teo rias dos pré-socráticos e propõe ideias 9 que em seguiºd a encontraremos nos estó.1cos . As pequenas lâminas de ouro foram encontradas em tumbas de diversos luga res, especialmente a Magna Grécia, Tessália e Creta. Algumas eram conhecidas desde mui to, porém outras, como a de Hipônio, apareceram nos anos sessenta do século passado, e o utras
8.
Sobre as lâminas de Ólbia, cf. Wesr 1982; Z hmud 1992; Dubois 1996; .Bernabé 2008a, onde há uma bibliografia suplementar. Cf. [T 33c yT 33d J. 9. Da imensa bibliografia dedicada ao Papiro de Derveni, destacaria: Casadcsi'.,s 1995a; Laks-Mosr 1997; Janko 2002; Jourdan 2003; Betegh 2004; Burkerr 2005; Kouremenos-Parássoglou-Tsanrsanoglou 2006; 13ernabé 2007 d; Casadesüs 2008c. C f. [T 10a, T 1 l g,T 13c,T 13d,T 13c,T IScl.
19
ainda mais tarde. As pequenas lâminas trouxeram novos materiais interessantes sobre um grupo de crentes que consideramos ó rficos e que acreditavam poder encontrar no Além um tratamento preferencial, se demonstrassem con hecer determinadas contra-senhas que deveriam dizer, d iante de guardiões e d iante da própria Perséfone'º. Em tais circunstâncias, pode resultar não apenas útil, mas até mesmo indispensável reexaminar as fontes antigas e tomar em consideração as novas, que nos permitem chegar ao conhecimento deste complexo movimento religioso, com a ideia de que uma análise sem parti pris permitirá chegar a algumas conclusões valiosas 11 • Dois serão, portanto, os objetivos fundamentais deste livro 12: de um lado, examinar os testemunhos platônicos sobre o conj un to de mitos, obras literárias e rituais que os gregos relacionavam com Orfeu e com seus seguidores, cotejando-os, para avaliar em que medida podemos confiar neles, com o utros textos em que se faça referência às mesmas questões; por outro lado, uma vez que tenhamos a d isposição
uma ideia mais matizada da situação d o orfismo na época do fi lósofo, para cada um dos aspectos tratados, avaliar o inAuxo que a literatu ra, a prática ritual e o imaginário órficos puderam exercer sobre Platão. Para isto, trata-se de bom ponto de partida o fecundo conceito de "transposição", sugerido há muito por D ies 1:i para definir o modo segundo o qual Platão altera os esquemas herdados para adaptá-los à sua própria doutrina. As dificuldades deste trabalho são, sem dúvida, consideráveis. Não é inútil alud ir às m ais importantes. 1. Não são muitos os testem unh os significativos do orfismo, na época clássica, que possamos cotejar com os de Platão, para ter elementos de juízo ou de referência no momento de valorá-los. 2. Não colaboram muito com os nossos propósitos os hábitos de Piarão ao citar outros autores. O filósofo não apenas não é preciso ao fazê-lo, mas chega a ser frequentemente impreciso, às vezes irônico, outras vezes, distante. Demonstra, além disso, uma desesperadora tendência a intervir livremente não só na interpretação de passagens que cita, mas mesmo nos próprios textos, para acomodá-los a seus próprios esquemas de pensamento. Em tais condições, a valoração de alguns testemunhos se mostra muito difícil.
10. Sobre as lâminas órlicas cf. Riedweg 1998; Bcrnabé- Jiménez San C ristóbal 2001; 2008 (com amplo comentário e bibliografia exaustiva); Pugliese Carrratclli 2003; Edmonds 2004; Torcorclli Ghidini 2006; Graf-Johnston 2007. Cf. fT 25b, T 25c, T36b, T 50a, T 50b, T 50c, T 53a]. 11. Em um trabalho anterior (Bcrnabé 2004a) estabeleci uma comparação enrre os textos órlicos e a filosofia pré-socrática. 12. Nele se unifica m, ampliam, corrigem e atualizam pontos de vista apresentados cm algumas publicações anteriores, algumas delas de não fácil acesso (Bernabé 1995, 1998, 1999, 2002a e 2007b).
13. Dies 1927, 432ss., sobre cujas indicações segue Frmiger 1930; cf. também Schuhl 1934, 205, n. 4, que insiste no fato de que Platão utiliza as experiências m ísticas para tradmir a experiência /ilosó/ica e, mais adiante, Paquer 1973. Cf. § 13.
20
21
3. Frequentemente recorreremos a testemunhos muito posteriores ao filósofo, que, sem dúvida, por um motivo ou por outro, parecem proceder de época mais antiga, dada a tendência dos autores órficos a reelaborar constantemente sua própria tradição literária. Neste ponto se deve usar a máxima prudência, já que os testemunhos tardios podem incorporar alguns elementos da situação do orfismo posterior àquela conhecida por Platão. Em vista desta situação, deve-se atuar com o máximo rigor filológico e não menor cautela; é necessário examinar de modo cuidadoso e crítico os testemunhos platónicos que de um modo claro ou de forma velada façam alusão a Orfeu ou à literatura órfica, à luz do que revelam outros testemunhos contemporâneos ou poste[!ores que possam ser comparados com eles. Antes de prosseguir convém, além disso, que se estabeleça o alcance de cada ui;n dos polos desta investigação. No que diz respeito a Platão, devo precisar um par de questões: uma, que, para todos os efei tos, "Platão" se referirá aos ·conteúdos dos diálogos do corpus Platonicum, incluindo os espúrios, e outra, que, salvo poucas exceções, não tratarei de distinguir o que devemos atribuir o que o personagem Sócrates diz neles ao Sócrates histórico ou a Platão. No que diz respeito ao orfismo, trata-se de assunto mais difícil de precisar. Para ele, recorrerei às conclusões de um trabalho anterior no qual eu analisava os
22
lcsremunhos que tínhàmos à disposição para definir este movimento 14 • Considerarei como "órficos" aqueles que seguiam os ensinamentos religiosos dle obras ou rituais dos quais Orfeu foi considerado o a.utor ou fundador. Trata-se de um grupo bastante heterogêneo, que devemos incluir em círculos dionisíacos, já que os mistérios órficos são mistérios báquicos. Não obstante isso, os "sectários" do dionisíaco que denominamos órficos aceitaram elementos próprios do pitagorismo e de outras formas de espiritualidade do tardo-arcaísmo grego para desenvolver rituais de mistérios que se caracterizam pela crença na metempsicose e em uma forma de puritanismo que preconizava a necessidade de manter a alma pura e o corpo apartado do derramamento de sangue e do contato com produ.tos provenientes de um ser morto. Ao longo do tempo foram criando urna forma de religiosidade individual, cujo interesse básico era a salvação pessoal em OULtra vida que julgavam melhor que esta. A iniciação e os rituais, assim como a leitura dos seus textos, lhes ofereciam urna bagagem de conhecimentos dos mistérios que lhes permitia saber como obter um destino especial no outro mundo, a fim de liberá-los da culpa originária que acreditavam carregar 15 • Uma série de proibições- · rituais os conduzia a tal objetivo. Era, então, uma religiosidade essencialmente tradicional e que se realizava por meio da transmigração de um logos por via iniciá-
14. Bernabé 2005, 138-142. 15 Cf. § 8.
23
tica da mão de sacerdotes itinerantes que ofereciam os seus serviços com base em livros atribuídos a Orfeu 16 • A mensagem, produzida nestes termos, apresenta uma situação contraditória. O caráter tradicional do orfismo provocou a manutenção considerável da sua identidade através dos séculos, de modo que encontramos fraseologia muito semelhante e crenças quase idênticas em testemunhos separados por muitos séculos entre si, porém, ao contrário, por ser uma religião sem comunidades estáveis, organizada em torno de uma m atéria prima de base mítica, doutrinal e ritual expressa literariamente, sem estrutura eclesiástica hierárq uica, nas mãos de alguns intérpretes que ninguém no meava o u legitimava, a não ser eles mesm os, admitia desde o princípio notáveis variações entre os seus diversos seguidores e transmissores 17. A isto, soma-se uma circunstância fundamen tal: trata-se de uma forma de religião que deseja dar resposta a necessidades muito básicas do ser humano, como podem ser a aspiração à imortalidade, os desejos de aproximar-se de uma divindade de m odo m enos distante e oficial do que as religiões do Estado e o anseio por uma .valoração do individuo não dependente de considerações sociais e, portanto, mais igualitária. O o rfismo (ou, se assim o desejarmos, o orfismo e os movimentos similares, já que é um problema determinar o nde se situam os limites entre eles) seria um tipo
16. Casad io 19906, 197. 17. Cf. Casadesús 2006.
24
d,· rel igião pessoal, baseada em alguns textos, com um 111.1rco comum de referência: o dualismo entre alma 11nortal e corpo mortal, o pecado anterior, o ciclo de 1r:insm igrações a liberação da alm a e sua salvação fi11.1I. Sem abandonar completamente este marco co111 um, intermediários de diferentes tipos ofereciam a ucla usuário o que cada um necessitava. Ao responder ;\s necessidades de consolo e salvação individual, esta religião sem dogmas nem igreja, que se abriria livremente a não impo rtava qual usuário, permitia que cada um encontrasse nela o que buscava. Algu ns se conformariam com o que iniciaram e com participar ele alguns ritos que pouco entendiam, pensando q ue ;issim iriam se livrar da lama e cios terrores do Hades, e q ue ficariam a desfrutar de uma existência feliz, comendo e bebendo diariamente em outro m undo. Outros queriam apenas q ue se lhes vendessem uma magia de Orfeu ou uma maldição para livrar-se de uma dor de dente o u de um inim igo indesejável. Outros, ao invés disso, acreditavam encontrar no texto órfico uma mensagem religiosa, filosófica e até m esmo científica profunda, para o que o intermediário ape rfeiçoaria, em cada caso, seus métodos de investigação. Podemos traçar os do is extremos do que devia ser um espectro muito amplo de modos de senti r e transmitir o orfismo. Uma linha, que poderíamos denominar "degradada", insistia em oferecer uma solução rápida aos problemas deste mundo por meio de celebração m ecânica de ritos que tão-somente por m era celebração prometiam a segurança de um destino m elhor na o utra vida. Nesta m esma lin ha, se situavam as
25
soluções mágicas atribuídas a Orfeu, cujo mito contem aspectos próprios da magia. Outra linha, em sentido totalmente contrário, tratava de depurar a mensagem e dar-lhe uma perspectiva filosófica e profunda. Entre ambas as linhas temos, certamente, os simples crentes que tratavam de levar uma vida justa e participavam do rito que lhes oferecia esperanças para o Além como uma forma sincera de preparar-se para a morte. Nilsson 18 considera que o orfismo surgiu em um meio que qualifica de "movimentos nebulosos e supersticiosos que apelavam mais a gente iletrada que a m entes altas". Entendo que tal convicção pode ser apressada. Não podemos simplesmente aceitar tal pressuposto levarmos em conta, por um lado, que alguns testemunhos claramente órficos, como as lâminas, estão escritos em ouro e foram guardados em tumbas espetaculares, como o timpone grande de Turios, e por outro, que os postulados da doutrina órfica atraíram, como veremos, monarcas sicilianos e outros ricos clientes de Píndaro, o que aponta para o elevado status socioeconômico e político de alguns adeptos do· orfismo. Inclusive chamou a atenção de Platão, protótipo de aristocrata ateniense. Tudo isso indica o contrário do que Nilsson propôs, que o movimento órfico surgiu, o u pelo menos teve um especial êxito, em meio à aristocracia de certos lugares que preferiam buscar sua identidade fora dos limites
.lv~tc mundo e uma posição de preeminência no Além. < 'nm ele, transformavam o elitismo social em elitismo ,·" .1tológico e substituíam o yr.voç heroico por um y{:voç cósmico, mesmo que de acordo com o modelo d.,s fo rmas de expressão literária próprias de Homero 19 • O que denominamos orfismo é, então, um fenôme110 um tanto magmático e se poderia discutir o que é propriamente órfico e o que não o é no arco de possibilidades que tracei. Pareceu-me, vale dizer, mais operai ivo manter tal arco, sem intervir dogmaticamente no que não era dogmático, e tornar "órfico" em um sentido .unplo, para me referir a este conjun to de poemas, cren\·as e rituais, relacionados com os mistérios, o dionisíat'O, a transmigração das almas e um Além com prêmios e castigos. O importante é compreender um fenómeno rel igioso e não discutir por meio das etiquetas que serão postas sobre cada manifestação deste fenômeno. Tudo isso sem prejudicar o fato de que esta investigação possa servir, em alguma m edida, para precisar algo mais e fixar-se nos detalhes do que aqui apresentei como esboço de traços sobremaneira espessos. Para proceder com certa ordem, dedico a primeira parte do livro aos testemunhos de Platão sobre O rfeu (§ 1) e sobre os seus seguidores (§ 2). D edicarei especial atenção à forma segundo a qual Platão irntroduz suas referências a Orfeu e aos órficos porque, comoveremos, o resultado desta análise joga enorme luz sobre a atitude que Platão tem com os textos órficos, com
19. Cf. l-lerrero 2008, repassando propostas anteriores.
18. N ilsson 1935.
26
27
o seu suposto autor e com seus seguidores, o que nos permite avançar consideravelmente na interpretação dos seus testemunhos. De igual maneira, a comparação desses com os de outros autores ajudará a determinar em que medida podemos considerar confiável o que o filósofo nos diz. Na segunda parte, trato de avaliar em que medida se pode detectar a presença de crenças órficas em diversos temas referidos, analisados ou modificados por Platão, como os mitos cosmogônicos e teogôn icos, os modelos do cosmos, a imortalidade da alma, a relação desta com o corpo, o m ito de Dioniso e dos T itãs, as imagens do Além , a justiça e a retribuição, a image m de Zeus, os rituais e iniciações. Na terceira parte se examinam os métodos da transposição platônica e na quarta faz-se um balanço do quadro do orfismo que podemos traçar na época do filósofo e da sua atitude diante das questões ma.is importantes, de modo que se estabeleçam as linhas gerais da história da recepção do orfismo antes e depois de Platão. Em um apêndice, trazemos o texto grego e a tradução das passagens referidas, em páginas enfrentadas. Cada uma delas leva um número, precedido pela letra T, que remeterá também às referências entre colchetes ao longo do livro, o que permitirá encontrá-las com facilidade no apêndice. Após alguns testemunhos platônicos aparecerão outros, de outros autores, que trarão o mesmo número de passagem de Platão, porém , seguido de uma letra minúscula (por exemplo, Tl8a, 186 etc.).
28
Ao fina! aparecem elencadas as referências bibl iogdÍicas que no curso da obra se ap resentam de forma .direviada. Completam a obra um índice de passagens 1 iLadas e outro analítico. A pretensão de um livro como este, escrito por 11111 filólogo, é, antes de tudo, a de oferecer um instrumento de trabalho útil e maneável, um repertório organizado de textos significativos e uma depuração da análise de seu significado em sua época e em seu contexto, que permita aos interessados aprofundar-se depois more phiLosophico nas múlt iplas e interessantes questões que se apresentam 20•
20. Desejo explicitar o meu agradecimenro mais profundo a Marco Anronio Sanramaría, q ue leu uma primeira versão da obra e fcr inúmeras ohscrvaçõcs valiosas, que sem dúvida, a enriqueceram, e à Sílvia Porrcs, que confeccionou os índices e revisou o texto, livrando-o de não poucos erros.
29
1.
REFERÊNCIAS D E PLATÃO A ORF E U
1.1 A LIN H AGEM DE O RFEU
º
exame das passagens em que Platão cita Orfeu como personagem nos mostra que, em geral, , ompõem um quadro bastante fiel do q ue pod ería111os deno m inar sua "lenda padrão", mesmo que com .dgumas inovações q ue considero mui to significativas. ( :omecemos p ela sua linhagen:i. N o Banquete, Orfeu é mencio nado co mo fi lho de l•'.,1gro 1, rei da Trácia, uma genealogia q ue enco ntra-
1.
PI. Symp. 179d (OF983) [T l ]. /\ parcir desce po nco as referências enrre parênteses precedidas por OF se referem aos números de fragmencos na edição dos Orphica, publicada pelo aucor desce livro cm 2004-2007. Po r sua vez, os números precedidos por um T enrre colchetes remerem aos cexros do apêndice, de acordo com o que fo i indicado na Introdução.
mos em múltiplos testemunhos2• Porém, de acordo com uma tradição alternativa, da que calvez ten hamos pistas em um verso pindárico, Orfeu era filho de Apolo3. Poderia se pensar que Platão se vale dessa tradição alternativa em uma passagem da República, na q ual fala de Orfeu e de Museu de fo rma alusiva: É também enorme o poder das teletai e dos deuses libertado res, co mo d izem as cidades mais importantes e os fil hos de deuses convertidos cm poetas e profetas dos deuses•.
2.
3.
4.
Cf. OF890-894. Pela sua antiguidade, vale destacar um fragmento de Píndaro (Pind. fr. 128c Machl. = 56 Cannatà Fera = OF 91 2 1) IT Ia]) e outro papiráceo (P.Oxy. 53.3698) atribuído a Eumclo por Debiasi 2003 (OF 1005a 1) IT I b] . Por sua novidade, também devo citar um poema lírico anônimo recentemente publicado (cf. Rawles 2006) IT lc]. Pind. Py. 4.1 76s. (OF 899 1) IT lei] " Da pane ele Apolo (eE. "AnóAAwvo;1 r que tais atividades não são consideradas con11.11 ,.,, às poéticas, mas como uma espécie de subgêne111 d,1 épica. os livros de Orfeu nos fala também o cômico \l1·xis, em seu Lino64, em uma época em que o livro
60. Eur. Hipp. 952ss. (OF 627) [T l Ob] . Cf. Casadesüs 1997c. 6 l. A tradução "entra em êxtase" não reflete a riqueza de sentidos do f3mcxeúnv órfico, q ue tem mais a ver com uma experiência virai permanente.
Por oposição a EfHpv xa "clo rad a ele alma", cf. PI. Leg. 782c [T 1 1J. Alex. fr. 223 . l ss. K.-A., Antiphan. fr. I 33. l s. K.-A., M nesimach. fr. 1 K.-A., Eur. Cret. fr. 472. 18 Kan nicht [T 11 bl, Porphyr. Abst. 2.36, Soko lowski, Lois Sacrées Suppl. n. 1 16 p. 1~)6ss., A 6ss. (cf. Boyancé 1962, 480ss. e a nota ele Sokolowski p.. 197 11 . 6 "parece que o regulamento procede de um círculo órfico ou pitagórico"), Philostr. Vit. Apoll. 6.1 1, Sucla s. v. Pythagoras (IV 263.2 Adlcr) . Vejam-se, ademais, as referências burlescas cios poetas côm icos a estas pessoas em § 10.5 e Bernabé 2004c, 49s. (1 \. Não obsrante, Betegh 2004, 67s. apon ta para a possibilidade de ver nesta referência ao "hu mo" um jogo ele palavras q ue aludiria a um costume ó rfico ele incinerar cadáveres junto com escritos órficos (talvez documentada pelo achado do Papiro de Derveni entre os restos ele uma pira funerária). C,4 . Alex. fr. 140 K.-A. (Athen. l64b, OF I O18 I) [T l Oc]: "Um livro,
56
57
1,
1
ainda era um artigo m uito caro e raro. As o bras de O rfe u são citadas com as de Homero, H esíodo e os trágicos, isto é, com as mais famosas da época65• Os livros atribuídos a este poeta deviam, então, circular na Atenas da época clássica e tudo parece ind icar que h avia em relação a eles uma demanda maior do que nos indicariam as escassas menções q ue nos chegaram sobre a literatura ó rfica deste período 66 .
1.7. UM ALTER ECO, MUSEU Platão m enciona várias vezes, semp re junto a O rfe u, o nom e de o utro poeta m íticó, M useu, freq uen temente vinculado àquele nas fontes an tigas67 . As diferenças na consideração que Platão mostra em relação a este autor são sem elhantes às que manifesta a respeito de O rfeu. N a Apologia68 , o mencio na de forma elogiosa, como um auto r prestigioso, j un to ao quaJ gostaria de poder estar qualquer um dos seus juizes; no fon 69 , faJa sem critica de seus seguidores literários, mesmo que sejam, com o os de O rfeu, uma minoria diante da
65. 66. 67. 68. 69.
ou o q ue queiras, aproxima-te e toma-o, (. ..) está Orfeu, Hcsíodo, tragédias, Q uérilo, Homero, Epicarmo, escritos de todas classes". Orfeu, como tantas vezes, é citado em primeiro lugar, o que indica que era considerado antigo. Trata r-se-ia de uma literatura minoritária, mas não necessariamente secreta, como se pensou. Cf. Mus. frr. 20-23 e introdução aos fragmemos em OF fase. 3. PI. Apol. 4 La (OF 1076 J = Mus. fr. 461) [T 5]. PI. Ion 5366 (OF 1140 = Mus. fr. 20) [T 12].
58
1.I, 111.,io ria dos que seguem H omero; no Protá1, /\ l11scu é elogiado pelo sofista como auto r de , , ndculos71, ainda que tenhamos que matizar l11r•,111, j:I que Platão, como veremos no§ 2.3, deixa 11, \, 1 9 .
11 l,11
No Fédon, ele cita um verso literal, mesmo que 111111 l.111do a ordem das palavras que o compõem: 11111irns são os portadores de tirso, mas os bacantes, I'' 1111 os", e faz referência, precedida pela expressão "di1111 os das teletai", ao faro de que quem não é inicia,h 11cm tenha participado das teletai se afogarão na l 1111,1 do Hades 100 • O limpiodoro cita este m esmo verso • 111 \l' U comentário à passagem e faz notar que "imita 11111 verso órfico"'º' . Penso dizer que o imita porque l 'l.11.10 não toma o verso em seu sentido o riginal. Com , lt- 11 0, Platão adverte que os que instituíram as teletai i""ll'm não ser ineptos, mas q ue, na verdade, fazem , l1q;a r uma mensagem simbólica para imediatamen" .1c:1.bar interpretando o verso no sentido de que as 1w,~oas referidas não são outra coisa senão autênticos fd11~ofos. Trata-se, portanto, de uma interpretação dq;ó rica dada por ele ao famoso verso. Cremos que , n nsidere os órficos pessoas ineptas (já que o poema, 1111 seu sentido literal é, para ele, desprezível), mas que
,,,,.
PI. Leg. 870d ( OF 433 li) [T 37].
1111), PI.
Phaed 69c (OF 434 III, 576 1) [T 41]. Conhecemos o verso c m sua forma corrigida por fontes posteriores, e( OF 576.
1111 . O lympiod. in PI. Phaed. 8.7 (123 Westerink = OF 576 V) [T 4 1a].
67
não o seriam, se o texto é interpretado alegoricamente, para que se encontre um sentido profundo, por detrás dele. Certo que tal interpretação se harmoniza com a ideia 'expressa no Protágoras, segundo a qual Orfeu teria sido um antecessor da sofística que "mascarou" o seu verdadeiro pensamento 1º2 . A segunda alusão à literatura dos mistérios pode ser encontrada no Fédon, introduzida com a expressão: "o relato 103 que se conta sobre isso nos círculos secretos" 104. Que a passagem proceda de um texto ó rfico, isso nos diz o escólio 105 . Trata-se de uma citação fundamental em seu contexto, pois compõe parte da discutida passagem segundo a qual a alma encontrase sob custódia (ev q>QOVQiiL), e cujo conteLJdo tem profundas repercussões no pensamento p latô nico 106. O mais interessante é a conclusão do passo: "pareceme algo grande e não fácil de discernir (ôuô civ)"; como se fosse necessário entrever uma verdade escondida atrás do que parece evidente. Esta linha de interpretação de textos antigos não é original de Platão. Além de a encon trarmos no comentado r do Papiro de Derveni, encontramos várias indicações no próprio texto platônico de que já no séc. IV existia uma certa trad ição in terpretativa, provavel-
,·m âmbito pitagórico, que reexaminava textos 111 ,,~ antigos sobre a base de um m étodo etimológi1li-l',,)rico107. Mesmo que volte logo a ele, o caso mais 1111 .1 passagem do Górgias em que se fala de "um dos lum" (transmissor do poema), que logo é contraposto 11111 engenhoso indivíduo, especialista em mitos, tal•,h iliano ou italiotà' que interpreta alegoricamente 11,1, os de um velho poema sobre prémios e casti.gos 108 . Os mesmos dois níveis poeta/intérprete se 11 Al(rn h·,·1 tl'm na referência do Mênon 109, que fala de "sacer11111·~ e sacerdotisas que consideram importante ofore11 1·xplicação sobre aquilo de que se ocupam", co mo 111111\IOS aos "poetas ... inspirados pelos deuses", e, em 111111'1;1 opinião, também no famoso trecho do Crdtilo 11l11l' awµcx 017µcx, no qual se distingue a interpr,eta' '" duídas ao bardo rrácio (OF812-834). Como é ób-
1111·1n
não lhes abro espaço neste livro, na medida em a sua influência sobre o pensamento platónico 11111a.
1 10,
1pll' 1·
3.2. UMA BUSCA EM DOIS SENTIDOS Nossa busca deve avançar em dois sentidos. Dado q111.: Platão é nossa principal fonte de conhecimento l'-lr:t o orfismo da época clássica, uma dos sentidos se1:á .111,11isar os testemunhos do filósofo para reconstrua· 111n quadro das crenças e doutrinas dos órficos em sua , poca, com a ajuda de outros textos significativos_- Mas ,·\t :i busca é necessariamente inseparável da análise da ,narca que as doutrinas religiosas dos ó rficos deixou 110 filósofo, o u, em outros termos, da maneira pela q11al Platão modificou, alterou ou deformou a mensagem originária para incorporar alguns dos seus traços cm sua própria doutrina. Outro método de trabalho, ,•m duas etapas, no qual se tratara, antes, de recons1 ruir o quadro das ideias ó rficas para, uma vez obtido, ver como influenciou o filósofo , é pratica.mente inviáv1:I, de um lado, pela escassez de o utros testemunhos, po r ourro, pela peculiar maneira de citar do ateniense. Assim, pois, nossa análise de cada testemunho platônico comportará, necessariamente, uma análise do que o filósofo conhece sobre o orfismo e da imagem alterada que nos oferece, da maior ou menor
/ relevância do que nos diz em relação ao seu próprio pensamento e dos p rocedimentos para inserir em seu próprio discurso, frente ao qual mostra uma atitude ambivalente. Veremos, com efeito, como a sua ati tude é, às vezes de desprezo, às vezes de respeito, quando não trata simplesmente de se remeter ao orfismo como pretexto ou como mero recurso utilitário, seja paravaler-se do prestígio do texto antigo, seja como adorno estético, seja como instrumento de persuasão baseado na crença do d estinatário, que ele não necessariamente compartilha. Apenas nas conclusões será possível apresenta r, uma vez realizada a análise dos dados, o quad ro do orfismo que podemos reconstruir com a ajuda dos testemunhos platônicos e de outros autores, e a atitude do filósofo frente a cada um dos elementos de tal quadro.
4 MITO S C O SM O G Ô NTCOS E TEOGÔ NIC O S
4.1. UM COMEÇO
omeçaremos pelos mitos teogônicos e, como se deve, pelo p rincípio, pelo verso inicial de uma l,·,1gonia. No Banquete, quando AJcebíades se refere , 11ma parte especialmente delicada do seu discurso, 1 introduz com uma frase que, não fosse por dados r ~ll'rnos, talvez não chamasse a nossa atenção:
C
E os que servem e, se há algum profàno e inculw, colocai portas bem grandes cm vossos ouvidos1•
Sem dúvida, compreendemos melho r a frase por'l"c conhecemos a existência de um verso órfico, citado por diversas fo ntes em duas variantes2 :
PI. Symp. 2 18b (OF LXVIII e 19) [T 181. '
128
OF lab (T 18a].
a) Cantarei para conhecedores: cerrai as portas, profanos, b) Falarei a quem é lícito: cerrai as portas, profanos. Ambos os versos eram utilizados como abertura de poemas órficos, para dirigir-se apenas aos iniciados3 • De mistérios fala também, entre outros, Oioniso de Halicarnaso\ ao aludir a um destes versos. O interesse da citação platônica é que nos testemunha em data muito antiga o verso inicial de um poema órfico que conhecemos especialmente por fontes tarde· s, como o chamado Testamento de Orfeu, que surgiu o âmbito dos judeus helenizados, muito citados p r auto res cristãos5, que se erige sobre o modelo dos antigos hieroi logoi. Não obstante isso, o testemunho do Papiro de Derveni se uniu recentemente aos mais antigos do texto6. É impossível determinar qual das duas fo rmas que conhecemos teria o verso recordado por Platão e pelo intérprete do Papiro de Derveni, d ado que ambos parafraseiam apenas a segunda parte, a com um de ambas as variantes7 •
Mas que esse verso, em qualquer das d uas versões, 111111.1sse uma teogonia, se demonstra tanyo pela alusão 1111 l!'Slcmunho do Papiro de Derveni, ermo pela pas1•\áKXOL. Ao usar,esca palavra, Alcibíades compara o estado de cxrase cio mista ó rfico-d ionisíaco com o iniciado em filosofía, que resulta ser uma especie de mistério de categoría superior. Cf. § 12. l l . 1H. PI. "li"m. 40d (OF 21 e 24) [T I 9]. Cf. Lobeck 1829, 508ss.; .Schuster 1869, 5; 25; Kern 1888, 41; Gruppe 1890, 702; Zeller ''1919, 123 n. 2; Linforch 1941, 108; Ziegler 1942, 1358; Guthrie 1952, 240; Bernabé 2003a, 52s.
133
ma de "deuses visíveis e gerados", Platão se propõe o problema de aludir à criação dos deuses pessoais. Para isso, recorre a um artifício literário hábil. Reconhece a incapacidade humana para falar do assunto e se remete, m eio com verdade, meio com ironia 19, aos que, por serem filhos de deuses, podem ser os melhores conhecedores de seus antepassados. De acordo com os testemunhos da República já analisados20, o aludido não pode ser outro senão Orfeu. Baseando-se nele, P latão alude a uma teogohia, iniciada por Céu e Terra, cujo esquema seria o seguinte: Céu
Terra _ _I_ __
Oceano
Forcis
Tétis
Cronos _ _ _I Zeus
qbemos por Damáscio que ;Eudemo, o discípulo de Aristóteles, se referia a um3/ teogonia órfica na qual a t'mica coisa clara (uma vez(que o passo se livra das in1crpretações neoplatônicas1que não aqui não possuem utilidade) é que começava pela Noite21 • Com este tes1cmunho coincidem algumas alusões aristotélicas, que ,1tribuem a "antigos teólogos" ou a "poetas antigos" o 1iostulado de que a Noite era o primeiro princípio. () Estagirita registra uma falta de precisão que não lhe é habitual quando se refere a autores conhecidos, mas apenas quando fala do que denominamos poesia 1Srfica22 • Refere-se em um passo da Metafísica "aos teó logos que começam a geração a partir da Noite"23, 1."11quanto que em outro lugar da m esma obra diz:
\ \
outros
Rea
Hera I I outros
outros
Podemos matizar esta incompleta informação platônica recorrendo a outros testemunhos. Assim,
De modo similar o consideraram os poetas antigos, na med ida cm que -afirpiam que não reinaram e governaram os prim igên ios, como N oite e Céu ou Caos e Oceano, até Zeus24.
A passagem é in teressante porque Aristóteles apresenta No~t.e, o ser primitivo da teogon ia órfica, como o primeiro, antes de Caos (que é o da de Hesfodo) e Oceano, ~ue é o de uma cosmogon ia vagamente 1
19. já observou a iron ia do passo Weber 1899, 12 ss., cf Taylor 1928, 245; Wesc 1983a, 6; Sorel 1995, 11 . 20. PI. Resp. 364c (OF573 I) fT 3), 366a (OF574) fT 43], cf. § 1. 1. Veja-se, ainda, Stauclacher 1942, 79 n. 14; Colli 1981, 397; West 1983a, 117 . A dúvida de Linforrh 1941, 109 não parece just ificada.
). 1. Darnasc. De princ. 124 (l IJ 162. l 9 Wcstcrink = Eudern. fr. 150 Weh rli = OF20 1) [T 18h]. 1,.2. Cf. M egino 2008. 1..3. Ariscoc. Metaph. 107 16 26 (OF20 U) [T 19a]. 24. Ariscoc. Metaph. 10916 4 (OF20 [V) [T 196].
134
135
referenciada por Homero25. E depois, porque esclarece que a Noite não reinou. Isso está em acordo com outros mitos teogônicos nos quais as divindades primordiais não participam da luta pelo poder. Podemos considerar que Aristóteles pôde ler que o princípio era a Noite em um escrito poético, que vacila em atribuir de forma concreta a um autor, isto é, em uma teogonia ó rfica, simplesmente porque o seu racionalismo o impede de crer que O rfeu pudesse ter escrito algum poema, de modo que se refere a ela como obra de um "antigo teólogo" ou "um antigo poeta''26. Do que não duvida é que o tex to é antigo, e, por isso, o situa an tes de Hesfodo e Ho mero, como se acreditava tradicionalmente entre a maio r parte dos gregos. Q ue a teogo nia aludida por Aristóteles e a mencionada pelo seu discípulo Eudemo eram a mesma, como crê West27, parece algo ó bvio, já que ambos utilizavam a mes ma biblioteca, a do Liceu. De a ntemão não é impossível qu e a teogon ia conhecida por Aristóteles e Eudemo fosse também a mesma que a conhecida po r Platão. Com efeito, há motivos para confirm ar esta possibilidade. A sol ução mais óbvia para que todos os testemunhos concord em
,1•1ia a de que no_ poyrna em questão, Terra e Céu pro' n leriam da Noj>é primordial. Se isto for assim, por •111e Platão omite a Noite? West explica esta circuns1.111cia28 dizendo que no Timeu todos os deuses procedem do D emiurgo, e que a noite não é senão sombra d.1 terra, de modo que a sua preeminência no começo d.1 cosmogonia seria contraditória com o esquema pla11'\nico, motivo pelo qual Platão não pode apresentá-la ,111ui. A m eu ver, deve-se acrescentar qiue o contexto ill'ste passo do Timeu é, por si, explicação suficiente. e :o m efeito, Platão declara que chegou ao final do que deve dizer sobre a natureza e os deuses visíveis e gerados29, que são as realidades as tronómicas:, e deixa claro 'llle o que importa é conhecer a origem das demais di vindades (isto é, as pessoais). O filósofo toma, então, d:i teogo nia órfica a parte que fala destes deuses, e não l l'm motivo algum para aludir sequer à anterior, q ue se 1lf eria ao princípio originário. Temos dois bo ns motivos para aceita r que a Noite 1·sLava na origem da t\!ogonia conhecida por Platão: o primeiro é uma passagem de Lido em que atribui a O rfeu- três primeiros princípios (TIQW'ClXl ... àQxa() da geração: Noite, Terra e Céu30 , um testemunho que não deriva de nenhuma outra teogonia conhecida e qu e se ajusta à nossa proposta.
25. Hcs. Th. 11 6, l lom./1. 14.20 1. 26. C f. o comentário de loann. Philopon. in Aristot. de nn. 186.24 Hayd. (OF42 1 II) IT 27c] referido a o utro passo do Estagirita, no qual também eira os órlicos de um modo impreciso, assim como Megino 2008. Sobre os mitos tcogôn icos nos q uais a primcra divinidade não participa d a lucha pelo pod er cf. 13ernabé 1989. 27. Wcst 1983a, 116.
28. Wesr 1983a, 117. De fato, Piarão omite muito mais: vários d euses das últimas gerações, referenciados com um imp reciso "e ou tros". 2'). PI. JJm. 40d (OF 2 1) lT 12] ,:a 7U::QL ÜcWV ÓQa't:WV KCÜ
136
137
y t:vvqTwv dQqµ t va cpúcrcwç l xt Tw TtÀoç. \O. lo. L.yd. De mens. 2.8 (26. l Wünsch, OF20 V) IT 19c].
Outro motivo oferece a citação platônica no Filebo de um verso de O rfeu no qual incita a cessar na sexta geração a ordem do canto, isto é, o transcurso ordenado das palavras que compõem o canco31 • Jncluindo a Noite como princípio originário, o quadro genealógico do Timeu teria seis gerações, segundo o seguince quadro: 1'
2'
Noite
Cé u
3'
Oceano
4'
Forcis
5ª
Terra
Télis
Cronos
Zeus
Rea
Oulros
He ra
Outros \ I \ I Ou1ros 12
Por outro lado, devem proceder deste mesmo poe111.1 dois vers_ps-que Platão cita no Crdtilo: Oceano de charmosa corrente iniciou as bodas; ele que se uniu a Técis, sua própria irmã da mesma mãe33• A citação é interessante por ser uma das mais an11g.1s textuais da literatura atribuída explicitamente a t )1 fe u (prática pouco frequente em Platão, como vi1110s no § 1.8.). Mas apresenta dificuldades, já que, 11.1genealogia traçada no Timeu, o primeiro casal Céu , '1erra p recede O ceano e Tétis. De acordo com alg11 ns autores, Oceano seria o primeiro da sua geração .1 rasar-se34, mas desconhecemos a presença de outros 11 mãos desta geração. West35 sugere que o verso tenha , ido escrito para outro poema, no qual Oceano e Télls eram as divindades primordiais, e logo foi adap1.1do a um sentido forçado. Mas forçada me parece a
3 1. PI. Phileb. 66c (OF25 1) IT 20!. C f. 13ossi, 201 o. 32. E.sra reconstrução é a que nos oferece West 1983a, 1 18, baseando-se em alguns precedentes (Gruppc 1890, 703; Z d ler 61919, 123 n. 2), mas não é a única que se propôs de um texto muito duvidoso e mil vezes inteprecado. Assim, para cirar um par de exemplos a mais, "laylo r 1928, 247 sustenta que o princípio em a Terra, então, Céu e 1crra, e ntão Oceano e T étis, então, Cronos e Rea, depois Zeus e H era e, po r fim , os Ol ímpicos mais jóvens,
.snquanto que 13risson que 13risson 1987, 54ss. (no q ue seguem Westerink cm sua nora a Damasc. De princ. 53 [li 235 n. 7] e Colli 1981, 397) prefere crer que a orden é algo que encontramos nas Rapsodias. A opinião sustentada po r Dietrich 1891, 128 n. 2 e Moulinier 1955 , 22 d e que se t ratam d e estirpes h umanas c m um m ito de eras surge suficienrcmenre crit icada por Wcst 1983a, 118, corno a ptoposra de Linfon h 1941, 149, que crê q ue a detenção na sexta geração quer dizer que desta ú lt ima já não se fala, motivo pelo qual são ape nas cinco. 11. PI. Crat. 402b (OF22 J) [T 21 J. 1-1. Lobcck 1829, 50 8; Kern 1888, 43; H olwerda 1894, 31 4; Sraudacher 1942, 93. ' l'i. West 1983a, 120.
138
139
6'
própria explicação de West, sobremaneira imaginativa sem dispor do contexto. Por sua vez, Schuster acredita que a união de Céu e Terra se conceberia como algo mais cru do que um yáµoç36 . Em minha opinião, esta seria a linha de aproximação ao problema mais verossímil, ainda que não no sentido do q ue c Schuster crê. Penso que, assim como em Hesíodo se fala de alguns elementos surgidos por uma espécie de "geração espontânea", ou, nas palavras do próprio Hesíodo (Th. 132) "sem mediar a desejável união", e então há outros que se produzem como consequência das uniões sexuais. Teria q ue se pensar que, para o ó rficos, a desce ndência da Noite e também a de Céu e Terra não se produziria ainda por união sexual, enquanto que Oceano e Tétis for mariam o p rimeiro casal propriamente d ito, de modo q ue o poeta pode afirmar, com razão, que "Oceano iniciou as bodas". Além d isso, cal interpretação se harmoniza també m com um testemunho de Aristóteles na Metafisica: Há alguns que pens.1m que já os mais antigos e distantes da geração atual, aqueles que Foram os primeiros a crarar dos dcuscs, tiveram cal opinião37 acerca da natureza. Com efeito, consideraram Oce-ano cTétis os pais da geração divina3x.
36. Schuster 1869, 1O. 37. E. d ., a de 'rales, segundo a qual o princípio originário era a água. 38. Ariscor. Metaph. 9836 27 (OF22 II I) IT 19cll.
140
Não nos é claro se Aristóteles se refere a. Homero39 , 1 ( >rfeu ~aos dois; no entanto, o uso d e "os mais 1111 igos" (naµ na,\a(ouç) e "que foram os primeiros 1 11,ttar dos deuses" (7!QW'toUÇ 0rnAoy~aav-raç) .,ponta para O rfeu mais do que para Homero. O p lu1,il sugeriria que inclui a ambos, não fosse pelo faro de 'llll " por outras vezes Aristóteles alude ao que chama111os Orfeu no plural40 , como tradição coletiva. ' làmbém se refere a uma Teogonia uma obscura ref1·1tncia platônica na qual Eutffron se remete a uma ,Nie de traços bárbaros do mito da sucess:ío d ivina:
·-
EUTÍFRON: Dá-se o caso de que os próprios homens crêcm que Zeus é o melhor e o mais justo dos deuses, e admirem que acorrentou o próprio pai porque havia devorado injustamcmc os seus fill1os, e, ademais, que este mesmo havia castrado o próprio pai por outros motivos similares (...) SÓCRATES. (...) Mas diz- me, cm no me da Amizade, crês que estas coisas sucederam assim de verdade? EUT. E ainda coisas mais ma ravilhosas do que estas, Sócrates, que a gente não conhecc41•
A alusão de Eutífron a tradições tão anômalas de 11m ponto-de-vista da "normalidade" religiosa dos gregos, como se fossem desconhecidas pela maioria, é,
.l9. Cf. Llom.1/. 14.201. /40. C f. Megino 2008. /4 1. PI. Euthphr. 5e (OF26 I) IT 22) .
14 1
de acordo com Burnet em seu comentário à passagem, uma clara indicação de que o interlocutor de Sócrates conhece esses relatos em práticas religiosas privadas, vale dizer, que pertence a uma seita4 2• Por sua vez, Kahn trata de precisar o tipo de grupo ao qual pertenceria o personagem e o considera como órfico e heraditiano, semelhante àquele em que enquadra o autor do Papiro de Dervení43 • A inserção de Eutífron num grupo órfico concordaria bem com um testemunho de Isócrates no qual encontramos uma fraseologia muito similar e no qual se atribui esta temática explicitamente a Orfeu44 : Sobre os próp rios deuses contaram (os poetas) relatos tais como ninguém se atreveria a conta r sobre os seus inimigos. Não apenas lhes atribuíram roubos, adu ltérios e serviços às ord ens dos home ns, como também relataram devoração de filhos, castrações de pais, acorrentamento de mães e outras transgressões das leis45• E não pagaram um castigo merecido por isso, ainda q ue não tenham e.~capado impunes, pois uns ( ...) e Orfeu, o que ma.is tocou tais temas, acabou a sua vida desmembrndo.
O catálogo de ações ímpias dos deuses coincide em ambos os testemunhos, de modo q ue talvez Platão
1 1111hém aluda a um poema órfico (provavelmente a 11w,ma--réÕgonia a que se referem as d emais alusões46) 1111 qual se teria tratado a castração de Urano por Cro""' e, então, a captura e encarceramento de C ronos pnr parte de Zeus, para arrebatar-lhe o poder. O castigo exemplar de Orfeu sobre o qual fala Isó' 1.11es, e que, sem dúvida, tem a ver com as lendas 11111: circulavam sobre a morte de Orfeu pelas mãos das l1.1cantes ou mulheres furiosas47, seria especialmente ncmplar se o próprio Orfeu tivesse se referido, em •,1·11 poema, ao desm embramento de um deus. Isso faz vnossímil a convicção de que no poema a que se refe, ir:un Platão e Isócrates se tratou do mito de Dioniso desmembrado pelos Titãs48 • O desinteresse platônico pelo tema está, sem dúvid.1, latente sob a pergunta incrédula de Sócrates.
4.3. GEOG RAFIA INFERNAL
Ainda procede desta m esma teogonia, ainda q ue 1ambém pudesse advir de uma KlX'CÓ:~CX.h11ed. 11 le (OF26 I) [T 23J. Sobre a cscacologfa do Fédon cF. § 9.3. 50. Poema provavelmente do séc. f a.C., no qual se ampara quase toda a literatura órfica amcrior, até formar um extenso aglomerado de 24 camas. 51. OF 1 l 1.3 [T 236].
52. Aristot. Meteor. 3556 34 (OF27 II) [T 23a]. 'i.3. Citamos parte da sutil argumen tação de Kingsley 1995. 126s. para defender a procedência órfica desta referência. Cf. G ut~de 1952, J 68s., que refere o vocabulario órfico da passagem placomca, mas não leva em consideração o de Aristóteles.
144
145
uma descrição do Tártaro e do incessante fluir das águas procedentes das profundidades para alimentar todas as correntes do mundo.
4.4. REFERÊNCIAS DUVTDOSAS
Devo me referir ainda a outras passagens que pretensamente procedem de urna teogonia órfica. No mito narrado por Aristófanes no Banquete encontramos alguns estranhos seres esféricos com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas, que logo Giiv divididos em dois, e cujos órgãos sexuais ficam atrás54, p ersonagens que foram comparados com a descrição das teogonias órficas de Fanes, um deus primigênio, anterior a Zeus, cujos genita is aparecem na mesma disposição 55 anômala ; no entanto, Fanes surge muito mais tarde em cena, e não parece que possamos situá-lo na época 56 de Platão , de modo que devemos considerar que se trata de uma coincidência (ou até mesmo de uma influencia platônica sobre a literatura órfica tardia). Por sua vez, Proclo pretende encontrar no mito do 57 Político , no qual Cronos deixa de fazer girar o mun-
54. PI. Symp. 189css., cF. especialmente 1916. 55. Ps.-Nonn. Comm. in IV Orat. Gregor. Naz. 78 (15 l Nimmo Smith): "nos poemas órficos ... introduz-se Fanes, -que tem o seu falo arrás, nas nádegas", cF. Suda s. v. Phanes (IV 696.17 Adler) (OF 135 l-11), sobre a questão cF. Dovcr J 966, 46, que trata, com razão, de minimizar esta influência, e Hani 1981-1982, 9 7. 56. CF. comentário a OF80. 57. PI. Pol 270de.
do e este com eça a girar em direção contrária, para qné Õs homens voltem a recuperar a juventude e para q,,c os de cabelos brancos tornassem a tê-los negros, vl's LÍgios de um motivo da Teogonia órfica, na qual_ se 11 .irrava a existência de urna raça de homens multo lnngevos e que descendia do próprio Cronos que, uma vez destronado, recebeu de Zeus o privilégio de não ta 'IU