Percepção Visual James Gibson [PDF]

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Zitiervorschau

I Encontro Internacional Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva Universidade Metodista de São Paulo – 22 e 23 de maio de 2014 Apoio:

Sensorialidades, informação e comunicação: as teorias da percepção e da Gestalt nas obras de Marshall McLuhan e J.J. Gibson1 Letícia PERANI2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Rio de Janeiro, RJ Resumo O objetivo deste trabalho é desvendar possíveis conexões teóricas entre o pensador canadense Marshall McLuhan e o psicólogo estadunidense James J. Gibson, especialmente em relação às pesquisas destes dois autores sobre questões de percepção sensorial. Desta forma, foram realizadas revisões bibliográficas das obras de McLuhan e Gibson, buscando descrever seus posicionamentos teóricos e visões sobre sensorialidades, informação e comunicação. O artigo também aponta três aspectos que acreditamos estar presentes nos trabalhos de ambos os autores: o ambiente, o jogo entre figura e fundo, e a percepção de affordances. Palavras-chave Sensorialidades; Gestalt; percepção; informação; affordances

1. McLuhan, sensorialidades e percepção O canadense Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) é considerado um dos grandes pensadores da Comunicação no século XX. Sua obra plural, erudita e transdisciplinar, abrange desde os estudos da Publicidade (The Mechanical Bride, de 1951) até tentativas de constituição de uma nova Teoria da Comunicação (a partir de suas tétrades, descritas especialmente no livro póstumo The Laws of Media, de 1988, escrito com a colaboração de seu filho Eric), passando pelo estudo de várias manifestações sócio-culturais da humanidade em Understanding Media, de 1964. No Brasil, o título de Understanding Media – que em português teria o sentido literal de “entendendo as mídias” - ganhou uma tradução que explica um dos pensamentos que perpassam quase toda a obra mcluhaniana: Os meios de comunicação como extensões do homem. Para Marshall McLuhan, as mídias são extensões cognitivas dos seres humanos, já que os artefatos tecnológicos seriam “extensões” do nosso corpo: a roda como extensão do pé, a roupa como extensão da pele, entre outros exemplos. Aqui, cabe um adendo: de acordo com McLuhan, todas as

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Trabalho apresentado no GT 3 – Comunicação, Filosofia da Tecnologia e Filosofia da Mente, evento componente do I Encontro Internacional Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva. 2 Doutoranda do PPGCom/Uerj, e pesquisadora do LETS/CiberCog - Laboratório de Tecnologias de Comunicação, Cultura e Subjetividade, grupo Comunicação, Entretenimento e Cognição, do PPGCom/Uerj. Bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj. Email: [email protected] 1

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tecnologias humanas são também meios de comunicação, por afetar/estimular/modificar nossos corpos e mentes, já que cada artefato humano seria uma metáfora que traduziria experiências de uma forma para outra – isso incluiria todas as coisas feitas pelo ser humano, incluindo bens nãomateriais, como os sistemas filosóficos (1988: 3). Esta visão mcluhaniana fica mais clara na segunda parte de Os meios de comunicação como extensões do homem, na qual McLuhan se debruça sobre tecnologias tão diversas entre si quanto os meios de transporte, o dinheiro, as atividades lúdicas e os armamentos. Segundo Vinícius Andrade Pereira (2011: 112), as extensões mcluhianas seriam, principalmente, padrões de organização e disponibilização de informações, uma linguagem que nos afeta, e que é também afetada pelas ações, pensamentos e construções humanas, já que, para o pensador canadense, “a extensão de qualquer um dos nossos sentidos alteram a nossa maneira de pensar e agir – a maneira com que nós apreendemos o mundo”3 (MCLUHAN e FIORE, 2001: 41), criando ambientes (environments) informacionais que estão no fundo das relações e padrões sensoriais criados pelas tecnologias. Daí, podemos perceber que a questão primordial das investigações de McLuhan está nas sensorialidades, ou seja, o estudo dos estímulos sensoriais que as tecnologias nos proporcionam, a partir de suas configurações materiais, que definem como estes estímulos são liberados por um determinado meio, e a forma que nossos corpos reagem a estas incitações; assim, “a sensorialidade se manifesta como uma ação ressonante, uma performance de um corpo diante de certos estímulos e contexto” (PEREIRA, 2006: 98). Na obra mcluhiana, as sensorialidades são consideradas como parte fundamental dos processos comunicacionais, e para destacar esta sua visão, o pensador canadense afirma, em Laws of media: “Nossas leis das mídias são observações sobre as operações e os efeitos dos artefatos humanos nos homens e na sociedade...”4 (MCLUHAN e MCLUHAN, 1988: 14). Desta forma, para pensar as sensorialidades nos processos comunicacionais, McLuhan se vale de seu curioso método científico5 baseado em metáforas exploratórias, que não procuram explicar conceitos de uma forma direta, objetiva, mas sim perceber diferentes ângulos pertencentes a uma mesma ideia, com todos os seus paradoxos e aproximações possíveis; estas metáforas são chamadas de sondagens (probes), e constituem-se em aforismos, frases curtas e concisas, que encerram em si as hipóteses mcluhianas sobre tecnologias, comunicação, arte, sociedade e cultura, com seus efeitos, contextos e ações – 3

Livre tradução de: “The extension of any one sense alters the way we think and act — the way we perceive the world”. Livre tradução de: “Our laws of media are observations on the operation and effects of human artifacts on man and society…”. 5 Ou, nos termos de W. Terrence Gordon (2010), a “caixa de ferramentas” (tool box) do pesquisador canadense. 4

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várias dessas frases se tornaram partes integrantes da cultura pop mundial dos anos 1960, como “o meio é a mensagem” (the medium is the message) ou “este é o novo mundo da aldeia global” (this is the new world of the global village). Douglas Coupland descreve as sondagens como sendo “(...) um formato de conversação no qual ideias são jogadas dentro de uma arena coletiva, sem julgamentos morais, e ali elas têm a permissão de lutarem entre si, com o objetivo de gerar novas ideias”6 (COUPLAND, 2010). Dentre as várias sondagens de McLuhan, nos chama a atenção um aforismo que se encontra presente em várias obras de pensador canadense, e considerado por especialistas como a sua sondagem mais utilizada (GORDON, 2010), o das relações entre figura/fundo (figure/ground). O conceito de figura/fundo começou a ser descrito em 1915 pelo psicólogo dinamarquês Edgar Rubin, a partir de estudos empíricos de percepção visual, no qual figuras irregulares eram agrupadas conjuntamente com superfícies de tamanhos, formas e cores diferentes, e dispostas de maneira que formassem padrões de ilusão óptica. A partir disso, Rubin começa a descrever as relações entre os padrões formados pelos elementos visuais, demonstrando que a formação de uma segregação entre figura/fundo se daria a partir da percepção do contorno comum às imagens, que forma uma “fronteira” entre os dois campos, que conecta os elementos visuais expostos; o observador pode interpretar estas partes como sendo um objeto (a figura) ou a superfície que se encontra atrás da figura (fundo). Segundo Edgar Rubin, “(...) a experiência imediata de percepção é caracterizada por um efeito de modelagem que emerge do contorno comum aos campos e que vai agir em apenas um dos campos, ou vai agir mais intensamente em um campo do que em outro” (RUBIN, 1958: 194195)7, sendo que, a partir deste efeito de modelagem, a área afetada por este fenômeno vai adquirir uma característica de “coisa” em si, algo separado da superfície em que se encontra, ganhando o que o psicólogo dinamarquês denominou como sendo um “caráter de coisa” (thing-character); já o fundo, que não seria afetado pela modelagem, se torna algo que lembraria uma “substância” (substance), que não é propriamente a substância material que compõe os elementos visuais percebidos, mas sim algo presente na percepção, de forma relativa. Rubin também nos explica que a figura é mais dominante e imponente do que o fundo no processo de percepção, e que somos afetados por ela, enquanto o fundo desapareceria no ambiente visual (RUBIN, 1958).

6 Livre tradução de: “(...) a conversational format in which ideas were thrown out into a collective arena without moral judgment and allowed to battle it out, with the goal of generating new ideas”. 7 Livre tradução de: “(...) the immediate perceptual experience is characterized by a shaping effect which emerges from the common border of the fields and which operates only in one field, or operates more strongly on one than the other”.

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O objetivo de Edgar Rubin ao apresentar o conceito de figura/fundo era pensar como acontecem determinadas formas de organização da percepção visual, influenciando, assim, muitas das teorias da Psicologia da Percepção no século XX, como a Gestalt, que define a figura/fundo como uma das “leis” que vão reger o nosso ambiente comportamental8.Porém, ao trabalhar com estes termos em sua obra, Marshall McLuhan não está necessariamente interessado em utilizar as ideias do pesquisador dinamarquês para descrever apenas formas de afetos e sensorialidades. Utilizando a oposição figura/fundo como uma de suas sondagens, McLuhan adota esta teoria como uma metáfora para os processos comunicacionais que acontecem a partir do uso das tecnologias, explicando esta questão de percepção visual para entender como surgem e como utilizamos as mídias, atentando tanto para o contexto sócio-cultural quanto para o seu contexto sensóriocognitivo; para Vinícius Andrade Pereira, a ideia de figura/fundo deve ser analisada junto com o conceito de extensões, em uma relação complementar, já que este conceito procura solidificar o pensamento de que (...) uma tecnologia de comunicação, ao vir à tona, não deve ser considerada apenas como a chegada de um artifício com o qual se atende a uma determinada demanda técnica, especificamente requerida por uma determinada sociedade. (PEREIRA, 2011: 112)

Esta afirmação de Pereira visa a destacar a impossibilidade das teorias mcluhianas serem consideradas como parte de uma lógica ligada ao determinismo tecnológico9, uma crítica comum à obra do pensador canadense (por exemplo, em RÜDIGER, 2004). O próprio McLuhan procura afastar essa hipótese ao explicar que seu aforismo “o meio é a mensagem” significa, em verdade, que “o fundo de qualquer tecnologia ou artefato é tanto a situação que lhe dá origem quanto todo o ambiente (meio) de serviços e desserviços que ela traz à mesa”10 (MCLUHAN e MCLUHAN, 1988: 5). Desta forma, podemos entender que McLuhan quer evidenciar que a criação e utilização de uma nova tecnologia estão ligadas, em uma via dupla, à figura (o meio em si, ou seja, suas materialidades e linguagens) e ao fundo (contextos sócio-culturais/sensório-cognitivos e os efeitos do meio – os ambientes criados). Assim, podemos perceber que, mesmo que a ideia de figura/fundo seja utilizada por McLuhan mais com um sentido de sondagem, ou seja, como um aforismo exploratório, ela também 8

Em uma forma muito simplificada, o ambiente comportamental (behavioral environment) seria, para os teóricos da Gestalt, a forma com que cada indivíduo/animal pode reagir em relação aos estímulos oferecidos, fazendo a ligação entre o ambiente “geográfico” (geographical environment), que fornece os estímulos, com o comportamento em si (KOFFKA, 1936). 9 O determinismo tecnológico seria a crença que todas as tecnologias, consideradas apenas em si, invariavelmente condicionariam mudanças nas ações, nas sociedades e nas culturas, sendo a base principal do desenvolvimento humano (LEVINSON, 1998). 10 Livre tradução de: “The ground of any technology or artefact is both the situation that gives rise to it and the whole environment (medium) of services and disservices that it brings to play”. 4

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continua mantendo seu propósito original: tentar explicar algumas das maneiras de funcionamento da cognição humana, focando principalmente nos processos de percepção, e o papel das sensorialidades para os processos de comunicação. Para W. Terrence Gordon, A análise de figura/fundo se tornou fundamental para as análises midiáticas de McLuhan porque ela lida com percepções, seja de todo o conjunto de extensões eletrônicas do corpo e do sistema nervoso, ou da primeira tecnologia da humanidade – a linguagem.11 (GORDON, 2010: 131)

É uma questão central nos estudos mcluhanianos a noção de que a cultura e a sociedade dos povos ocidentais foram amplamente influenciadas pela visualidade, enquanto o Oriente e as sociedades tribais nativas da África, Américas e Oceania foram construídas a partir de uma cultura da oralidade, com significativas diferenças cognitivas: para McLuhan, estas diferenças nos processos de cognição podem ser descritas por uma sondagem onipresente em Laws of Media: a de que existem espaços visuais (visual spaces) construídos artificialmente por processos lógicos, marcados pela literacia e pelo predomínio do olho como nosso meio principal de apreensão e aprendizagem do mundo, e espaços acústicos (acoustic spaces), que seriam ambientes em seu formato original, baseados na oralidade e que, por serem multissensoriais, permitem a exploração de outros sentidos, como o tato e a audição, para a nossa percepção informacional, para organizar e memorizar as nossas experiências. McLuhan então afirma, retomando a metáfora figura/fundo, que o espaço visual seria uma figura menos o fundo, ou seja, que o ambiente criado pelos espaços acústicos, a partir de uma percepção multisensorial, é segregado pelo alfabeto no ato da leitura (1988: 70). Daí também surge a reflexão mcluhiana de que o surgimento dos meios de comunicação baseados na transmissão de impulsos elétricos, como o telefone, o rádio e a TV12, provocaram profundas mudanças no Ocidente e em nossa cognição, retomando nosso íntimo relacionamento com os espaços acústicos, já que “(...) a tecnologia elétrica significou para o homem ocidental uma queda considerável no uso do componente visual em sua experiência, e um aumento correspondente na atividade dos seus outros sentidos”13 (MCLUHAN e FIORE, 2001: 125). Assim, consideramos que Marshall McLuhan desenvolve suas ideias sobre sensorialidades e percepção em uma multiplicidade teórica muito presente em sua obra, destacando dois eixos 11 Livre tradução de: “Figure/ground analysis became a cornerstone of McLuhan’s media analysis because it dealt with perceptions, whether of the whole panoply of electronic extensions of the body and nervous system or of mankind’s first technology — language”. 12 Marshall McLuhan morreu em 1980, alguns anos antes da adoção da computação pelo público em geral, mas estudiosos de sua obra (por exemplo, LEVINSON, 1999; PEREIRA, 2011) afirmam que as tecnologias digitais também fazem parte desta categoria de meios que “desafiam” a centralidade do espaço visual nos processos comunicacionais – caminho apontado pelo próprio McLuhan em “Automação”, o último capítulo de Os meios de comunicação como extensões do homem. 13 Livre tradução de: “(...) the electric technology has meant for Western man a considerable drop in the visual component, in his experience, and a corresponding increase in the activity of his other senses”

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principais de trabalho: 1) a percepção como parte fundamental dos processos comunicacionais, e como uma forma de entender nossas formações históricas, sócio-culturais e cognitivas – a sondagem dos espaços visuais e acústicos; 2) a percepção como uma metáfora para entender como as mídias surgem e atuam, com seus contextos e afetos – a sondagem da figura/fundo. Utilizando mais uma vez esta metodologia tão cara ao pensador canadense, poderíamos dizer que seus estudos sobre a percepção “em si” (efeitos, histórico etc.) seria uma figura que destacaria o fundo da sua teoria, que é o uso metafórico da percepção para entender os processos de comunicação. Da mesma forma, acreditamos que a atenção dada por McLuhan aos processos de cognição, especialmente os relacionados às visualidades, vai ao encontro de pesquisas de um psicólogo estadunidense que também desenvolveu suas ideias sobre a percepção entre os anos 1960 e 1970, criando um termo especial para descrever como percebemos e agimos em ambientes diversos: J.J. Gibson e a sua teoria das affordances.

2. Gibson e as affordances: informação, percepção, ação

James Jerome Gibson (1904-1979) se tornou amplamente conhecido pelos seus trabalhos de Psicologia da Percepção, que desafiaram várias das ideias estabelecidas em seu campo, em colaboração com sua esposa, a também psicóloga Eleanor J. Gibson, propondo um estudo da percepção visual baseado na apreensão das informações em um ambiente, e não apenas no estímulo sensorial, como advogado por muitas linhas de pesquisa da Psicologia (GIBSON, 2002). Para J.J. Gibson (2002: 77-78), percepção é um termo que deve ser usado para se referir a qualquer experiência do ambiente que circunda o corpo de um animal, utilizando também a palavra propriocepção (proprioception) para as experiências que dizem respeito ao próprio corpo de um animal, como os movimentos. Nesta proposição, tanto a percepção quanto a propriocepção dependem de estímulos (luminosidade, texturas etc.), mas o sistema visual conseguiria fazer a distinção do que é específico do ambiente externo e o que se refere ao corpo; segundo o psicólogo estadunidense, “a visão, em outras palavras, nos fornece não apenas a consciência sobre o ambiente, mas também a consciência de si”14 (GIBSON, 2002: 78). Desta forma, as informações sobre o ambiente ou sobre o nosso corpo são registradas a partir dos estímulos recebidos pelos nossos olhos, que enviam essas informações para o cérebro, que reenvia informações para aqueles órgãos, em um 14

Livre tradução de: “Vision, in other words, serves not only awareness of the environment but also awareness of self”. 6

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processo contínuo. Conforme Gibson nos explica, “os inputs recebidos pela retina dão origem a ajustamentos oculares, e em seguida levam a inputs retinianos alterados, e assim por diante. É um processo exploratório, circular, e não uma via de mão única de entrega de mensagens para o cérebro”15 (GIBSON, 2002: 80). Daí, podemos compreender uma das diferenças mais marcantes em relação aos estudos de percepção que eram realizados até então, já que a teoria de Gibson privilegia a percepção direta: o estímulo em si já traz a especificação do ambiente para o animal que interage com ele; ou seja, as qualidades de um ambiente, como a sua topologia, sons, formas, texturas etc., são apreendidas diretamente, sem a intervenção de outros processos mentais, como as memórias e as representações; mudança sensível em relação às teorias cartesianas da percepção indireta, ou mediada, nas quais a percepção visual de um ambiente sofre influências imediatas destes processos (MICHAELS e CARELLO, 1981; GOLDSTEIN, 1981; BRAUND, 2008). A partir da perspectiva da percepção direta, nos anos 1960 J.J. Gibson passou então a desenvolver o conceito principal da sua teoria, denominada de Psicologia Ecológica (Ecological Psychology)16: as affordances. A teoria das affordances recebeu atenção especial de Gibson, que dedicou a ela um capítulo inteiro do seu último livro publicado em vida, The Ecological Approach to Visual Perception, de 197917. O psicólogo estadunidense define as affordances como as possibilidades de ação que todos os elementos de um ambiente (como superfícies, objetos, flora, fauna etc.) permitem/oferecem/proveem a um animal (“ator”), por meio de um relacionamento ecológico, no qual os atores e o ambiente são interligados e interdependentes. Como William W. Gaver resume, “as affordances implicam uma complementaridade entre o organismo-agente e o ambiente que recebe a ação (...) Affordances, então, são propriedades dos mundos definidos a partir da interação das pessoas com eles”18 (GAVER, 1991: 2). Gibson criou a palavra affordances a partir do verbo inglês to afford (permitir, ter condições de algo), inspirado pelas ideias da Gestalt de que o significado ou o valor de algo é percebido tão imediatamente quanto as suas qualidades (GIBSON, 1986; MICHAELS e CARELLO, 1981). Porém, a teoria do psicólogo estadunidense se distancia da visão gestaltiana ao implicar que as possibilidades de ação de um objeto não são modificadas de acordo com as necessidades do agente; 15 Livre tradução de: “Retinal inputs lead to ocular adjustments, and then to altered retinal inputs, and so on. It is an exploratory, circular process, not a one-way delivery of messages to the brain”. 16 Ou teoria da Percepção Ecológica (Ecological Perception), como também vem sendo recentemente chamada. 17 A palavra affordance apareceu pela primeira vez em um livro publicado por Gibson em 1966 (The senses considered as perceptual systems), mas só foi plenamente desenvolvida como conceito em The Ecological Approach... (GIBSON, E., 2002). 18 Livre tradução de: “Affordances imply the complementarity of the acting organism and the acted-upon environment (...) Affordances, then, are properties of the worlds defined with respect to people's interaction with it”.

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para Gibson, “o observador pode ou não perceber ou lidar com uma affordance, de acordo com as suas necessidades, mas a affordance, sendo uma invariante, estará sempre lá para ser percebida”19 (GIBSON, 1986: 139). William W. Gaver (1991) aprofunda esta explicação, fundamental para o entendimento desta teoria, ao declarar que as affordances são independentes da percepção, ou seja, as possibilidades de ação contidas naquele ambiente/animal estão ali sempre presentes, mesmo que elas não sejam percebidas ou que não haja nem informações perceptuais. Gaver também explica que existem diversos fatores extraperceptivos que podem auxiliar na percepção de uma affordance: É claro que a real percepção das affordances é determinada em parte pela cultura, padrões sociais, experiências e intenções do observador. Assim como Gibson, eu não considero estes pontos como fundamentais, mas considero cultura, experiência, entre outros, como fatores que destacam certas affordances.20 (GAVER, 1991: 3)

Desta afirmação de William W. Gaver, podemos observar mais uma característica fundamental das affordances: a percepção destas possibilidades também leva em conta a propriocepção, já que a postura, comportamento e as experiências anteriores do animal são fatores de detecção de determinadas affordances – é isso que J.J. Gibson deseja apontar ao declarar que “uma affordance aponta para ambos os lados, para o ambiente e para o observador”21 (GIBSON, 1986: 129). Perceber uma affordance vai depender tanto das qualidades do ambiente quanto do comportamento do animal observante; este detalhe da teoria das affordances é que aponta o quanto Gibson continua a ser influenciado pela Gestalt, especialmente pelos estudos de Kurt Koffka (1936) sobre ambientes comportamentais e geográficos, os quais mencionamos anteriormente. Porém, J.J. Gibson e vários outros autores que adotam a teoria da Percepção Ecológica (por exemplo, MICHAELS e CARELLO, 1981; GAVER, 1991; BRAUND, 2008) fazem questão de ressaltar que, mesmo se fatores culturais e experiências pessoais podem influenciar o modo que entendemos as possibilidades de ação para/com um objeto ou ambiente, perceber uma affordance independe de processos puramente mentais de representação e memória – conforme já destacamos anteriormente. Em uma crítica às linhas filosóficas conceitualistas, Gibson afirma: O fato que uma pedra é um míssil não implica que ela também não possa ser outras coisas. Ela pode ser um peso de papel, um suporte para livros, um martelo, ou um prumo de um pêndulo (...) As

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Livre tradução de: “The observer may or may not perceive or attend to the affordance, according to his needs, but the affordance, being invariant, is always there to be perceived”. 20 Livre tradução de: “The actual perception of affordances will of course be determined in part by the observer's culture, social setting, experience and intentions. Like Gibson I do not consider these factors integral to the notion, but instead consider culture, experience, and so forth as highlighting certain affordances”. 21 Livre tradução de: “An affordance points both ways, to the environment and to the observer”. 8

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diferenças entre eles não são claras, e os nomes arbitrários pelos quais eles são chamados não valem de nada para o processo perceptivo22 (GIBSON, 1986: 134)

Desta forma, a partir destes desenvolvimentos, podemos considerar que as affordances são percebidas a partir de um processo de percepção direta, ativo e exploratório (NORMAN, 1998; BRAUND, 2008), sendo realizado a partir da experiência do agente no ambiente, e que pode ser auxiliado por fatores que não estão diretamente relacionados aos sentidos, como questões culturais e de memória – lembrando muito as questões dispostas por Marshall McLuhan em seus estudos dos meios de comunicação, conforme apresentamos anteriormente, e permitindo aproximações entre esses dois pensadores.

3. McLuhan e Gibson: pensando a percepção como informação e comunicação

É curioso perceber que, apesar de serem contemporâneos e desenvolverem suas pesquisas sobre percepção em um mesmo espaço de tempo (anos 1960 e 1970), trabalhando a partir de uma base teórica comum – a Gestalt – não encontramos informações disponíveis que pudessem nos dizer se Marshall McLuhan e James J. Gibson chegaram a ter conhecimento um da obra do outro; na bibliografia consultada sobre estes dois autores, não se vê o nome de Gibson entre as leituras de McLuhan, e vice-versa. Porém, acreditamos que existem vários pontos de conexão entre os trabalhos do pensador canadense e do psicólogo estadunidense, especialmente os que estão relacionados às questões dos estímulos sensoriais. A primeira ligação que podemos fazer entre as ideias mcluhianas e o trabalho de Gibson está, conforme já mencionamos, na base teórica utilizada pelos dois pesquisadores. É fácil observar que tanto McLuhan quanto Gibson vão se valer de conceitos e termos dos estudos gestaltianos, embora com diferenças em suas abordagens: Gibson se dedica a elaborar uma teoria da percepção visual que, embora influenciada por Kurt Koffka e outros autores desta área, procura ultrapassar a Gestalt ao propor novas visões sobre pontos-chaves da nossa apreensão dos espaços e ambientes23; já McLuhan usa a Gestalt como mais uma de suas sondagens, emprestando a questão da figura/fundo

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Livre tradução de: “The fact that a stone is a missile does not imply that it cannot be other things as well. It can be a paperweight, a bookend, a hammer, or a pendulum bob (...) The differences between them are not clear-cut, and the arbitrary names by which they are called do not count for perception”. 23 A principal diferença entre a Psicologia Ecológica de J.J. Gibson e as ideias da Gestalt, apontada pelo psicólogo estadunidense (1986: 138-139), está no fato de que uma informação do ambiente (a affordance) não vai mudar de valores se a necessidade do observador muda, como pregado pelos gestaltianos; a affordance é uma “invariante” (invariant), e o que poderia mudar, segundo Gibson, é a forma de um observador apreender e utilizar a informação oferecida pelo ambiente. 9

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para explorar as sensorialidades dos meios, e evidenciar seus efeitos sócio-culturais. Em verdade, o que a teoria da Gestalt trouxe de mais importante para os estudos de Marshall McLuhan e J.J. Gibson foi o foco inicial na questão dos estímulos como parte essencial para a construção do comportamento humano; os dois pesquisadores vão partir deste princípio gestaltiano para posteriormente trabalharem com suas áreas de interesse – como o ser humano realiza sua percepção do mundo (Gibson), e como estes estímulos percebidos são parte das sociedades e culturas humanas, a partir do desenvolvimento e uso dos meios de comunicação (McLuhan). A partir desta observação da influência gestaltiana no trabalho destes dois pensadores, vamos então nos aprofundar em três aspectos que acreditamos estar presentes nos trabalhos de ambos os autores: o ambiente, o jogo entre figura e fundo, e a percepção de affordances. 3.1. Ambiente e percepção de estímulos O termo ambiente, em uma de suas acepções mais aceitas, se refere ao conjunto de coisas (materiais ou não) que circundam algo ou alguém. Todos nós estamos rodeados por um ambiente que nos fornece informações essenciais para o nosso agir no mundo – só existimos porque utilizamos a captação dos estímulos dados pelo ambiente para a nossa sobrevivência. Segundo J.J. Gibson, “o ambiente dos animais e dos seres humanos é o que eles percebem”24 (GIBSON, 1986: 15), ou seja, um ambiente só existe se um ser vivo consegue perceber as informações oferecidas por/em um determinado espaço (BRAUND, 2008). Enquanto os adeptos da Psicologia Ecológica gibsoniana fazem uso do ambiente para descrever um lugar (físico ou até mesmo digital25) onde relações de interações informacionais de percepção ocorrem, Marshall McLuhan vai utilizar este termo como mais uma de suas sondagens – na teoria mcluhiana, o ambiente é um processo de construção de “(...) operações simbólicas e sociais” (PEREIRA, 2011: 186) relacionadas ao uso e desenvolvimento de novas tecnologias, sendo um fundo das relações e padrões sensoriais; de acordo com Richard Cavell, “para McLuhan, os elementos invisíveis das comunicações eletrônicas - o que ele chamou de ‘o ambiente’ - constituiriam a materialidade fundamental da produção sócio-cultural contemporânea”26 (CAVELL, 2003: 24). Desta forma, ao considerarmos que a palavra ambiente serviria como uma metáfora mcluhiana que descreve os estímulos sensoriais percebidos que nos são 24

Livre tradução de: “The environment of animals and men is what they perceive”. Como descrito por Donald A. Norman (1998). 26 Livre tradução de: “For McLuhan, the invisibilia of electronic communications – what he called ‘the environment’ – constituted the fundamental materiality of contemporary social and cultural production”. 25

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fornecidos pelas mídias, podemos fazer uma aproximação destes desenvolvimentos teóricos do pensador canadense com a utilização que Gibson faz deste termo: para os dois pesquisadores, os ambientes só existem a partir da nossa percepção da informação sensorial que eles oferecem. Esta definição de ambiente, bem descrita na obra gibsoniana, como podemos ver em citação anterior, parece ser também presente nas ideias de McLuhan, especialmente quando observamos citações do pensador canadense sobre este tema; frases como “as mídias, ao alterarem o ambiente, evocam em nós relações únicas de percepções sensoriais”27 (MCLUHAN e FIORE, 2001: 41) nos chamam a atenção por revelarem esta ligação direta que existe entre ambiente, percepção e informação na teoria mcluhiana. Ou seja, quando McLuhan declara que “um ambiente é um processo, não é um invólucro. É uma ação e atuará sobre os nossos sistemas nervosos e nas nossas vidas sensoriais, modificando-os por inteiro” (MCLUHAN, 2005: 129), ele explicita que a percepção de um ambiente criado pelos meios de comunicação é um acontecimento ativo de descoberta de padrões de informação, particularmente sensoriais, ideia esta nos parece ter uma certa proximidade com os teorias de J.J. Gibson sobre os ambientes e as informações: (...) como Gibson utiliza este termo, a informação é a estrutura que especifica um ambiente de um animal. Ela é transmitida por padrões de estimulação de ordem mais elevada (...) Estes padrões são informações sobre o mundo.28 (MICHAELS e CARELLO, 1981: 9)

Desta forma, se Gibson define a informação como o arcabouço de um ambiente, sua argumentação vai remeter aos estudos mcluhianos, que entendem o ambiente como os efeitos e contextos de um meio – as sensorialidades geradas pelas mídias. Assim, podemos observar, nestas duas abordagens de Gibson e McLuhan, claras influências dos conceitos da Gestalt; para Kurt Koffka (1936), o ambiente é o lugar em que os comportamentos (ações) acontecem, iniciados por fatores ambientais, ou estímulos (stimuli). Tanto para McLuhan quanto para Gibson, os padrões de estímulos são a base dos ambientes, um fundo essencial para a nossa percepção do mundo, seja ele físico ou comunicacional.

3.2. Figura/fundo

Conforme descrevemos anteriormente, os conceitos da Gestalt foram usados por Marshall McLuhan como metáforas para os efeitos sensório-cognitivos das tecnologias, e o pensador 27

Livre tradução de: “Media, by altering the environment, evoke in us unique ratios of sense perceptions”. Livre tradução de: “(...) as Gibson uses the term, information is structure that specifies an environment to an animal. It is carried by higher-order patterns of stimulation (...) These patterns are information about the world”.

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canadense se valeu especialmente das questões entre figura/fundo propostas por Edgar Rubin, ressaltando que sua abordagem não foi voltada apenas para a percepção visual, declarando que “eles [figura e fundo] vêm sendo expandidos para abraçar toda a estrutura de percepção e de consciência”29 (MCLUHAN e MCLUHAN, 1988: 5). Desta forma, nos escritos mcluhianos, a sondagem figura/fundo não pode ser entendida em seu sentido literal, não tendo um enfoque no estudo deste conceito e suas possíveis influências nas ações de percepção visual. Diferentemente de McLuhan, a obra de J.J. Gibson tem a preocupação de realizar críticas ao que ele chama de fenômeno da figura-fundo (figure-ground phenomenon), ressaltando a sua suposta falta de aplicabilidade a estudos de percepção realizados em ambientes físicos: O fenômeno figura-fundo não se aplica ao mundo em geral. A noção de um contorno fechado, um esboço, é gerada pela arte de desenhar um objeto, e este fenômeno vem da experiência de apresentar um observador a um desenho para descobrir o que ela percebe. Mas este não é o único caminho, ou mesmo a melhor maneira, para investigar a percepção.30 (GIBSON, 1986: 66)

Como podemos perceber na citação acima, este é mais um ponto em que Gibson procura se diferenciar dos estudos da Gestalt, que advogam que a formação entre uma figura destacada de seu fundo é a “estrutura intrínseca” do campo de visão, ou seja, que organiza a nossa percepção visual (BRAUND, 2008). Sem a preocupação crítica de Gibson, nos escritos mcluhianos encontra-se explicito que o fundo é o ambiente – afetos e contextos das mídias – tornando-se claro que esta sondagem também se refere à percepção de informações geradas pelo uso e desenvolvimento de novas tecnologias, sendo a figura (o meio em si, com suas materialidades/linguagens) a causa destes efeitos; de acordo com McLuhan, “os efeitos vêm antes das causas em todas as situações. O fundo vem antes da figura em todas as situações” (MCLUHAN, 2005: 252). Porém, o pensador canadense ressalta que o processo comunicacional é tanto a figura quanto o fundo, juntos (cf. CAVELL, 2003), em um jogo intercambiável, complexo e constante. Neste jogo, o fundo pode se tornar figura quando há uma reversão entre os dois, ou seja, quando os contextos e afetos antes “invisíveis” se tornam as linguagens e materialidades de um novo meio. Ao tentarmos aprofundar nosso entendimento das formas com que McLuhan apresenta sua sondagem da figura/fundo, passamos a acreditar que esta predileção do pensador canadense pela descrição da metáfora do fundo, pouco tratando da figura em seus escritos, pode ser vista como uma 29

Livre tradução de: “They have been broadened to embrace the whole structure of perception and of consciousness”. Livre tradução de: “The figure-ground phenomenon does not apply to the world in general. The notion of a closed contour, an outline, comes from the art of drawing an object, and the phenomenon comes from the experiment of presenting an observer with a drawing to find out what she perceives. But this is not the only way, or even the best way, to investigate perception”. 30

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opção consciente para buscar novos métodos de análise dos processos comunicacionais. Edgar Rubin, o criador do conceito figura/fundo, declarava que o estudo do fundo em detrimento da figura seria antinatural, pois a nossa percepção privilegiaria a figura, que seria uma forma visual mais definida e estável, mas ao mesmo tempo considera ser uma tarefa “interessante” começar a observação do processo de amoldamento a partir do fundo (RUBIN, 1958: 196). Assim, McLuhan parece adotar essa perspectiva pensada por Rubin, ao propor uma análise que concentra seus esforços no fundo do processo de comunicação, ou seja, em seus efeitos e contextos sócio-culturais, sensório-cognitivos; para o pensador canadense, “(...) compreender os meios de comunicação deve significar o entendimento dos efeitos das mídias”31 (MCLUHAN, 1969: 152). Desta forma, podemos ressaltar que, enquanto Marshall McLuhan utiliza o conceito de figura/fundo como uma nova metodologia de análise dos meios de comunicação, J.J. Gibson faz críticas a este modelo, procurando demarcar uma distância teórica bem definida em relação à Gestalt. Contudo, nos valendo do formato “ampliado” de uso da figura/fundo proposto por McLuhan, notamos que o principal conceito da Psicologia Ecológica - as affordances - guarda em si ligações metafóricas com esta ideia desenvolvida por Edgar Rubin e utilizada pelo pensador canadense para explicar os processos comunicacionais.

3.3. As affordances

Conforme descrevemos anteriormente, as affordances são o conceito mais conhecido de J.J. Gibson, e são o ponto principal das pesquisas de Psicologia Ecológica desde os anos 1970, recebendo constantemente atualizações em seu modelo teórico; o exemplo mais conhecido destes desenvolvimentos é a separação entre as affordances reais e percebidas feita por Donald Norman como um método auxiliar para o design de objetos físicos e interfaces gráficas de computadores, já que, segundo o designer estadunidense, “as affordances nos oferecem fortes pistas para operarmos objetos”32 (NORMAN, 1990: 9). Ao definir que existem diferentes affordances, considerando que existem possibilidades de ação em relação a um objeto/superfície/ser que são (ou não) percebidas por um usuário, Norman quer destacar que as affordances são uma rede de relacionamentos que são constituídos por meio da percepção para possibilitar comportamentos e ações em um determinado

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Livre tradução de: “(...) understanding media must mean the understanding of the effects of media”. Livre tradução de: “Affordances provide strong clues to the operation of things”. 13

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ambiente: “uma affordance não é uma propriedade, é um relacionamento que existe entre o objeto e o organismo que está agindo no objeto”33 (NORMAN, 1998: 123). Esta visão de Donald Norman sobre as affordances se aproxima, de certa forma, da definição que Marshall McLuhan faz dos os processos comunicacionais a partir da sondagem da figura/fundo: Todas as situações compreendem uma área de atenção (figura) e uma área muito maior de desatenção (fundo). As duas estão continuamente se coagindo e também jogando entre si, a partir de uma estrutura comum, ou um limite, ou um intervalo que tem a finalidade de definir, simultaneamente, os dois. A forma de uma está, com exatidão, em consonância com a forma da outra.34 (MCLUHAN e MCLUHAN, 1988: 5)

Nesta citação de McLuhan, o relacionamento entre a área de figura (os meios de comunicação) e seu fundo (seus efeitos e contextos) pode ser vista em uma analogia com as affordances gibsonianas: a figura como sendo as affordances percebidas, ou seja, o que está destacado, mensurado, e apreendido em um ambiente repleto de informações; o fundo como sendo as affordances reais, repleto de informações ainda não apreendidas, mas que estão disponíveis em um determinado ambiente para serem percebidas e valoradas, oferecendo um fundamento para a percepção de algo específico (a figura/a affordance percebida). Uma outra aproximação possível entre a Psicologia Ecológica e as ideias de McLuhan, partindo das affordances, pode ser pensada quando Donald Norman (1993) declara que cada tecnologia midiática possibilita diferentes modos de operação, e que as affordances de cada meio de comunicação influenciam suas possibilidades de uso: “as affordances do meio realmente fazem a diferença” (NORMAN, 1993: 112). Norman vai destacar que todas as mídias possuem affordance diferentes, pois cada meio fornece tipos específicos de modo de uso e criação/obtenção de informações, o que nos remete à concepção mcluhiana de que o meio de comunicação possui em si o seu próprio conjunto de usos, contextos, efeitos e conteúdos – itens de informação que fazem parte de um ambiente, ou seja, que poderiam ser facilmente descritos como affordances reais e/ou percebidas.

4. Considerações finais

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Livre tradução de: “An affordance is not a property, it is a relationship that holds between the object and the organism that is acting on the object”. 34 Livre tradução de: “All situations comprise an area of attention (figure) and a very much larger area of inattention (ground). The two continually coerce and play with each other across a common outline or boundary or interval that serves to define both simultaneously. The shape of one conforms exactly to the shape of the other”. 14

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Marshall McLuhan e J.J. Gibson são dois autores que apresentam várias semelhanças, em nosso ver: são influentes em suas áreas de pesquisa, e procuraram expandir conceitos e métodos vigentes em seus campos a partir de uma abordagem interdisciplinar, diversa e complexa. Durante este trabalho, nos detivemos em descrever as questões teóricas sobre percepção, informação e comunicação que animaram o pensador canadense e o psicólogo estadunidense em suas obras; se McLuhan pondera que a percepção é parte fundamental da comunicação, e também uma forma de entender nossas formações históricas, sócio-culturais e cognitivas da humanidade, Gibson cria a teoria das affordances para tentar entender como ocorre a apreensão das informações em um ambiente. Assim, encontramos três possíveis pontos de aproximação entre estes autores: os aspectos relacionados aos ambientes, os usos do conceito de figura e fundo, e as semelhanças entre as affordances e as sondagens de McLuhan sobre a apreensão de informações. Tomando por base a citação mcluhiana que advoga, “objetos não são observáveis. Apenas as relações entre os objetos são observáveis”35 (MCLUHAN, 1969”: 260), acreditamos que há certas afinidades entre as visões de McLuhan e Gibson sobre a percepção: os dois autores procuram descrever relacionamentos com objetos e seres a partir da apreensão sensorial das informações disponíveis em um determinado ambiente. Esta é, obviamente, uma aproximação que funciona ao estilo das sondagens de McLuhan, expandindo conceitos para além de suas concepções originais, mas acreditamos que criar relações entre a maneira pela qual o pensador canadense descreve a apreensão de informações e os desenvolvimentos das teorias de J.J. Gibson nos ajuda a destacar um objetivo comum destes pesquisadores: pensar os modos em que a percepção sensorial vai influir na comunicação e na vida humana. Referências bibliográficas BRAUND, Michael James. The structures of perception: an ecological perspective. Kritike, v.2, n.1, p. 123-144, 2008. CAVELL, Richard. McLuhan in space: a cultural geography. Toronto: University of Toronto Press, 2003. COUPLAND, Douglas. Marshall McLuhan: you know nothing of my work! New York, Atlas & Co., 2010. E-book. GAVER, William W. Technology affordances. Anais do CHI '91 - SIGCHI conference on Human factors in computing systems: Reaching through technology. New York, ACM: 1991.

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Livre tradução de: “Objects are unobservable. Only relationships among objects are observable”. 15

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