Pastor Pacificador Alfred Poirier [PDF]

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Zitiervorschau

"Os pastores lutam nas frentes da guerra espiritual que envolve o mundo. Com bastante frequência suas maiores batalhas se dão dentro da própria igreja, onde eles se veem pegos pelo fogo cruzado dos conflitos pessoais, teológicos e congregacionais. Esses conflitos intermináveis acabam por deixar muitos pastores — e suas famílias — tão exaustos e feridos que eles perdem sua alegria pelo ministério ou chegam a deixar o pastorado. Este livro fornece uma estratégia centrada no evangelho, perfeita para preparar pastores para se tornarem pacificadores altamente eficientes e capazes de liderar seu rebanho com segurança através dos conflitos, ao mesmo tempo em que constroem na igreja uma cultura de paz." Ken Sande, presidente, Peacemaker Ministries

"De maneira solidamente espiritual um pastor veterano explica nesta obra como a igreja local, por meio de seus líderes, pode vir a ser a comunidade de paz e segurança que é chamada para ser, em vez do lugar de hostilidades que muitas vezes é. Este é um livro muito salutar acerca de um tema muito sensível." J. I. Packer, professor de teologia, Regent College "Uma cultura de paz deve ser caraterística do povo da aliança de Deus. Esta obra traz uma sólida visão global da pacificação bíblica que pode ajudar pastores e suas igrejas a levarem adiante o evangelho da paz em sua vida pessoal, familiar, na igreja e na comunidade em que vivem." Tony Evans, pastor senior, Oak Cliff Bible Fellowship; presidente, The Urban Alternative "Baseada na rara combinação de pesquisa e experiência prática, esta obra de Alfred Poirier é uma leitura essencial para todos que se importam com a paz e a pureza da igreja visível de Cristo. Todo pastor e líder conhece bem o grande desafio de 'manter a unidade do Espírito no vínculo da paz', mas este livro oferece rica sabedoria para essa difícil tarefa. Leia-o antes da próxima tempestade e estará bem mais preparado para enfrentá-la!" Michael Horton, professor de teologia sistemática e apologética, Westminster Seminary California "O pastor Poirier chama a si mesmo de 'projeto de pacificador', mas faz algo nesta obra que de fato pode ajudar a igreja de hoje a lidar com os conflitos e divisões que prejudicam nossa vida em união com Cristo. Ele nos apresenta uma perspectiva inteiramente bíblica e teologicamente consistente sobre o ministério de reconciliação no contexto da igreja local. Todo pastor, líder e seminarista que esteja se preparando para o ministério deve ler este livro!" Timothy George, deão, Beeson Divinity School, Samford University; editor executivo, Christianity Today "A Bíblia nos diz para viver em paz com todos, naquilo que nos compete. A esse mundo tão repleto de conflitos chega esta obra muito bem-vinda de Alfred Poirier, O pastor pacificador: um guia bíblico para a solução de conflitos na igreja. Este livro fornece boas sugestões de como pastores podem ser parte importante da solução, e não meros espectadores dos conflitos ." D. James Kennedy, pastor senior, Coral Ridge Presbyterian Church "O pastor pacificador é teologia pastoral em sua melhor forma. É em primeiro lugar teologia, uma profunda investigação bíblica do evangelho da graça de Deus na cruz de Cristo, e de seu poder para superar os conflitos que nos dividem e prejudicam nosso testemunho. Porém, antes de tudo gostaria de frisar que não se trata de um manual sobre técnicas de negociação ou habilidades de comunicação; antes, é uma análise do que significa para os pastores se lançar à misericórdia e ao poder transformador de Deus, e então liderar pessoas em conflito a fazerem o mesmo. E justamente por seu caráter teológico, esta obra é profundamente pastoral e prática, temperada com ilustrações extraídas da própria experiência do autor que demonstram o poder de Cristo para esmagar os ídolos do nosso coração, derrubar as barreiras da desconfiança e da autodefesa, e nos aproximar em uma

unidade surpreendente e em amor. Pastores, se vocês estão procurando ferramentas para fazer os outros se comportarem melhor e fazer os conflitos 'simplesmente desaparecerem', enquanto você continua o mesmo, vocês devem passar bem longe deste livro. Porém, se estiverem preparados para serem desafiados a viver pela fé em um Deus cuja graça pode restaurar relacionamentos de um modo que vai além de sua imaginação, pegue-o e leia-o — e depois, ore, pregue e aconselhe." Dennis E. Johnson, deão acadêmico e professor de teologia prática, Westminster Seminary California "Pelo mundo afora existem mais de 7.500 escolas, seminários, institutos bíblicos e outras instituições que estão treinando homens e mulheres para o ministério. Cada uma dessas instituições deveria ter uma matéria obrigatória para todos os estudantes sobre reconciliação e pacificação. Esta obra seria o livro-texto ideal para essa matéria. Ela fornece sugestões práticas em uma área que tem sido negligenciada já há muito tempo. Também seria ideal para conferências de pastores e programas de treinamento para missionários, denominações e equipe pastoral. É um livro excelente para todos os que estão de alguma forma envolvidos com o ministério." Manfred W. Kohl, vice-presidente, Overseas Council for Theological Education O conflito humano tem presença garantida em toda família, casamento, igreja, pequeno grupo, ou seja, no mundo. A pacificação está no coração do que representa ser um cristão. Portanto, o que o autor nos oferece nesta obra não é simplesmente mais uma tarefa de uma lista de deveres impossíveis. Ele fornece aos pastores as próprias ferramentas que informarão todas as demais partes de seu ministério — a pregação, o ensino, a liderança de pequenos grupos e até mesmo o orçamento da igreja — e os ajudarão a se tornar pacificadores realmente abençoados." David Powlison, conferencista em teologia prática, Westminster Theological Seminary; editor, Journal of Biblical Counseling "Combinando sua longa experiência pastoral com vulnerabilidade e estudos bíblicos, Alfred Poirier identifica os ídolos que controlam nosso coração pecador, ao mesmo tempo em que fornece ajuda e uma nova esperança. Para aqueles que amam a igreja local e querem vê-la refletir a glória do Deus da paz, façam dessa obra seu livro de cabeceira. Com certeza você também poderá usá-lo no treinamento de seus líderes." Donald L. Bubna, treinador, conciliador e consultor

o pastor pacificador

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Poirier, Alfred O pastor pacificador : um guia bíblico para a solução de conflitos na Igreja / Alfred Poirier: tradução Marisa K. A. de Siqueira Lopes. — São Paulo : Vida Nova, 2011. Título original: The peacemaking pastor : a biblical guide to resolving church conflict. Bibliografia ISBN 978-85-275-0472-0 1. Administração de conflitos — Aspectos religiosos — Cristianismo 2. Psicologia religiosa 3. Questões polêmicas na Igreja 4. Vida cristã I. Título. 11-06274

CDD-253

índices para catálogo sistemático: 1. Administração de conflitos : Aconselhamento pastoral : Cristianismo 253

o pastor pacificador UM GUIA BÍBLICO PARA A SOLUÇÃO DE CONFLITOS NA IGREJA

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ALFRED POIRIER

TRADUÇÃO MARISA K. A. DE SIQUEIRA LOPES

VIDA NOVA

Copyright © 2006 by Alfred Poirier Título do original: The Peacemaking Pastor Traduzido da edição publicada por Baker Books, uma empresa do Baker Publishing Group — P.O. Box 6287, Grand Rapids, MI 49516 E.U.A www.bakerbooks.com 1.a edição: 2011

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA, Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte. ISBN 978-85-275-0472-0 Impresso no Brasil /Printed in Brazil

SUPERVISÃO EDITORIAL

Marisa K. A. de Siqueira Lopes REVISÃO DE PROVAS

Mauro Nogueira COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO

Sérgio Siqueira Moura DIAGRAMAÇÃO Kelly Christine Maynarte CAPA Souto Crescimento de Marca

Todas as citações bíblicas, salvo indicação contrária, foram extraídas da versão Almeida Século 21, publicada no Brasil com todos os direitos reservados pela Sociedade Religiosa Edições Vida Nova.

A Ken Sande, pelo convite para que eu me juntasse a ele em uma aventura que ainda persegue, a aventura em busca da glória e do deleite de conhecer a Deus como um Deus pacificador. A David Powlison, Paul Tripp e Ed Welch, por sua generosa sabedoria sobre como melhor aconselhar com base na Palavra de Deus. Aos irmãos e irmãs da Rocky Mountain Community Church, que proporcionam o contexto central para a pacificação, provando que o evangelho é a sabedoria e o poder de Deus, e que têm dado testemunho ao mundo por sua fidelidade, tanto individual quanto coletiva, a esse evangelho. Aos irmãos e presbíteros da Rocky Mountain Community Church e suas esposas, Rex e Marabee Clark, Dom e Sandy Feralio, Gary e Laurel Friesen, Gene e Donna Holden, Steve e Peggy Hubley, Jeff e Amy Laverman, Rich e Susan Mattson, David e Amy Petsch, Ken e Corlette Sande, Frank e Debbie Schaner, que junto comigo têm trabalhado com empenho e sem descanso para edificar a igreja de Cristo. Aos irmãos e diáconos da Rocky Mountain Community Church e suas esposas, Fred e Tara Barthel, Gary e Nancy Brook, Terry e Tami Haan, Bill e Sunny Murray, Greg e Denise Oliphant, Steve e Kerry Skiles, Lewis e Karen Vowell, que, à semelhança de Cristo, têm servido com amor aos membros de nossa igreja. À minha equipe, Rex Clark, Jason Barrie, Jeff Hamling, Jennifer Blasdel e Julie Shipp, que diariamente colocam em prática a pacificação à luz do evangelho. À minha editora, Annmarie Hamling, que embelezou meu texto ilegível. A Dennis Johnson, o primeiro a me dar a chance de ministrar esse material no Westminster Seminary California. Aos meus editores na Baker Books, Chad Allen, Paul Brinkerhoff e Lois Stück. À minha esposa, Trudy, e às minhas filhas, Sarah, Sonja e Anya, que há muito tempo têm suportado em amor este homem difícil e testemunhado a graça de Deus torná-lo cada vez mais um pacificador.

SUMÁRIO

Introdução

11

1 Esperança para um herege

19

2 Os caminhos do conflito

31

3 O coração do conflito

49

4 A glória de Deus no conflito

73

5 A pacificação na família de Deus

91

6 Confessando nossos pecados uns para os outros

111

7 Concedendo o perdão verdadeiro

131

8 Buscando o interesse dos outros

155

9 O pastor como mediador

177

10 Mediação e arbitragem

193

11 Princípios de disciplina na igreja

213

12 Práticas de disciplina na igreja

235

13 Em direção a tornar-se uma igreja pacificadora

257

INTRODUÇÃO

Mas a sabedoria que vem do alto é, em primeiro lugar, pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem hipocrisia. O fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz (Tg 3.17-18).

motivo que leva muitos a entrar no pastorado é Cristo. E o motivo que leva muitos a deixá-lo são os conflitos. A maioria dos seminaristas assume o ofício pastoral sem ter consciência e sem estar preparado para lidar com os conflitos que inevitavelmente enfrentarão em suas igrejas. Muitos jovens pastores começam sua carreira acreditando, com ingenuidade, que uma pregação ortodoxa, um culto bem organizado e um número suficiente de diferentes locais para discipulado é tudo de que precisam para fazer com que seus membros cresçam na fé e sua igreja em números. Porém, uma vez envolvidos no pastorado — uma realidade repleta de conflitos e agravada por sua própria inabilidade de lidar com eles de maneira sábia, piedosa e pautada no evangelho — percebem que tudo isso logo prejudica sua eficácia como pastor e o próprio testemunho da igreja. Uma série de pesquisas aplicadas pela Christianity Today confirma essa evidente deficiência na área do treinamento pastoral. Os pastores mencionaram a gestão de conflitos como a área de treinamento mais necessária da qual sentiram falta durante seu período de estudos em seminários e institutos bíblicos.1 Em outra pesquisa os pastores entrevistados confessaram que as duas coisas que mais contribuíam para o que eles chamam de pontos críticos em seu ministério foram os problemas e conflitos internos na igreja e o relacionamento ruim com os líderes do conselho.' Uma terceira pesquisa, sinistramente intitulada "saídas forçadas", revela que os conflitos levam muitos pastores a deixarem suas igrejas (ou a serem demitidos!) e que as igrejas em geral, e seus líderes em particular,

O

John C. LARuE Jr., "Profile of Today's Pastor: Ministry Preparation," Your Church, março/ abril de 1995. Disponível em http://www.christianitytoday.comicbg/features/report/5y2056.html, acessado em 15/03/2006. 'John C. LARuE Jr., "Profile of Today's Pastor: Ministry Ups and Downs," Your Church, julho/ agosto de 1995. Disponível em http://www.christianitytoday.com/cbg/features/report/5y4048. html, acessado em 15/03/2006.

O PA SToR PACIFICADOR

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não estão preparados para lidar com conflitos. John LaRue Jr resume da seguinte forma o que veio a descobrir: Outras causas [para as saídas forçadas] incluíram conflitos de personalidade (com a congregação e/ou com o conselho da igreja) e expectativas não realistas (tanto da parte dos pastores quanto das igrejas). Nas igrejas em que os pastores foram obrigados a deixar o ministério, a ocorrência de conflito entre o conselho e o pastor era duas vezes e meia mais provável do que nas demais igrejas em geral. O conflito entre integrantes da equipe pastoral era outro fator de peso. Entre aqueles que chegaram a ser demitidos notou-se que havia nove vezes mais probabilidade de terem tido algum conflito de personalidade com o pastor sênior do que entre os que ainda trabalhavam na igreja.'

As coisas que John LaRue descobriu sobre o conflito pastoral nas igrejas não deveriam nos surpreender, como também não deveria o fato de haver conflito em excesso em nossas igrejas. O que deveria nos causar espanto é fato de que igrejas, institutos bíblicos e seminários ofereçam tão pouco ou nenhum treinamento pastoral sobre como lidar com todo esse conflito. Espero que este livro possa ter um papel importante, ainda que modesto, no sentido de suprir essa deficiência na formação de pastores. E ainda mais, espero que aqueles já envolvidos no ministério possam encontrar nestas páginas uma mensagem que renove seu amor por Cristo, por seu evangelho e pela supremacia da glória de Deus em sua igreja. O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO DESTE LIVRO

Nos últimos trinta anos temos visto um aumento dos esforços para mediar conflitos fora dos tribunais, algo também conhecido como arbitragem ou solução alternativa de conflitos. Hoje um número cada vez maior de universidades e faculdades de direito oferecem cursos em nível de graduação e pós-graduação na área de solução alternativa de conflitos. Por exemplo, há programas de negociação no curso de direito da Universidade de Harvard, no Instituto Straus na Universidade Pepperdine, no Instituto da Universidade George Mason para Análise e Solução de Conflitos e no centro de pesquisas sobre conflito na Universidade do Colorado (University of Colorado 's Conflict Research Consortium). Também foram criadas diversas associações para fornecer ensino, treinamento e habilitação ou credenciamento para pessoas que se interessam por este tipo de trabalho. A Associação Americana de Arbitragem (AAA) é a mais antiga

'John C. LARuE Jr., "Forced Exits: A Too-Common Ministry Hazard," Your Church, março/ abril de 1996. Disponível em http://www.christianitytoday.com/cbg/features/report/6y2072.html, acessado em 15/03/2006.

INTRODUçA0

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do gênero, tendo aproximadamente 75 anos de existência. Outra associação bastante conhecida é a Society for Professionals in Dispute Resolution (SPIDR).4 Por melhor que possa parecer, o desenvolvimento na teoria e prática da solução de conflitos tem dependido amplamente do trabalho de mediadores seculares, os quais se baseiam em teorias psicológicas e sociológicas sobre conflito. Durante esse mesmo período têm sido criados grupos cristãos para solução de conflito. Esses ministérios têm procurado lidar com a questão do conflito a partir de uma perspectiva e metodologia decididamente cristãs. Grupos como os do Alban Institute, o do Conflict Transformation Program da Eastern Mennonite University, e o Peacemaker Ministries, bem como profissionais cristãos envolvidos na área de mediação e arbitragem, são potenciais recursos que seminários e institutos bíblicos podem utilizar no treinamento de pastores.' A literatura cristã nesse assunto vai desde obras que dispensam um tratamento bem amplo à questão da solução de conflitos (por exemplo, Leading your Church through Conflict and Reconciliation: 30 Strategies to transform your Ministry [Liderando sua igreja através do conflito e da reconciliação: 30 estratégias para transformar seu ministério], editado por Marshall Shelley)6 até aquelas voltadas a temas mais específicos do assunto (como Helping Angry People [Ajudando pessoas iradas], de Glenn Taylor e Rod Wilson).' No entanto, mesmo essas obras apresentam as seguintes deficiências no que diz respeito a teoria e prática da solução de conflitos.' Em primeiro lugar, abordam a questão da solução de conflitos sobretudo através da adoção de respostas meramente pragmáticas. A palavra-chave aqui é A aquisição das habilidades apropriadas (como ter uma boa comunicação e saber ouvir) e a utilização dos métodos adequados (como a negociação baseada no interesse) alcançam, na melhor das hipóteses, uma mísera transformação. Minha experiência pessoal demonstra que a verdadeira transformação de atitude no que diz respeito ao conflito e à pacificação só acontece por meio de uma visão renovada do evangelho de Jesus Cristo. O evangelho é o motor que "meramente".

4 Sociedade de Profissionais que Trabalham na Solução de Conflitos. 'Para uma lista de entidades da área que oferecem ajuda às igrejas, veja o artigo escrito por Marlin THOMAS, "Managing Conflict," Leadership Journal (primavera de 1998). Disponível em http:// www.christianitytoday.com/le/812/812065.html. Thomas fala brevemente sobre cada uma dessas organizações. 6Marshall SHELLEY, ed., Leading Your Church through Conflict and Reconciliation: 30 Strategies to Transform Your Ministry. Minneapolis: Bethany, 1997. 7Glenn TAYLOR e Rod WILSON, Helping Angry People. Grand Rapids: Baker Books, 1997. 'Uma exceção notável são os recursos e treinamentos desenvolvidos pelo Peacemaker Ministries, que fica em Billings, Montana. Veja, por exemplo, Ken Sande, The Peacemaker, 3a. ed. Grand Rapids: Baker, 2003 [Também publicado no Brasil pela CPAD sob o título O pacificador].

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O PASTOR PACIFICADOR

move a pacificação. Conflitos mal resolvidos entre cristãos têm menos a ver com o fato de as pessoas possuírem certas habilidades e muito mais a ver com o fato de serem pecadoras. E é justamente aqui que o pastor entra em cena, pois Cristo nos chamou para sermos pregadores do evangelho da paz — o único que pode acabar com pecados como a amargura, a inveja, a arrogância e a cobiça. Em segundo lugar, as teorias cristãs de conflito que temos atualmente são deficientes em reconhecer as dimensões do conflito ligadas a Deus. Quando discutem sobre raiva, vingança, ofensa, mentira entre outras emoções e comportamentos característicos do conflito, as teorias de conflito desenvolvidas por cristãos raramente colocam essas questões em termos da atitude de rebeldia do coração pecador em relação a Deus. Consequentemente, deixam de lado o rico e profundo tema da motivação humana, como a idolatria, a concupiscência e o desejo. E quando de fato entram nas questões do coração humano e das motivações da natureza humana, essas teorias tipicamente recorrem a modelos da psicologia que nada têm a ver com a Bíblia. Fica evidente, portanto, que ainda existe uma imensa necessidade de desenvolvermos mais a teoria e prática da solução de conflitos a partir de uma perspectiva cristã que seja baseada na Bíblia e integrada teologicamente no corpo mais amplo do pensamento e do ensino cristão. Em terceiro lugar, os modelos atuais para solução de conflito (tanto seculares quanto cristãos) sofrem a influência de um modelo que não é suficiente para esse propósito no que diz respeito à igreja local: o modelo de solução de conflitos utilizado pela justiça. A igreja precisa de um modelo talhado de forma mais eclesiástica sobre o qual possa construir suas práticas de solução de conflito. O fato de que o modelo aplicado pela justiça domina a atual teoria e prática do assunto é compreensível pela simples razão de que a atual forma de solução de conflitos surgiu como uma alternativa para a solução de conflitos pelo poder judiciário. A maioria dos primeiros teóricos e praticantes desse modelo era oriunda de profissões ligadas aos campos jurídico ou político. Há inúmeras vantagens em se adotar esse modelo, sendo as mais significativas o fato de que ele traz um nível de sofisticação mais elevado ao lidar com questões legais substantivas e técnicas que os cristãos enfrentam. Questões como o devido processo legal, a equidade e a justiça assumem um papel central indispensável. Contudo, esse modelo não está livre de deficiências. Ele tende a voltar seu foco para a solução imediata do problema, em vez de olhar mais fundo para questões pessoais, sentimentos e relacionamentos. Ele define os motivos do conflito em termos da ofensa e injustiça e interpreta a solução meramente em termos da restituição que precisa ser feita. Mas falha totalmente em tratar das questões do coração, como a raiva, a amargura, a falta de perdão e de arrependimento que alimentam o conflito.

INTROM

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Friso, mais uma vez, que o modelo adotado pela justiça inclina-se na direção da solução voltada para um fato isolado, e não para uma mediação que se estenda por um período de tempo maior. Com isso deixa de tratar dos pecados habituais que se repetem constantemente na vida das pessoas e, portanto, falha completamente em possibilitar a mudança e a renovação de hábitos, tão necessárias para romper com esse velho padrão de comportamento. O modelo de solução proposto pela justiça também orienta o processo de mediação no sentido de solucionar a questão em vez de buscar a pacificação dos relacionamentos. Soma-se a isso sua dependência de um expert estranho ao contexto (conhecido como "mediador"), alguém que é contratado pelas partes em conflito para vir, mediar a disputa e, então, ir embora. Assim, esse processo passa por cima do auxílio constante, algo tão indispensável para a pacificação e construção de relacionamentos duradouros. Trocando em miúdos, a prática atual de solução de conflitos se parece mais com um atendimento de emergência no pronto socorro do que com um tratamento mais prolongado do problema. O que ainda precisamos, portanto, é de uma teoria para a solução de conflitos que seja desenvolvida e praticada no contexto da igreja local. Precisamos de um modelo que se baseie na singularidade da igreja de Jesus Cristo. Uma teoria cristã para a solução de conflitos deve ter raízes teológicas e ser integrada na vida da igreja. No entanto, o maior empecilho para a atuação pastoral na solução de conflitos encontra-se em três pressupostos velados que temos em relação a isso. O primeiro pressuposto diz respeito ao fato de que os pastores com frequência encaram a solução de conflitos como mera ferramenta para o ministério, e não como algo que faz parte de sua essência. Assim, em lugar de sermos ministros da pacificação (2Co 5.19-20), restringimos a solução de conflitos a situações específicas de crise dentro da igreja. Essa visão deturpada nos deixa cegos para o caráter multidimensional e até mesmo cósmico do ministério de pacificação. Uma vez que Deus reconciliou consigo mesmo todas as coisas no céu e na terra, por meio da morte de seu Filho na cruz (Cl 1.19-20), nós, portanto, como filhos de Deus, somos redimidos para sermos reconciliadores. O segundo pressuposto tem a ver com o fato de assumirmos que a solução de conflitos tem caráter meramente corretivo, e não construtivo. Contudo, o ministério de pacificação que nos foi dado por Deus está voltado, sobretudo, para preparar o povo de Deus para que sejam reconciliadores e a sua igreja para que tenha uma cultura de paz. O último pressuposto está relacionado ao fato de que, por muito tempo, tendemos a ver a pacificação através das lentes de várias ideologias, e não pelas lentes das Escrituras. Falhamos em explorar o que significa termos sido encarregados por Deus "da mensagem da reconciliação" (2Co 5.19) e o que significa sermos embaixadores de Cristo para essa reconciliação.

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MSTOR PACENICADOR

Para que possamos começar a tomar essa direção mais positiva, devemos recuperar as verdades fundamentais da fé cristã. Nossas doutrinas sobre Deus, o homem, Cristo, o Espírito, a igreja, a escatologia devem informar cada aspecto dos objetivos e práticas de nosso ministério de reconciliação, de pacificação. Por exemplo, precisamos nos perguntar de que modo a soberania de Deus deve moldar nossas respostas ao conflito. Os conflitos por que passamos são apenas intromissões em nosso ministério, acidentes e empecilhos ao evangelho, ou são instrumentos que Deus usa para nosso aprendizado — são os próprios meios que ele usa para que possamos enxergar nossa miserável condição e a riqueza de seu poder e sua sabedoria, justiça e misericórdia (Tg 1.2-5)? Além disso, como igreja devemos aprender a ver as partes em conflito não somente como indivíduos com interesses conflitantes. Devemos vê-las como aquilo que são: irmãos e irmãs em Cristo presos à rebelião e às cadeias do pecado, pessoas em quem o Espírito habita, que são chamadas para amar e servir umas às outras em uma comunidade cuja identidade é delimitada pelo evangelho, pelos sacramentos e pela disciplina. Precisamos também ampliar o próprio conceito de disciplina para além das tradicionais punições ou censuras de caráter extremo (tais como suspensão, destituição e expulsão). A "disciplina" deve abranger a totalidade da vida cristã que devemos viver sob a disciplina do nosso Pai celestial (Hb 12.1-14). Por fim, gostaria de dizer que nós, como líderes cristãos, precisamos reorganizar nossas prioridades e nos esforçar para trazer de volta ao campo habitual de atuação dos cristãos a sabedoria para mediar e arbitrar conflitos, em vez de deixá-la nas mãos de peritos da área jurídica (ainda que a perícia que eles possuam seja necessária). Devemos ter uma visão de ministério que seja mais holística, ampliando o ministério da Palavra de forma a incluir não somente a pregação, mas também aconselhamento, ensino e preparação do povo de Deus para a busca da paz. Essa reorientação do nosso ministério deve incluir todos os membros da igreja, pois a Bíblia exorta todos a que busquem a paz uns com os outros (veja S1 34.14; Mt 5.9,43-45; Mc 9.50; Lc 6.35-38; Rm 12.18; 14.19; 2Co 13.11; Gl 5.22; Ef 4.2-6; Cl 3.15; lTs 5.13; 2Tm 2.22; Hb 12.14; Tg 3.16-18; 1Pe 3.11). Essas são algumas das mudanças que nós, como igreja, precisamos colocar em prática para resgatar o ministério pastoral de pacificação. E foi por causa da minha paixão por ver a igreja resgatar esse ministério que escrevi este livro. O PROJETO DESTE LIVRO Um dos meus principais objetivos em escrever este livro foi basear a pacificação em sólidos fundamentos bíblicos e teológicos bem como inseri-la no contexto da igreja. Pelo fato de ter me baseado no que aprendi em meu próprio ministério, o

IN'TRODUçÃO

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qual tem sido moldado por uma teologia reformada e uma eclesiologia presbiteriana, não posso alegar que escrevi esta obra estritamente a partir de uma perspectiva evangélica mais ampla, muito menos ecumênica. No entanto, estou seguro de que aqueles que pertencem a outras tradições eclesiásticas e teológicas podem não só se beneficiar desta obra, mas também contextualizá-la e aplicar o que ela ensina às suas próprias tradições. Espero que este livro possa começar a remediar uma grave deficiência no preparo pastoral, fornecendo a pastores em treinamento bem como aos mais experientes uma visão bíblica da pacificação, a partir de um ponto de vista exclusivamente pastoral. Oro para que as ideias que aqui apresento possam ajudar a fortalecer os pastores e suas igrejas em sua tarefa de levar adiante o evangelho da paz a um mundo cujos olhos estão voltados para eles, em grande expectativa. Procurei organizar este livro dentro da estrutura de quem somos nós como seres humanos em conflito (Caps. 1 a 3), de quem é Deus como o Deus da pacificação (Caps. 4 e 5), e como, portanto, Deus nos chama a reagir a conflitos (Caps. 6 a 13). O cap. 1 especificamente é autobiográfico: traz as meditações de um relutante pastor pacificador. Eu o escrevi para trazer a você esperança de que Deus pode transformar mesmo o mais relutante dos pastores em um pacificador. O cap. 2 explora os caminhos de conflito que as igrejas e os indivíduos mais comumente seguem. O cap. 3 volta-se para descobrir as causas e motivações desses conflitos. Partindo da própria pergunta feita pelo apóstolo Tiago, "De onde vêm as guerras e discórdias que há entre voz?" (Tg 4.1), esse capítulo penetra além da superfície do conflito a fim de observar a dinâmica do pecado no coração humano. E justamente esse o ponto que mais precisa do evangelho da pacificação. Os capítulos 4 e 5 voltam seu foco para a base do ministério de pacificação. Olhamos primeiro para a teologia propriamente dita — a natureza e o caráter do Deus triúno — para ancorar nossa discussão sobre pacificação. Quem é Deus? O que a natureza triúna das pessoas da Trindade nos ensina sobre pacificação? Como o caráter de Deus deve orientar nossa teoria e prática na área de pacificação? O cap. 5 continua por esse caminho, voltando nossa atenção para quem Deus é como nosso Pai e quem é a igreja como família de Deus. Investiga porque as Escrituras usam a linguagem voltada para a família particularmente nos contextos em que trata de conflitos na igreja. Veremos que a pacificação acontece nessa relação da igreja como família de Deus e de nós mesmos como seus filhos — como irmãos e irmãs uns dos outros. Do cap. 6 até o 12 tratamos especificamente de práticas de pacificação: confissão, perdão, negociação, mediação, arbitragem, e disciplina na igreja. Embora muitos já conheçam tais práticas, ou algumas delas pelo menos, todas precisam ser inseridas no contexto do que foi discutido nos capítulos anteriores, os quais estabeleceram a base da nossa teologia da pacificação.

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O PASTOR PACIFICADOR

O cap. 13 encerra com passos práticos para se tornar uma igreja reconciliadora. Procura responder às perguntas que levantamos ao longo do livro: O que devo fazer à luz de tudo o que foi dito? Como posso começar a resgatar, para mim pessoalmente assim como para minha igreja, um ministério pastoral de pacificação? Apresento a você este livro não como alguém que já colocou em prática tudo o que a Bíblia ensina sobre pacificação ou como alguém que pratique bem a pacificação. Sou apenas um pecador salvo pela graça de Deus. Ainda sou um peregrino nesse caminho. No entanto, é no mesmo espírito que o apóstolo Paulo que eu posso dizer: Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado; mas faço o seguinte: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, pelo prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus. Por isso, todos os que somos aperfeiçoados tenhamos esse mesmo modo de pensar; e, se em alguma coisa pensais de outro modo, Deus também vos revelará isso. Mas prossigamos na medida da perfeição que já atingimos (Fp 3.13-16).

1 ESPERANÇA PARA U.1\r HEREGE

amais planejei ser um herege. Aconteceu. Um belo dia, acordei, olhei no espelho e vi um pastor de rosto cansado e alma extenuada. Eu havia entrado no pastorado com um ardente desejo de seguir, em minha vida e prática pastoral, os mesmos passos do que a igreja no passado chamava de cuidado de almas (cura animarum). Mas naquele dia fatídico descobri que eu já não me importava mais com coisa nenhuma. Estava farto de conflitos, do pecado, de fofocas, das ameaças, das divisões e discórdias dentro da igreja. Você já deve ter passado por coisas assim:

j

• Você recebe um telefonema de alguém que lhe pergunta se tem um membro em sua igreja que se chama João da Silva. Você responde que sim. Essa pessoa se identifica como membro de outra igreja bastante conhecida da cidade e conta a você sobre uma disputa judicial que ele tem com João da Silva por uma quebra de contrato no valor de 155 mil reais. E então você se pergunta: O que eu faço, meu Deus? • Um cidadão respeitável e importante da comunidade, que é diácono da sua igreja, abandona a esposa. Ela está grávida do quarto filho do casal. Ele se muda e corta todo sustento financeiro da esposa e dos filhos. Os líderes de sua igreja dizem a você para que o deixe sair sem muito barulho. E então você se pergunta: O que eu faço, meu Deus? • Após 5 anos de prisão, um homem condenado por pedofilia escreve a você contando que se converteu na prisão e gostaria de se tornar membro de sua igreja, quando saísse da cadeia. O medo se alastra como fogo por entre as famílias da igreja. Algumas famílias ameaçam sair da igreja se você aceitá-lo como membro. Outras ameaçam sair se você não aceitá-lo. E mais uma vez você se pergunta: O que eu faço, meu Deus? O que eu faço, meu Deus? Eis o tipo de pergunta que os pastores se fazem todo

o tempo. Por acaso já passou por sua cabeça sair da igreja em que está hoje para

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O PASTOR PACIFICADOR

pastorear uma igreja com menos problemas? Alguma vez já orou para que pessoas difíceis de sua congregação simplesmente sumissem da igreja? Pois eu já. Sei muito bem que não deveria ter feito isso, mas fiz. O seminário não me preparou para lidar com conflitos no ministério. Aprendemos como ninguém a fazer a exegese de textos bíblicos, mas aprendemos pouquíssimo sobre como fazer a exegese de pessoas. E nos sentimos completamente despreparados para lidar com conflitos dessa magnitude. Há momentos em que, em meio a tantos conflitos, chegamos a perguntar se Deus de fato nos chamou para o ministério. E de novo você se pergunta: O que eu faço, meu Deus? Na minha vida, só encontrei a resposta para essa pergunta quando me voltei para Cristo, o pacificador. Somente nesse momento me dispus a confessar a heresia que se ocultava em meu coração.

CONFISSÕES DE UM PACIFICADOR AMEDRONTADO A Bíblia inteira fala de conflitos e de Cristo, o grande pacificador. No entanto, eu não seria honesto se dissesse que adoro desempenhar esse papel. Não sinto a menor dificuldade em subir no púlpito todo domingo e pregar o Cristo crucificado. Tenho grande satisfação em ministrar cursos na escola dominical. A atuação pastoral nessas áreas é para mim o ponto alto do meu ministério. No entanto, algo muda dentro de mim quando desço das límpidas alturas do meu púlpito e preciso entrar no nevoeiro de confusão em que se encontram mergulhadas as vidas dos membros da minha igreja, nas sombras em que eles travam batalhas de vida ou morte. Tenho consciência de que fui chamado para ser não só pastor, mas um pastor pacificador, mas devo confessar, com toda sinceridade, que odeio conflitos. Eu me encolho só de ouvir alguém falar de conflitos. Imediatamente parto para o ataque ou simplesmente viro as costas e saio correndo. A única reação natural que não tenho é me prontificar a trazer a paz de volta àquela situação. Na melhor das hipóteses, posso ser considerado um pacificador amedrontado, uma promessa de pacificador. E fácil fazer o papel de mediador quando há um conflito entre Deus e um ser humano. Mas é algo bem diferente colocar-se como mediador entre duas pessoas tomadas pela raiva. Porém, esse medo de conflito não é a essência do problema. O temor é apenas um sintoma de um problema mais amplo: o fato de que sou um herege em recuperação. E não digo isso para chocar ninguém. A heresia não é algo que se passa "lá fora", mas sim bem "aqui", dentro de mim. Heresia não é somente uma questão intelectual; é algo que afeta o meu coração. É apenas outro modo de chamar a idolatria,'

1C. FitzSimons ALLISON, The Cruelty of Heresy: An Affirmation of Christian Orthodoxy. Harrisburg: Morehouse, 1994, p. 23.

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pois o coração humano é uma verdadeira fábrica de idolatrias.2 Portanto, é do coração que brotam todas as heresias. E uma vez que a idolatria também brota do coração, ela afeta a todos nós — mesmo que sejamos pastores. E essa heresia em nosso coração que nos impede de ouvir, ver, conhecer, crer, confiar, obedecer e imitar o verdadeiro Jesus que nós, pastores, dizemos seguir. Pode ser que você esteja se perguntando: "Mas, afinal, de qual heresia você é culpado, e como isso afetou seu chamado para ser um pacificador? Certamente você nunca confessou nem creu em doutrinas heréticas". Você está coberto de razão. Muito pelo contrário, eu confesso do fundo do coração todos os grandes credos da igreja: o niceno, o credo de Calcedônia e o de Atanásio. Porém, existem formas de heresia mais sutis e veladas que acabaram por se infiltrar em minha vida e ministério.

UM HEREGE OCULTO NAS SOMBRAS Depois de 25 anos enfrentando inúmeros conflitos na igreja e tendo que ouvir o chamado em geral desagradável e incômodo para atuar como pacificador, Cristo me revelou que eu era, na verdade, um herege que se ocultava nas sombras. Acabei descobrindo ainda mais, que eu não era o único. Tenho convivido com muitos bons pastores e líderes cristãos que admitem, sem exceção e de vários modos, essa heresia que temos em comum: o docetismo. Lembra-se dessa heresia da época da igreja primitiva? O docetismo nega-se a crer que Jesus Cristo se fez carne. Era uma doutrina herética que acreditava que o Filho de Deus somente parecia ser humano, isto é, sua humanidade era apenas aparente. Evidentemente confessamos, com nossa boca, que Jesus Cristo é inteiramente humano. No entanto, não vivemos nem ministramos em pleno acordo com essa confissão. Não agimos como se Cristo realmente tivesse vivido, como ser humano, entre nós. Pastoreamos as pessoas como se Cristo nunca tivesse conhecido oposição, nunca tivesse sentido angústia por ameaças repletas de ira, ou tivesse permanecido imperturbável diante daqueles de coração empedernido e não tivesse se exasperado pela mesquinha disputa por poder, privilégios e reconhecimento entre seus discípulos. Em consequência disso, quando surgem conflitos, agimos como se a pessoa e a obra de Cristo tivessem pouca importância ou esperança a oferecer. Agimos como se Cristo não pudesse se relacionar com as pessoas de nossa igreja ou, talvez, como se elas não pudessem se relacionar com Cristo.

2João CALVINO, Institutes of the Christian Reli gion, trad. Ford Lewis Battles, ed. John T. McNeill (Philadelphia: Westminster, 1960), 1:108 [Também publicado no Brasil pela Editora Cultura Cristã sob o título As Institutas].

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Agimos dessa forma porque a falta de fé infiltrou-se de forma insidiosa em nossa vida e ministério. E como hereges de coração — como "docetistas do século xxi" — nossa tendência é fugir da realidade. Provamos que os poetas estão certos quando dizem que "a humanidade não consegue suportar realidade em excesso".3 Que grande verdade! Não conseguimos suportar realidade em excesso; a vida é dura demais. Tememos nos enredar nas teias trançadas pelo confuso emaranhado que toma conta da vida das pessoas; é difícil amá-las. Então, fugimos, e ao fugir nos distanciamos daquele que nos chama a cuidar das almas, a amar, como ele nos amou, aqueles que achamos que não merecem nosso amor. Essa heresia se manifesta de formas sutis. Lembre-se do quanto nós, lideres de igreja, temos pavor de trabalho em equipe. A necessidade essencial de planejar, de colocar na balança interesses e conflitos, de olhar para as necessidades dos outros, de traçar um curso de ação tentando, ao mesmo tempo, antecipar o inesperado. E ainda temos que fazer tudo isso junto com pessoas que, assim como nós, escutam pouco, falam muito, ficam iradas com facilidade, são briguentas, lentas para aprender, têm a cabeça dura, a mente estreita, são precipitadas e simplesmente "não conseguem entender coisíssima nenhuma". Sim, trabalho em equipe é algo difícil, que esgota qualquer cristão, e nos deixa extenuados de corpo e alma. Em decorrência disso, muitos de nós tomamos uma rota de fuga. Resmungamos e reclamamos. Buscamos uma maneira de nos afastar do problema. Não é à toa que o modelo de ministério preferido seja aquele do pastor determinado, muito exigente, uma espécie de papa evangélico. Você precisa ser assim para se enquadrar como um docetista de coração. Alguns fogem do problema escondendo-se atrás de "seus principais deveres pastorais". Talvez para você eles sejam pregar, ensinar, administrar a igreja e se dedicar a missões. Qualquer que seja o dever, tendemos a gravitar em torno daquilo de que mais gostamos, do que é mais fácil para nós. E conflito nunca é algo fácil. Ele nunca começa às 8 da manhã e termina às 5 da tarde, ou bate à porta do escritório para perguntar se temos um tempinho para atendê-lo. E o que é pior, ele nunca vem acompanhado de uma agenda. Portanto, nós fugimos dele. Em vez de nos sujarmos na lama do doloroso conflito que envolve membros de nossa igreja, deixamos para que outra pessoa cuide disso. Em vez de caminharmos ao lado deles, carregando seus fardos, de estender a eles salvação pelo arrependimento e perdão em Cristo, em vez de sermos para eles a face de Cristo, oferecemos duas coisas a essas pessoas: conhecimento em nossa pregação e eficiência em nossa administração. E achamos que isso é suficiente. Dessa forma, nós nos transformamos em meros pregadores

T. S. ELIOT, "Burnt Norton," in Four Quartets. New York: Harvest/HBJ Book, 1943, 1971, p. 14.

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profissionais em vez de pastores, em administradores em vez de ministros, em executivos da igreja em vez de sacerdotes. E triste dizer, mas a verdade é que esses pregadores profissionais, administradores e executivos são altamente apreciados em muitos círculos cristãos. Pense um pouco sobre isso. Quantas vezes somos reconhecidos como "grandes pastores" pelo fato de pregarmos bem ou sermos bons administradores? E, por outro lado, quantas vezes ouvimos o título do apóstolo, "servo de Cristo", ser elogiado no pastorado (veja Rm 1.1; Ef 3.7; Cl 1.25; 2Tm 2.24; Tt 1.1)? Quantas vezes a credencial apostólica de trazer "no corpo as marcas do sofrimento de Jesus" é considerada a verdadeira credencial do ministério cristão (veja G16.17)? Por favor, não entenda mal minhas palavras. Como pastores, somos chamados a pregar, ensinar, administrar e nos envolver em missões. Todas essas responsabilidades são parte do nosso chamado específico. O desafio que proponho é o fato de que não pregamos nem ensinamos o bastante! Não administramos com sabedoria. E levamos adiante a missão sem nos dedicarmos à missão de pacificação. Jesus era pregador e mestre. Também administrava pessoas e se dedicou a uma missão definida. Mas ele não conduzia seu ministério para a multidão apenas de cima dos montes, mas também em torno de uma mesa repleta de pecadores. E o apóstolo Paulo não fazia o mesmo? Ele não nos conta que ensinava publicamente e de casa em casa (At 20.20)? Paulo não retrata sua pregação e ensino como se ele fosse um orador eloquente, mas como uma "mãe que acaricia os próprios filhos" (lTs 2.7-8,11-12). O ministério de pacificação, da Palavra, do cuidado de almas se parece menos com a imagem de um professor em uma sala de aula, ou de um gerente em uma sala de reunião e mais com a imagem de uma mãe fazendo o jantar para a família ou de um pai treinando o filho para uma corrida. Portanto, como pastores e líderes, precisamos e devemos ser parte da vida daqueles a quem pastoreamos. Não podemos fugir da realidade; não podemos temer o envolvimento. Nem evitar conflitos. Pois não queremos pregar e aconselhar meramente palavras; queremos pregar e aconselhar a Palavra viva. Quando aquilo que dizemos não tem ligação com as dificuldades da vida, com os conflitos do coração e do cotidiano, nós nos tornamos meros transmissores de conhecimento, e não pastores. Se esse é o verdadeiro ministério pastoral — o ministério do Verbo encarnado — então por que temos tanta tendência a fugir dele? Temos um coração herege, em última análise, porque procuramos contornar o maior dos eventos da encarnação de Cristo: sua morte por nós na cruz. Docetistas fogem da cruz. Não cremos com todo nosso ser na verdade de que Cristo encarnou para sofrer a morte por um mundo afligido por dores e repleto de conflitos. Em decorrência disso, deixamos de amar verdadeiramente as pessoas, como Deus nos chamou a amar,

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e deixamos de atender ao seu chamado para sermos pacificadores que vivem sua vida sob a sombra da cruz. Como a Escritura trata esse nosso dilema — nossa descrença e, de modo mais específico, a total separação entre a verdade de Cristo e o amor pelas pessoas? Surpreendentemente encontramos a resposta para essa pergunta em 2João. A ESCRITURA FALA

De maneira notável, a segunda epístola de João anuncia de forma concisa os dois fundamentos da fé. Em primeiro lugar, a fé cristã une verdade e amor. Em segundo lugar, é o amor à verdade que sustenta o verdadeiro amor. O apóstolo começa sua pequena epístola saudando uma igreja que se reunia em casa, a quem ele se dirige como "à senhora eleita e a seus filhos", reafirmando sua afeição por eles ao acrescentar: "a quem amo por causa da verdade" (2Jo 1). E no versículo 3 ele os abençoa, dizendo: "graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, o Filho do Pai, serão conosco em verdade e amor". Ou seja, as bênçãos (graça, misericórdia e paz) são alcançadas e sustentadas "em verdade e amor". No entanto, o apóstolo diz mais. Ele não joga simplesmente essas grandes palavras, sem qualquer cuidado, deixando para nós a tarefa de interpretá-las. Ele as define para a igreja, dizendo de onde procedem essas bênçãos. Ele não está falando de uma graça, misericórdia, paz, verdade e amor quaisquer, mas somente da graça, misericórdia, paz, verdade e amor que são "da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, o Filho do Pai" (2Jo 3). Em outras palavras, ele define essas importantes palavras da fé cristã em termos cristológicos — em termos do Jesus Cristo encarnado. A lógica é bem simples: rejeitar a Jesus como Filho de Deus encarnado é o mesmo que rejeitar a Deus como Pai. Se você não tiver o Filho encarnado, não tem o Pai, Deus. E se você não tiver o Filho encarnado, não tem graça, misericórdia, paz, verdade e amor verdadeiros. Essa verdade se torna mais evidente quando consideramos a relação entre os versículos 4 a 6 e 7 a 11. Nos versículos 4 a 6 João chama a igreja a amar. No versículo 5 mais especificamente ouvimos o chamado à pacificação encerrado em uma fórmula quase imperativa: "amemos uns aos outros". O pedido de João aqui nos lembra do próprio mandamento dado por Jesus em João 13, quando ele diz: "Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros. Nisto todos saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros" ( Jo 13.34-35). Nos versículos 6 a 11 de 2João o apóstolo declara a verdade sobre Jesus. Ele fala de Jesus como aquele que "veio em corpo" (v. 7). Lamentavelmente os tradutores da NIV omitiram a conjunção hoti no início deste versículo. Essa conjunção pode ser muito sutil, quase inexistente, apenas fazendo uma introdução para o

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próximo pensamento. Ou pode ter o sentido explicativo mais forte de um porquê. De acordo com este último sentido, podemos ver com mais clareza a questão que João está levantando: E este é o amor: que vivamos segundo seus mandamentos. Esse é o mandamento, como já desde o princípio ouvistes, para que nele andeis. Porque muitos enganadores já saíram pelo mundo, os quais não declaram que Jesus Cristo veio em corpo. Quem assim procede é o enganador e o anticristo (2Jo 6-7).

O apóstolo baseia o chamado para que amemos como Cristo amou (o chamado à pacificação) na verdade sobre a pessoa de Jesus Cristo (a cristologia). Tanto o amor quanto a verdade não são conceitos abstratos para João, mas sim descrições concretas da pessoa e obra de Jesus Cristo. O verdadeiro amor e obediência é amar e obedecer como Cristo amou e obedeceu na carne. João temia que o amor da igreja fosse se desfazer e perverter pela heresia do docetismo — que negava que Cristo tivesse vindo em corpo. Cristo é a definição do verdadeiro amor. Se Cristo não tivesse vindo em corpo, se tivesse andado acima da lama e do pecado deste mundo, então seu amor também estaria acima da humanidade. Em última instância, negar que Jesus veio em corpo é derrotar o verdadeiro amor — aquele que nos leva a amar uns aos outros e até mesmo nossos inimigos, assim como Cristo nos amou. O apóstolo, então, vincula amor e verdade, pacificação e cristologia. E essa passagem não é um exemplo isolado disso. João apresenta um argumento semelhante no capítulo 4 de sua primeira epístola. Ele diz que o amor — o verdadeiro amor — vem de Deus e, então, passa a defini-lo nos versículos 9-10 em termos do fato de Deus ter entregado seu único Filho. A seguir ele caracteriza o amor pelo modo como é demonstrado na própria obra de Cristo como mediador, a qual Robert Reymond tão encantadoramente chama a obra de conflito de Cristo.4 João coloca isso dessa forma: "O amor de Deus para conosco manifestou-se no fato de Deus ter enviado seu Filho unigênito ao mundo para que vivamos por meio dele. Nisto está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (1Jo 4.9-10). Portanto, o amor não somente vem de Deus, ele é revelado e manifestado no Jesus Cristo de carne e osso, no fato de que ele veio para fazer propiciação pelos nossos pecados, e se reconciliar com seus inimigos. O apóstolo João trata da questão da verdade em um ponto anterior do mesmo capítulo, quando diz que o espírito procede de duas fontes: há o Espírito de Deus

4 Robert REYMOND, A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashville: Thomas Nelson, 1998, p. 536.

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e o espírito que procede do Espírito de Deus e há o espírito do anticristo e aqueles que procedem dele. E como sabemos qual é aquele que vem de Deus? Ele nos diz em lJoão 4.2-3: "Assim conheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em corpo é de Deus; e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus, mas é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que havia de vir, e agora já está no mundo." O fato de João poder definir o anticristo por aquilo que ele não é, ou seja, por ser aquele que não confessa "que Jesus Cristo veio em corpo", nos diz muito sobre essa breve confissão. E provável que seja uma forma sintética de dizer as grandes e profundas verdades que se encerram no fato de Jesus ser Deus-homem — o Messias de Deus, o Salvador do mundo. Isso implica sua glória preexistente como o Filho de Deus. Torna explícita sua encarnação, o fato de que ele veio em carne. Faz do caráter da sua vida encarnada a vida do servo obediente que faz a vontade do Pai. Fala particularmente de sua humilhação, seu sofrimento, da crucificação, de sua morte expiatória, de sua ressurreição justificadora, e de pacificação. Em síntese, este Cristo que verdadeiramente "veio em corpo" é o mesmo Cristo que verdadeiramente nos amou entregando sua própria vida como sacrifício propiciatório por nossos pecados. Na verdade, em virtude do fato de Deus Filho ter encarnado, ele é o único que se qualifica para ser mediador entre Deus e o homem, o único que pode reconciliar o homem com Deus. E assim o apóstolo João mais uma vez demonstra a relação vital que existe entre amor e verdade. O amor se torna possível por causa da verdade de quem é Cristo. A pacificação é algo que pode ser abraçado pois o próprio Cristo é o pacificador encarnado. POR MEIO DA CRUZ Como já disse antes, sou um herege de coração porque muitas vezes diante da dura realidade — de circunstâncias desoladoras, de dolorosos conflitos, de corações duros e impenetráveis — tenho fugido da cruz. No entanto, as epístolas de João nos mostram que o verdadeiro Jesus salva por meio da cruz. Em vez de fugir do mundo, Jesus Cristo abre os braços para nós, pecadores, rebeldes, em toda nossa imoralidade, indecisão, inconstância, hesitação, fingimentos, mentiras, trapaças, adultérios e idolatrias. Ele nos salva de tudo isso! Ele desce e nos encontra dentro da cova profunda em que estamos, em vez de simplesmente gritar conosco lá do alto. Ele desce, nos pega no colo e nos carrega para fora. Ele nos purifica e nos reveste com novas vestes. Mas nunca, jamais desiste de nós. Esse é o Cristo encarnado! As Escrituras estão repletas de registros de sua humanidade, de seu sofrimento. Ele sentiu fome, sede e cansaço. Ele chorou, transpirou e agonizou em seu sofrimento. Foi crucificado, morto e sepultado. Mas ele conciliou conflitos, reconciliando-nos com Deus e uns com os outros.

ESPER.A.NÇA PARA. UM HEREGE

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Cristão não é uma ilusão. O verdadeiro Jesus não é uma criação de Hollywood, alguém que flutuava dois dedos acima da terra. O ministério do Pastor dos pastores é o ministério do Deus-homem — um homem de pés calejados e encardidos pelos dias longos e quentes de caminhadas por estradas poeirentas. Em Cristo encontramos um pastor de mãos calejadas pelo trabalho na obra do Pai — um pastor de mãos que se unem em oração, que tocam leprosos, que enxugam olhos lacrimejantes, que partem o pão. O primeiro Pastor foi um homem de dores que conhecia o sofrimento. Esse primeiro Pastor amava o mundo real, como ele é, mesmo tendo vindo para transformá-lo. Além disso, esse primeiro Pastor veio para transformador meu coração herege, e se você é um herege como eu, saiba que ele veio para transformar também o seu coração. Nosso coração herege nega o mundo, mas o verdadeiro cristianismo é aquele que salva o mundo. E esta é uma declaração digna de crédito: Jesus Cristo veio a este mundo para destruir as obras do demônio e para sofrer e morrer em lugar dos pecadores. E por sua morte somos curados. E isso que significa ortodoxia. E a verdade em ação, a verdade em amor. A ortodoxia regenera o coração — o meu e o seu! Esse mesmo Cristo que nos salva agora nos chama a imitá-lo, para que moldemos nosso ministério como líderes segundo o padrão do ministério pastoral de Cristo. A luz de seu exemplo, os repetidos chamados para o vigoroso trabalho de pacificação assumem um novo significado e se tornam mais familiares: • "Afasta-te do mal e faze o bem; busca a paz e segue-a (S134.14)". • "Portanto, sigamos as coisas que servem para a paz e as que contribuem para a edificação mútua (Rm 14.19)". • "...procurando cuidadosamente manter a unidade do Espírito no vínculo da paz (Ef 4.3)". • "Procurai viver em paz com todos e em santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor (Hb 12.14." Ele empenhou-se por isso. Por isso ele tanto labutou, trabalhou e lutou com lágrimas, sangue e suor. Ele labutou, trabalhou e lutou pela paz. Ele é o primeiro e único Pastor. Ele é o primeiro e o único pacificador verdadeiro.

IMPLICAÇÕES

Portanto, de que modo a fé verdadeira e a confissão genuína de que Cristo veio em corpo devem moldar radicalmente nossa compreensão do chamado pastoral e, em

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particular, nossos esforços pastorais para trazer paz a nossa igreja local? Se somos chamados a servir como líderes na igreja, se somos chamados ao pastorado, devemos resgatar a plena humanidade do próprio Cristo e de seu ministério pastoral, sobretudo como nosso grande pacificador. A falha em treinar pessoas e líderes como pacificadores é uma falha de nossa cristologia, pois pacificação é cristologia. Pacificação tem tudo a ver com Jesus Cristo, com sua pessoa e obra, como seu fundamento, mensagem e modo de ser. Jesus é o fundamento da pacificação por meio de sua morte reconciliadora. O evangelho de Jesus é a mensagem de pacificação, de reconciliação que nós, pastores, trazemos às pessoas em conflito. E até mesmo o modo de ser da pacificação é moldado pelo próprio Cristo, que era manso e humilde de coração e não quebrava a cana esmagada. A obra de Deus em reconciliar consigo mesmo o mundo e todas as coisas na terra e nos céus é algo feito por meio da pessoa e obra de Cristo. Em Cristo Deus reconcilia consigo mesmo todas as coisas (veja 2Co 5.18-21; Cl 1.19-22). Que Deus diríamos ser o Deus reconciliador senão o Deus de Jesus Cristo? A que família de Deus nos referimos senão à família de Deus unida em Cristo que recebe todas as suas bênçãos? Qual é o chamado para que eu confesse pecados e conceda perdão senão o chamado para que eu reconheça Cristo para mim e em mim? O que é negociação senão buscar o interesse do outro, e que exemplo acerca disso nos deu o apóstolo Paulo senão o próprio Cristo (Fp 2.1-10 )? O que é mediação senão andar nos passos de Cristo, nosso Mediador, de Cristo, nossa paz? O que é arbitragem e disciplina eclesiástica senão sermos mordomos das chaves do Reino, que pertencem a Cristo? Pacificação é cristologia. E é por isso que em meio ao verdadeiro turbilhão dos conflitos humanos, o pastor pacificador, mesmo sendo frágil e falho, persevera em seus esforços pela paz, pois Cristo é sua esperança, sua alegria, seu chamado e sua coroa. E sobre esta premissa — de que pacificação é cristologia — que o restante desta obra é escrito. É essa premissa que tem guiado os presbíteros e diáconos e os muitos homens e mulheres de nossa igreja a lutar para serem reconciliadores e pacificadores em meio a este mundo de carne e osso, tão confuso, que iremos descrever no restante desta obra. E essa verdade que tem transformado a mim, um pacificador relutante e um herege em recuperação, em um pastor que abraça com novo vigor o ministério de pacificação. Este poema de R. S. Thomas, "O Sacerdote", capta bem a verdadeira natureza de nosso chamado e desse ministério: O sacerdote abre caminho Em meio à sua paróquia. Muitos olhos observam-no

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R. S. THOMAS, Poems of R. S. Thomas. Fayetteville: University ofArkansas Press, 1985, p. 60-61.

F'ARA UNI I WRNCI-T,

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Das janelas, das fazendas; Corações desejam que ele se aproxime. Mas a carne o rejeita. Mulheres, inclinando suas chaleiras, Despejam pensamentos que vão atiçar as ervas de seu chá; E oferecem a ele um recheio escuro em sanduíches de zombarias. O sacerdote tem um longo caminho a trilhar. As pessoas aguardam que ele venha até elas, Por sobre os cacos que restam de seus votos, Fazendo com que ele pague pelo castigo delas com seu próprio suor. E lá vai ele pela estrada verdejante Por entre varas de vidoeiro em crescimento; ovelhas amortecem Sua visão. Ele entra devagar Na escuridão, sentindo a textura da cruz Em suas mãos; pendurando nela seus pensamentos congelados como estalactites. E será que dizem, "Alma mutilada", ao olhar para ele Do alto de seus pensamentos; "alma mutilada que se arrasta pela vida Em oração. Há outros, Neste mundo, sentados à mesa, Recobertos de contentamento, embora o corpo partido "E o sangue derramado não estejam em seu cardápio". "Que assim seja", digo eu, "Amém e amém".

E para isso que o Senhor nos chamou — para cuidar das almas em um ministério que se debruça sobre os "cacos" de um mundo que nos vê como alguém se arrasta pela vida", um mundo que se senta bastante satisfeito à mesa que não tem no cardápio "o corpo partido e o sangue derramado". No entanto, é justamente disso que o mundo precisa — de pacificadores com almas mutiladas, cuja força esteja em seu companheiro constante, Jesus Cristo, e cujo apoio esteja no madeiro da cruz. "que

2 OS CAMINHOS DO CONFLITO

o capítulo anterior me propus a identificar uma das principais razões pelas quais eu e muitos outros líderes relutamos tanto em adotar a pacificação ensinada na Bíblia. Apesar de sermos ortodoxos na forma como confessamos a Cristo, agimos como docetistas. Assim, somos negligentes e deixamos de moldar nosso ministério pastoral nos mesmos moldes do ministério do grande Pastor pacificador. O único modo de vencer nossa relutância e incredulidade é aceitando o Cristo que "veio em corpo" e percebendo como a cruz e o árduo trabalho de pacificação estão inseparavelmente entrelaçados. Uma vez que nosso coração seja constrangido a seguir a Cristo e sua cruz, estaremos prontos a aceitar os princípios e práticas da pacificação bíblica. No entanto, antes que possamos pregar esses princípios e práticas a nós mesmos e aos membros da igreja, seria prudente mapear os caminhos que o conflito costuma percorrer, assim como nossas respostas habituais aos conflitos.

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DEFININDO CONFLITO A palavra conflito evoca diversas conotações. Adotando uma postura mais prática, definiremos conflito como "uma diferença de opinião ou propósito que frustra as metas ou os desejos de alguém".1 Ou seja, o conflito acontece quando meus desejos ou temores, minhas expectativas ou metas entram em rota de colisão com os desejos, temores, expectativas ou metas de outra pessoa. Essa é uma definição bem resumida, o que a torna memorável e suficientemente abrangente a ponto de abarcar em seu bojo inúmeros conflitos! No entanto, lembre-se que essa definição não torna conflito e pecado coisas automaticamente equivalentes. O conflito não é necessariamente uma consequência do pecado, embora certamente costume ser uma ocasião para que o pecado aconteça.

1C. FitzSimons ALL1SON, The Cruelty ofHeresy: An Affirmation of Christian Orthodoxy. Harrisburg: Morehouse, 1994, p. 23.

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Acima de tudo, essa definição volta nossa atenção para o cerne de muitos conflitos, ao falar das diferenças que "frustram as metas ou desejos de alguém" (grifo acrescentado). No capítulo 3 teremos mais tempo para explorar essa dinâmica interior do conflito. Neste momento vamos nos contentar com uma boa definição que possamos usar e ensinar aos membros de nossas igrejas.

OCASIÕES COMUNS QUE RESULTAM EM CONFLITOS NAS IGREJAS Como líderes e servos da Palavra não devemos ficar surpresos diante de conflitos. Sabemos que a Bíblia toda fala de conflito. Os "capítulos pacíficos" (Gn 1-2 e Ap 21-22) são como meros suportes entre os quais se encontra um mundo em conflito. Embora a Escritura registre inúmeras ocasiões que resultam em conflitos, existem quatro delas em particular que tipicamente geram disputas no contexto da igreja local: questões de lealdade dividida, de autoridade, criação de barreiras e assuntos de caráter pessoal.

Lealdade dividida Conflitos geralmente surgem devido a lealdades divergentes em relação a certas pessoas ou estilos de ministério. As pessoas vivem o ministério, ao passo que o ministério se encarna em pessoas. Nossa simpatia ou antipatia por certas pessoas geralmente se transforma em um espírito partidarista, que faz com que nossa lealdade se volte para uma pessoa em particular, em vez de se voltar para Cristo. Em uma igreja com equipes compostas de vários pastores e obreiros, essas lealdades podem ser criadas em torno deste ou daquele pastor, do mesmo modo como foram em torno de Absalão e Davi, vindo por fim a dividir o reino (2Sm 15). Em outras igrejas, a lealdade se desenvolve em torno de certos membros ou famílias de destaque, como uma pessoa rica de cujo sustento financeiro a igreja dependa (Tg 2) ou uma família que está na igreja desde a sua fundação e cuja aprovação determina o que pode ou não ser feito ali. Considere a igreja de Corinto cuja lealdade se dividiu entre Paulo, Apolo, Pedro, ou Cristo, como está descrito em 1Coríntios 1.10-13: Irmãos, rogo-vos em nome de nosso Senhor Jesus Cristo que entreis em acordo quando discutirdes, e não haja divisões entre vós; pelo contrário, sejais unidos no mesmo pensamento e no mesmo parecer. Pois, meus irmãos, fui informado a vosso respeito, pelos da família de Cloé, que há discórdias entre vós. O que quero dizer com isso é que um de vós afirma: Eu sou de Paulo; outro, Eu sou de Apolo; outro, Eu sou de Cefas; outro ainda, Eu sou de Cristo. Será que Cristo está dividido?

OS CAMIN1105 DO CON H.1TO

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Paulo corretamente repreende os coríntios por "dividirem" a Cristo. No entanto, o mesmo tipo de espírito partidarista existe em abundância nas nossas igrejas hoje. Nós o vemos na lealdade que certas pessoas devotam a pregadores de rádio ou televisão, e não a seus próprios pastores. E provável que sua própria pregação e ensino sejam comparados aos de oradores mais populares e, ao fazer essa comparação, alguns membros de sua igreja possam concluir que sua pregação e ensino deixam a desejar. As pessoas também dividem sua lealdade em torno de programas, eventos, projetos e ministérios da igreja. Eu me lembro de um conflito que tivemos em uma reunião de presbíteros a respeito do ministério de jovens. Um dos presbíteros começou a acusar outro de não ligar para os nossos jovens. Aquilo logo virou uma discussão, até que acalmamos os ânimos ao lembrar os dois de que a questão que estava sendo discutida era o projeto em si, e não as motivações de cada um deles. Ambos se desculparam e concordaram que compartilhavam da mesma motivação — o amor pela boa instrução de nossos jovens — apesar de discordarem sobre o modo como o ministério deveria ser colocado em prática.

Questões de autoridade Conflitos também surgem por questões de autoridade, que podem ser classificadas em três tipos. O primeiro tipo é o desafio ao direito de autoridade, algo que pode ser relacionado às alianças às quais Paulo se refere em 1Coríntios 1, conforme vimos anteriormente. Nesse cenário as pessoas escolhem a quem irão obedecer e a quem consideram como a autoridade verdadeira. Por exemplo, em Números 12 lemos que Miriã e Arão desafiam o direito de autoridade de Moisés. Eles presumem ter um direito equivalente. Ironicamente, em Números 16 Arão se envolve em um conflito similar quando os filhos de Core desafiam seu sacerdócio! Deus deixa Arão experimentar um pouco de seu próprio veneno, ou pecado. No Novo Testamento, um semelhante desafio à autoridade apostólica de Paulo fica evidente na conduta dos chamados superapóstolos (veja 2Co). Curiosamente, em sua resposta a esse desafio Paulo não apela à incumbência que Deus lhe deu ("Aqui estão minhas credenciais"), mas sim às suas cicatrizes, seu sofrimento pelo evangelho! O segundo tipo de questão é o abuso de autoridade. Nosso Senhor Jesus frequentemente enfatiza a tentação que os líderes da igreja enfrentarão quando receberem autoridade. Nós "teremos domínio sobre outros" (veja Mt 20.25-28; Mc 10.42-45; Lc 22.25-27).2 Esse abuso de autoridade assume diversas for-

2 Para outras passagens em que os discípulos se mostram propensos a questionar quem é o maior, e para as respostas de Jesus a essa ambição por poder, veja Mateus 23.11-12; Marcos 9.34-35.

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mas, tais como nos colocar acima da condição de prestar contas frente aos outros, utilizar procedimentos de política eclesiástica para promover nossos próprios interesses ou evitar que os outros tenham êxito com os seus, e aplicar processos disciplinares rápido demais àqueles que, em vez disso, precisam do nosso conselho pastoral e cuidado. Um terceiro tipo de conflito que surge devido a questões de autoridade é a falha em exercer a autoridade. Neste caso, o problema não é o abuso de nossa autoridade e sim o fracasso em exercê-la — demonstrando indecisão e relutância em nos comprometer com um curso de ação específico. Um dos modos como esta "falha em agir" aparece é pela negação em delegar autoridade. Por exemplo, quando começa a colocar em prática a aliança mosaica, Moisés percebe a necessidade urgente de selecionar e treinar homens para agir como mediadores e árbitros para as pessoas de Israel que entrassem em conflitos. Jetro, sogro de Moisés, vê que sua falha em delegar autoridade está promovendo mais conflitos. Então ele dá a Moisés a seguinte instrução: Ouve-me agora. Eu te aconselharei, e que Deus esteja contigo: Deves representar o povo diante de Deus, a quem deves levar as causas do povo; ensina-lhes os estatutos e as leis, mostra-lhes o caminho em que devem andar e as obras que devem praticar. Além disso, procura dentre todo o povo homens capazes, tementes a Deus, homens confiáveis e que repudiem a desonestidade; e coloca-os como chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinquenta e chefes de dez; para que eles julguem o povo todo o tempo. Que levem a ti toda causa difícil, mas que eles mesmos julguem toda causa simples. Assim aliviarás o teu fardo, pois te ajudarão a levá-lo (Ex 18.19-22).

O fracasso de Moisés em designar funções de autoridade subordinadas, em número suficiente, a quem ele pudesse delegar as questões do dia-a-dia de Israel no deserto resultou em mais conflitos. Assim, em essência, ele acaba delegando a função de juiz a alguns homens que o ajudassem a tratar dos litígios. Em Atos 6 o conflito na igreja primitiva parece devido ao mesmo problema. As viúvas dos judeus de cultura grega reclamavam por serem negligenciadas na distribuição diária de alimentos, o que aconteceu porque não haviam designado ninguém para cuidar desses problemas. Então os apóstolos resolveram tomar medidas decisivas para remediar o problema, e criaram o diaconato — uma função de autoridade subordinada a quem se delega a incumbência de tomar conta dessa área do ministério. Uma forma variante dessa falha em delegar autoridade acontece quando líderes são nomeados para um determinado ministério sem receber diretrizes específicas de liderança. Por exemplo, em muitas igrejas líderes leigos são deixados em dúvida em relação a quem devem se reportar, qual procedimento tomar para fazer uma reclamação formal, ou mesmo um pedido de reconsideração respeitoso.

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Logo fofocas, inveja, atitudes mesquinhas, disputas por poder, ressentimento e amargura se alastram. E o conflito surge.

Criação de barreiras Outra causa ou circunstância que gera conflito é nossa propensão a substituir o evangelho de Cristo, como a base real de nossa comunhão, por barreiras criadas pelo homem. Embora confessemos que somos um em Cristo, a realidade geralmente é que essa unidade depende de hábitos ou preferências culturais. Meu amigo Jeff Ventrella chama este tipo de pessoa de "cristãos com preferências", ou seja, são crentes que julgam a ortodoxia de outros crentes com base em preferências pessoais em vez de preceitos essenciais.' Por exemplo, tendemos a fazer de nossas opiniões políticas (uma preferência pessoal), e não do nosso credo confessional a Cristo (um preceito essencial) a base de nossa comunhão. Assim, os cristãos se dividem a respeito da "ortodoxia" do hinário que preferem (capa azul ou vermelha), da maneira de educar seus filhos (colocá-los em escolas particulares cristãs, em escolas públicas ou educá-los em casa), quanto a escolhas de relacionamento, métodos de criação dos filhos, entre outras coisas. A lista nunca se acaba. Mas em cada hipótese dessas, levantamos uma barreira — uma linha invisível é traçada e com base nisso começamos a pensar naqueles que têm opiniões e preferências diferentes das nossas em termos de "eles versus nós". Ocorre um distanciamento gradual. A desconfiança se infiltra na vida da igreja, e nossos corações se tornam frios em relação aos outros. Perdemos de vista a única base de nossa unidade e paz: Cristo e a justificação que ele proporcionou a nós, pecadores, somente pela graça, mediante a fé somente.

Questões de caráter pessoal Embora os conflitos acima envolvam geralmente grandes segmentos de nossas igrejas, os tipos mais comuns de conflito que consomem o tempo de um pastor (e dos quais este livro trata especificamente) são as questões pessoais convencionais, das quais Jesus trata quando nos instrui a remover a venda de nossos próprios olhos (Mt 7.3-5). São conflitos causados por pecados pessoais que surgem em brigas de famílias e de casais, tensões e atritos entre amigos ou conflitos no campo profissional que envolvam membros da igreja. Esse tipo de discórdia faz com que Tiago pergunte: "De onde vêm as guerras e discórdias que há entre vós?" (Tg 4.1).E é para este tipo de conflito que Cristo nos chamou, como pastores, para apascentar nossas ovelhas. Infelizmente muitos

Jeffrey J. VENTRELLA, "When Preference Becomes Precept," New Horizons, maio de 1999. Disponível em http://www.opc.org/new_horizons/NH99/NH9905d.html, acessado em 12/02/2005.

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pastores frequentemente não tratam de tais conflitos; simplesmente encaminham a pessoa ou as pessoas envolvidas para um conselheiro profissional e justificam essa atitude em nome da dedicação ao "verdadeiro ministério". O pastor de jovens da minha igreja me contou recentemente sobre uma conversa que teve com um colega pastor de uma megaigreja que possuía uma grande equipe pastoral. Enquanto conversavam sobre o ministério, o pastor da minha igreja compartilhou que, naquela tarde, ele e alguns presbíteros aconselhariam uma família que passava por um caso de abuso doméstico envolvendo um adolescente rebelde. A reação do outro pastor não foi nada atípica: "Ah, lá na nossa igreja nós não gastamos tempo fazendo isso. Enviamos esses casos para um centro de aconselhamento lá da cidade para que possamos nos dedicar ao ministério". Para ele, reconciliação e ministério eram coisas separadas. O ministério havia sido reduzido a discipular pessoas que não estivessem enfrentando nenhum problema no momento. E claro que conseguimos entender a razão para esse modo de agir. Não fomos adequadamente treinados para entrar nas vidas reais de pessoas reais e ministrar em tempo real — o tipo de coisa que os conflitos nos forçam a fazer. E quando de fato nós nos envolvemos, o resultado geralmente é pouco melhor do que isso. Nós nos vemos presos no meio de um turbilhão de "ele disse", "ela disse" e por aí vai. Embora tivéssemos a intenção de ajudar, acabamos como uma terceira parte envolvida nesse conflito, e somos acusados pelas outras duas partes de tomar partido. No fim, prometemos solenemente nunca mais nos envolver em "questões pessoais" de membros da igreja. Portanto, essas situações que acabamos de descrever são as quatro hipóteses mais comuns nas quais os conflitos da igreja surgem: lealdades divididas, questões de autoridade, criação de barreiras e questões pessoais. Como líderes, devemos estar prontos para enfrentar esses tipos de conflitos de uma maneira que seja realista quanto aos efeitos contínuos do pecado que habita em nós, que seja biblicamente sábia e, acima de tudo, que tenha a mais absoluta confiança nas mudanças cruciais e penetrantes que o evangelho de Cristo pode trazer para a vida das pessoas. O CAOS DO CONFLITO E O CHAMADO À CLAREZA

Conflito e pecado são coisas necessariamente complexas. O conflito traz caos, escuridão e confusão. A pacificação, em contraste, é deliberada e necessariamente simples. Em meio ao caos do conflito, o pastor, como pacificador, deve entrar com a mais clara das luzes e guiar as pessoas que estão cegas pelo conflito. Ele deve ser simples, claro e direto, auxiliando-os a enxergarem as coisas como elas realmente são. Nos violentos e caóticos tempos do profeta Habacuque, o Senhor o chamou para escrever sua revelação e disse: "Escreve a visão em tábuas, de forma bem

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bem legível, para que até quem passe correndo possa lê-la" (Hc 2.2). Hoje o mesmo chamado à clareza é necessário à medida que ajudamos nosso povo em seus conflitos. Um passo inicial, que líderes de nossa própria igreja tomaram nessa direção, foi falar de forma clara e aberta sobre nossas próprias lutas contra o pecado, nossa necessidade diária de renovação, bem como a esperança e promessa de reconciliação que encontramos em Cristo, nosso pacificador. Essa confissão deve começar por aqueles que estão na liderança. Infelizmente, os líderes são muitas vezes os últimos a confessar seus pecados e admitir sua necessidade de sabedoria e reconciliação. Achamos que os pecados contra os quais pregamos raramente são nossos. Os pecadores sobre os quais pregamos, aqueles que precisam de Cristo, nunca somos nós mesmos ou as pessoas de nossa igreja. Cristo e seu evangelho permanecem voltados principalmente para os pecadores de fora da igreja. Dentro das paredes sagradas da igreja permanecemos nós, como falsos santos que não necessitam mais de Cristo. A igreja se torna nosso ônibus sagrado, já que temos um passe garantido para o céu. Subimos a bordo e esperamos que todos tomem seus assentos e se comportem. Pensando estar pregando a Cristo, nós, em vez disso, sobrecarregamos o povo com cargas pesadas de legalismo. O que a verdadeira confissão resgata é a gloriosa inspiração da Reforma, o evangelho transformador da justificação pela graça. Martinho Lutero nos ensinou que cristãos são criaturas incríveis — ao mesmo tempo justificados e pecadores (simul justus et peccator). Que mensagem libertadora é esta! Por sermos ao mesmo tempo justificados e pecadores, nós, pastores, podemos ser cruelmente honestos sobre nosso pecado, nossos esforços e nossos conflitos internos e externos. Como pecadores justificados, não necessitamos mais fingir ou encobrir nossos pecados com falsas atitudes como "estou bem, você está bem, todos estão bem". Em vez disso, podemos confessar nossos pecados uns para os outros (Tg 5.16) sem temer a condenação, com a grande esperança de que o Cristo que nos salvou e nos justificou está nos santificando e guiando para que vivamos como pacificadores reconciliados. A confissão, portanto, é o primeiro passo para expor as coisas como elas realmente são, iluminando a escuridão caótica do conflito. Isso nos deixa cientes de que somos pecadores salvos pela graça. Os líderes da minha igreja frequentemente nos relembram e relembram nossos membros que, pelo fato de as coisas serem assim, continuaremos a ter conflitos na igreja. Por exemplo, em todas as classes de novos membros eu digo a eles que em algum ponto provavelmente irei ofendê-los, mas que existe uma porta aberta para que eles se aproximem de mim, dos presbíteros ou da equipe pastoral para serem reconciliados. Outra maneira que buscamos para trazer clareza aos conflitos é por meio da confissão congregacional. Nosso povo precisa confessar o evangelho como

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comunidade, na medida em que ele está especificamente relacionado ao conflito. Uma maneira de fazer isso como congregação é recitar regularmente uma espécie de "credo" chamado de Pacto do Pacificador. O primeiro parágrafo expõe nosso compromisso com a pacificação ao reforçar a centralidade do evangelho em moldar nossa resposta ao conflito. O texto diz o seguinte: Como pessoas que se reconciliaram com Deus por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo, cremos que somos chamados a responder ao conflito de um modo que seja completamente diferente do modo pelo qual o mundo lida com os conflitos. Também cremos que o conflito traz oportunidades de glorificar Deus, servir outras pessoas, e crescer à semelhança Cristo.`

Nossa obediência em buscar a paz deve fluir do derramar e transbordar de corações totalmente cientes de que foram salvos pelo Príncipe da Paz. O evangelho é o poder de Deus para salvar, reconciliar, e renovar pecadores santos ou justificados diariamente, em meio a nossas vidas confusas e caóticas, nos moldando e remodelando a fim de que sejamos uma comunidade pacificadora que serve a um Senhor pacificador. Existe ainda um terceiro modo de trazer clareza ao caos do conflito. Não podemos ajudar as pessoas a viverem em paz se elas não percebem como elas mesmas se envolvem em conflitos. Se desejamos ajudar nossos membros a se tornarem pacificadores, devemos ajudá-los a discernir as maneiras habituais como eles respondem ao conflito. E podemos fazer isso ajudando-os a traçar seus próprios passos no que chamo de "Ladeira Escorregadia". NOSSAS RESPOSTAS AO CONFLITO: A LADEIRA ESCORREGADIA

Por certo todos já ouviram falar da nossa resposta biológica, ou reação instintiva, de lutar ou fugir quando nos sentimos ameaçados. Ken Sande capta nitidamente esse típico padrão de resposta ao conflito em seu diagrama da ladeira escorrega-dia.' Esse diagrama ajuda as pessoas a se colocar naquela "situação" de conflito descrita e efetivamente avaliar o modo como estão respondendo a ela.

`SANDE, The Peacemaker, p. 259-261 [Também publicado no Brasil por CPAD sob o título O pacificador].

'Ibid., p. 22. Ken Sande é o presidente do Peacemaker Ministries (www.hispeace.org). O propósito desse ministério é preparar e auxiliar cristãos e suas igrejas a responder ao conflito de maneira bíblica. Para isso fornece uma grande variedade de recursos centrados em Cristo e orientados pelo evangelho a pastores, líderes e igrejas locais, a fim de possam recuperar um ministério que se perdeu com o tempo, o ministério de reconciliação.

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Extraído do livro de Ken Sande, The Peacemaker copyright 2004. Reproduzido com a permissão da Baker Books, uma divisão do Baker Publishing Group.

A ladeira escorregadia divide as típicas respostas ao conflito em respostas de fuga e respostas de ataque. Esses dois tipos de respostas comuns ao conflito são colocados em cada um dos lados da porção central do diagrama, que chamamos de respostas de pacificação. O objetivo é ajudar as pessoas a operarem no topo da ladeira (a zona das respostas de pacificação), a fim de evitar que caiam nas zonas de fuga ou ataque.

Respostas de fuga No lado esquerdo da ladeira escorregadia, as respostas de fuga ao conflito podem ser entendidas como respostas que trazem uma falsa paz.6 Tais respostas geralmente se parecem com a pacificação, mas não são. Na verdade, a pessoa que busca a fuga se exime da responsabilidade de responder ao conflito biblicamente. Existem três categorias de respostas de fuga: negação, fuga e suicídio. Negação. Negação significa fingir que o conflito não existe (Pv 24.11-12). Esta é uma resposta típica de alguém que engana a si mesmo. A pessoa se convence

'Ibid., p. 24.

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de que não existe um problema, em vez de encarar a esposa nervosa, os filhos, os pais ou o membro da igreja e lidar com o conflito biblicamente. A negação é também a melhor forma de descrever o estado daqueles que simplesmente se negam a tomar alguma medida para resolver um conflito segundo a Bíblia nos ensina. Fuga. A fuga acontece quando alguém procura escapar de seus conflitos. Como líderes da igreja, vocês verão pessoas se chatearem por algo ou com alguém da igreja. Uma pessoa ofende a outra, e a outra aceita a ofensa (ou pelo menos a ofensa percebida). Uma resposta de fuga comum é quando as pessoas envolvidas no conflito tomam precauções para evitar ter que encarar a outra. Em minha igreja já tivemos casos de pessoas em conflito que se evitavam, sentando-se em lados opostos do templo, de propósito, durante o culto. Outra resposta de fuga é quando uma pessoa deixa o ministério ou se recusa a continuar servindo a igreja por causa do conflito. A fuga também é uma resposta comum daqueles que são submetidos à disciplina na igreja ou estão em vias de serem. Quando percebem as intenções da igreja, geralmente deixam de frequentá-la. Eles optam por sair da igreja para não se sujeitarem à correção. E nós provavelmente reagimos a eles dizendo "já vai tarde, em vez de chamá-los para uma reconciliação. Algumas vezes a fuga é uma resposta admissível diante de um conflito. Por exemplo, em certos conflitos entre cônjuges ou entre pais e filhos, a separação física das partes por um tempo limitado pode servir para prevenir que um dos lados ou ambos sofram danos físicos. E claro que, em tais casos, esta forma de fuga só trará benefícios se ambas as partes estiverem passando por aconselhamento feito com um pastor (ou outro líder preparado para isso) que os esteja treinando e ensinando como lidar com comportamentos nocivos (como, por exemplo, álcool ou uso de drogas) que contribuem para as explosões de violência em meio a essas brigas de família. Suicídio. Finalmente, o último tipo de fuga é o suicídio ou a ameaça de suicídio.' Esta é sempre uma resposta errada ao conflito. No entanto, não pensem que como líderes de igrejas "de bom nível" vocês estarão livres de ter de lidar com tais respostas. Eu tive um caso no qual uma adolescente reagiu ao fato de os pais a terem encontrado na cama com o namorado cortando os pulsos, na mesma noite, no banheiro. Então ela correu para fora da casa e perambulou pelas ruas da vizinhança. Neste ponto, ela estava dando mostras de diversas respostas de fuga clássicas.

70 suicídio pode ser também um modo de agredir a outra pessoa. A pessoa que está tentando suicidar-se o faz para vingar-se da pessoa com a qual está em conflito. Expressões como "espero que você esteja feliz agora" e "veja o que você me levou a fazer" fazem parte dessa linguagem de ataque de alguns que optam pelo suicídio.

OS CA NUM 10S DO CONFLITO

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Em outra ocasião, um homem, sentindo-se culpado e envergonhado por haver roubado alguns equipamentos fotográficos, trancou-se no banheiro e ameaçou suicidar-se. Embora essa resposta ao conflito possa parecer extrema, devemos nos lembrar que ocorrem três suicídios para cada dois homicídios nos Estados Unidos. E o suicídio é a segunda maior causa de morte entre os jovens em geral (dos 15 aos 24 anos de idade).8 Claramente, nós, pastores e líderes de igreja, devemos prever essa resposta ao conflito e nos prepararmos para lidar com ela. Respostas de ataque Se você se lembra, chamamos as respostas de fuga de falsa paz. De modo contrário, podemos considerar as respostas de ataque como exemplos de quebra da paz.9 Existem três maneiras comuns pelas quais as pessoas em conflito fazem pressão sobre seus oponentes a fim de vencer suas alegações e eliminar sua oposição. São elas: agressão, litígio e homicídio. Todas elas podem ser concebidas de forma ampla ou estrita, informalmente ou formalmente. Agressão. A agressão pode ser entendida de forma mais estrita como uma agressão física ou de forma mais ampla como uma ameaça de uso da força. Nesta hipótese, uma das partes ou ambas tentam intimidar a outra por meio de ameaças físicas, verbais ou financeiras, a fim de forçar a outra parte a aceitar as suas exigências. Certa vez, um pastor na Flórida foi ameaçado fisicamente quando, em meio a uma reunião da igreja, um oponente o desafiou para uma luta corporal a fim de determinar qual dos dois permaneceria e qual teria de sair da igreja! Nós, pastores, infelizmente não estamos imunes a tais tipos de comportamento. Muitas vezes também usamos nossa autoridade para reprimir oposições a nós. Ou disfarçamos nosso jeito autoritário sob o pretexto de termos um ministério profético. Ou mesmo trocamos o púlpito da paz por brigas. Certo pastor que eu estava aconselhando admitiu abertamente que ele via seu trabalho como algo que estava no mesmo nível do trabalho dos juízes do Antigo Testamento, o que envolvia exigir que as pessoas se submetessem a ele, expulsar seus rivais ao envergonhá-los publicamente, e ser a única instância julgadora em sua igreja. A agressão também tem o sentido estrito de violência física. Conflitos que levam a violência são, infelizmente, uma realidade em muitos casamentos cristãos e — para ser sincero — até mesmo em alguns casamentos de pastores e líderes. Tal violência surge com frequência logo após alguma forma de abuso físico pessoal. Arremessar móveis ou objetos e usar utensílios de cozinha como armas em

8 #1—Teenage-Suicide. com: Prevenção e Tratamento para a depressão adolescente. Disponível em http://www.1—teenage-suicide.com, acessado em 01/05/2002. 'SANDE, The Peacemaker, p. 24.

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potencial são exemplos de atitudes inapropriadas que ameaçam e intimidam a outra pessoa. Litígio. Em sentido amplo e informal, o litígio inclui todas as formas de fofoca, difamação e julgamentos insensíveis pelos quais as pessoas "defendem suas causas" diante de outra, a fim de ganhar apoio contra seu oponente. E esse tipo de litígio que age como um catalisador para a formação de facções dentro da igreja. Em sentido estrito e formal, litigar é combater o oponente na justiça. Embora em certas circunstâncias isso se justifique, deveria ser raro que esse conflito envolvesse cristãos (veja 1Co 6.1-18). Infelizmente, muitos pastores e líderes não atentam para tais conflitos de ordem "civil". Eles acham que 'Corintos 6 é irrelevante nesses casos, por acreditarem que tais ações civis movidas entre cristãos se estendem muito além do domínio de sua supervisão pastoral. Assim, a igreja está abdicando de sua jurisdição sobre os ditos interesses seculares de seus membros. Examinaremos mais profundamente essa área de litígios civis no capítulo 10. Homicídio. Assim como o suicídio é a última resposta de fuga ao conflito, o homicídio é a última resposta de ataque. Embora você imagine que este tipo de reação seja raro na igreja, a raiz do homicídio — o ódio — não é raro! Jesus fala sobre o sexto mandamento em Mateus 5.22-26 tanto em sua forma mais explícita quanto implícita. Primeiro ele nos mostra a raiz do homicídio (raiva e ódio) e nos adverte contra ela. Então, aponta duas formas explícitas de raiva e ódio: relacionamentos interpessoais abalados (Mt 5.23-24) e disputas legais (Mt 5.25-26). Todas essas formas se combinaram certo dia em que fiz uma visita pastoral. Eu havia levado um membro da minha igreja para almoçar, sabendo que ele estava passando por dificuldades financeiras em seu negócio. Durante nossa conversa, ele expressou um ódio profundo por um ex-empregado que era cristão. Este homem havia deixado o emprego, levado consigo muitas de suas maiores contas e se tornado um concorrente no mesmo negócio, ocasionando ao membro da minha igreja uma perda considerável de renda (estimada em 163 mil reais). Com família para manter e sofrendo a experiência de uma perda brusca de renda, era compreensível porque este homem se sentia tão enraivecido, enganado, traído e vingativo. Ele me disse que em breve iria anunciar uma drástica redução nos preços de seus serviços, na esperança de levar o negócio de seu ex-empregado à falência. Ali estava um homem com pensamentos "assassinos", que precisava de ajuda para lidar com as duas questões que afetavam seu coração (sua raiva e amargura), assim como as questões relacionadas à injustiça que ele sofrera (que apontavam para a necessidade de uma mediação e possível restituição). Relatei tudo isso para dizer que o homicídio, como uma reação ao conflito, se entendido de forma mais ampla, não é uma questão assim tão rara no pastorado. E o remédio para isso vai envolver mais do que apenas aconselhar uma pessoa a

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não guardar rancor ou aconselhá-la sobre entrar ou não com um processo judicial. Membros de sua congregação terão que lidar com casos de real injustiça cometida contra eles. Você pode estar certo de que suas reações não serão nada piedosas. Você também pode estar seguro de que Deus nos deu em sua Palavra e na multidão de conselheiros a sabedoria e o poder de que precisamos para ministrar àqueles que foram vítimas de grandes injustiças. Neste ponto, devemos avaliar nossos próprios padrões de resposta ao conflito. Qual é sua tendência ao enfrentar um conflito? Evitá-lo? Atacar? Fugir? Lutar? Calar-se ou gritar? Tende a culpar os outros pelo conflito? Ou tende a minimizar o problema? Peça que sua esposa ou um amigo próximo avalie você nessa área, pois conhecer nossas tendências diante de conflitos é absolutamente necessário se nós, como líderes, devemos ser pacificadores. Jay Adams nos relembra que uma das principais fontes que temos no aconselhamento de pessoas somos nós mesmos (1Cor 10.13).10 Você é mais parecido do que diferente da pessoa a quem você aconselha ou com quem você está em conflito. Quando você assume o controle de seus próprios hábitos pecadores de resposta ao conflito e aprende a se afastar deles em arrependimento, fé, e obediência a Deus, estará então no caminho certo para se tornar um pastor pacificador.

Respostas de pacificação pessoais Felizmente, essas duas formas principais (e em regra ímpias) de reação ao conflito não são as únicas de se reagir diante de uma desavença. Existe uma terceira forma — o modo usado por Cristo. Aqui consideraremos seis respostas bíblicas e piedosas ao conflito que chamamos de respostas de pacificação.11 Elas se dividem em duas subcategorias: respostas de pacificação pessoais e respostas de pacificação assistidas. Iremos considerar primeiro as respostas pessoais de pacificação. Existem três respostas de pacificação do tipo pessoal: tolerância da ofensa, discussão-reconciliação e negociação. Nestes cenários, as partes em conflito buscam resolver sua própria disputa sem recorrer a uma terceira parte para agir como mediador ou árbitro. Tolerar a ofensa. Essa é a resposta típica de um coração magnânimo. Diferentemente da pessoa em negação (a negação pode ser confundida com a tolerância de uma ofensa), a pessoa que tolera uma ofensa não está cega à ofensa nem tampouco sua decisão de tolerá-la tem raízes no ceticismo ou no desespero, como

10Jay E. Adams, The Christian Counselor's Manual. Phillipsburg: Presbyterian and Reformed, 1973, p. 21. "Adaptado de SANDE, The Peacemaker, p. 22.

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no caso da negação. Em vez disso, essa pessoa deliberadamente decide perdoar o ofensor e não procurar nenhuma forma de corrigi-lo ou repreendê-lo. A justificativa bíblica para a tolerância encontra-se em diversas passagens. Por exemplo, em Provérbios 19.11 lemos: "A sensatez do homem o torna paciente, e sua virtude está em esquecer as ofensas." (veja também Pv. 12.16; 17.14; Cl. 3.13; 1Pe 4.8). Iremos examinar este tipo de resposta bíblica de maneira mais profunda no capítulo 7 e nos perguntar quando ela é apropriada. Discussão-reconciliação. Quando uma ofensa não pode ser ignorada, somos chamados a apontar para nosso irmão ou irmã a sua culpa (veja 2Sm 12.1-14; Pv. 28.13; Mt. 5.23-24; 18.15; Lc 17.3; G16.1). Assim, o segundo tipo de resposta pessoal ao conflito é a discussão que leva à reconciliação. A discussão-reconciliação lida com aquele tipo de ofensa pessoal que se resolve melhor quando é confessada e perdoada, permitindo que as partes se reconciliem. Em nosso caso, a discussão envolve mais do que simplesmente melhorar a comunicação. Envolve lidar com os problemas do coração (veja o capítulo 3 para mais detalhes). Note que eu não usei o termo confrontamento, pois o termo discussão capta melhor, de três modos, as orientações bíblicas para essa segunda forma de resposta. Primeiramente, a Bíblia nos diz para fazer mais do que apenas confrontar. Devemos instruir, aconselhar, exortar e ensinar, assim como censurar (veja Rm. 15.14; Gl 5.21; Ef. 6.4; 1Ts 5.14,21; 1Tm 4.6; 2Tm 3.16). A discussão nos relembra que devemos ir até nosso irmão ou irmã com muito mais do que o martelo do confrontamento. Nosso "kit de ferramentas" para resolução de conflitos deve ter várias ferramentas apropriadas para o árduo trabalho da reconciliação. Em segundo lugar, o termo discussão abrange melhor a realidade de que em nossos ensinamentos, advertências, aconselhamentos e até censuras deve existir um diálogo mútuo. Não devemos só falar, mas também ouvir. Inclusive, devemos primeiro ouvir e depois falar (Tg 1.19). A discussão nos relembra que o modo de agir dos sábios é ouvir antes de falar (Pv 18.13). Finalmente, no comando "vai primeiro reconciliar-te" (Mt. 5.23-24) ficamos cientes de nossa própria fragilidade e vulnerabilidade ao pecado, das autodecepções que sofremos, de nossa lentidão em ouvir as advertências e abraçar as promessas da Escritura. Além disso, nós nos tratamos como irmãos e irmãs — como membros da família de Deus. Portanto, quando discutimos, fazemos isso com espírito de humildade e com a intenção de restaurar o relacionamento como um irmão ou uma irmã (ver Gl 6.1). Negociação. Enquanto a discussão-reconciliação envolve as ofensas pessoais que levam ao conflito (amargura, fofoca, culpa, vergonha etc), a negociação envolve as questões substantivas que precisam ser resolvidas no conflito. Em uma disputa,

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o problema substancial é tipicamente a questão concreta, mensurável e objetiva sobre a qual as partes estão em discórdia. Pode ser o horário ou local de uma reunião, os termos de um contrato, alguma prática escrita ou informal de uma igreja, a escolha de hinos, o currículo da escola dominical, e assim em diante. Como a negociação é uma parte importante para o pastorado, examinaremos o princípio de negociação conhecido como PAUSE no capítulo 8.

Respostas de pacificação assistidas Agora nos voltaremos da pacificação pessoal para a pacificação assistida, que envolve mediação, arbitragem e responsabilização ou disciplina aplicada pela igreja. Em cada um desses cenários, em vez de tentar resolver a disputa entre si, as partes em conflito pedem ajuda a outras pessoas. Mediação. A mediação é uma negociação assistida.12 Nela as partes em conflito pedem a ajuda de uma ou mais pessoas para facilitar a comunicação entre elas na esperança de encontrar uma solução para o conflito. A garantia bíblica para isso, claramente, está na própria obra de Cristo, o único mediador entre Deus e o homem. Como pastores cujo ministério é conformado a Cristo, nós também somos chamados para ser mediadores. Quando temos membros da igreja brigando entre si, nosso chamado nos constrange a intervir, a estar lado a lado com cada uma das partes e assisti-las no sentido de serem prontos a ouvir, tardias para falar e tardias para se irar. Como pastores mediadores, é nossa responsabilidade chamar cada parte a prestar contas diante de Deus pela maneira como conduz seus problemas com os outros. Nosso dever é oferecer conselhos e sabedoria típicas dos que se chamam filhos de Deus. Como o Senhor, nós dizemos uns aos outros: "Vinde e raciocinemos" (Is 1.18). (Veja os capítulos 9 e 10 para uma discussão mais ampla do assunto.) Arbitragem. Na arbitragem, quando as partes fracassam em alcançar uma solução voluntária, trazem sua disputa a uma ou mais pessoas que agem como juízes, com poder para proferir uma decisão definitiva sobre a questão. Ao contrário da mediação, as partes que buscam a arbitragem são privadas do controle sobre a questão. (Veja o capítulo 10 para uma discussão mais ampla do assunto.) Responsabilização/disciplina por parte da igreja. A terceira espécie de resposta de pacificação assistida é a responsabilização ou disciplina por parte da igreja. Tal disciplina pode ser definida como uma mediação ou arbitragem eclesiasticamente assistida. Quando um membro de uma igreja local se recusa a ouvir o conselho da

12Christopher W. MOORE, The Mediation Process: Practical Strategies for Resolving Conflict. San Francisco: Jossey-Bass, 1986, p. 14.

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O ,AsTOR .PAcincAD0R

igreja, e todos os esforços de trazê-lo ao arrependimento fracassam, um tribunal eclesiástico é convidado a intervir. Em casos formais de disciplina, esse tribunal leva adiante um processo contra o membro que se recusa a se arrepender, e profere ao final uma decisão eclesiástica. Se o réu for condenado, esse tribunal tem liberdade de aplicar vários tipos de censuras contra essa pessoa. Toda essa questão de disciplina por parte da igreja requer muita instrução e sabedoria. A maioria das denominações fornece um certo auxílio nesse assunto, por meio de políticas denominacionais. Mas, conforme veremos, a igreja de hoje ainda tem muito aprender sobre instrução, não apenas no que diz respeito aos princípios, mas também às práticas de disciplina na igreja (veja os capítulos 11 e 12).

Três dinâmicas da ladeira escorregadia Tendo analisado as seis respostas bíblicas ao conflito, para concluir apontarei três dinâmicas em torno da ladeira escorregadia. Primeiramente, note como as respostas de pacificação bíblicas passam de respostas mais privadas para respostas mais públicas. Inicialmente, o círculo de confidencialidade é estreito. No entanto, ele gradualmente se alarga se existe a necessidade de assistência na pacificação ou se existe uma resistência à pacificação. Respostas pessoais como a reconciliação e a negociação afetam somente as partes diretamente envolvidas no conflito. Se a mediação ou arbitragem forem necessárias, o círculo de confidencialidade se expande para incluir mediadores e árbitros. Se a disciplina da igreja for requerida, os líderes são então envolvidos e, se necessário, toda a igreja pode vir a ser notificada. Na resolução de conflitos, quanto mais privada puder ser mantida uma questão maior será a esperança de reconciliação, pois quanto mais pessoas forem envolvidas na disputa mais as confidências estão sujeitas a serem reveladas. Em segundo lugar, note como os custos aumentam quando você vai da esquerda para a direita na ladeira. Por "custos" queremos dizer a perda de controle sobre o resultado (por exemplo, compare a negociação, na qual você decide, com a arbitragem, na qual outra pessoa decide por você), o gasto financeiro para resolver a disputa (por exemplo, o custo zero no caso da discussão-reconciliação entre as partes contra as pesadas taxas cobradas para uma mediação), além do empenho e envolvimento de outros (por exemplo, de uma situação que envolve apenas as partes em litígio para outra que envolve partes múltiplas). Essa dinâmica deve nos levar a encorajar as partes a "entra(r) logo em acordo com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho do tribunal" (Mt 5.25). Finalmente, note bem onde o foco de atenção é colocado em cada uma dessas respostas ao conflito. Nas respostas de fuga o foco está sobre mim. Nas respostas de ataque o foco está sobre o outro. E nas respostas de conciliação o foco está sobre nós. O efeito de cada resposta não-bíblica é a ruptura, senão a completa ruína do

OS CAMINHOS DO CONFLITO

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relacionamento. Contrariamente, a grande promessa e potencial da pacificação são relacionamentos reconciliados e fortalecidos. São esses passos que Cristo, nosso Príncipe da Paz, nos diz para buscar e os quais ele recomenda a nós, como "filhos de Deus" (Mt 5.9). Para muitas pessoas em minha congregação, o simples ato de desenhar a ladeira escorregadia, enquanto falamos sobre um conflito presente, já é um primeiro passo para reconhecer e admitir seus pecados e contribuições para o conflito: "Pastor, acredito que eu esteja na zona de fuga". "Pastor, eu sou um litigante — quando sou ofendido, eu processo, acuso, faço fofocas e difamações". Além do mais, ver que existe um terceiro modo (seis modos, aliás!) para responder ao conflito de maneira bíblica dá às pessoas esperança de que possam quebrar velhos hábitos e começar a criar um novo caminho na direção da paz. Nós começamos este capítulo deixando claro o que entendemos por conflito e mapeando as ocasiões comuns que geram o conflito nas igrejas. Então, ao ver que o conflito traz confusão e caos, reconhecemos a necessidade relacionada a isso de trazer clareza para as partes em conflito. Um passo inicial nessa direção é tomado quando os líderes voluntariamente confessam seus próprios pecados e falam claramente sobre a promessa do evangelho de Cristo. Como pastores da igreja de Cristo, devemos recuperar o evangelho de graça, o evangelho que confessa que somos pecadores salvos. Apenas o evangelho nos liberta de esconder nossos pecados e nossas fraquezas e nos permite, pela fé, nos agarrarmos às promessas de Cristo e obedecer a sua ordem para que façamos a paz. Somente quando nós, líderes, confessamos nossos pecados e buscamos viver da graça que nos é dada no evangelho podemos liderar nosso povo a fazer o mesmo. Finalmente, voltamos e mapeamos nossas respostas típicas ao conflito e maneiras de seguirmos em frente, na busca da reconciliação bíblica. No entanto, resta outra questão a ser explorada em nossa análise do conflito: o coração do conflito.

3 O CORAÇÃO DO CONFLITO

orno vimos no capítulo anterior, os conflitos percorrem urna série de caminhos diferentes. Mas eles acontecem através de pessoas. Não são os mais _.." variados caminhos que dão início aos conflitos, mas sim as pessoas. E não são esses caminhos, mas sim as pessoas, que fazem as pazes depois de um conflito. Assim, nossa meta para este capítulo é chegar ao coração do conflito. Saber o que controla o coração das pessoas é saber o que controla os conflitos que enfrentam. Uma vez que tivermos compreendido o que domina seus corações poderemos aplicar o evangelho da melhor maneira, de modo que corações transformados levarão a vidas transformadas. A fim de ajudar a concentrar nossa atenção no que acontece dentro do coração humano, analisaremos a princípio o conflito no casamento. Optei por fazer isso por duas razões. Primeira, pelo fato de o conflito no casamento ser um dos casos mais difíceis de aconselhar — em geral, tanto o marido quanto a esposa parecem bastante irredutíveis em suas posições, as expectativas são bem altas, as emoções intensamente voláteis e o volume da discussão é sempre perceptivelmente "acima do normal". Segunda, o aconselhamento de casais constitui a grande maioria dos casos de aconselhamento aos quais um pastor se dedica. Eu mesmo descobri que cerca de um terço dos meus casos de aconselhamento são voltados para casais. Na verdade, a impressão que se tem é que hoje, mais do que nunca, as grandes igrejas evangélicas precisam do evangelho da pacificação para seus casais. O Barna Research Group, um instituto de pesquisas norte-americano, publicou em 2001 uma pesquisa que fez sobre casamento e divórcio. Eles descobriram que "em geral, 33% de todas as pessoas convertidas casadas já passaram por um divórcio, o que, estatisticamente falando, é um número idêntico aos 34% de incidência de divórcios entre adultos não convertidos."1 Em outras palavras, no

'Barna Research Group, "Family: Divorce (2001)," dados disponíveis em http://www.barna.org/ FlexPage.aspx?Page=Topic&TopicID=20 , acessado em 15/03/2006.

O PASTOR PACIFICADOR

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que diz respeito a casamento, nós, cristãos, somos iguaizinhos aos pagãos. Nossos casamentos estão desmoronando.

A

SOLUÇÃO PROPOSTA

Diante disso, fica fácil entender toda essa onda de livros voltados para solucionar separações de casais e restaurar casamentos, que ultimamente têm invadido as prateleiras das livrarias cristãs. No entanto, todos eles normalmente se encaixam em duas categorias. Uma categoria enfatiza o desenvolvimento de habilidades tais como, por exemplo, como melhorar sua comunicação, como resgatar a intimidade do casal ou como definir melhor os papéis de cada um. A outra categoria de livros explora a dinâmica dos relacionamentos, desvendando o mistério do que leva um homem e uma mulher a agirem como agem, e nos mostrando o que faz o nosso cônjuge sair do sério. Livros desse tipo nos fazem ver que uma ferramenta é sempre tão boa quanto a pessoa que a maneja. Habilidades não são suficientes. E preciso entender as pessoas. E preciso saber o que se passa no coração delas. Mas afinal, segundo esses escritores cristãos, o que nos tira do sério? Por que nossos casamentos estão desmoronando? Que tipos de conselhos eles nos dão? Um dos livros sobre conflito de casais, voltado para pastores que fazem aconselhamentos e escrito em co-autoria por um psicólogo famoso e um pastor, nos diz para aconselhar o casal para que amem um ao outro. Até aqui tudo bem; mas a coisa se complica quando nos aprofundamos um pouco mais na definição de amor dada pelos autores. Enquanto na Bíblia o amor é definido como as atitudes e ações que refletem a imagem de Deus em Cristo ( Jo 13.34; Ef 5.1-2; 1Jo 4.10) — o sacrifício pessoal pelo bem do próximo (mesmo dos nossos inimigos) — os autores da obra em questão redefinem amor como "o propósito de valorizar e não de desvalorizar pessoas". E argumentam: "Em um casamento [...] a tarefa básica dos cônjuges é amar consistentemente (ter sempre o propósito de valorizar e não de desvalorizar) um ao outro; isso trará confiança e segurança ao relacionamento e proporcionará uma base para a solução dos problemas práticos."2 Indo um pouco mais além, esses autores unem duas ações que são intrinsecamente diferentes. Para eles, a base da valorização está no reconhecimento do mérito do outro. A valorização diz: "Você merece isso de mim; portanto, eu valorizarei você de acordo com o seu valor, na proporção do seu valor." Porém, o amor da Bíblia diz: "Eu amarei você, quer você mereça ou não o meu amor". O amor da

2 Everett L. WORTHINGTON Jr. e Douglas MCMURRY, Marriage Conflicts. Grand Rapids: Baker, 1994, p. 39.

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Bíblia não é proporcional ao mérito ou ao valor do outro. É por isso que Deus nos chamou a amar nossos inimigos! Entretanto, os autores parecem não notar essa diferença. De fato, eles acreditam encontrar apoio nas Escrituras para sua tese. Apelam para Mateus 13.44 (a parábola do tesouro escondido) para interpretar o amor como a atitude de valorizar o mérito do outro: "[Amar] é valorizar e não desvalorizar as pessoas [...] Jesus nos amou. E como ele disse na parábola do tesouro escondido (Mt 13.44), somos um tesouro escondido num campo. Jesus encontrou esse tesouro e vendeu tudo que tinha neste mundo (sua vida) para comprá-lo".3 Para os autores Everett Worthington e Douglas McMurry, o "tesouro" na parábola de Jesus não é o reino de Deus, mas sim nós mesmos! Fiquei surpreso ao ler isso, pois jamais li um comentário bíblico que sequer sugerisse tal interpretação. Eles deturparam a parábola toda. A parábola de Jesus fala do reino de Deus, do que ele faz, do seu domínio, da sua salvação, do seu Filho. O grande tesouro é o próprio Deus e seu Filho. Jesus é a pérola de grande valor! Contudo, os autores da obra em questão fazem uma troca grosseira. Para eles, a parábola não trata de Deus, mas sim de nós mesmos. O grande tesouro não é o reino de Deus, mas nós mesmos. Outro livro sobre amor bastante popular, escrito por psicólogos cristãos, faz esse mesmo tipo de substituição. O ponto central dessa obra é a visão dos autores de que somos todos taças vazias — ou seja, pessoas cheias de necessidades. Eles alegam que: "[Temos uma] necessidade dada por Deus de sermos amados, com a qual cada ser humano já nasce. Trata-se de uma necessidade legítima que deve ser satisfeita desde o berço até a sepultura. Se uma criança não recebe amor — se não encontra a satisfação dessa necessidade primária de amor — ela carregará cicatrizes pelo resto de sua vida".4 Essa teoria das "necessidades não satisfeitas" foi emprestada da psicologia, diretamente de Freud, dos primeiros behavioristas e de Abraham Maslow, um psicólogo humanista.' Muito embora psicólogos seculares tenham criticado essa teoria, os evangélicos continuam a adotá-la pelo fato de a teoria das necessidades

'Ibid. 4 Robert HEMFELT, Frank MINIRTH e Paul METEU, Love is a Choice. Nashville: Thomas Nelson, 1989, p. 34. 5Maslow diz: "O que faz das pessoas neuróticas? Minha resposta [...], em síntese, foi que a neurose em essência e no princípio parecia ser uma desordem ligada à deficiência: que ela originava-se do fato de a pessoa ser privada de certas satisfações, às quais chamo de necessidades, no mesmo sentido em que água, aminoácidos e cálcio são necessidades do ser humano, ou seja, sua ausência provoca doenças. Muitas neuroses envolvem [...] a não satisfação de desejos de segurança, pertencimento e identificação, de proximidade nos relacionamentos, bem como respeito e prestígio." Abraham MASLOW, Toward a Psychology ofBeing, 2a. ed. Nova Yorque: Van Nostrand, 1968, p. 21.

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ser plausível a princípio.6 E nós a tornamos plausível ao forçar sobre ela uma distorção do evangelho: é Cristo que satisfaz nossas necessidades não satisfeitas, é Cristo quem enche nossas taças vazias. E ele que cura as feridas e cicatrizes provenientes do fato de não termos recebido o amor de que precisamos.' Percebe o que nós, cristãos, fizemos? Pegamos uma teoria secular e a disfarçamos com um verniz de Cristo. Colocamos uma teoria humana sobre necessidades não satisfeitas no lugar da história de Deus sobre a queda do homem e a redenção de Cristo. O Cristo, que já foi considerado aquele que morreu por nossos pecados a fim de expiar a santa ira de Deus e nos salvar de nós mesmos, agora se transformou em alguém que enche nossas taças vazias. Em lugar de, como fizemos um dia, exultarmos na grande promessa da justificação divina dos pecadores, hoje exultamos diante da ideia de um Deus que enche "a mim" com autojustificação. Essencialmente, trocamos o cálice dourado da glória divina pelo jarro de barro do mérito humano. E mais, nós redefinimos o maior dos problemas humanos. Esse problema costumava ser definido em termos do pecado e da culpa, da rebeldia humana e da condenação. A questão crucial era: "Como o ser humano pecador pode se redimir diante de um Deus santo?" Só que agora o problema humano é que nos transformamos em taças vazias que precisam ser enchidas. Embora a princípio isso não soe assim tão mal, na verdade é uma ideia desesperadora. O pecado é uma categoria moral, e a moral humana pode ser transformada. Um pecador pode ser salvo e santificado. Mas uma taça vazia é uma categoria ontológica, e isso é algo que não pode ser mudado. Uma vez cão, sempre cão. Uma vez taça vazia, sempre taça vazia. Você pode encher uma taça, mas ela continuará a ser uma taça — sempre vazia, sempre precisando de alguém para enchê-la. Portanto, a mensagem implícita aqui é que somos seres caídos que não podem ser restaurados. Somos taças vazias. E sendo assim, nossos casamentos estão em apuros — não pelo que somos, mas pelo que não temos. O meu problema é você. Nem você, nem meus pais e nem a sociedade estão conseguindo encher minha taça vazia e satisfazer minhas necessidades, quaisquer que sejam elas — felicidade, importância, amor, afeição, propósito e assim por diante. A luz dessa teoria, não causa espanto o fato de tantos casamentos em conflito terem tão pouca esperança e quase sempre acabarem em divórcio. E como mostramos anteriormente, a solução atualmente proposta não tem poder para ajudar

6 Para uma crítica secular à teoria das necessidades, ver Philip CUSHMAN, "Why the Self Is Empty: Towards a Historically Situated Psychology," American Psychologist (maio de 1990): p. 599-611. 'Ver Edward T. WELCH, "Who Are We? Needs, Longings, and the Image of God in Man," Journal of Biblical Counseling 13, no. 1 (1994): p. 25-38.

O CORAÇÃO DO CONFLITO

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ou colocar em prática uma transformação nesses casamentos. Qual é, então, a solução de Deus? O que causa (e o que soluciona) os conflitos?

O QUE CAUSA OS CONFLITOS? Se alguém perguntar a você o que acaba com um casamento, é possível que sua resposta inicial seja que a Bíblia aponta para nossos problemas de comunicação. Tiago 3 trata o tempo todo do perigo que a língua representa. O texto nos diz que a língua corrompe o corpo inteiro da pessoa e atiça fogo no curso de sua vida. A ênfase de Tiago a respeito da língua é compatível com o que está escrito em Provérbios, onde encontramos constantes avisos para controlar a língua e atentar para o que falamos. Por exemplo, em Provérbios em 11.12 lemos: "Quem despreza o seu próximo não tem bom senso, mas o homem de entendimento se cala." Em Tiago, encontramos essa mesma verdade, quando ele diz: "todo homem deve estar pronto a ouvir, ser tardio para falar e tardio para se irar" (Tg 1.19). Portanto, eu concordaria com sua resposta em apenas um ponto: A Bíblia nos dá sábios conselhos sobre como devemos nos comunicar. Deus quer que nos tornemos hábeis naquilo que falamos. Mas de onde vêm as palavras que falamos? Quando os casais brigam, de onde vêm as mentiras certeiras, as mútuas acusações e condenações? E Cristo quem responde: tudo isso "procede do coração".

Nossos prazeres Cristo explica: "Mas o que sai da boca procede do coração; e é isso que torna o homem impuro. Porque do coração é que saem os maus pensamentos, homicídios, adultérios, imoralidade sexual, furtos, falsos testemunhos e calúnias" (Mt 15.18,19). Segundo Jesus, as palavras temerárias procedem do coração. A boca fala do que está cheio o coração. E o coração que transforma a língua em fonte de bênção ou de maldição. Portanto, o que acaba com um casamento? Observe como Tiago faz essa pergunta: "De onde vêm as guerras e discórdias que há entre vós?" (Tg 4.1). Note que ele não responde à pergunta. Ele não diz que o motivo são as minhas necessidades não satisfeitas ou o fato de que alguém não me valoriza por aquilo que sou. Em vez disso, ele responde com uma pergunta retórica: "Será que não vêm dos prazeres que guerreiam nos membros do vosso corpo?" (Tg 4.1). Nós tipicamente respondemos o porquê do conflito com um quem. "Por que estão brigando?" Ao ouvir essa pergunta imediatamente apontamos para alguém — nossos filhos, nosso cônjuge, ou algum irmão ou irmã em Cristo. Culpamos nosso chefe, nosso pastor, ou mesmo um colega do trabalho. Mas Tiago nos diz que o conflito não procede dele ou dela, mas sim de nós mesmos. Meus prazeres são a causa do conflito. São eles que podem acabar com

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o meu casamento. Eles colocam-se acima e contra os prazeres da minha esposa e, desse modo, eu entro em guerra com ela para conseguir aquilo que desejo. Portanto, a fonte do conflito não está em algo que me falta ou em algo de que eu preciso, mas sim naquilo que desejo — nos meus prazeres. Na verdade, não somos taças vazias que precisam ser cheias. Somos taças que transbordam de arrogância, ambições, presunção e de desejos egoístas. Da mesma forma, podemos dizer que nosso coração não está vazio, passivo, mas sim plenamente ativo e cheio até a boca, transbordante. Em síntese, os conflitos atormentam nossos lares e casamentos por causa dos prazeres, dos desejos que estão em nossos corações. Há alguns anos tive a oportunidade de ajudar uma igreja em conflito.' Quando cheguei lá e conversei com as várias partes do conflito, a princípio encontrei um grande consenso entre elas. Todas as pessoas eram unânimes a respeito de uma coisa: o problema não estava nelas mesmas, mas sim neles, ou seja, estava nas outras pessoas! Os presbíteros culpavam uns aos outros por terem falado a respeito de coisas que deveriam ter sido mantidas entre eles. Também culpavam as pessoas por não se submeterem à autoridade deles. Acusavam o pastor de incompetência ("os sermões dele não me alimentam espiritualmente"). E acusavam a esposa do pastor de fazer fofoca a respeito deles. A congregação, por sua vez, não era melhor do que os presbíteros. Ela os acusava de serem líderes incompetentes, de tomarem decisões equivocadas, de serem autoritários e deixar de informar a congregação sobre as decisões que haviam tomado. Por fim, o pastor e sua esposa acusavam os presbíteros de se reunirem em segredo, de humilhá-los publicamente em uma reunião da igreja, e de adotarem uma postura de "quem está lá para pegá-los em alguma falta". Também culpavam as pessoas da congregação por serem inconstantes. A questão principal estava no fato de que todo mundo estava respondendo o porquê do conflito com um quem. Todos viam a fonte do conflito como algo que estava em outra pessoa, e não em si mesmo. No fim, eles começaram a culpar até a nós mesmos — nós que tínhamos ido lá para ajudar a resolver a situação —, dizendo que não estávamos dando a eles o que eles desejavam. Mas uma coisa eles se recusavam a fazer: eles nunca olharam para si mesmos, para seus próprios corações e desejos. Essa foi a congregação que eu encarei naquele domingo de manhã, enquanto pregava na passagem de Tiago 4 e orava: "Senhor, abra os olhos dessas pessoas para seus próprios desejos." Sabendo que havia uma porção de engenheiros na congregação, comecei minha mensagem com uma experiência de laboratório — 'Ver Alfred POIRIER, "Revival in the Church," Equip Magazine 2, no. 6 (novembro/dezembro de 1996): p. 7-9.

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uma lição de física. Peguei um copo de água com a mão esquerda e bati nele com a mão direita. Como era de se esperar, a água derramou e caiu no chão. Então, perguntei a eles: "Por que a água derramou no chão?" Eu apelava diretamente aos muitos doutores e engenheiros que estavam presentes. Eles responderam prontamente: "Você bateu no copo." "Resposta incorreta", disse a eles. "Não têm uma resposta mais científica para me dar?" "Cada ação provoca uma reação oposta, de igual intensidade," foi a outra resposta que eles me deram. "Nada disso". "Acho que vocês faltaram à sua primeira aula de física. Por que a água derramou?" E eu continuava batendo no copo, com mais e mais força. Eles ainda me deram uma porção de outras respostas, mas acabaram desistindo. Então, eu disse a eles: "A água derramou no chão porque tem água dentro do copo! Essa é a resposta de Deus para a razão do conflito." O conflito vem à tona e, com ele, todos os tipos de males — difamação, fofoca, a atitude de um culpar ao outro, malícia, ira, divisões e assim por diante — porque o mal está dentro dos nossos corações. E por essa razão que Tiago segura diante de nós o espelho da Palavra e diz: "Olhem bem para vocês mesmos, para seus desejos, prazeres, expectativas, motivações, alvos, necessidades, anseios, compulsões. Tudo isso mora dentro do seu coração." Em vinte e dois anos de aconselhamento, posso contar nos dedos de uma mão as vezes em que uma pessoa buscou aconselhamento com a finalidade de tentar mudar a si mesma. A primeira coisa que um casal me pede quando procura aconselhamento é, tipicamente: "Pastor, transforme o coração dela (dele". Jamais dizem: "Transforme o meu coração". A oração típica dos casais sempre é "Senhor, abra os olhos do meu cônjuge" e nunca "Senhor, abra os meus olhos". Como pastores que buscam ser pacificadores, devemos ensinar as pessoas a orar como Davi: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno" (S1 139.23-24, grifo acrescentado). Como líderes, somos chamados a voltar os olhos das pessoas para si mesmas, para suas próprias atitudes e ações, pois a primeira lição de Tiago é que a pacificação de conflitos deve começar por fazer cada parte envolvida no conflito examinar seu próprio coração e seus próprios desejos.

Nosso desejo de exigir Tiago, contudo, não para por aí. Ele quer que olhemos não somente para nós mesmos e nossos desejos, mas especialmente para a dinâmica dos nossos desejos. Eles não são meros desejos: são desejos exigentes. Leia de novo Tiago 4.2: "Cobiçais e nada conseguis. Matais e invejais, e não podeis obter; brigais e fazeis guerras" (grifo acrescentado).

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Consegue perceber o padrão de comportamento que Tiago descreve? Primeiro, começa com nosso desejo — com o fato de que queremos algo. Até aqui tudo bem. Mas logo nosso desejo se torna uma exigência. Nós não apenas queremos algo, mas insistimos na ideia de que devemos ter aquilo que desejamos. Essa exigência rapidamente se transforma em uma imposição de expectativas semelhantes a de um deus: os outros devem nos servir e satisfazer nossos desejos. De repente, aquilo que desejamos vai contra a vontade do nosso cônjuge: ele (ou ela) não me dará aquilo que quero. Meu cônjuge não quer que eu obtenha o que desejo. De nossa parte, ficamos desapontados ou até mesmo desanimados, abatidos. Frustrados, assumimos o papel de deuses e amaldiçoamos nosso cônjuge. Nós o punimos, como mostra tão bem o versículo 2 de Tiago 4: "Cobiçais e nada conseguis. Matais e invejais, e não podeis obter; brigais e fazeis guerras".9

Nosso desejo de condenar Vemos esse tema da punição mais para frente em 4.11-5.6, quando Tiago chama a atenção para áreas comuns de conflito. O que ele de fato está tratando são as perspectivas que as pessoas têm em um conflito. Nossos desejos revelam como nós verdadeiramente nos vemos. Especificamente nos versículos 11 a 12 Tiago fala daqueles que difamam seu irmão e usurpam o lugar de Deus: Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Quem fala mal de um irmão e o julga, fala mal da lei e a julga. Se julgas a lei, já não és cumpridor da lei, mas juiz. Há um só legislador e juiz, aquele que pode salvar e destruir. Mas quem és tu, que julgas o próximo?

Mas é justamente isso que fazemos. Assumimos o papel de legislador e juiz dos outros — e os condenamos. Julgamos nosso cônjuge como se fossemos o Senhor, no dia do juízo, e o condenamos e rejeitamos. Nos versículos 13 a 16, Tiago fala daqueles que se veem como soberanos, como se fossem Deus com respeito ao que acontecerá em sua vida. Agora, prestai atenção, vós que dizeis: Hoje ou amanhã iremos a tal cidade, lá passaremos um ano, negociaremos e teremos lucro. No entanto, não sabeis o que acontecerá no dia de amanhã. O que é a vossa vida? Sois como uma névoa que aparece por pouco tempo e logo se dissipa.

9As Escrituras têm várias histórias sobre isso, mas veja 1Reis 21 para uma vívida ilustração dessa dinâmica na vida de Acabe, rei de Israel, quando ele não consegue o que quer de Nabote, o jezreelita. Veja também 1Samuel 25, quando Davi pega sua espada para matar Nabal e seus homens por se recusarem a dar a Davi o que ele queria.

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Em vez disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo. Mas vos orgulhais da vossa arrogância. Todo orgulho como esse é maligno.

Somos presunçosos. Abrimos a boca e dizemos o que faremos e para onde iremos. E se nosso cônjuge não concordar, ou resolver se colocar no caminho daquilo que planejamos, ai dele! Por fim, no capítulo 5, versículos de 1 a 6, Tiago fala daqueles que vivem como se fossem deste mundo. O deus deles é o dinheiro e as riquezas, e eles despendem todos os seus esforços para construir a cidade do homem, em vez da cidade de Deus. Muitos casais, que têm discussões sobre como gastar seu dinheiro, frequentemente pensam que seu problema é falta de dinheiro. Tiago, porém, derruba por terra esse mito, mostrando-nos nossa possessividade, nosso consumismo, nosso eterno descontentamento, nossa irresponsável negligência para com os outros para conseguir aquilo que queremos. Cada um de nós vê o mundo como se fosse "seu", e quando alguém consegue aquilo "que por direito é meu", o conflito se intensifica. Tiago habilmente usa uma linguagem de guerra: "brigais", "fazeis guerras", "matais". E como numa batalha, nossas estratégias podem ser bem sutis. Nós nos apossamos de um território, cavamos nossas trincheiras e ali ficamos. Em vez de buscar a conciliação, a paz, nós ficamos estagnados. E ali, agachados em nossas trincheiras, nós nos posicionamos para algo que pode se tornar uma longa guerra fria entre marido e mulher. E se isso não acabar em divórcio, acaba em duas pessoas levando vidas separadas, num acordo em prol de uma feliz trégua: "Se fizer o que eu quero, eu faço o que você quer. Se não apontar meus defeitos, eu não apontarei os seus. Se você não precisa confessar seus pecados, eu também não preciso confessar os meus." Abandonamos o "lado inimigo" ao sabor de seus desejos e artifícios, o que é uma forma igualmente perversa de odiá-lo e tão mortal quanto a guerra. Nosso

desejo de distorcer

Até este ponto Tiago nos mostrou que nossos desejos não só "querem" , mas também exigem ser satisfeitos, e condenam os outros. Um quarto passo nessa dinâmica do desejo é que eles distorcem aquilo que vemos. No início da minha carreira pastoral, sempre que estava aconselhando um casal, eu ficava abismado diante do quão radicalmente diferente era a história que cada cônjuge contava sobre o mesmo casamento. Parecia que eu estava conversando não com um casal, mas com duas pessoas que eram casadas com outras duas pessoas e moravam em casas diferentes. Eu não conseguia entender essa discrepância até perceber que nossos desejos distorcem aquilo que vemos ou percebemos. Assim, vemos nossa relação conjugal a partir do ponto de vista daquilo que queremos, dos nossos desejos.

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Em Números, capítulo 11, encontramos um excelente exemplo dessa dinâmica. Pense em Israel como a esposa de Cristo, no deserto. Um belo dia, quando estavam a caminho do novo lar, a terra prometida, Israel acusa Deus de não estar provendo suas necessidades: "Quem nos dará carne para comer?", exige Israel (v. 13). Ora, esse desejo ou exigência por certo é perfeitamente razoável, não há nele nada de absurdo. Por que, então, o desejo de Israel se transforma numa monumental briga "de casal"? Os psicólogos de hoje diriam que isso aconteceu pelo fato de que está sendo negada a Israel uma necessidade primária: comida! Mas essa não é a verdadeira razão do conflito. O problema de Israel não é a carne nem suas necessidades não satisfeitas. O verdadeiro problema de Israel são os anseios de seu coração. Se você fosse um conselheiro e perguntasse a Israel, "como está seu casamento?", eis a história que ouviria: "Se ao menos tivéssemos carne para comer. Lembramo-nos dos peixes que comíamos de graça no Egito, e dos pepinos, dos melões, dos alhos-porós, das cebolas e dos alhos. Mas agora o nosso ser definha; não temos nada, a não ser este maná diante dos nossos olhos" (Nm 11.5-6). Ouça mais uma vez o que Israel diz no versículo 18: "Pois estávamos bem no Egito.". E mais uma vez, no versículo 20, eles se lamentam: "Por que saímos do Egito?" Percebe a dinâmica? Israel conta sua história através da perspectiva de seus próprios desejos, por sinal distorcidos. Eles dão forma e distorcem tudo que Israel ouve e vê, influenciando até mesmo suas recordações. Se não soubéssemos nada a respeito da história de Israel, poderíamos pensar que estávamos ouvindo uma história objetiva. Se nós estivéssemos aconselhando Israel, pode ser que perguntássemos: "Quem é esse seu marido? Por que ele te tirou do Egito? E por que ele se nega a levar você de volta para lá? Que ideia maluca o levou a tirá-la de um lugar tão bom e forçar você a segui-lo pelo deserto afora? Certamente seu marido, o Senhor, parece ser uma pessoa bastante egoísta, negligente e até mesmo alguém de comportamento abusivo." Quando estou reunindo informações em um aconselhamento de casais, uma coisa que aprendi é não somente escutar aquilo que os cônjuges me dizem, mas também aquilo que não me dizem. Pense no que Israel está deixando de dizer. O povo se esqueceu de contar da passagem do anjo da morte, de como Deus o liderou na travessia do mar Morto, da provisão diária de maná que o Senhor lhe dava, e da promessa que ele fizera de guiá-los até a terra prometida. Os pecaminosos anseios do coração de Israel haviam-no cegado para a graciosa provisão e abundância do Deus verdadeiro. E por isso que Israel se lembra das cebolas e dos alhos do Egito e se esquece dos tijolos e das palhas. Lembra-se dos melões e se esquece dos bebês assassinados. Lembra-se do sabor dos pepinos em sua boca, mas se esquece da dor do açoite nas costas. Na verdade, o peixe que comia era salgado com suas lágrimas. E os doces pratos que fazia com o alho-poró se tornavam amargos sob o peso da

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escravidão. Aqui, em Números, vemos que os desejos estão cegando Israel para a verdade sobre Deus. Nossos desejos fazem o mesmo com a gente. Ficamos cegos para a benignidade de Deus e, com isso, nossas lembranças distorcem a percepção que temos dele, e acabamos por pensar nele como um Deus negligente, abusivo. Ou então nos esquecemos totalmente dele. De todos os lapsos de memória provocados por nossos desejos, o pior é o que afeta nossa lembrança de Deus. Quando ouvimos a história de pessoas que passam por conflitos, quase sempre notamos um silêncio eloquente: Deus não está presente na história delas. Elas silenciam acerca da palavra de Deus e de suas promessas. Também silenciam a respeito da atitude de dar graças, da confissão e do perdão. O que quer que possam vir a confessar, agem como se Deus não estivesse presente. E falam como se não houvesse nada de bom no fato de Deus ser um socorro sempre na angústia. Portanto, os desejos distorcem nossa percepção da realidade. Eles aumentam certas coisas e minimizam outras. Infelizmente, em geral é Deus que acaba sendo minimizado. Por isso, um dos primeiros passos para a solução de conflitos é ajudar as pessoas a entender que não estão enxergando bem as coisas — que seus desejos estão distorcendo a percepção que elas têm sobre tudo aquilo que está acontecendo.

Iludidos por desejos "bons" Ainda temos que considerar mais uma importante dinâmica que diz respeito aos nossos desejos. Precisamos saber como eles podem nos iludir, mesmo quando são desejos bons. Vamos voltar para a epístola de Tiago. No capítulo 4, ele usa a palavra prazeres (v. 1) ou desejos, mas sem qualificá-la. Ele não diz "vossos prazeres pecaminosos", muito embora alguns desejos sejam explicitamente pecaminosos: o ódio, a inveja, a malícia, a luxúria sexual. No entanto, há muitas outras vezes — na maioria delas — em que nossos desejos são bons. Eles se tornam maus quando começam a "servir" a si mesmos — quando começamos a tratá-los como se fossem deuses e começam a mandar em nós. Como já disse alguém certa vez: "Coisas boas geram deuses maus". O mal não está naquilo que desejamos, mas no fato de o desejarmos em excesso. O mau não está no desejo em si, mas em transformá-lo num ultimato (quando somente a Deus pertence a posição última, suprema, e somente a ele pertence o direito de dar ultimatos).1° Alguma esposa pode perguntar: "Que mal há em querer que meu marido seja um homem fiel? Que mal há em querer que ele me ame ou que seja o líder

10Calvino fala aqui de se ter desejos desmesurados. Veja seus comentários a Tiago 1.13. John Calvin, The First Epistle of Paul the Apostle to the Corinthians, trad. John W. Fraser, (Grand Rapids: Eerdmans, 1960).

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espiritual da família?" Ou quem sabe algum marido possa questionar: "O que há de errado em querer um pouco de tempo para mim depois de um longo dia de trabalho?" ou "Por que não tenho direito de esperar que ela me trate com o mínimo de respeito?" Que respostas devemos dar a perguntas como essas? Tiago nos ensina que não há nada de errado com os desejos em si, o que está errado é a intensidade dos desejos, quando eles assumem tal proporção como se fossem deuses, quando começam a dominar nossa vida. Ao fazer essa distinção, podemos perceber como os desejos bons que temos — mesmo aqueles que se revestem abertamente de um caráter de "santidade" — podem na verdade nos iludir. Eles parecem tão bons que em geral ficamos cegos para o fato de que eles nos estão dominando. O Senhor me fez perceber isso de uma maneira impactante. Certa noite, após o jantar, chamei minha esposa e meus filhos para um momento de adoração em família. Fui buscar a Bíblia e, quando voltei para a sala, fiquei abismado com o ar de tédio, a má vontade e a falta de respeito que a linguagem corporal deles me comunicava. Em meio a tudo isso, eu simplesmente os ignorei e comecei a agir como um pai ciente de seus deveres, e fiz a coisa certa — ou ao menos pensei que estava fazendo. Li a Bíblia, fiz perguntas, e ouvi apenas respostas dadas com o maior pouco caso. Eu fui ficando com raiva e, de repente, estourei. "O que há de errado com vocês? Vocês não amam a Deus? Isso aqui é a Palavra de Deus. O que há de errado com vocês?" Mas assim que disse aquelas palavras, o Espírito Santo me convenceu do meu pecado. E então eu o confessei: meu espírito crítico, minha própria obstinação, minhas falsas acusações. Eu tinha desejado uma coisa boa, na verdade, extremamente boa — um tempo de adoração em família. No entanto, "coisas boas geram deuses maus". Meu desejo de ter um tempo de adoração em família estava mesclado com um desejo de ser adorado, e meu desejo de ser adorado se impôs. Eu exigia uma demonstração de respeito a mim. E amaldiçoei minha família pelo fato de não ter demonstrado isso. Acima de tudo, meu pecado foi ter erguido e servido a um deus em lugar de adorar nosso Salvador. Eu estava disposto a sacrificar minha família no altar da adoração em família!

Nossos desejos idólatras No versículo 4 do capítulo 4, Tiago arranca a última camada da casca que reveste nossos conflitos, e nos revela o que está em seu cerne — a idolatria. Ele nos diz que brigamos com nosso cônjuge por termos um amor secreto. Estamos tendo um caso furtivo: "Infiéis, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, quem quiser ser amigo do mundo se coloca na posição de inimigo de Deus." E uma forma de falar bem chocante, pois, quando estamos em conflito com os outros, não nos vemos como adúlteros ou como inimigos de Deus. E

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observe que Tiago se refere ao pior tipo de idolatria que possa existir — o fato de ser infiel a Deus — algo que nas Escrituras é chamado de idolatria." Tiago nos ensina, então, que nossos conflitos revelam nossos verdadeiros desejos e estes, por sua vez, revelam que nosso coração está apaixonado por ídolos. E são a eles, aos ídolos dos nossos desejos, que mais amamos, e não a Deus. O conselho de Tiago nos fornece uma compreensão de nossos conflitos radicalmente voltada para Deus. O verdadeiro problema não está no fato de termos relacionamentos problemáticos uns com os outros, mas sim, no fato de termos problemas em nosso relacionamento com Deus. O que nossos conflitos pecaminosos revelam e refletem é isso: nosso problema de relacionamento com Deus. Além disso, esse conceito de idolatria lança ainda mais luz sobre a dinâmica dos nossos desejos. Os ídolos são falsos deuses. Como deuses, eles dirigem e controlam nossa vida. E nós, por nossa vez, adoramos, reverenciamos, servimos, amamos, confiamos e obedecemos a eles. Como se fossem Deus, eles nos fazem promessas e nos ameaçam. Se conseguem o que querem, nos prometem felicidade. Se não conseguem, nos amaldiçoam e nos ameaçam de morte. Como falsos deuses, eles também fazem suas próprias leis. Comandam nossa vida. Moldam nossos sentimentos, controlam nossas decisões, motivam nosso comportamento. Fazemos o que fazemos por estar obedecendo ao comando do nosso falso deus. Consegue perceber por que os ídolos são tão mortais? Nossos desejos exigentes, os ídolos do coração, tornam-se como deuses. Quando não os agradamos, eles nos julgam e condenam. São poderosíssimos porque mandam em nós. São mortais porque nos levam a matar. Quando quero alguma coisa e minha esposa me impede de obtê-la, fico com raiva, amargurado. Essa minha raiva expõe aquilo que para mim é mais valioso — o meu ídolo. Em meu esforço para adorar esse ídolo, para aplacar a exigência do meu desejo, eu me disponho a sacrificar minha esposa no altar desse ídolo. E vou mais além, pois me torno o advogado de defesa desse ídolo. Apresento minha esposa ao júri do meu próprio tribunal, e me transformo no juiz, nos jurados e no executor de sua sentença de condenação. Sacrifico a ela e ao nosso casamento apenas para satisfazer meu desejo. Como Tiago diz, com tanta propriedade: "Matais e invejais, e não podeis obter" (Tg 4.1). Esse quadro é inquietante, e nos deixa com muitos questionamentos. Como podemos nos livrar de tal idolatria? Se nossos desejos idólatras são a principal

"A questão da "idolatria como adultério" predomina no Antigo Testamento. Por exemplo, em Ezequiel 23.37, o Senhor diz a Israel: "adulteraram com os seus ídolos ". E a profecia de Oseias começa assim: "Vai, toma uma mulher adúltera [...]; porque a terra adulterou, apartando-se do SENHOR" (Os 1.2).

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causa do conflito, como podemos transformá-los? Como podemos parar de nos desviar para rotas de fuga ou de ataque? O que pode nos libertar desse círculo vicioso de desejos que exigem, distorcem e amaldiçoam? A RESPOSTA DE DEUS A resposta é tão óbvia que a maioria de nós nem a percebe: a única coisa que pode nos libertar desse círculo vicioso de desejos é o evangelho. Todos os nossos relacionamentos, inclusive nosso relacionamento conjugal, precisam do evangelho. E todos nós precisamos conhecer o evangelho de que o nosso casamento precisa.

O que falta: o evangelho Por que a maioria de nós nem se lembra do evangelho? Se o evangelho é a boanova que transforma vidas e reconcilia os que estão afastados, por que ele é tão pouco usado em nossa prática pastoral? Por que temos tantos líderes em nossas igrejas que relutam em se deixar envolver nos conflitos como pacificadores? Certamente um dos grandes motivos está no fato de minimizarmos o evangelho e seu poder para transformar vidas. E temos feito isso de duas formas, principalmente. Uma delas é relegando o evangelho ao passado. A maior parte das pessoas vê o evangelho como a porta de entrada para a casa de Deus. E a porta pela qual se entra no reino, ou melhor, a porta pela qual nós entramos um dia. Ou seja, demos esse passo "lá trás", um dia no passado, há muito tempo, e ele deixou de ser uma realidade vital e presente para nós hoje. Em outras palavras, o evangelho não carrega um valor atual para nós. A outra forma pela qual minimizamos o evangelho é quando o relegamos a um futuro distante. Nesse sentido, o evangelho passa a ser a porta de trás, pela qual saímos. Pensamos nele como algo de que precisaremos no futuro, quando deixarmos este mundo e entrarmos no céu.

Transformados por uma promessa Afinal, o que é o evangelho? Se não é nem uma porta de entrada nem a porta de trás, então, o que ele é? Mais uma vez, a resposta das Escrituras é tão óbvia que não a enxergamos. O evangelho é o ar que respiramos na casa de Deus. Voltando à nossa metáfora, o evangelho é a conversa que acontece nessa casa — na qual o Pai fala conosco, seus filhos, sobre sua grande dádiva, seu Filho. O evangelho é a história, sempre presente e poderosa, de uma promessa que transforma vidas, uma promessa para todos quanto a ouvirem e nela crerem. Nós nos esquecemos de que somos transformados e sustentados pela palavra de Deus. O evangelho é literalmente a "boa-nova" — não um novo mandamento, mas sim a boa-nova. E isso é uma boa história, com boas-novas sobre uma pessoa

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— Jesus Cristo, o Filho de Deus, nosso Senhor e Salvador. É a história do que ele fez, de suas obras, sua morte, fidelidade e obediência como servo, até mesmo a ponto de morrer na cruz por pecadores como eu e você. E com essa história vem uma promessa: creiam e serão transformados, justificados diante de Deus, separados, e adotados como filhos de Deus. Creiam e ganharão uma nova vida, uma nova disposição de espírito, novos desejos — a disposição de amar a Deus de todo coração, toda a alma, todo entendimento, todas as forças e amar ao próximo como a si mesmo. O evangelho também vem com a promessa de um novo relacionamento. Como em um casamento, é a promessa do noivo que dá início a tudo. E como em um casamento, são os votos de uma promessa que precisam ser renovados diariamente. Quem de nós, tendo prometido amar e ser fiel ao nosso cônjuge, depois de cinco, dez ou vinte e cinco anos dirá: "E claro que disse a ele (ela) que o (a) amava naquela época. Não é o bastante?" E quem de nós consegue ter um casamento bem-sucedido apenas com base em uma promessa do passado? Nenhum de nós, pois o que sustenta e transforma um casamento é nosso empenho presente e constante de recontar, por meio de palavras e ações, as promessas que fizemos e o amor que juramos. E a promessa deve ser renovada sempre que houver distanciamento, esfriamento da relação ou alguma transgressão. Somente então, ao contar e ouvir a promessa da expiação, do perdão, da reconciliação as pessoas irão se transformar e confessar seus pecados, pedir perdão, fazer as pazes e renovar seu compromisso. Olhemos mais de perto a dinâmica do evangelho e perguntemos a nós mesmos: Como mudar nossos desejos? E se nossa alma estiver mais para uma chama tímida do que para uma fornalha que arde com paixão pelo Senhor? Já vimos anteriormente que brigas e discussões no casamento são um sinal de que amamos mais outra coisa qualquer do a Deus. O relacionamento com nosso cônjuge é um reflexo do nosso relacionamento com Deus. Os estragos que prejudicam nosso relacionamento conjugal revelam nossos falsos amores e desejos ilícitos — revelam que amamos mais a nós mesmos do que a Deus. Então, como substituir esses desejos pecaminosos por desejos puros, santos? Arrancando-os pela raiz e plantando em seu lugar — única e exclusivamente por meio do grande "poder expulsivo de uma nova afeição", como certa vez pregou Thomas Chalmers — um novo amor encontrado apenas no evangelho! Como cristãos, confessamos que amamos porque Deus nos amou primeiro. Em outras palavras, fazemos um compromisso de viver pela fé por causa da promessa que Deus fez a nós primeiro. No entanto, na correria do dia-a-dia deixamos de lembrar dessa dinâmica do evangelho: primeiro narração, depois exortação; primeiro promessa, depois preceito. Primeiro a Palavra como evangelho, depois a palavra como guia.

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Esquecemos de lembrar dessa dinâmica em nossos relacionamentos e especialmente em nossos conflitos. Falamos da salvação pela graça, mas vivemos como se a salvação fosse pelas obras. Em pouco tempo nós nem mesmo estaremos falando mais da salvação pela graça. A nova vida não vem por meio do mandamento, mas sim por meio das boasnovas. J. Gresham Machen, um dos grandes estudiosos evangélicos do início do século xx, sabia bem disso. Impregnado da teologia da graça divina, ele viu claramente que o poder de Deus para transformar vidas está na mensagem de seu amor, sua obra e seus_feitos. Em suas próprias palavras: Desde o princípio, o cristianismo certamente foi vida. Mas como essa vida foi gerada? E possível conceber que tenha sido gerada pela exortação. Esse método já tinha sido tentado com frequência no mundo antigo; no período helenístico havia muitos oradores que perambulavam por todos os lados dizendo às pessoas como elas deveriam viver. Mas esse tipo de exortação mostrou-se impotente. Embora os ideais dos oradores cínicos e estóicos fossem louváveis, eles nunca conseguiram transformar a sociedade. O mais curioso em relação ao cristianismo foi o fato de que adotou um método inteiramente diferente desse. O cristianismo transformou a vida das pessoas não ao fazer um apelo à vontade humana, mas ao contar uma história; não ao exortar, mas ao narrar um evento. [...] Onde a mais eloquente exortação falha, a simples história de um evento é bem-sucedida; vidas são transformadas por meras e singelas novas."

Nós, pastores, concordamos prontamente com Machen no que diz respeito à salvação, mas agimos com cinismo quando se trata de salvar casamentos. Um dos erros que cometemos no aconselhamento é nos esquecer de que o evangelho que pregamos no domingo é o mesmo que também devemos aplicar nas sessões de aconselhamento. Percebo que isso é especialmente válido quando estou aconselhando um casal ou alguém que se mostra resistente ao evangelho. Em casos assim, minha tendência é atingi-los com mais força por meio da lei. Somos acometidos por uma tendência inveterada no sentido de promover o esforço humano em vez de buscar alcançar as pessoas para que elas, com sinceridade de coração, abram os ouvidos e confiem em nós. O apóstolo Paulo chamou a atenção dos gálatas por esse mesmo motivo: "E só isto que quero saber de vós: foi pelas obras da lei que recebestes o Espírito, ou pela fé naquilo que ouvistes? Sois tão insensatos assim, a ponto de, tendo começado pelo Espírito, estar agora vos aperfeiçoando pela carne? (Gl 3.2-3)".

12J. Gresham MACHEN, Christianity and Liberalism, 1923, reimpressão. Grand Rapids: Eerdmans, 1981, p. 47-48. As citações foram extraídas da edição de 1981.

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Portanto, por onde e como começar a restaurar nossos relacionamentos? Como superamos os desejos pecaminosos que estão causando brigas e discussões em nosso casamento? Se queremos restaurar e superar nossos problemas, se queremos nos transformar em pessoas que buscam a Deus sobre todas as coisas, isso será pelo ouvir e ouvir da história gloriosa da busca de Deus por nós! O chamado para amar (Ef 5.1-2) e o chamado para que os maridos amem suas esposas (v. 25) vêm, ambos, logo em seguida da declaração de que Cristo nos amou e continua a nos amar (v. 2). Um dos meus pais na fé me disse certa vez: "Alfred, apenas pregue o evangelho para sua esposa e comece a fazer isso pregando a você mesmo. Você nunca terá alegria no Senhor a menos que ela seja alicerçada sobre a fundação da alegria que ele sente em você."13

A PROMESSA: DEUS DÁ MAIS GRAÇA Pregar o evangelho foi justamente o método que Tiago usou. Tendo exortado seus ouvintes por causa de seus desejos idólatras, que levavam a conflitos, Tiago agora afasta o olhar deles de si mesmos e de uns para os outros e o volta para a bondade e a graça de Deus, à medida que ele dá de si mesmo para nós no evangelho. Tiago fala primeiro do ciúme de Deus por nós e, então, descreve as riquezas de sua generosa graça.

O ciúme de Deus por nós No capítulo 4, versículo 5, Tiago começa nos lembrando, em primeiro lugar, do ciúme de Deus por nós: "Ou pensais ser sem motivo que a Escritura diz: O Espírito que ele fez habitar em nós tem muito ciúme?" Essa citação, extraída da versão Almeida Século xxi, é a tradução de uma frase reconhecidamente bem difícil na língua original. A NIV, por exemplo, justamente em função disso, propõe traduções alternativas em nota de rodapé: "que Deus tem muito ciúme pelo Espírito que ele fez para habitar em nós" ou "que o Espírito que ele fez para habitar em nós anseia com ciúme". Nas duas traduções propostas, a principal diferença está no sujeito, ou seja, em uma delas é Deus que tem ciúme; na outra, é o Espírito. Embora as discussões linguísticas sejam inconclusivas, o contexto favorece Deus como sujeito, ou seja, como aquele que anseia com ciúme por nosso espírito. No versículo 4, Tiago abre seu chamado ao arrependimento apontando para nosso adultério espiritual — "Infiéis..." . Parece

'Palavras de Jack Miller em conversa pessoal. Ele foi pastor da Igreja Presbiteriana New Life e fundador do ministério World Harvest. Seu legado continua por meio da obra do World Harvest Missions e especialmente através de materiais para discipulado.

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ser mais razoável presumir que Tiago dê continuidade a essa mesma linha de raciocínio no versículo 5, ao nos lembrar do ciúme de Deus por nós, seu povo. Deus é um marido ciumento. O ciúme de Deus pode soar aos nossos ouvidos como uma "lei temível", fazendo-nos pensar em Deus como um fogo que consome. No entanto, esse ciúme pressupõe o amor decorrente de sua aliança. E esse amor não é passageiro nem inconstante. Também não é um amor sem propósito, mas antes, um amor que nos busca segundo seus propósitos soberanos e graciosos. E qual é o propósito de Deus? E redimir para si um povo que glorificará seu nome como o Deus da misericórdia, da justiça e da verdade. E justamente por causa desse amor guiado por um propósito que o Senhor nos intimida com sua disciplina. Ele não nos abandonará. Ele se reconciliará conosco e nós nos reconciliaremos com ele. Isso é o começo das boas-novas. Nosso Deus tem ciúme de nós. Quando nos deitarmos com nossos ídolos, ele nos encontrará e nos acordará, chamando-nos ao arrependimento e à reconciliação. Ele não nos abandonará.

A generosa graça de Deus para conosco Deus sente mais do que ciúme em relação a nós. Como está escrito em Tiago 4.6, ele é o Deus que "nos dá maior graça". Tiago embasa sua afirmação nas Escrituras, mencionando a graça mais uma vez. Citando Provérbios 3.34, ele diz: "Deus se opõe aos arrogantes, porém dá graça aos humildes" (Tg 4.6). Deus nos dá maior graça. Se o Senhor exige fidelidade de nós, ele nos concede aquilo que ordena e ainda mais?' A simples menção à graça deveria ressoar em nossos ouvidos como um trovão. Pois no calor da controvérsia, somos tentados a desistir. Na raiz dos conflitos, encontramos não apenas desejos excessivos, mas também desespero e falta de fé. Deixamos de acreditar que Deus possa nos mudar, quem dirá mudar a outra parte do conflito. Nós nos tornamos cada vez mais frios especialmente sobre a verdade de que a graça produz mudança. E por isso que o conselho de Tiago aqui é tão radical. Ele nos chacoalha e desperta para o incrível poder e a abundância da graça de Deus. Tiago chama a atenção para o poder transformador dessa graça em um trecho anterior de sua epístola, quando lembra seus leitores de que a graça de Deus

'Essa é uma alusão à famosa frase de Agostinho sobre a graça de Deus: "Senhor, concede o que ordenas, e ordena o que tu queres." Essa citação fez com que Pelágio começasse uma controvérsia e levou às grandes exposições de Agostinho sobre a natureza da graça salvadora. Veja Agostinho, Confessions, trad. Henry Chadwick. New York: Oxford University Press, 1991, livro 10.29, 10.31, 10.37; p. 202, 206, 214, respectivamente.

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foi o que os transformou através do novo nascimento: "Segundo sua vontade, ele nos gerou [nos trouxe à existência] pela palavra da verdade" (Tg 1.18). Quando ele diz "palavra da verdade", entende-se que ele quer dizer o evangelho (a maior das manifestações da graça de Deus), pois a mesma expressão é usada em quatro outras passagens do Novo Testamento onde ela significa o evangelho (Ef 1.13; Cl 1.5; 2Tm 2.15). Além disso, mais para frente no mesmo capítulo Tiago fala da "palavra em vós implantada, poderosa para salvar a vossa vida" (Tg 1.21). Essa palavra é a Palavra do evangelho, que fala sobre o que Deus já fez por nós em Cristo. Ele fala do propósito de Deus de nos salvar ao entregar seu próprio Filho, Jesus Cristo, assegurando assim para nós a libertação da condenação, bem como justificação, perdão dos pecados, aceitação, paz e reconciliação. Além disso, essa graça em Cristo que Deus nos dá é contínua, e não apenas um ato passado de salvação. O verbo dar na expressão "Deus nos dá maior graça" promete uma fonte de graça bastante presente, que nunca se esgota, que está sempre jorrando. A graça de Deus se derrama a cada momento, a cada dia, como as suas misericórdias que se renovam a cada manhã. Ele a concede de forma abundante, sem cobrar nada. E nos dá tudo que precisamos para matar em nós mesmos aqueles desejos idólatras e restaurar nossos relacionamentos. Essa é a natureza da graça divina que J. A. Moyter vê nessa passagem: Quanto conforto encontramos nesse versículo! Ele nos diz que Deus permanece ao nosso lado de forma incansável. Ele nunca falha com respeito às nossas necessidades; ele sempre tem mais graça à disposição para nós. Ele nunca é insuficiente, sempre tem mais e mais graça a nos dar. O que quer que possamos perder quando colocamos a nós mesmos em primeiro lugar, não conseguimos perder nossa salvação, pois há sempre mais graça. Não importa o que façamos a Deus, ele jamais é vencido. Podemos não ser verdadeiros quanto à graça da eleição, contradizer a graça da reconciliação, negligenciar a graça que vive dentro de nós — mas ele nos dá maior graça. E ainda que chegássemos para Deus e disséssemos, "o que recebi até agora não é o bastante", ele nos diria: "Bem, você pode ter mais". Seus recursos nunca se acabam, sua paciência nunca se esgota, sua iniciativa nunca cessa, sua generosidade não conhece limites: ele nos dá maior graça."

Você acredita nisso? Não responde a essa pergunta olhando para si mesmo ou para seu cônjuge. Quando se trata da nossa habilidade de nos reconciliarmos, somos como Sara e Abraão, que aos olhos um do outro pareciam nada mais do que mortos, acabados! Precisamos começar a resolver nossos conflitos, a nos reconciliarmos, não por aquilo que nossos olhos podem ver, mas pelos olhos da fé na promessa do Deus que "nos dá maior graça".

'I A. MOYTER, The Message offames. Downers Grove: InterVarsity, 1985, p. 150.

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DEPOSITANDO FE NO EVANGELHO Tiago tem mais a dizer para as pessoas em conflito (Tg 4.6-10). Tendo mostrado a promessa da graça, ele não para por aí. Observe primeiro o que Tiago não faz. Depois de ter chamado a atenção para nossas disputas e conflitos, de ter dito que nosso Deus tem muito ciúme, ele não nos apresenta imediatamente uma lista de técnicas para lidar com a raiva, nem dá uma aula sobre "Os dez passos para uma comunicação eficaz".16 Considere, então, o que Tiago diz, especialmente no que diz respeito ao relacionamento conjugal. Por quatro vezes em quatro versículos Tiago volta nossa atenção para Deus (Tg 4.6,7,8,10), pois ele deseja que tenhamos um foco radicalmente vertical. As pessoas em conflito devem começar por Deus, pois na essência dos problemas de relacionamento encontra-se um relacionamento abalado com Deus. Se nossa aliança conjugal está se partindo é porque nossa primeira aliança está partida. Se o marido está deixando a esposa ou vice-versa é porque ambos já deixaram Deus há muito tempo. Por isso, Tiago nos chama de volta a Deus. E a única maneira de fazer isso — de trazer Deus de volta aos nossos conflitos — é crendo no evangelho. Depois de ter nos falado do amor e do ciúme de Deus, Tiago profere palavras de promessa e esperança: "Todavia, ele nos dá maior graça", e insiste em dizer, "Deus se opõe aos arrogantes, porém dá graça aos humildes" (Tg 4.6). Mas não nos basta ouvir essas palavras do evangelho, essas palavras de promessa — devemos também crer nelas (veja Gl 3.2,5). Assim, Tiago exorta no versículo 8: "Achegai-vos a Deus". Em outras palavras, Tiago nos exorta a depositar nossa fé em Deus porque sabe que a única solução para nossos conflitos é restabelecer nossos laços com Deus, é nos voltarmos novamente para ele como fonte de graça, auxílio, provisão, sabedoria, força e perdão.

IMPRIMINDO PASSOS E RITMO EM NOSSA FE À medida que colocamos nossa fé em Deus, logo percebemos que essa fé tem seus próprios passos para levar adiante aquilo em que cremos. Assim como nossos passos se encaixam em um padrão, em uma maneira de caminhar — pé direito, pé esquerdo — a fé também tem seu padrão. Existe uma maneira de andar nos caminhos do Senhor que pode ser encontrada ao longo das Escrituras, e Tiago a aplica também aqui: a promessa precede o mandamento; o mandamento é seguido

"Tais "auxílios" ficam com a parte do leão em termos de solução de conflitos. Questões ligadas ao coração e à direção de Deus surpreendentemente são omitidas. Isso não quer dizer, entretanto, que aprender como usar a língua de forma piedosa não seja necessário. Tanto Tiago capítulo 3 quanto Provérbios fornecem instruções sobre como usar a língua para a edificação dos outros.

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por uma promessa maior. Pé direito e em seguida pé esquerdo; promessa e em seguida preceito. Deus nos diz três coisas: arrependam-se, voltem-se para mim, andem nos meus caminhos. Porém, a saída para a alienação, para o conflito é por meio da promessa seguida do preceito. É por meio disso que Deus nos motiva, por meio de suas grandes e preciosas promessas. A primeira promessa dada em Tiago 4, como já vimos por várias vezes até aqui, encontra-se no versículo 6: "Todavia, ele [Deus] nos dá maior graça." E essa é a primeira promessa que precisamos ouvir e na qual precisamos crer em meio às lutas em nossos relacionamentos. Sobretudo quando o conflito é muito grande — quando estamos feridos, com o coração partido e os olhos cheios de lágrimas — precisamos ouvir que há um auxílio, que a mão de Deus está estendida. Precisamos saber que ele nos dá maior graça, se virarmos as costas para aqueles desejos que tudo exigem, distorcem e nos condenam, para aqueles desejos que nos oprimem e, em vez de nos olharmos para eles, voltarmos nossos olhos para Deus e nos submetermos a ele — o único e verdadeiro amor de nossa alma. E mais uma vez no capítulo 4, versículo 8, Tiago nos exorta: "Achegai-vos a Deus". Mas ele também acrescenta a promessa que dá forças para obedecermos a essa ordem: "e ele se achegará a vós". Quando estamos em um conflito, fugimos de Deus. Ele é a última pessoa em quem pensamos. Meus direitos, minha reputação, minhas prioridades ocupam o centro do palco. Em tudo isso eu me afasto de Deus. Tiago, porém, nos promete um caminho de volta: "Achegai-vos a Deus, e ele se achegará a vós". Finalmente, no capítulo 4, versículo 10, Tiago faz outra exortação: "Humilhai-vos diante do Senhor". No entanto, mesmo esse preceito vem acompanhado de uma promessa: "e ele vos exaltará". A arrogância é o motor dos nossos conflitos. Eu preciso provar que a minha causa é justa. Preciso ganhar e você, perder. Alguém pode achar que um simples preceito como este, "Humilhai-vos diante do Senhor", seria suficiente para superar nossa arrogância natural. Tiago, contudo, acrescenta a ele uma promessa, pois a promessa dá forças e renova nossa fé em Deus — a fé e a certeza de que Deus está no controle e irá, no seu devido tempo, fazer a justiça da nossa causa brilhar como o sol do meio-dia.

Passos específicos a tomar Sustentados e motivados por essa promessa, Tiago nos encoraja a tomar passos específicos. Ele nos chama ao arrependimento — para que deixemos os caminhos do pecado que seguimos durante um conflito e andemos nos caminhos do Senhor. Mas com o que se parece exatamente esse arrependimento de que ele fala? Tiago nos dá então uma explicação mais detalhada a esse respeito: sujeitai-vos, resisti, achegai-vos, limpai as mãos, purificai, entristecei-vos, lamentai

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e chorai, que o vosso riso se transforme em lamento, e a vossa alegria em tristeza, humilhai-vos diante do Senhor (Tg 4.7-10). O arrependimento, portanto, é muito mais do que apenas se sentir mal por haver pecado. Envolve uma série de mudanças no coração. Primeiro, nos sujeitamos a Deus e nos achegamos a ele. Esse ato de sujeitar-se não é uma atitude passiva. Não é como uma espécie de "não-resistência", mas sim uma postura ativa, como um soldado que se alista para a guerra. E entrarmos em mútua aliança. E pegar nossos desejos, não importa quão "justos e bons" eles nos pareçam, e submetê-los sempre à seguinte mentalidade: "Pai, [...] não seja feita a minha vontade, mas a tua" (Lc 22.42). Se os conflitos começam com aquilo que quero", eles são solucionados com um retorno àquilo que "Deus quer". E isso que significa nos sujeitarmos a Deus. Segundo, arrependimento é resistir ao diabo e às suas tentações. Ao mencionar o diabo em relação ao conflito, Tiago não está querendo dizer com isso que possamos atribuir nosso comportamento imoral a demônios, nem está sugerindo que os conciliadores sejam exorcistas dos "demônios da ira". Na verdade, não se trata de nenhuma novidade o fato de Tiago fazer menção a isso no contexto de sua discussão sobre contendas e conflitos (veja Tg 3.1-4.12). Portanto, devemos levar em consideração seu conselho sobre o diabo dentro desse contexto. No capítulo 3, versículo 6, Tiago nos lembra de que nossa língua é posta em chamas pelo inferno. No versículo 15, ele nos mostra que a sabedoria que não vem do alto é demoníaca. E como ela se parece? Segundo os versículos 14 a 16, as obras do diabo se manifestam em corações repletos de inveja, arrogância, sentimento ambicioso, confusão e todo tipo de prática nociva. Arrepender-se, então, é resistir à tentação do diabo de nos entregar a tais práticas nocivas. Terceiro, o arrependimento é um chamado para que nos acheguemos a Deus. Voltar as costas para o diabo significa voltar-se para Deus. Achegar-se a Deus significa cultivar de forma ativa e deliberada uma comunhão com ele, e não com o mundo. Como pastores pacificadores falharemos aqui se chamarmos as pessoas a se voltarem para Deus, mas não mostrarmos a elas como se achegar a ele. Embora Tiago não descreva em detalhes como seria essa comunhão, podemos fazer essa descrição a partir do que temos no restante das Escrituras. Devemos mostrar às pessoas em conflito como e o que orar e também quais porções da Escritura ler, meditar, memorizar e colocar em prática. Um modo como faço isso em minha própria igreja é encorajando as pessoas a estudar os capítulos 3 e 4 de Tiago e anotar seus pensamentos e perguntas à medida que vão fazendo a leitura. Peço a elas que ponderem sobre esta questão: "Como alguém que está vivendo um conflito, o que Tiago está me dizendo sobre minha língua, meus desejos, adultério, e minha atitude de exigir, distorcer e condenar os outros"?

"eu

O CORAÇÃO DO CON RATO

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O quarto passo para o arrependimento, como ensina Tiago, é que os pecadores limpem suas mãos. Para Tiago a palavra mãos aqui significa nosso comportamento exterior, nossas ações. Em outras palavras, nós devemos colocar um fim nas coisas que levam à morte e matar, purificar e nos desvencilharmos de pecados concretos e específicos. Talvez esses pecados sejam ter sempre a última palavra, estar sempre pronto a falar e ser tardio em ouvir e pronto para se irar com facilidade. Esse é o tipo de conselho prático e concreto que pastores e líderes devem dar às pessoas para ajudá-las a identificar seus pecados e se limparem dele. Tiago diz às pessoas em conflito não só para limparem suas mãos, mas também mostra o outro lado da moeda: elas devem purificar seu coração. O sentido do verbo purificar é explicado por meio das pessoas a quem essa ordem se dirige: "vós, que sois vacilantes". Logo, purificar é livrar nosso coração dessa hesitação, pois sempre que ele tenta servir a dois mestres — aos desejos de Deus e aos meus próprios desejos — é que surgem os conflitos. Observe que o maior peso dos conselhos dados por Tiago não está na mudança de comportamento nem na mudança do coração. Como sábio pacificador, ele trata de ambas as coisas. O ser humano é uma unidade psicossomática e, assim, um plano para mudanças deve levar em conta o ser humano em seu todo — tanto alma quanto corpo, tanto atitudes quanto comportamento, tanto mãos quanto coração. Tiago, de forma bem resumida, nos guia ao longo do caminho para o arrependimento verdadeiro, gerado pelo evangelho. Ele finca as raízes do arrependimento na abundante graça de Deus para com os humildes. Ele torna doce o arrependimento ao falar das promessas de Deus. Ele trata de questões que afetam tanto as mãos quanto o coração, tanto nossas ações quanto nossas motivações. E termina com a graça de Deus: "Humilhai-vos diante do Senhor, e ele vos exaltará" (Tg 4.10). Que promessa! Deus toma em suas mãos pessoas como nós, causadoras de conflitos, e nos transforma em pacificadores. Ele nos recria à imagem de seu Filho.

Exemplos pessoais Vou concluir citando alguns exemplos pessoais para ilustrar como tenho aplicado os conselhos de Tiago à minha própria vida. Gostaria primeiro de falar sobre como essas verdades transformaram a forma como crio meus filhos. E fácil pensar que meus filhos "já conhecem o evangelho". Por isso, perco a paciência quando eles não fazem o que se espera deles, pois penso que eles, mais do que ninguém, deveriam saber o que fazer. Lembro-me de uma vez que chamei minha filha para uma conversa porque comportamento dela precisava de correção. Eu estava prestes a começar nossa o conversa falando das "más novas", ou seja, do que ela vinha fazendo de errado.

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Mas o Senhor me pegou no meio do caminho e me fez redirecionar meus passos. E assim, acabei começando a conversa falando das boas-novas de Cristo. Li com ela o texto de Efésios e comecei a dizer quem ela era em Cristo. Disse-lhe que ela fora escolhida por Deus antes da fundação do mundo, que ela fora predestinada a ser uma de suas filhas adotadas, que Cristo derramara seu sangue por ela, e que o Espírito Santo enviado era como um selo, um sinal de que ninguém poderia tomá-la de Deus. Disse a ela que era parte da nova família de Deus, a igreja. E disse também que tudo o que ela era e o que viria ser vinha de Deus. Somente após ter dito todas essas coisas comecei a falar sobre as áreas em que ela precisava de crescimento. Na mesma hora ela me interrompeu e compartilhou: "Pai, sabe aquilo que me disse sobre quem eu sou em Cristo? Preciso ouvir mais sobre isso". As palavras dela foram como uma flecha cravada em meu coração. Como eu podia ter sido um pai tão cego? Pois se eu mesmo sei o quanto preciso ouvir as boas-novas de Cristo, por que pensava que minha filha precisaria menos do que eu? Outro exemplo aconteceu com a minha esposa. Estávamos lendo a Bíblia juntos e começamos a conversar sobre o que Deus tinha feito por nós, em Cristo. Falamos do evangelho um para o outro e do evangelho na vida um do outro. Embora tivéssemos que conversar sobre assuntos difíceis, como coisas sobre nossos filhos, questões financeiras e a forma como estávamos tratando um ao outro, começamos falando e enfatizando o Deus que dá maior graça! E foi ouvindo o evangelho sempre e sempre, da boca um do outro, que fomos constrangidos a confiar mais em Deus e a obedecê-lo mais. Como pastores chamados a serem pacificadores, nossas armas devem ser a lei e o evangelho, o evangelho e a lei. Devemos compreender que os conflitos em que as pessoas estão envolvidas são conflitos que elas trazem dentro de si mesmas — conflitos que dominam seus corações, conflitos relacionados a desejos, exigências e ídolos. Todas essas coisas são fortalezas inexpugnáveis, que só poderemos conquistar por meio do evangelho de Jesus Cristo. O mesmo evangelho que fomos e somos chamados a pregar e a ensinar. Apontar para o evangelho e aplicá-lo à vida das pessoas é o que faz do esforço de pacificação uma experiência gratificante para um pastor. Pois que alegria maior pode existir do que ver um casal se reconciliar, não só para salvar seu casamento e poupar seus filhos de tanto sofrimento, mas também para vê-los reafirmar seu compromisso com o evangelho de seu Salvador?

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....\\Ls respostas ao conflito, que vimos nos últimos dois capítulos, fazem parte da dimensão horizontal da vida — a dimensão das nossas relações com outras pessoas. No entanto, o que alguns tomam como certa e a maioria nega é a dimensão vertical (a dimensão da nossa relação com Deus) na forma de compreender e reagir diante do conflito. Neste capítulo iremos explorar essa dimensão vertical da pacificação, observando quem é Deus como um Deus reconciliador. ONDE ESTÁ DEUS NESTE CONFLITO? Eu me lembro de haver mediado um conflito entre o diretor de uma organização beneficente internacional e a empresa de consultoria que ele havia contratado para levantar fundos. Ambas as partes alegavam ter havido uma quebra de contrato. O diretor havia suspendido o pagamento pelos serviços que, segundo ele alegava, o consultor não havia cumprido. O consultor, por outro lado, argumentava que ele havia cumprido com os serviços conforme estipulado no contrato e queria simplesmente o dinheiro que lhe era devido (cerca de 40 mil reais). Eu me lembro nitidamente da atitude com que o diretor chegou à reunião. Naquele primeiro encontro, ele fez a seguinte exigência: "Espero que você possa finalizar isso hoje. Tenho um ministério importante para cuidar". Ele claramente não via Deus naquele conflito. Pelo contrário, ele via a mediação como um incômodo, um empecilho ao seu ministério e ao trabalho de Deus. Ele estava cego às questões de injustiça que precisavam ser remediadas, às promessas quebradas que esperavam uma solução e ao seu relacionamento rompido com um irmão em Cristo, algo que clamava pela graça reconciliadora, pelo poder e pela sabedoria do evangelho. Além disso, ele via toda a questão como um problema justificável que precisava ser solucionado para que ele pudesse seguir com seu "verdadeiro ministério". Embora ele nunca fosse dizer isto de Deus, ele agia como se Deus estivesse dentro

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de uma caixa chamada "ministério", hermeticamente fechada para as realidades de conflito desta vida. E você, qual é a sua atitude diante de um conflito que diz respeito ao seu ministério? Você vê a pacificação como uma característica fundamental do chamado pastoral? Ou enxerga os conflitos em seu casamento, família e igreja como intromissões amorais que distanciam você das importantes questões morais da pregação do evangelho? Já se pegou murmurando acerca de conflitos na igreja, como se fossem desvios irritantes que afastam você do seu "real chamado"? Ou por acaso alguma vez já sentiu a mais pura satisfação quando se depara com todo o tipo de conflitos, julgamentos e tribulações?' Embora essas sejam perguntas difíceis, são importantes e devem ser feitas. É estranho como nós, pastores chamados para pregar o evangelho da graça aos pecadores, ficamos frustrados quando temos que lidar com pecadores reais que cometem pecados reais e com situações problemáticas e reais. Se pretendemos aplicar a Palavra de Deus a cada aspecto da vida — ao pecado e a todo o resto — devemos mudar nossa atitude sobre conflitos. Uma vez que tendemos a nos esquecer de Deus e seus objetivos quando enfrentamos um conflito, seria melhor começar perguntando: Quem é Deus e quais são seus objetivos no que diz respeito a conflitos? Vamos começar esboçando uma visão da pacificação que seja centrada em Deus e em Cristo, uma visão que concebe a pacificação como um modo de glorificar a Deus.

NOSSO DEUS TRIÚNO DA PAZ O conflito está em toda parte. Ele começa inesperadamente, nos pega desprevenidos e nos deixa perplexos diante da raiva, da irracionalidade e até da beligerância da outra parte envolvida. Uma esposa, que até minutos atrás estava sorrindo, agora está com o rosto vermelho de raiva, gritando com você. Ou a filha, que marcha nervosamente para o quarto, murmurando em voz baixa: "Eu odeio você". Uma reunião de presbíteros que começa com uma agenda tranquila cinco horas depois se transforma em um cenário de guerra, com os participantes discutindo, a discussão chegando a um impasse e o pastor pensando seriamente em procurar outra igreja. Quando os antigos olhavam à sua volta, eles também viam o conflito como uma das realidades mais fundamentais da existência humana. Não é à toa que quando escreveram suas cosmologias tenham começado com os deuses brigando entre si.'

'Esta é exatamente a reação que deveríamos ter de acordo com Tiago 1.2. Muitas das antigas cosmologias iniciavam como um faroeste: deuses lutando contra deuses e, em decorrência dessas guerras, o mundo é criado. 2

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O que causa espanto, no entanto, é o fato de como a história bíblica se inicia de modo tão diferente. A primeira parte de Gênesis não é uma história de deuses, muito menos de deuses em conflito. A criação começa com o Deus da paz. Toda a sua criação está em paz — e "era muito bom" (Gn 1.31). Em lugar de conflito existe a paz, a ordem, a harmonia e o amor, todos abrangidos pela visão hebraica do termo shalom. Tudo e todos estão em seus devidos lugares oferecendo a adoração justa e devida a Deus. Além disso, nosso Deus da paz — o Deus cristão — é o Deus triúno. Ele não é uma divindade qualquer, indistinta. Ele é o Deus eternamente composto de três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Assim, a história cristã começa e termina com o Deus triúno, e com todos os atributos e manifestações de sua glória. Para os cristãos, a confissão fundamental dessa Trindade abençoada traz algumas implicações importantes. Primeiramente, o nosso Deus é um Deus de relacionamento pessoal. As três pessoas da Trindade não discutem e agem cada uma por si, de forma isolada. A unicidade de Deus, sua unidade, consiste nesse habitar mútuo das pessoas do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Em outras palavras, essas três pessoas da Trindade existem em um eterno relacionamento interpessoal de uma com a outra. Assim, Deus, por natureza, é radicalmente pessoal e radicalmente relacional. Em segundo lugar, porque nosso Deus triúno é por natureza um Deus relacional, seus atributos de benignidade e amor não são secundários, mas sim primários. A benignidade e o amor não existem nem podem existir em um vácuo. A benignidade só pode existir em relação a outra pessoa. O amor só pode existir em relação a outra pessoa. Tais benignidade e amor descrevem com aptidão como as pessoas da Trindade eternamente se relacionam uma com a outra. Esses atributos estão dentre as características que definem quem é nosso Deus triúno, como a Escritura prontamente confirma (veja Jo 3.35; 5.30; 14.31; 17.1-26). Portanto, ao confessar a Trindade, os cristãos confessam que, por toda a eternidade, Deus, na pessoa do Pai, do Filho e do Espírito Santo, existe em um relacionamento pessoal que é perfeito em amor e benignidade. Nenhum relacionamento poderia demonstrar de maneira melhor a essência da paz. Quando confessamos a Trindade, confessamos que Deus é um Deus de paz!' A visão convencional, segundo a qual pensavam as gerações passadas, entende a paz como um modo de ser que vem apenas depois de um conflito — como uma condição que vem depois da desordem. Mas como a paz é um atributo do

3Para excelentes exposições acerca da doutrina da Trindade, veja: Robert LETHAM, The Holy Trinity: In Scripture, History, Theology, and Worship. Phillipsburg: Protestant and Reformed, 2004. Millard J. ERICKSON, God in Three Persons: A Contemporary Interpretation of the Trinity. Grand Rapids: Baker, 1995.

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Deus eterno, triúno, sabemos que a paz precede o conflito. Mais que isso, a paz precede a própria criação. Quando o apóstolo diz a uma igreja em conflito que "Deus não é um Deus de desordem, mas sim de paz" (1Co 14.33), ele está mais do que apenas falando que Deus quer que deixemos de brigar. Ele está arraigando nossa própria natureza na realidade de que somos criados e redimidos à "imagem de Deus" — o Deus da paz. No início da história da redenção, descobrimos que Deus é tudo em todos. E assim será novamente, na consumação de todas as coisas, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas; então, o próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou (1Co 15.28). Todas as coisas serão restauradas ao seu correto relacionamento com as demais, e tudo estará sujeito a Deus e em paz (2Pe 3.13). Por isso mesmo, Jesus, na noite em que foi traído — na noite que antecedeu a maior injustiça que a raça humana jamais cometeu ou testemunhou, naquela noite anterior ao clímax do conflito cósmico entre o céu e o inferno — não ensinou a seus discípulos sobre gestão de conflitos, mas sobre as pessoas da Trindade abençoada. E orou pela consumação de nossa união com esse Deus triúno de paz e amor: "E rogo não somente por estes, mas também por aqueles que virão a crer em mim pela palavra deles, para que todos sejam urn, assim como tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste" (Jo 17.20-21). Deus, portanto, é um Deus de paz do início ao fim. Não devemos ignorar o significado desse atributo divino. Uma vez que a paz está fundada na natureza de Deus, ela não é uma concepção humana nem tampouco um estado ideal que se alcança apenas em sonhos e desejos. Tampouco é mero resultado da redenção. Ao contrário, como um atributo divino, a paz é uma realidade fundamental. O conflito, o pecado, a desordem e a confusão são aberrações que afetam a criação de Deus, que é boa. Mas quando Cristo voltar, assim como a criação começou em paz, a paz reinará novamente. Assim, quando nós, como líderes da igreja, ministramos como pacificadores, estamos agindo de acordo com uma das bases mais profundas da realidade, o Deus triúno da paz. A pacificação nada mais é do que obra do Deus triúno em união conosco, seu filhos, os quais por meio desta união trabalham para trazer até nós o grande dia da paz, corrigindo erros e consertando relacionamentos, tudo isso sob o senhorio de Deus.

DEUS ORDENA O CONFLITO Apenas ao compreender a profunda realidade do Deus triúno como o Deus da paz podemos começar a recuperar uma visão verdadeiramente bíblica do conflito. Se a paz caracteriza as relações eternas das pessoas da Trindade e de sua criação original, e se a queda do homem interrompeu essa paz, a realidade resultante do

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conflito provocado pelo pecado não deveria nos surpreender nem nos confundir. Ela certamente não surpreende nem confunde a Deus. Porque todas as coisas são dele, por ele e para ele (Rm 11.36), então o próprio conflito em si tem um papel nos grandiosos planos e objetivos de Deus. Na verdade, a Escritura nos diz que Deus ordena o conflito para seus propósitos de redenção.

O conflito visto ao longo da história bíblica Esse é o tom com que começa a história da redenção. Em seguida à traição de Adão, o Senhor amaldiçoa a serpente, declarando: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela" (Gn 3.15). Note que o Senhor não apenas responde ao conflito; ele o ordena. E o Senhor que coloca inimizade entre os filhos de Deus e os filhos do diabo (veja 1Jo 3.7-10). Robert Reymond resume com muita propriedade toda a obra de redenção do Messias como uma "obra de conflito". Reymond observa: "Desde o início da história da redenção a esperança perpétua dos santos encontrou descanso na triunfante 'obra de conflito' conduzida pelo Messias". 4 Ele ouve os gritos dos oprimidos e daqueles a quem a justiça foi negada. Ele ama seus inimigos e faz o bem a nós, enviando sol e chuva apesar de não merecermos. Ele nos busca, entrando em nossas vidas e nos despertando da inércia de nossos pecados, dizendo: "Desperta, tu que dormes" (Ef 5.14). Ele instrui para que nos afastemos dos ídolos e voltemos para ele, nos instrui a abaixar as armas e nos submeter aos seus termos de paz. Ele é paciente, tolerante e bondoso para conosco, na esperança de que isso nos levará ao arrependimento (Rm 2.4). Além disso, ele nos faz surpreendentes promessas de justificação, adoção, transformação e glória. Ele nos enviou como seus embaixadores da reconciliação (2Co 5.19-21) e treina a nós, seus filhos, para sermos pacificadores (Mt 5.9). Já a partir de Gênesis 3, o conflito é o verdadeiro drama da história bíblica. A serpente mente e acusa Deus de esconder de Eva o bem maior — a possibilidade de ser como Deus. Caim mata seu irmão Abel. Os filhos de Jacó traem seu irmão, José. Os filhos de Israel se queixam de Moisés e de Deus, atribuindo a ambos más intenções. Moisés, em resposta, é tentado a abrir mão da função que Deus lhe dera, em vez de ser perseverante na liderança do povo no deserto. Davi, perseguido e caçado por Saul, enfrenta a irresistível tentação da vingança. E o que dizer do mais importante filho do grande Davi: Jesus, nosso Senhor? O conflito o perseguiu todos os dias da sua vida. Se existe uma história para contar sobre medo, ódio, luxúria, falsidade, ganância e a natureza sistêmica do pecado e da injustiça, esta é a história da vida de Jesus, que levou à sua crucificação. No

4 REYMOND,

Á New Systematic Theology, p. 536 (itálico acrescentado).

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entanto, Pedro ainda prega no Pentecostes que Deus ordenou tudo isso; por seu propósito já fixado e sua presciência, Deus entregou seu próprio filho nas mãos dos ímpios (At 2.23). Portanto, em síntese, Deus ordena o conflito segundo sua soberania, sabedoria e bons propósitos. Essa grandiosa verdade deve ser nossa confissão central, nosso sustentáculo em meio ao conflito, para que sejamos constrangidos e incentivados a ser verdadeiros embaixadores da reconciliação — a perseverar como pacificadores. Pois o conflito testa nossa verdadeira teologia. Ele nos testa e sonda nossos corações, revelando aquilo em que nós realmente cremos e a que nos prendemos. Se confessarmos com sinceridade de coração e crermos que Deus ordena o conflito, em vez de amaldiçoar o conflito poderemos consagrá-lo. Em vez de ver o conflito como um mero acidente em um mundo caótico, poderemos aceitá-lo como uma tarefa dada por Deus para o nosso próprio bem e para a glória dele. Além disso, em lugar de ver o conflito como um empecilho ao nosso ministério, é importante que possamos aceitá-lo como uma oportunidade de ministrar.

O conflito visto como consequência da maldição Como vimos acima, o conflito é a substância da qual é feita a narrativa bíblica. É o ponto central em torno do qual se desdobraram muitas das histórias que fazem parte da história da redenção, em uma demonstração da antítese entre os filhos de Deus e os filhos do diabo, entre a cidade de Deus e a cidade dos homens. Mas o conflito também pode ser visto em um nível mais básico. Ele é uma consequência da maldição. E uma das muitas maneiras como a maldição afetou o ser humano. Como qualquer outro mal que é consequência da maldição, como os desastres naturais e acidentes, o conflito deve ser visto decididamente a partir de sua dimensão vertical, ou seja, da relação Deus-homem. Jesus demonstra bem esse princípio em Lucas 13.1-5. Recordando-se de duas tragédias que representam o mal natural e o moral, Jesus responde apontando para essa relação com Deus e o desafio moral de ambos os incidentes: "Se não vos arrependerdes, todos vós também perecereis" (Lc 13.5). Quer estejamos lidando com o sofrimento ou o mal moral, Jesus nos instrui a voltarmos os olhos para Deus. O autor de Hebreus também fala sobre a necessidade de se ter essa perspectiva voltada para uma dimensão vertical, quando enfrentamos o sofrimento e o conflito (Hb 12.7-14). Em vez de repelir a dificuldade com desdém, ele nos encoraja a resistir diante dela, como se fosse uma disciplina de Deus Pai. Sendo assim, ele nos instrui a adotar uma atitude de aprender e regozijar-nos em meio a nossos sofrimentos, dificuldades e conflitos. E ele conclui com uma exortação à paz e à santidade: "Procurai viver em paz com todos e em santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" (Hb 12.14).

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Em sua carta aos Romanos, o apóstolo Paulo também nos instrui a nos regozijar em nossos sofrimentos porque estamos "sabendo que a tribulação produz perseverança, e a perseverança, a aprovação, e a aprovação, a esperança" (Rm 5.3-4). O conflito, diz Paulo, é um calvário para transformar vidas. E o fogo purificador por meio do qual Deus queima, quebra e transforma falsos pacificadores e destruidores da paz em pacificadores. Tiago, tratando de diversos conflitos que aconteciam entre àqueles a quem escrevia, inicia sua carta com uma exortação semelhante: "Meus irmãos, considerai motivo de grande alegria o fato de passardes por várias provações, sabendo que a prova da vossa fé produz perseverança" (Tg 1.2-3). O conselho de Tiago é, de certo modo, chocante: considerar o conflito motivo de grande alegria? Certamente não é com alegria que nós tipicamente vemos um conflito. Mas se devemos pensar segundo a dimensão vertical, então temos que aprender a ver o conflito pelos olhos de Deus, sempre cientes de como ele o está usando para nos tornar mais maduros e firmes em nossa fé. Todas essas passagens são importantes para moldar a maneira como devemos entender e responder ao conflito e ao sofrimento. O conflito geralmente surge quando as coisas não acontecem como queremos ou de acordo com nossas expectativas. Somos desapontados frequentemente. Mas as Escrituras ensinam que o conflito não é um empecilho, e sim uma oportunidade de glorificar a Deus e ver sua sabedoria e seu poder em ação, trazendo a paz, a virtude e a reconciliação.

DEUS PROPÕE A PAZ Ainda que se fale por toda a Bíblia da soberania de Deus sobre todas as coisas, inclusive sobre o conflito, ela também nos ensina que o Senhor propõe apaz. Deus é o Deus da paz e ele próprio é também um pacificador. O propósito de Deus pela paz fica eminentemente visível em seu nome. Ele é chamado "o Deus de paz" (Rm 15.33; 16.20; 1Co 14.33; 2Co 13.11; Fp 4.6-9; lTs 5.23; He 13.20). A bênção de Paulo, em Romanos 15.33, não é apenas "que Deus seja com todos vós," mas sim "que o Deus de paz seja com todos vós". Mais adiante, após ter feito essa saudação a diversos irmãos e irmãs em Cristo, ele os encoraja da seguinte forma: "E o Deus de paz em breve esmagará Satanás debaixo dos vossos pés" (Rm 16.20). Essas palavras encorajadoras, nos capítulos 15 e 16, não são apenas meras fórmulas piedosas de bênção, mas orações ardentes e oferecidas com plena consciência das tensões existentes entre judeus e gentios naquela igreja ainda jovem. O propósito de Deus para a paz também fica aparente em seu caráter. Ao dar todos os tipos de exortações e aconselhamento para a igreja de Corinto, uma igreja conhecida por numerosos conflitos, Paulo conclui seus conselhos apoiando

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a base de tudo sobre quem é Deus: "Porque Deus não é Deus de desordem, mas sim de paz" (1Co 14.33). O fato de Deus ser quem ele é, segundo ensina Paulo, deve determinar como o adoramos e como iremos propor a paz em nossas vidas, uns para os outros. Essa mensagem de Deus como o Deus da paz é também comunicada por meio de cada pessoa da Trindade. Cada uma das cartas de Paulo começa com uma saudação de paz: "Graça e paz a vós, da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo" (Rm 1.7; 1Co 1.3; 2Co 1.2; Gl 1.3; Ef 1.2; Fp 1.2; Cl 1.2; lTs 1.1; 2Ts 1.2; 1Tm 1.2; 2Tm 1.2; Tt 1.4; Fm 3). Em todas essas saudações é dito que o Filho, assim como o Pai, traz a paz. Devemos esperar isso, uma vez que os profetas profetizaram que o Messias seria o Pacificador, que o rei da linhagem de Davi seria o Príncipe da Paz (Is 9.6; veja também Jo 14.27). Além disso, o Espírito é o agente da paz do Pai e do Filho em nossas vidas. E este Espírito que nos transforma e nos leva a produzir o fruto da paz (Gl 5.22; Ef 4.3). Como vimos anteriormente, vemos aqui outra vez que nosso Deus, o Deus triúno, é o Deus da paz. Quando pensamos em Deus nestes termos — como o Deus da paz — não devemos pensar na sua paz como mera ausência de desordem ou como cessação do conflito. Sua paz não é tampouco um mero apêndice de quem ele é ou um atributo abstrato de sua pessoa. Ao contrário, ela é seu próprio nome. Citar Deus como o Deus da paz é descrevê-lo nos termos do desenrolar histórico de seu nome e caráter (como veremos na próxima seção). Esse desenrolar histórico é manifestado de forma mais suprema na pessoa e obra de seu Filho. A síntese da obra de Deus em seu Filho é descrita em termos de pacificação. De acordo com 2Coríntios 5.19: "Pois Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões dos homens." Portanto, o objetivo de Deus, em cada sermão que pregamos, em cada palavra que aconselhamos, é reconciliar as pessoas com ele, para que possam viver em paz. Considere outras maneiras pelas quais percebemos nas Escrituras que Deus tem como propósito a paz. Em primeiro lugar, Deus abençoa seu povo com a paz. O Senhor instrui Arão, o sumo sacerdote, a proferir a seguinte bênção: "O SENHOR te abençoe e te guarde; o SENHOR faça resplandecer o seu rosto sobre

ti e tenha misericórdia de ti; o SENHOR levante sobre ti o seu rosto e te dê a paz (Nm 6.24-26)".5 Nós proferimos esta bênção de maneira superficial, como mera formalidade, ou abençoamos nosso povo com uma ardente afeição que vem de Deus,

5Não há como não enxergar o discurso de "graça e paz" na bênção de Arão e se perguntar se a própria saudação de Paulo não é apenas uma variante dessa bênção sacerdotal.

A GLÓRLA 1)L-. DEl:S NO CONI ,LITO

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para que possa ser abençoado com a paz do Senhor? Essa bênção da paz, da antiga aliança, é cumprida pelo sumo sacerdote da nova aliança, quando Jesus diz aos seus discípulos: "Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. Eu não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem tenha medo" ( Jo 14.27). Esta paz é a paz que é atualmente nossa, esta é a paz com a qual devemos abençoar nosso povo! Em segundo lugar, Deus faz provisões para a paz por meio de sua aliança de paz (Is 54.10; Ez 34.24-25; 37.26; Ml 2.5-6; veja também Is 9.6; Mq 5.3). Os profetas do Antigo Testamento profetizavam que Deus faria uma nova aliança, chamada de aliança de paz. Curiosamente, essa aliança de paz segue a obra do novo Davi, o Servo do Senhor, o Messias. E uma aliança de paz porque Cristo faz com que estejamos em paz com Deus e assegura a paz para nós.6 Como ministros da nova aliança, somos também ministros da aliança de paz. Finalmente, os propósitos de Deus pela paz ficam evidentes pelo modo como o estado de glória é caracterizado pela paz. Em Isaías 2.4 aprendemos que, no dia do Senhor, o Senhor irá resolver nossas disputas.' E com a vinda do Messias, Isaías fala que "seu domínio aumentará, e haverá paz sem fim" (Is 9.7). Falar sobre a paz, a esperança de paz e o árduo trabalho da pacificação não deve ser apenas algo buscado por liberais ou idealistas fanáticos. Ao contrário, falar, esperar e trabalhar pela paz são posturas que devem ser mais marcantes naqueles que acreditam no Deus da paz e em seu Filho, o Príncipe da Paz. A pacificação é inteiramente bíblica como realidade e ordem. A GLÓRIA DE DEUS NA PACIFICAÇÃO Não basta saber que Deus é soberano sobre o conflito e que ele deseja que o seu povo viva em paz. Também devemos nos perguntar o porquê disso. Por que Deus ordena o conflito? Por que ele tem a paz como propósito? A resposta que se sugere e brevemente se revela é que ele assim o faz para sua própria glória. Deus ordena o conflito e objetiva a paz por amor de seu próprio nome. Esta verdade fica mais evidente na história do bezerro de ouro, em Exodo 32-34. Aqui, e particularmente em Exodo 33.18-34.7, a Escritura nos apresenta a primeira e mais extensa autodescrição de Deus feita pelo próprio Deus,

6 0 Novo Testamento está repleto de referências à nova paz que resulta da obra redentora de Cristo (e.g., Rm 5.1; Ef 2.13-15; Hb 13.20-21). 'Em seu artigo sobre a palavra hebraica ykh, John E. Hartley argumenta que como verbo ykh sinônimo de yb, e significa "sustentar ou dar início a uma ação judicial". Mas aqui significa "arbitrar, julgar ou reger". Hartley cita Isaías 2.4 como exemplo: "Ele julgará entre as nações e será juiz entre muitos povos." Veja John E. Hartley, "jky (yh)," in New International Dictionary of the Old Testament Theology and Exegesis, vol. 2, ed. Willem A. VanGemeren. Grand Rapids: Zondervan, p. 441-445.

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O PASTOR PACIFICADOR

onde ele se descreve nos termos de sua glória. Tipicamente a glória de Deus é entendida como a síntese visível de seus atributos. No entanto, nesta história de idolatria, traição, rebeldia e pecado, Deus demonstra sua glória como algo que consiste principalmente da demonstração de sua livre e soberana misericórdia (misericórdia reconciliadora), em contraste com o cenário de sua justiça divina. Isto é, a glória de Deus brilha com mais intensidade em quem ele é como um reconciliador e pacificador. E essa visão de sua glória que molda e controla o desenrolar da história de redenção e nos leva por fim a Cristo.

Primeiramente e antes de tudo um Deus pacificador Começaremos por Êxodo 33.18, quando Moisés pede para ver a glória de Deus. Muitos de nós involuntariamente interpretamos mal o pedido de Moisés. Ao ouvir o seu pedido para ver a glória de Deus, presumimos que ele queria uma experiência com Deus pela experiência em si. Por exemplo, como descreve um estudioso, Moisés está "em busca de uma manifestação especial de Deus que não deixaria nada a desejar (cf. Jo 14.8). Moisés tinha em si um grande desejo de ficar frente a frente com Deus".8 Quando nos prendemos a esse tipo de interpretação, fazemos com que Moisés se pareça mais com um místico do que com um pastor. E, o mais importante, nós nos esquecemos que Moisés, como pastor de Israel, está liderando um povo obstinado no deserto. A luz desse contexto, podemos estar certos de que Moisés não está buscando uma manifestação especial de Deus, e tampouco está procurando uma experiência extática com Deus. Se ele estivesse, o Senhor poderia simplesmente ter dado a Moisés uma ligeira visão de sua imensidão, onisciência ou onipotência. Mas ele não o fez, pois Moisés não está em busca de experimentar a glória desses atributos. Em vez disso, o que ele deseja conhecer é a glória da misericórdia de Deus. Moisés implora como pastor por um povo desesperado e pecador. Ele encara um problema da vida real, um problema prático de um povo em conflito com o seu Deus. Ele precisa saber que tipo de Deus é o Senhor que irá acompanhar esse povo rebelde para a Terra Prometida sem destruí-lo. Todo o contexto dos capítulos 32 a 34 de Êxodo nos leva a essa conclusão. Brevard Childs descreve com precisão a situação que leva à oração de Moisés: [Os capítulos 32-34] foram colocados dentro de uma estrutura evidentemente teológica de pecado e perdão. O capítulo 32 reconta a quebra da aliança; o capítulo 34 relata a sua restauração. Além disso, esses capítulos se mantêm unidos por uma série de temas, que são habilmente entrelaçados em um padrão unificador. As tábuas

8 E. F. Harrison, "Glory," in Evangelical Dictionary of Theology, ed. Walter A. Elwell. Grand Rapids: Baker, 1984, p. 443.

À GLORIA DE DEI NO CONFLITO

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são recebidas, despedaçadas no capítulo 32, lavradas e restauradas no capítulo 34. A intercessão de Moisés por Israel começa no capítulo 32, continua no capítulo 33, e atinge seu clímax no capítulo 34. O tema da presença de Deus, que é o tema central do capítulo 33, se junta, de um lado, ao tema anterior da desobediência no capítulo 32, e, por outro lado, à certeza do perdão no capítulo 34.9

A narrativa nesses capítulos sugere certo distanciamento entre o Senhor e seu povo. Como uma esposa infiel, Israel foi flagrado no leito conjugal com outro amante. Justificavelmente irado com essa atitude adúltera, Deus diz a Moisés: "Tenho observado esse povo e vi que é um povo muito obstinado. Agora, deixame, para que a minha ira se acenda contra eles e eu os destrua; e farei de ti uma grande nação" (Ex 32.9-10).10 Mas Moisés não faz isso. Ele intercede por aquele povo obstinado, implorando por duas coisas. Primeiro, ele ora para que o Senhor não destrua Israel, mas, em vez disso, honre seu nome — para que as outras nações não o difamem, dizendo que o Senhor destruiu Israel com más intenções (Ex 32.12). Em segundo lugar, Moisés implora para que o Senhor se lembre das promessas que fizera na aliança com Abraão (v. 13). Ao ouvir essas súplicas, o Senhor cede (v. 14). Mas o fato de o Senhor ter cedido não significa que ele e Israel tivessem se reconciliado. Mais adiante, o Senhor diz a Moisés que ele não entrará na Terra Prometida com Israel. Novamente, Deus descreve seu povo da mesma maneira — como um povo obstinado. Consequentemente, eles só podem ter certeza de que acenderam sua ira novamente (Ex 33.3). Então, em vez de ir ele mesmo no meio do povo, o Senhor promete a Moisés que enviará um anjo em seu lugar. Podemos pensar que Moisés teria sido sábio em aceitar esse meio-termo de tolerância, mas ele não aceita. Na próxima cena, vemos o encontro de Moisés com Deus "fora, bem longe do acampamento" (v. Ex 33.7-11). As coisas não melhoraram: Deus e seu povo ainda não se reconciliaram. E como se nós estivéssemos testemunhando o distanciamento entre mulher e marido, vivendo em duas casas separadas. Israel está no campo e Deus está fora em sua tenda, armada a alguma distância. Moisés não dá trégua à situação. Ele quer que o próprio Senhor, e não um anjo, acompanhe Israel e diz: "considera que esta nação é teu povo" (Êx 33.13). O Senhor finalmente parece ceder ao pedido de Moisés: "Eu mesmo irei contigo e te darei descanso" (v. 14).

9 Brevard S. CHILDS, The Book of Exodus: A Critical, Theological Commentary. Philadelphia: Westminster, 1974, p. 557. 10A palavra obstinado funciona como um motivo dramático nesta narrativa. Ela intensifica a questão em torno de o Santo Deus poder ou não viver em meio a este povo rebelde (veja Ex 32.9; 33.3,5; 34.9).

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O PASTOR PA CI FICAD OR

Neste ponto pode parecer que o Senhor atende plenamente ao pedido de Moisés. Mas o Senhor promete estar apenas com Moisés, não com o povo. O Senhor diz no versículo 14: "Eu mesmo irei contigo e te darei descanso". Mas esta frase tem como objeto a segunda pessoa do singular, referindo-se apenas a Moisés. Não está no plural, referindo-se a Israel. E apenas ao reconhecer essa distinção que o leitor consegue entender o sentido do protesto continuado de Moisés nos versículos 15 a 26. Moisés sabe que o Senhor não está prometendo a Moisés o que ele quer. Ele não quer que o Senhor acompanhe apenas a ele, mas sim a ele e ao povo de Deus. Moisés quer uma reconciliação verdadeira. Então ele faz uma mediação em nome de toda a comunidade, arrazoando: "Se tu mesmo não fores conosco, não nos faças subir daqui. Como saber que achei favor aos teus olhos, eu e o teu povo? Por acaso não é por andares conosco, para que sejamos separados, eu e o teu povo, de todos os povos da face da terra?" (Ex 33.15-16). E em vista da mediação de Moisés para que toda a comunidade fosse reconciliada com Deus que o Senhor finalmente concede o verdadeiro pedido do versículo 17. Ele promete acompanhar o seu povo. E importante lembrar que, durante toda essa sequência, Moisés não está superando a relutância de Deus, mas está em busca da suprema boa vontade de Deus. Ele não está buscando fazer Deus mudar de ideia, mas sim buscando conhecer a mente de Deus. Com esse intuito, Moisés ainda se depara com uma questão que não quer calar. Conhecendo Deus e conhecendo seu povo, como pode a ira de Deus não se inflamar de novo e destruir esse povo, justamente como Deus havia predito (Ex 33.3)? Apesar de tudo que Moisés aprendera sobre Deus, ele precisava conhecê-lo melhor. E por essa razão, à luz da disposição agora expressa pelo Senhor de acompanhar Israel, que Moisés é levado a pedir: "Rogo-te que me mostres tua glória" (Êx 33.18). O pedido de Moisés resulta de sua necessidade de saber que tipo de Deus é o Senhor que promete acompanhar um povo como Israel — um povo tão obstinado. Não podemos perder de vista aqui um tema recorrente na narrativa dessa história. O Senhor descreve por três vezes Israel como sendo um povo obstinado (veja Êx 32.9, 33.3, 5). Esse termo não é uma descrição de um pecado individual, mas sim do caráter do povo, da disposição de seu coração. Fica implícito que Israel pode atrair somente a justa resposta de Deus ao pecado: sua santa ira. Então, Moisés está efetivamente perguntando: "Podes caminhar com esse povo, Senhor? Podes habitar no meio desse povo obstinado sem que tua ira venha a destruí-los? Que garantia podes nos dar, ó Senhor, de que tu habitarás no meio desse povo e até mesmo o abençoará com a tua graça, em vez de consumi-lo com a tua ira?" Moisés está preocupado em saber que tipo de Deus é o Senhor. Ele busca conhecer melhor o caráter de Deus para estar seguro de que a escolha de Deus de acompanhar Israel não está condicionada ao caráter do povo. Se estiver, a

A GLÓRIA DE DEUS NO CONFUTO

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nação logo será desfeita, consumida pelo fogo da ira divina. O Senhor percebe a preocupação de Moisés (e o ama por isso), e então responde: Farei passar toda a minha bondade diante de ti e te proclamarei o meu nome, o SENHOR; e terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia, e me compadecerei de quem eu quiser me compadecer [...] Quando a minha glória passar, eu te colocarei numa fenda da rocha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu tenha passado (Êx 33.19,22).

Deus declara o tipo de Deus que ele é. O Senhor retrata seu próprio caráter descrevendo a sua glória. Ao pedido de Moisés para ver sua glória (Ex 33.18), Deus promete que diante de Moisés ele passará sua bondade e proclamará seu nome (v. 19). A glória de Deus é sua bondade, seu nome, ele mesmo. Se a glória de Deus é sinônima de seu nome, qual é o seu nome? Isto é dito em Êxodo 34. O SENHOR desceu numa nuvem e, pondo-se junto a ele, proclamou o nome do

SENHOR. Tendo o SENHOR passado diante de Moisés, proclamou: SENHOR, SENHOR, Deus misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e cheio de bondade e de fidelidade; que usa de bondade com milhares; que perdoa a maldade, a transgressão e o pecado; que de maneira alguma considera inocente quem é culpado; que castiga o pecado dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até a terceira e quarta geração (Ex 34.5-7).

A glória de Deus, sua bondade e seu nome consistem principalmente na demonstração de sua misericórdia e justiça. No entanto, nós vemos no texto que misericórdia e justiça não são coisas simétricas em relação à glória de Deus. Deus define primeiramente e principalmente sua abundante misericórdia para com os pecadores. Sua graça precede seu julgamento. Além disso, Deus dá à sua misericórdia uma visibilidade que está ausente na descrição que ele faz de sua ira. Quando descreve sua misericórdia, ele lista virtude sobre virtude (sete, para ser preciso) para retratar em muitas cores seu amor abundante. Ele se descreve como compassivo, gracioso, tardio em irar-se, abundante em amor e fidelidade, que usa de bondade com milhares e perdoa a maldade, a transgressão e o pecado. Em contraste, Deus descreve sua ira apenas citando duas vezes que punirá os culpados.n Assim, em resposta à súplica de Moisés para saber que tipo de Deus é o Senhor, Deus responde que ele é primeiramente e principalmente um Deus de misericórdia, graça e compaixão. Mas ele também diz com clareza que é um Deus

"Citando uma vez de forma negativa ("de maneira alguma considera inocente quem é culpado") e uma vez de forma positiva ("que castiga").

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O PASTOR PACIFICADOR

de ira. Portanto, nenhum homem deve presumir que Deus será misericordioso ou tomar sua misericórdia como algo certo. No entanto, deixe que todos os homens saibam que a inclinação de Deus, sua preferência, sua tendência é derramar sua misericórdia sobre os pecadores» Mas será que Moisés entende a resposta de Deus? Algumas versões bíblicas nos fariam pensar que não. A oração anterior de Moisés, no versículo 9, parece dar a impressão de que seu pedido ao Senhor para que perdoasse Israel é uma súplica feita a despeito do caráter de Deus: "Senhor, se agora achei favor aos teus olhos", diz ele, "vá o Senhor no meio de nós, porque este é um povo muito obstinado. Perdoa a nossa maldade e o nosso pecado e toma-nos como tua propriedade" (Ex 34.9). A interpretação desse versículo depende se devemos ler a conjunção ki como concessão ("embora") ou como causa ("porque").13 Deveríamos entendê-la como causa, pois toda a trajetória da revelação do caráter de Deus, à luz do grande pecado de Israel, não leva Moisés a orar com cautela perante um Deus relutante ("embora este povo seja obstinado, por favor, perdoa-lhes"). Ao contrário, isto leva Moisés a ver que a própria revelação de Deus, como alguém soberano e sobretudo misericordioso, é a base da realidade que pode encorajá-lo a orar: este é um povo muito obstinado, perdoa a sua maldade e o seu pecado!" A oração de Moisés na verdade é esta: "SENHOR, SENHOR, Deus misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e cheio de bondade e de fidelidade; que usa de bondade com milhares; que perdoa a maldade, a transgressão e o pecado; que de maneira alguma considera inocente quem é culpado; que castiga o pecado dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até a terceira e quarta geração. Perdoa este povo obstinado. Assim como declaraste tua glória rica em misericórdia, mostra misericórdia." Moisés não está orando para superar a relutância de Deus, mas para compreender o que ele havia finalmente descoberto na própria revelação de Deus: a grande vontade de Deus em ser misericordioso para com seus inimigos, para com pessoas obstinadas como nós! Antes de vermos como este tema repercute e se desenvolve pelo restante das Escrituras, é inteiramente crucial para nossa compreensão de Deus que não "porque

"Veja Thomas Manton, que diz: "mas o aspecto principal de seu nome é 'misericordioso e compassivo"'. Extraído de Thomas MANTON, The Complete Works of Thomas Manton, vol. 9. Londres: James Nisbet and Co., 1872, p. 465. Veja também Romanos 9.18-24 para mais provas de que a justiça e a ira de Deus servem como uma demonstração maior de sua misericórdia. John PIPER, The Justification of God: An Exegetical and Theological Study of Romans 9:1-23, 2a. ed. Grand Rapids: Baker, 1993. 13De acordo com S. R. Driver, "O caráter do povo de Israel torna-se aqui o motivo de serem tratados com favor e perdão". S. R. DRIVER, The Book of Exodus: In the Revised Version with Introduction and Notes. New York: Cambridge University Press, 1953, p. 367. Veja também a discussão de John Piper em PiPER,Justification of God, 81 e n. 8.

A GLÓRIA DE Dl: NO CONII,LITO

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ignoremos o significado dessa passagem. Até este ponto nas Escrituras, Deus se fez conhecer somente por suas obras, como alguém compassivo, gracioso, perdoador e reconciliador. No entanto, em Êxodo 34.5-7 pela primeira vez ele se revela por meio de palavras. Ele declara quem é, definindo-se e proclamando seu caráter. Antes desse ponto, Deus nos dá apenas curtos relatos — geralmente apenas uma palavra ou uma frase breve — sobre o tipo de Deus que ele é. Ele é o escudo de Abrão (Gn 15.1), o SENHOR (Gn 15.7), o Deus Todo-poderoso (Gn 17.1), o Deus de Abraão (Gn 26.24), e o Deus de Abraão, Isaque e Jacó (Êx 3.6). Ele também declara, "EU SOU O QUE SOU" (Ex 3.14), e se descreve como um Deus gracioso (Ex 22.27). No entanto, em Êxodo 33.19-34.7, o Senhor declara a totalidade de seu nome, dando-nos uma teologia abreviada sobre si mesmo. Não existe nenhuma outra passagem em todo texto do Antigo Testamento com uma declaração como essa que Deus faz de si mesmo; ela é repleta de sinônimos que expressam a bondade e a misericórdia do Senhor. O mais notável não é apenas como o Senhor se descreve, mas o que ele omite. Todos sabemos que o Senhor é onipotente, onisciente, imutável, imenso etc. No entanto, quando ele se define, ele tem prazer em se definir não por meio desses atributos, mas exaltando sua misericórdia mesmo quando nos lembra de sua justiça. E neste contexto que podemos começar a entender que Deus ordena o conflito e almeja a paz porque quer nos mostrar a gloriosa tapeçaria de sua misericórdia e justiça.

A glória de Deus se fez carne Essa maravilhosa declaração da glória de Deus, particularmente no que diz respeito à revelação de sua misericórdia e justiça, ecoa durante os séculos. A descrição que Deus faz de si mesmo, como alguém rico e abundante em misericórdia na sua reconciliação com um povo obstinado e rebelde a ele mesmo, torna-se a base da esperança para todos os santos do Antigo Testamento. Homens e mulheres de Deus oram a respeito dessa misericórdia, os salmistas cantam-na em versos e os profetas pregam-na.14 E nos dias mais sombrios da história de Israel, o Senhor promete uma nova aliança, uma manifestação da misericórdia e do perdão de Deus maior do que aquela dada pela antiga aliança: "Porei a minha lei na sua mente e a escreverei no seu coração. Eu serei o seu Deus, e eles serão

'Conforme argumentamos acima, Êxodo 33.18-34.7 é uma das mais significativas passagens teológicas do Antigo Testamento, por ser a primeira descrição mais extensa que Deus faz de si mesmo. Sua importância fica em parte comprovada pela forma como ela tão frequentemente se repete ao longo do restante das Escrituras (veja Nm 14.18; 2Cr 30.9; Ne 9.17; S186.5,15; 103.8; 111.4; 116.5; 145.8; Jr 9.23-24; J12.13; Jn 4.2; Mq 6.8; 7.18-19; Na 1.3).

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o meu povo" ( Jr 31.33). Essa promessa é fundada no grande dia do perdão,15 quando seria feita a redenção que fala mais alto do que o sangue de qualquer animal: o sacrifício expiatório de Cristo. Com base nisso, o Senhor declara: "Porque perdoarei a sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados." ( Jr 31.34, itálico acrescentado para enfatizar que a palavra porque indica as bases para a promessa). O que os profetas antecipam em sombras, os apóstolos do Novo Testamento veem acontecer na realidade. O apóstolo João abre seu evangelho anunciando que a glória que Moisés buscava ver, e pela qual os santos do Antigo Testamento esperavam, agora vem a nós em carne, na revelação do Filho de Deus, Jesus Cristo: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, pleno de graça e de verdade" ( Jo 1.14). Os temas que encontramos no contexto dessa proclamação ( Jo 1.14-18) ecoam fortemente os temas de Êxodo 32-34: a busca de ver a Deus (Êx 33.18 com Jo 1.18); Deus vivendo no meio de seu povo (Êx 33.14 com Jo 1.14); a revelação de sua glória (Êx 33.18; 34.5 com Jo 1.14) e a essência dessa glória como sendo graça e verdade (Êx 34.5-6 com Jo 1.16-17). Por intencionalmente fazer essa correlação com Exodo 33.18-34.7, João nos mostra que o pedido de Moisés para ver a glória de Deus é finalmente e plenamente respondido na encarnação do único filho de Deus.16 O apóstolo Paulo entende que a glória de Deus é manifestada de forma suprema na obra de reconciliação do Filho de Deus. E dessa forma que ele entende seu próprio ministério e, por extensão, o ministério de todos os pastores, como sendo um ministério de reconciliação. Paulo observa: Mas todas essas coisas procedem de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação. Pois Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões dos homens; e nos encarregou da mensagem da reconciliação (2Co 5.18-19).

"Esse é um novo dia porque é o dia escatológico do Senhor. Jeremias 31.31 abre com o anúncio do que Deus fará nos "dias [que] virão". Embora as promessas de Deus, de que os perdoaria e seria o Deus de Israel, sejam promessas antigas, a novidade das novas promessas será sua eficácia — uma eficácia que é resultado direto do evento escatológico, do Cristo que se fez carne. "Assim afirmam Carson, Kõstenberger e Ridderbos em seus comentários. No entanto, como observa Ridderbos: "Embora a maioria dos intérpretes reconheça a correlação com Exodo 33 e 34, pelo menos no que diz respeito à expressão 'graça e verdade', apenas alguns exploram essa ligação mais a fundo". Herman RIDDERBOS, The Gospel of John: A Theological Commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 1997, p. 57. Ver D. A. CARSON, The Gospel according to John. Grand Rapids: Eerdmans, 1991, p. 129 e Andreas J. KÕSTENBERGER, John. Grand Rapids: Baker, 2004, p. 45.

GI...(15REA 1)E DEI NO CONFUTO

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O ministério de reconciliação não é um apêndice do ministério real. A pacificação não é um dom em meio a muitos outros, que os pastores guardam em sua caixa de ferramentas. A pacificação é a materialização do ministério pastoral assim como Cristo é a personificação (encarnação) do Deus da paz. Por palavras e ações, cada momento da vida de um pastor é um momento em que ele chama outros a se reconciliarem com Deus. E toda palavra que pregamos ou aconselhamos deve ser a Palavra ( Jo 1.1), que é repleta de graça e verdade — a Palavra de paz. CONCLUSÃO Como vimos, o conflito vem como um vento impetuoso, derrubando tudo que não tenha suas raízes plantadas em Deus. Por esse motivo, uma teologia do Deus da paz é absolutamente necessária se pretendemos e devemos plantar nossos pés com firmeza sobre a base do caráter de Deus como um Deus Pacificador. Só assim seremos capazes de buscar a verdadeira paz e reconciliação. Além disso, uma teologia do Deus da paz é eminentementeprdtica. Embora neste capítulo tenhamos nos concentrado bastante em ricas verdades teológicas, não devemos nos esquecer da natureza prática desses princípios. O conflito separa. O conflito isola. Mesmo como pacificadores bem-intencionados, nossos esforços de pacificação podem nos fazer sentir muito solitários. No entanto, ao aprofundar nossa compreensão bíblica de Deus e do conflito, podemos ver que o chamado para a pacificação é o chamado de Deus para caminharmos lado a lado com ele em seu ministério de paz. Deus é o chefe e o principal pacificador, nós somos seus servos, seus embaixadores de reconciliação. Não trabalhamos sozinhos em nossos esforços para chamar os homens a se reconciliarem com Deus e uns com os outros. Deus está conosco — o Deus da Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A aptidão de Deus na pacificação e sua presença poderosa em meio a ela deveriam fortalecer nossa determinação em perseverar como ministros da reconciliação. A pacificação é um trabalho árduo. E um "trabalho de conflito". Cristo é o exemplo supremo das dificuldades, do sofrimento e da falta de compreensão que aguardam os verdadeiros pacificadores. A tentação de desistir em face da oposição ou de sucumbir ao cinismo em face do pecado perpétuo está sempre presente. Mas o cinismo é apenas sinônimo de uma teologia incorreta: a teologia da descrença. A verdadeira fé, aquela que persevera na pacificação, é a fé cujos olhos estão voltados e fixados em Deus. Essa é a fé que sustentou Moisés diante de um povo rebelde, conflituoso e obstinado. E é essa mesma fé que deve nos sustentar se quisermos viver e ministrar como filhos de Deus. Como Moisés, devemos constantemente renovar nossa visão de Deus, para que possamos ver ainda com mais clareza a glória de Deus.

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O PASTOR PACI ri CA DOR

O SENHOR desceu numa nuvem e, pondo-se junto a ele, proclamou o nome do

SENHOR. Tendo o SENHOR passado diante de Moisés, proclamou: SENHOR, SENHOR, Deus misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e cheio de bondade e de fidelidade; que usa de bondade com milhares; que perdoa a maldade, a transgressão e o pecado; que de maneira alguma considera inocente quem é culpado; que castiga o pecado dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até a terceira e quarta geração (Ex 34.5-7).

5 A PACIFICAÇÃO NA FAMÍLIA DE DEUS

o último capítulo vimos que a glória de Deus, como um Deus reconciliador e pacificador, é revelada de modo mais pleno na glória do Unigênito — do Jesus que se fez carne. A luz dessa realidade, não é surpresa o fato de que Jesus, o Filho de Deus, seja Pacificador à semelhança de seu Pai. Portanto, aqueles que se tornam filhos de Deus, por meio da pacificação de Jesus Cristo, são também chamados a se revestirem da compaixão reconciliadora, misericórdia e verdade de seu Santo Pai e do irmão mais velho, como veremos nas páginas a seguir. A pacificação floresce e gera frutos no fértil solo teológico da filiação.' Não precisamos ir além de Mateus 5.9 para encontrar a escatológica visão da glória que Jesus revela a seus discípulos numa linguagem de filiação, e para ver a filiação em si intimamente ligada à prática da pacificação: "Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus." Neste capítulo veremos que a pacificação bíblica deve servir-se das riquezas da teologia bíblica da redenção, se pretendemos ser pacificadores eficazes e incentivadores da paz. E uma teologia bíblica da redenção encontra em seu ponto máximo as bênçãos e privilégios da filiação, incluindo o amor, a intimidade, a posição e a responsabilidade que devem acompanhar aqueles que pertencem à família de Deus. O QUE OS INCRÉDULOS ESTÃO DIZENDO

Infelizmente, quando o mundo volta seus olhos para a igreja, encontra pouca evidência de que somos filhos de Deus, pois encontra pouca evidência de que somos

'Eu gostaria de agradecer ao professor Allen Mawhinney por sugerir essa imagem. A filiação é a doutrina bíblica do relacionamento de Deus com o povo da aliança, ele como Pai e nós como seus filhos adotivos. Dr. Mawhinney é um dos poucos teólogos contemporâneos que procurou preencher a lacuna que se nota nos estudos teológicos sobre o tema da filiação bíblica. Veja, por exemplo, "Baptism, Servanthood, and Sonship," Westminster Theological Journal 49, no. 1 (primavera de 1987): p. 35-64. Veja também Sinclair FERGUSON, Children of the Living God. Colorado Springs: NavPress, 1987.

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O p./A STOR PACI F ICADOR

pacificadores. A igreja parece mais um grupo de órfãos brigando entre si do que um grupo de filhos e filhas que se assentam pacificamente à mesma mesa, a mesa da família de Deus. Não causa espanto o fato de que o mundo pouco se convença com as nossas "boas-novas". Tampouco nos surpreende quando o mundo aponta para nós e diz: "O problema de Jesus é que ele teve discípulos" (Bertrand Russel). Ou: "Se Cristo estivesse aqui agora, há uma coisa que ele jamais seria: cristão" (Mark Twain). Tais comentários mordazes não se limitam a ateístas velhos e ranzinzas. O testemunho da igreja frente aos olhos do mundo, que a observa, transformou tais sentimentos individuais em provérbios nacionais. Por exemplo, existe um provérbio francês que diz: "Quem está próximo da igreja geralmente está longe de Deus". E um provérbio alemão que afirma: "Na igreja visível os cristãos verdadeiros são invisíveis".2 Se o mundo está pouco convencido de que Jesus é o Filho de Deus e de que nós somos filhos de Deus, isto pouco se deve a qualquer deficiência na apologética e muito mais à desunião e ao mau exemplo da nossa vida em conjunto, como família de Deus. O fracasso da igreja na pacificação se deve amplamente ao nosso fracasso, como membros, em acreditar e nos apropriar da verdade bíblica de que a igreja é a família de Deus. A pacificação bíblica só estará firmemente arraigada na igreja quando recuperarmos o significado e a prática de ver a igreja como a família de Deus. Para explorar um pouco mais esses ideais, iniciaremos considerando a importância da filiação como grande categoria teológica. Também analisaremos diversas passagens do Antigo e do Novo Testamentos que destacam a natureza de Deus como nosso Pai e da nossa como seus filhos, convidando-nos a imitá-lo. Então, examinaremos diversos textos do Novo Testamento que enfatizam a natureza familiar dos relacionamentos dentro da igreja, especialmente em meio ao conflito. Finalmente, concluiremos com uma reflexão sobre a importância prática da filiação para a pacificação.

TEOLOGIA DA FILIAÇÃO A correlação que Jesus faz entre "pacificadores" e aqueles que serão chamados "filhos de Deus" não é arbitrária. A pacificação é a característica que define a filiação. De todas as virtudes e ações cristãs, a pacificação é a que mais reflete o que significa ser um filho ou uma filha de Deus. Para entender melhor essa ideia, seria bom ter uma noção geral do alcance e da profundidade da doutrina bíblica da filiação.

2 Não posso traçar com precisão a fonte dessas citações atribuídas a Russell e Twain. O provérbio francês e o alemão foram extraídos do The International Thesaurus of Quotations, comp. Rhoda Thomas Tripp. New York: Thomas Y. Crowell, 1970, p. 82.

wÃo NA. RN

irAcfra.-.:./

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Embora a Escritura utilize muitas metáforas e imagens para descrever nossa redenção, nem todas elas têm o mesmo peso. Algumas têm um significado maior e são mais importantes que outras. A filiação é uma delas. Embora tipicamente os teólogos sistemáticos classifiquem a doutrina da adoção abaixo da doutrina de justificação ou a coloquem entre a justificação e santificação, ela é mais do que uma pérola de redenção em meio a muitas outras. Recentes estudos têm levado adiante a alegação de que a filiação está mais para ser vista como o ápice da santificação, a meta para a qual Deus nos fez.' Se essa afirmação for verdadeira, não devemos rebaixar nossa identidade individual, como filhos e filhas de Deus, e nossa identidade comunitária, como família de Deus, a uma posição de menor importância teológica, como se nossa filiação fosse apenas mais uma imagem em meio a tantas que as Escrituras usam para descrever o relacionamento de Deus com a igreja. Ao contrário, devemos reconhecer o caráter fundamental da filiação, reconhecendo o seu significado não apenas para nossa teologia, mas também para nossa caminhada cristã. A fim de que possamos apreciá-la de maneira mais plena, vamos considerar as evidências gerais que colocam a filiação em meio aos temas mais importantes das Escrituras. Primeiramente, o significado da filiação é comprovado por sua presença predominante em várias passagens programáticas centrais das Escrituras (Rm 8.15-32; Gl 3.15-4.7; Ef 1.3-6; Hb 2.1-18; 12.1-14; 1Jo 3.1-3). Por programáticas eu quero dizer aqueles textos que dão a extensão e a ordem dos propósitos redentores de Deus. Quando as Escrituras discutem a predestinação, a glória, a redenção, a obra do Espírito, a nova aliança e nossa santificação, a filiação está em vista. Por exemplo, predestinação e filiação caminham juntas. Esse relacionamento pode chocar muitos de nós, pois a própria palavra predestinação parece denotar imagens de um frio e duro mecanismo. Mas tais conotações não aparecem nas Escrituras e nem jamais parecem estar na mente de Paulo. Ao contrário, para Paulo, os objetivos de predestinação divina estão carregados de imagens ligadas à família. Assim, o apóstolo nos diz que Deus nos predestinou a sermos adotados como seus filhos por meio de Jesus Cristo (Ef 1.5-6). Em uma linguagem similar, Paulo diz que aqueles que Deus antes conheceu, ele predestinou para serem conformados à semelhança de seu Filho, para que o Filho possa ser o primogênito em meio a muitos irmãos (Rm 8.29). Essas duas passagens são passagens programáticas de importância central. Ambas falam do grande plano de Deus, e ambas o fazem nos termos da filiação (a filiação de Cristo e a nossa). Os objetivos da predestinação divina estão centrados

'John Murray, professor de teologia sistemática do Seminário Teológico de Westminster, já falecido, chama a adoção de "o ápice da graça e do privilégio". Veja John MURRAY, Redemption Accomplished and Applied. Grand Rapids: Eerdmans, 1955, p. 134.

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O PASTOR PACIFICADOR

em seu filho, Jesus Cristo. Sendo assim, nós que estamos "em Cristo" pela fé somos mais do que membros — somos filhos adotados. Predestinação, então, não é apenas uma doutrina fria e morta, mas o propósito glorioso de Deus não apenas de perdoar pecadores, mas também de criar filhos — pessoas que desejam, pensam e agem como seu divino Pai. Em segundo lugar, a filiação é a marca distintiva da nova aliança. Em Gálatas 3.26-4.7 Paulo compara a mudança radical de status do povo de Deus na história da redenção, com a transição de escravos para filhos. Não estamos mais no estado próximo da escravidão, de filhos menores que vivem debaixo dos olhos observadores de um tutor. Agora que Cristo veio, nós recebemos os direitos plenos de filhos. J.I. Packer veementemente nos relembra da distinção entre a velha e a nova aliança, quando diz: "Tudo que Cristo ensinou, tudo que faz o Novo Testamento novo e melhor do que o Antigo, tudo que é distintamente cristão em oposição ao que é apenas judeu, é sintetizado no conhecimento da paternidade de Deus. Pai é o nome cristão para Deus".4 Embora Deus seja mencionado como Pai no Antigo Testamento, a paternidade de Deus adquire grande significado à luz da revelação de seu Filho. E com a vinda de Cristo que o Senhor traz "muitos filhos à glória" (Hb 2.10). E com a vinda de Cristo que o auge do plano de redenção de Deus vem à luz — com toda a "criação aguarda[ndo] ansiosamente a revelação dos filhos de Deus" (Rm 8.19). Uma terceira linha de evidência que mostra a importância da filiação nos propósitos redentores de Deus é que a filiação é uma característica-chave da nossa santificação. Vemos isso com maior destaque em Hebreus 12, onde somos chamados a perseverar em meio às provações e tentações da vida, persistindo na dificuldade e disciplina como filhos de Deus: No combate contra o pecado, ainda não haveis resistido a ponto de derramar sangue. Já vos esquecestes do ânimo de que ele vos fala como a filhos: Filho meu, não desprezes a disciplina do Senhor, nem fiques desanimado quando por ele és repreendido. Pois o Senhor disciplina a quem ama e pune a todo que recebe como filho. E visando à disciplina que perseverais. Deus vos trata como filhos (Hb 12.4-7)

As disciplinas da vida cristã são as disciplinas dos filhos de Deus. O que acontece em nossa vida não é apenas evidência da obra de Deus, mas também da mão do nosso Pai divino.Todas essas razões nos convidam a ver que a filiação tem uma importância imensa na compreensão da vida cristã. Nunca esquecerei um

4J. 1. PACKER, Knowing God. Downers Grove: InterVarsity, 1973, p. 182 [Também publicado no Brasil pela Editora Mundo Cristão sob o título O conhecimento de Deus].

A PA(11,1CAL-;,\C NA. FAMÍLIA DE DEUS

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caso de conflito que houve na minha igreja, no qual o ensinamento bíblico sobre a filiação levou radicalmente à reconciliação. Duas famílias estavam em conflito e vieram a mim para uma mediação. Durante o período de um ano e meio, após três mediações em separado, eu parecia estar fazendo um pequeno progresso com um dos pais de uma das famílias. Finalmente, decidi gastar algum tempo ensinando-o sobre a filiação e ajudando-o a aplicá-la à sua vida cristã. Após um período de cerca de quatro meses, ele me ligou um dia para confessar sua teimosia durante o ano anterior. "Pastor", ele disse, "acabei de perceber como sou teimoso". Eu ri sozinho, pois essa crítica era a mesma a qual ele mais resistia. Ele continuou: "Agora vejo que sou um filho de Deus. Sou parte de uma nova família. Não tenho que ser como meu pai ou meu irmão". Durante nossas conversas, ele geralmente falava da dinâmica de relacionamentos de sua própria família, onde as pessoas guardavam rancores e eram críticas, manipuladoras e teimosas. Ele continuou compartilhando comigo seu novo entendimento da verdade de que ele era agora filho de Deus, e traçou a primeira e mais importante implicação: "Como sou filho de Deus, quero ser um pacificador como seu Filho". Com essa verdade em seu coração, ele começou a dar passos concretos para se reconciliar com a outra família da igreja. A filiação levou à reconstrução não apenas de sua família, mas também da família de Deus. Como esse homem reconheceu, nosso status de filhos e filhas de Deus deveria moldar radicalmente o modo como respondemos ao conflito: devemos responder ao conflito à semelhança de nosso Pai, o Pacificador. A luz desse princípio, vamos considerar mais a fundo o que as Escrituras ensinam sobre Deus, nosso Pai celestial e sobre a forma como nós, seus filhos, somos chamados a imitá-lo. TAL PAI, TAL FILHO "Tal pai, tal filho" não é apenas um provérbio comum, é uma verdade bíblica. Nas Escrituras, a filiação trata da semelhança. Vemos isso no próprio início da história bíblica. As expressões paralelas de Deus criando o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1.26-27) e de Adão tendo um filho à sua própria imagem e semelhança (Gn 5.3), argumentam em favor de uma visão da filiação e da semelhança como sendo mutuamente explicativas. Isto é, ser "como" Deus é ser um "filho de Deus". Ser feito à imagem e semelhança de alguém é se tornar filho. Ser filho é ser feito à imagem e semelhança do pai. Ao colocar a criação de Adão por Deus em paralelo com a situação de Adão tendo um filho, o autor de Gênesis descreve Deus como um pai que constitui sua família. Assim, se quiser saber o que significa para Deus a criação do homem, você deve perguntar: O que significa para o homem ser filho de Deus? O que significa ter Deus como pai de alguém e conhecer alguém como filho de Deus?

O pASTO R pACIN CIDOR

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Nosso Rei e Pai, o Pacificador Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento apresentam duas imagens que se entrelaçam de Deus como Rei e corno Pai. Deus é Rei sobre todas as nações e especialmente sobre seu povo, Israel (Êx 15.18; 1Cr 16.31; 2Cr 20.6; Si 22.28; 47.2,7-8; 93.1; 96.10; 97.1; 99.1; 146.10; jr 10.7,10; 46.18; 48.15; 51.57; Mq 4.7; Zc 14.1617; Ml 1.14). Deus é também Pai de Israel e eles são seus filhos e filhas (Ex 4.22; Dt 8.5; 14.1; Jr 3.19; 31.9; Os 11.1). Ele não é um pai qualquer, mas é Deus, o Rei que é como um Pai. E Deus não é um rei qualquer, mas sim o Rei que é Pai para Israel. A imagem da relação Rei-súdito exprime uma proteção e governo poderosos junto com uma obediente submissão. A imagem da relação Pai-filho é aquela de Gerador e gerado — indica a semelhança. Israel deve ser como Deus, seu Rei e Pai. A imagem de Deus como Pai verdadeiro tem muito a nos ensinar em termos de pacificação. No Antigo Testamento a obra reconciliadora de Deus geralmente é expressa em termos familiares que falam de como um pai trata seus filhos. Por exemplo, no Salmo 103 o salmista cita Êxodo 34.6-7, passagem em que Deus é descrito como alguém misericordioso e compassivo. O salmista declara: "O SENHOR é compassivo e misericordioso; demora para irar-se e é grande em amor" (Si 103.8). Ele continua seu elogio chamando a atenção para a manifestação específica da compaixão e do abundante amor de Deus — seu perdão: Não acusará perpetuamente, nem conservará sua ira para sempre. Não nos trata de acordo com nossos pecados, nem nos retribui segundo nossas transgressões. Pois seu amor para com os que o temem é grande, tanto quanto o céu se eleva acima da terra. Como o Oriente se distancia do Ocidente, assim ele afasta de nós nossas transgressões (Si 103.9-12).

No entanto o salmista não para por aqui. Ele acrescenta um importante qualificador na descrição do perdão de Deus. Ele define o perdão de Deus como um perdão paternal: "Como um pai se compadece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem" (Si 103.13). A misericórdia e o perdão de Deus são a misericórdia e o perdão de um pai. A glória de Deus como pai é ser compassivo e misericordioso, tardio em irar-se e abundante em amor — não nos tratando como nossos pecados merecem. Entrelaçada a este tema do cuidado paternal de Deus para com Israel está a imagem de seu reinado. No versículo 19 o salmo chega ao seu clímax, declarando: "O SENHOR estabeleceu seu trono nos céus, e seu reino domina sobre tudo." As implicações para nós, como filhos adotivos de Deus, não são difíceis de ver. Como filhos de nosso Pai, nossas vidas, ministérios e igrejas devem dar evidências do mesmo tipo de compaixão e graça. E como servos leais, sabemos que tal vida repleta de graça é possível porque temos grande confiança em nosso Rei, que comanda e reina o coração do homem. Além do mais, como filhos de Deus,

A pAc i nc, L:Ão NA

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nossa própria resposta à ofensa deve ser como a de nosso Pai celestial — devermos ser tardios em nos irar e abundantes em amor. Como nosso Pai, não devemos tratar os outros como seus pecados merecem. Outro texto que merece nossa atenção é Jeremias 31, onde encontramos a promessa da nova aliança (v. 31-34). Nesse capítulo, Deus declara seu poder como Rei de convocar as nações para ouvir seus planos para trazer Israel do exílio (v. 1014). E seus planos irão prevalecer, pois ele é o Rei dos reis. Ele governa sobre tudo. E fácil deixar passar, no entanto, o fato de que Jeremias coloca essa declaração real em termos da paternidade de Deus. No início da profecia ouvimos o Senhor prometendo redimir Israel e ancorar sua promessa em seu status único de Pai de Israel: "Virão com choro, mas eu os guiarei com consolações. Eu os guiarei aos ribeiros de águas, por um caminho reto em que não tropeçarão; porque sou pai para Israel, e Efraim é o meu primogênito" ( Jr 31.9). Este tema resgata Êxodo 4.22, no qual Deus fala a Moisés para dizer ao Faraó que liberte seu "filho". Agora novamente o Senhor declara suas intenções para seu povo — seu filho primogênito. Ele irá redimi-lo do exílio e trazê-lo de volta para si, pois ele é Pai para Israel. Mais adiante, em Jeremias 31.20, o mesmo chamado paternal é ouvido: "'Não é Efraim meu filho querido, o filho em quem me alegro? Pois cada vez que falo dele, lembro-me dele com apreço. Por isso, o meu coração se comove por ele, e lhe mostrarei a minha grande compaixão, diz o SENHOR." A luz dos versículos anteriores que fornecem o contexto para a declaração da nova aliança (Jr 31.31-34), é evidente que a nova aliança será a aliança que o Pai fará. Além disso, a promessa da nova aliança aponta para uma revelação mais profunda de Deus como Pai, a ser conhecida somente na revelação final e completa da redenção divina por meio de seu filho, Jesus Cristo — que é precisamente o que o Novo Testamento anuncia. Jesus não apenas se revela como Filho obediente de Deus, mas também chama seus discípulos para uma relação distinta que tem Deus como Pai. A medida que imita seu Pai ao amar seus inimigos, ele também nos convida a imitar nosso Pai sendo clementes e misericordiosos com nossos inimigos. Por exemplo, nos Sermões do Monte e da Planície, Jesus define o caráter único do governo real de Deus sobre os servos de seu reino em termos de pacificação paternal. Note como Jesus nos apresenta Deus como nosso Pai misericordioso, um Pai que ama seus inimigos: "Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está no céu; [...] Sede, pois, perfeitos, assim como perfeito é o vosso Pai celestial" (Mt 5.44-45,48). Lucas fornece um relato paralelo: "Pelo contrário, amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar nada em troca; e a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo; porque ele é bondoso até para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso"(Lc 6.35-36). Note que, em ambos os relatos, Jesus nos instrui

98 I

O PASTOR PAC[FICADOR

a amar nossos inimigos para que possamos manifestar aquelas características que mais nos definem como filhos e filhas de Deus, como filhos que agem como seu Pai. Além disso, Jesus demonstra que a glória característica de nosso Pai se encontra no fato de ele amar seus inimigos, pois quem dentre os deuses ama seus inimigos? Nenhum, exceto o nosso Pai Yahweh! E como seus filhos — como aqueles que amam nossos inimigos — essa glória característica de Deus também deve ser nossa. Afinal, como explica Jesus, até mesmo pagãos podem amar aqueles que os amam. Não consigo deixar de me aborrecer com o modo como muitas igrejas se gabam de ser uma igreja "amiga". Por mais que a amizade e um espírito de boasvindas sejam importantes para a igreja, eles não são seus objetivos, mas o patamar de nossa vida juntos. O que o mundo precisa ver em ação é o amor que temos pelos nossos inimigos, que os leva a dizer: "Como eles amam os seus inimigos! Como eles caminham nos passos de seu Pai celestial, o Rei!".

A filiação, a pacificação e o apóstolo Paulo As passagens que associam a filiação e a imagem de Deus como nosso Pai à pacificação não estão restritas aos ensinamentos de Jesus. Também as encontramos nas cartas de Paulo no Novo Testamento. O apóstolo faz muito essa associação em sua carta aos Efésios. Em Efésios 2.17-19 Paulo lida com o constante e histórico conflito entre judeus e gentios. Embora as diferenças entre religiões e etnias sejam as principais causas do conflito, Paulo anuncia em um tom de celebração que judeus e gentios, aqueles que antes eram hostis uns com os outros, agora haviam sido reunidos por meio de Jesus Cristo. Note como Paulo faz essa declaração de paz falando da família de Deus: "E vindo ele [Jesus], proclamou a paz para vós que estáveis longe e também para os que estavam perto; pois por meio dele ambos temos acesso ao Pai no mesmo Espírito. Assim, não sois mais estrangeiros, nem imigrantes; pelo contrário, sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus" (Ef 2.17-19). Não deixe de notar o modo como Paulo troca, ao longo do caminho, a metáfora sobre ser cidadãos pela metáfora sobre ser membros da família de Deus. E a paz que Cristo prega e assegura é uma paz que dá acesso não somente a Deus, mas a Deus como Pai. É por isso que Paulo pode dizer que nós somos a família de Deus — irmãos e irmãs uns dos outros. Outra seção de Efésios que associa a filiação à pacificação é Efésios 4.24-5.2.5 Paulo baseia nossa conduta ética frente aos outros na realidade de sermos filhos de Deus. Considerar a instrução de Paulo nessa passagem como um chamado à pacificação pode parecer para alguns como uma tomada de liberdade exegética

'Veja também Colossenses 3.1-17 onde Paulo une a pacificação à linguagem da "nova criação".

A :PACIFICA.(57.Ã.C) NA. FNMli.JA. DE :DEUS

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excessiva. Mas um olhar mais aproximado revela que, ao longo de sua carta, Paulo está nos preparando para entender essa dinâmica. Primeiramente, devemos notar que o tema da paz é muito importante na carta de Paulo à igreja. Ele começa e acaba sua carta com uma bênção de paz (Ef 1.2, 6.23). No capítulo 2 ele mostra como a "parede de separação" da hostilidade entre os judeus e gentios foi destruída por Cristo, pois ele "é a nossa paz" (Ef 2.14). Judeus e gentios se tornaram um em Cristo, que estava fazendo assim a paz (Ef 2.15). De fato, Paulo descreve o próprio ministério de Jesus como o ministério de quem proclamou a paz (Ef 2.17). Para Paulo, Jesus é Pacificador e Reconciliador. O que é verdade para Cristo, Filho de Deus, também deve ser verdade para seus filhos e filhas adotivos. Paulo deixa isso explícito quando volta sua atenção diretamente para o começo da igreja, no capítulo 4. Aqui Paulo nos convida a viver "procurando cuidadosamente manter a unidade do Espírito no vínculo da paz" (Ef 4.3). A possibilidade de "procurar cuidadosamente", ou seja, fazer todos os esforços para manter a unidade do Espírito, repousa sobre a realidade da singular unidade entre Deus e sua igreja. Como Paulo nos relembra: "Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança do vosso chamado; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por todos e está em todos" (Ef 4.4-6). O fato de ter um Pai assegura que nossa busca pela paz como filhos não será em vão. Mas Paulo ainda não acabou. Em Efésios 4.24-32 ele fala de formas mais específicas de "fazer todos os esforços para manter a unidade". Ele se concentra em nossas dinâmicas relacionais. Vamos analisar essa seção com cuidado. Nós tipicamente tendemos a nos concentrar nas séries de comportamentos e atitudes que Paulo ou condena ou recomenda nos versículos 25-32. O que geralmente esquecemos é que Paulo deliberadamente emoldurou seu chamado à pacificação em termos de filiação. Paulo começa dizendo para "vos revestir do novo homem, criado segundo Deus em verdadeira justiça e santidade" (Ef 4.24). Essa linguagem traz fortes alusões a Gênesis 1.27. Palavras e frases como "novo homem", "criado" e "segundo Deus" evocam os feitos e propósitos originais de Deus na criação, quando ele criou o ser humano à sua própria imagem e semelhança para ser seu filho.6 Fazendo alusão a essa criação, Paulo mostra que redenção é recriação. Deus nos recria à sua própria imagem, não à imagem de Adão, o primeiro homem, mas à imagem de Cristo, o segundo homem ou o último Adão.' O novo

'Embora a palavra filho não seja encontrada em Gênesis 1.27, vemos que ela está implícita nos conceitos de "semelhança" e "imagem". Gênesis 5.1-3 e Lucas 3.38 tornam essa dinâmica explícita. Adão é ofilho de Deus. 'Essa teologia do "novo homem" fundamenta a compreensão de Paulo sobre Deus (veja Rm 5.1219; 1Co 15.45-49; 2Co 4.1-16; 5.17; Cl 3.1-17).

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indivíduo (literalmente "homem") do qual Paulo fala aqui (Ef 4.24) não é outro senão Jesus Cristo.' Esse novo homem de que devemos nos revestir, diz Paulo, é "criado segundo Deus" (v. 24). Nos versículos subsequentes (Ef 4.25-5.2), ele define e desenvolve para nós o que significa ser criado "segundo Deus em verdadeira justiça e divindade" (v. 24). Especificamente, ele contrasta as atitudes e comportamentos do "velho homem" com as atitudes e comportamentos indicativos do "novo homem" em Cristo. Apesar de a princípio parecer nesses versículos (Ef 4.24-5.2) que essa nova ideia de homem se aplica a nós como indivíduos, Peter T. O'Brien nos relembra que ela "tem duas conotações: comunitária e individual".9 No início da carta de Paulo o novo homem descreve a nova família de Deus, formada de judeus e gentios unidos pela fé em Deus (Ef 2.15). Cristo é o líder da aliança dessa família, a família de Deus. Cristo é a principal pedra angular do novo templo de Deus (Ef 2.19-20). Ambas as conotações individual e comunitária são necessárias ao chamado de pacificação de Paulo, pois ele encoraja cada um de nós a não apenas nos revestir do novo homem (em outras palavras, de Cristo), mas também a nos conduzir como membros de um corpo (Ef 4.25), tratando uns aos outros com bondade, compaixão e perdão (v. 32). A partir dessa perspectiva comunitária do "novo homem", podemos ver melhor que a lista de Paulo de pecados e expressões de justiça (Ef 4.25-5.2) é relacional. Os comportamentos condenados são pecados relacionais — pecados que nos dividem e fazem nascer o conflito e a dissensão dentro da igreja. Paulo lista esses pecados como mentir uns para os outros (v. 25), sentir raiva uns dos outros (v. 26-27), roubar uns dos outros (v. 28) e dizer palavras que machuquem uns aos outros (v. 29). Por fim, no versículo 31, ele acrescenta uma rápida sequência: "Toda amargura, cólera, ira, gritaria e blasfêmia sejam eliminadas do meio de vós, bem como toda maldade." Da mesma maneira, os comportamentos que Paulo recomenda podem ser mais bem descritos como justiça relacional. Primeiramente, ele nos convida a "falar a verdade com seu próximo" (v. 25), e fixa as raízes dessa ordem em nosso relacionamento fundamental como membros do único corpo de Cristo. A seguir, ele nos convida a substituir o roubo por atitudes e ações que atendam as necessidades dos outros (v. 28). No versículo 29 ele diz que a palavra que sair de nossa boca deve ser "boa" e edificar aos outros. Finalmente, no versículo 32

'Paulo faz essa associação explícita em Romanos 13.14, quando nos diz: "revesti-vos do Senhor Jesus Cristo".

'Peter T. O'Brien, The Letter to the Ephesians. Grand Rapids: Eerdmans, 1999, p. 331.

pAc[nc,\ÇAC, NA rANfiLL\ DL DL!

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Paulo faz o seguinte convite à igreja:"sede bondosos e tende compaixão uns para com os outros, perdoando uns aos outros".1° Efésios 5.1-2 é um resumo e conclusão da passagem que estivemos estudando. Esses versículos conclusivos voltam ao tema da nossa nova criação, servindo como uma inclusão temática ao que ouvimos em Efésios 4.24. O sumário que o próprio Paulo faz de sua ladainha de comandos éticos, em 4.25-32, é um chamado a imitar Deus por causa de nossa semelhança com ele, porque somos filhos de Deus. Aqui o tema da filiação é explicitado: "Portanto, sede imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor como Cristo, que também nos amou e se entregou por nós a Deus como oferta e sacrifício com aroma suave" (Ef 5.1-2). Imitar a Deus é imitar a Cristo. E a própria possibilidade de poder imitar a Deus e a Cristo se dá porque, por meio de Cristo e em Cristo, nos tornamos filhos de Deus. O próprio Jesus Cristo une essas realidades — a semelhança a Deus, afiliação e o amor — ao incorporá-las. Jesus então se torna a base, o motivo e o modelo para nossas próprias atitudes e ações como filhos e filhas de Deus. O que então, de acordo com Paulo, significa agir como filhos de Deus? Significa agir como pacificadores. Para Paulo, ser um filho adotivo de Deus, ser como Deus, é ser uma pessoa que faz todos os esforços para buscar a paz na família de Deus. Podemos pensar em Efésios 4.24-5.2 como a própria exposição de Paulo das bem-aventuranças de Jesus em Mateus 5.9, onde Cristo diz: "Bemaventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus." Ser um filho ou uma filha de Deus é ser um pacificador. Quando nós, discípulos de Jesus, buscamos a pacificação, refletimos mais o que significa ser filho ou filha de Deus. Pois como nosso Pai celestial e seu glorioso Filho, nós nos gloriamos em ser compassivos, misericordiosos e em perdoar nossos inimigos. A FAMÍLIA DE DEUS COMO O CONTEXTO PARA A PACIFICAÇÃO O tema de Deus como Pai e de seu povo como seus filhos é obviamente desenvolvido de maneira mais extensa no Novo Testamento do que no Antigo Testamento." Mas não estamos falando da diferença entre Deus como um severo Senhor no

10Não devemos deixar de notar como este último versículo (Ef 4.32) espelha o caráter de Deus, encontrado em nosso estudo de Êxodo 34.6-7. Essa associação apenas fortalece nossa argumentação de que a glória de Deus é a revelação de sua misericórdia para com servos maus e pecadores. A glória de Deus é perdoar seus inimigos e se reconciliar com eles. "Deus como "Pai" é encontrado apenas cerca de 15 vezes no Antigo Testamento, mas 245 vezes no Novo Testamento (que é bem menor que o Antigo Testamento, em termos de tamanho).

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Antigo Testamento e um amável Pai no Novo. Existe apenas um Deus e Pai, que é o mesmo ontem, hoje e sempre. O contraste não diz respeito à teologia, mas sim à história da redenção. A diferença entre o Antigo e Novo Testamentos, como Packer descreve de forma tão eloquente, é que a revelação de Deus sobre si mesmo e a redenção alcançam seu momento decisivo no Novo Testamento, com a vinda do Filho de Deus, Jesus Cristo.2 Jesus Cristo é o único e singular Filho de Deus. Ele é o verdadeiro e obediente Filho de Deus. Ele nos serve de modelo de como um filho de Deus deve ser na vida: gentil, humilde, misericordioso e justo. E também promove em nós uma nova consciência de Deus como Pai, ensinando-nos a orar: "Pai nosso..." (Mt 6.9). Uma vez que a doutrina da filiação é tão importante para a teologia bíblica, não deveríamos nos surpreender com a descoberta de que ela está estampada em todos os lugares que tratam da eclesiologia bíblica. Se Deus é nosso Pai por meio de Jesus Cristo, seu Filho, então nossos relacionamentos de uns com os outros são mais do que relacionamentos de colegas discípulos. Somos mais do que meros colegas que fazem parte da mesma instituição. Nosso relacionamento, conforme os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, é um relacionamento de família. Nós tendemos a não notar essa imagem predominante da igreja nas Escrituras, no entanto, se limitarmos nosso campo de investigação apenas ao uso de palavras como família ou casa para designar a igreja. Mas quando registramos o domínio semântico da linguagem familiar, nós descobrimos uma rica variedade de imagens que descreve a igreja e nossos relacionamentos como uma família (veja G16.10; Ef 2.19; 1Tm 3.15; 1Pe 4.17; possivelmente Hb 3.5-6)." Por exemplo, sempre que Deus é chamado de Pai, por implicação nós estamos sendo vistos como seus filhos e filhas. Novamente, quando Jesus e os apóstolos nos chamam de irmãos e irmãs, eles estão implicitamente reconhecendo-nos como membros da família de Deus. Outros termos e expressões que podem sugerir a realidade da família são aqueles que se relacionam à entrada de pessoas na família, tais como adoção, nascer e nascer de novo. Além desses, existem palavras que descrevem nossa esperança futura à luz de quem somos na família de Deus — palavras como herdeiros, herdar e herança. Quando consideramos todas essas palavras e expressões, descobrimos que a linguagem familiar é claramente uma descrição poderosa e penetrante da igreja de Deus.

12 Veja J. I. PACKER, Knowing God. Downers Grove: InterVarsity, 1973, p. 181-208 [Também publicado no Brasil pela Editora Mundo Cristão sob o título O conhecimento de Deus]. 13D. A. Carson fornece uma excelente discussão dessa diferença entre os domínios exegético e sistemático do discurso (que geralmente leva ao conflito teológico) em D. A. CARSON, "The Vindication of Imputation: On Fields of Discourse and Semantic Fields," in Justification: What's at Stake in the Current Debates, ed. Mark Husband and Daniel J. Trier. Downers Grove: InterVarsity, 2004, p. 46-78.

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Por esse motivo, Robert Banks argumenta que "a comparação da comunidade cristã a uma 'família' deve ser considerada a metafóra mais significativa de todas". Ele acrescenta: "Mais do que qualquer outra das imagens utilizadas por Paulo, essa imagem revela a essência do que ele pensa sobre a comunidade".14 Paul S. Minear igualmente argumenta: "Por fim, este grupo de metáforas — pai, família, filhos, irmãos — constituiu talvez o ponto máximo da articulação daquela nova comunhão na fé, cujos vínculos eram tão fortes quanto o poder da cruz".15 Consequentemente, apesar de não ser a única metáfora usada para a igreja, a imagem da igreja como uma família é uma imagem predominante, cuja negligência nos cobra um alto custo. A luz de sua importância, vamos examinar quatro textoschave sobre a igreja como família e seu relacionamento com o conflito.

1Timóteo Paulo deixa claro o motivo de sua carta a Timóteo no capítulo 2, versículo 15. Aqui Paulo diz a Timóteo que quer que ele saiba como deve ser a conduta do povo de Deus. E especificamente descreve o povo de Deus não como alguém que está na igreja, mas sim na casa de Deus: "para que, se eu demorar, saibas como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e alicerce da verdade." Embora casa seja uma designação rara para a igreja,16 vemos que a imagem da igreja como uma família molda muitos dos conselhos de Paulo a Timóteo. Ele considera Timóteo como mais do que um simples membro de sua equipe. No início da carta, ele chama afetivamente Timóteo de meu "filho" (1Tm 1.2,18). Então, devemos pensar no conselho de Paulo a Timóteo como um conselho de pai. Assim como um pai disciplina e treina seus filhos (Hb 12.4-7), Paulo também disciplina e treina Timóteo. O caráter da igreja como família também fica evidente no ensinamento subsequente de Paulo sobre o caráter e a qualificação necessários para administradores e diáconos. Esses homens são chamados para trazer ordem e governo à igreja.

14 Robert BANKS, Paul's Idea of Community: The Early House Churches in Their Historical Setting, ed. rev. Peabody: Hendrickson, 1994, p. 49. Acredito que Banks exagera quando se refere a essa imagem da igreja (como família de Deus) como sendo a essência do pensamento de Paulo sobre a igreja. Paulo adota diversos modelos ou imagens para a igreja. No entanto, não sugiro que todas elas sejam igualmente valiosas. Ao contrário de outras imagens, tais como a do corpo de Cristo, a imagem da família de Deus/filiação é de natureza bíblico-teológica fundamental, fortalecendo tanto a história quanto a ordo salutis. 15Paul S. MINEAR, Image of the Church in the New Testament. Philadelphia: Westminster, 1960, p. 172. 160 termo oikos é usado em 1Tm 3.15; em outros lugares é usado o termo oikeios (veja G16.10; Ef 2.19).

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À luz desse chamado, a expectativa de Paulo para presbíteros e diáconos é que eles se mostrem como pais. Ele exige que eles administrem bem suas próprias famílias como qualificação para administrarem a família de Deus. Está implícito que os pastores e líderes da igreja devem ter uma autoridade como a dos pais. Além do mais, de todos os membros de uma casa, o pai é o que deve ser o líder pacificador. Paulo deixa clara essa exigência quando define o caráter de um futuro presbítero (ou pastor) como alguém que "não [seja] dado [...] à violência, mas amável, inimigo de discórdias, não ganancioso" (1Tm 3.3). Em contraste, mais adiante na mesma carta, Paulo caracteriza o falso mestre como alguém inclinado à discussão e ao conflito: "é arrogante e não compreende nada, mas delira em questões e discórdias acerca de palavras; dessas coisas nascem invejas, brigas, calúnias, suspeitas maliciosas" (1Tm 6.4). Falsos mestres não são pais verdadeiros dos filhos de Deus. Paulo expressa a mesma expectativa outra vez em 2Timóteo 2.24-26, onde ele instrui Timóteo a ser um pacificador: Ao servo do Senhor não convém discutir, mas, pelo contrário, deve ser amável para com todos, apto para ensinar, paciente, corrigindo com mansidão os que resistem, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, e que se libertem da armadilha do Diabo, por quem haviam sido presos para cumprirem a sua vontade.

Será que vemos as implicações da instrução de Paulo para nosso chamado? Como pastores e líderes da igreja, devemos ser conhecedores dos princípios e práticas da pacificação bíblica. A passagem de 2Timóteo 2.24-26 está falando conosco. Deus nos convida a sermos amáveis com todos, aptos para ensinar e não rancorosos com aqueles que se opõem a nós. Como pais da família de Deus, nós sofreremos a oposição. Sofreremos a oposição de outros líderes da igreja, de nossas esposas e filhos, além dos próprios membros de nossa igreja. Mas em meio a tudo isso, devemos conduzir nossas vidas como verdadeiros pais, nos moldes de nosso Pai celestial, não sendo inclinados a discussões e brigas, mas sim à reconciliação — compassivos e graciosos, tardios em irar-nos, abundantes em amor e perdoadores da maldade, da rebeldia e do pecado. Voltando a 'Timóteo, vamos considerar a breve mas reveladora descrição de Paulo sobre .como nós, líderes da igreja, devemos interagir com as pessoas de nossa congregação: "Não sejas duro na repreensão ao idoso, mas exorta-o como a um pai; aos jovens, como a irmãos; às mulheres idosas, como a mães; às jovens, como a irmãs, com toda pureza" (1Tm 5.1-2). Temos aqui uma síntese de todos os membros da igreja, e todos são descritos nos termos de uma família. Paulo instrui Timóteo a ver seus relacionamentos dentro da casa de Deus nos termos desses relacionamentos familiares.

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Da mesma maneira, nós, pastores, e os outros líderes da igreja não devemos considerar as pessoas da nossa igreja apenas como membros, mas como pais, mães, irmãos e irmãs. Eu considero o último conselho de Paulo a respeito de como devemos tratar mulheres mais novas particularmente relevante, em vista dos presentes escândalos sexuais que afligem o pastorado. Paulo nos direciona a pensar nas mulheres mais novas como irmãs e a tratá-las de acordo, ou seja, com pureza absoluta. Como pessoas em posição de autoridade, nós, pastores, somos tentados a abusar de nossa posição de confiança para inflar nosso orgulho ou satisfazer nossos desejos pecaminosos — até mesmo ao preço de nossa própria congregação. Podemos começar a colocar um fim nesses pecados, tratando os membros de nossa igreja como irmãos, pais, mães e irmãs. Muitos dos conflitos que temos com as pessoas da igreja são resultado de nossa falha em vê-los como membros de nossa família. Existe uma correspondência direta entre o modo como nós os reduzimos a simples pessoas que ocupam os bancos da igreja e nossa falta de verdadeira comunhão com eles. As vezes somos até mesmo culpados de precipitação, quando decidimos por uma censura formal pelo fato de vermos nossos membros mais como números sem rosto do que como pai, mãe, irmão ou irmã. Repito novamente que poderemos começar a encontrar a paz verdadeira quando aprendermos a tratar as pessoas da igreja como irmãos e irmãs em Cristo.

Mateus 5 Se a igreja é uma família que tem Deus com Pai, e se somos irmãs e irmãos uns dos outros, então nossos conflitos uns com os outros são conflitos familiares. Não é à toa, então, que as Escrituras empregam o termo irmão em algumas das mais inflamadas situações que enfrentamos, para nos lembrar do caráter ultrajante dos conflitos pecaminosos. E como se o Senhor ou os apóstolos estivessem perguntando: "Você está em conflito com quem? Com seu irmão? Como pode ser?". Vamos nos voltar para Mateus 5.22-24, onde Jesus expõe o sexto mandamento que proíbe o homicídio. Algo significativo nos ensinamentos de Jesus sobre os mandamentos é que ele direciona nossa atenção dos atos ostensivos e extremos proibidos pelo mandamento (neste caso, o homicídio) para as atitudes mais encobertas e "normais" que levam ao homicídio — a ira e ódio: Eu, porém, vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão será passível de julgamento; quem o chamar de insensato, será réu diante do tribunal; e quem o chamar de tolo, será réu do fogo do inferno. Portanto, quando apresentares tua oferta no altar, se ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa diante do altar a oferta e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; depois vem apresentar a oferta (Mt 5.22-24).

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É importante notar que Jesus descreve por três vezes a "outra parte" do conflito como nosso "irmão". Os ensinamentos de Jesus são essencialmente direcionados à comunidade cristã. Essa observação não deve ser usada para desconsiderar a relevância de tal ordem para os incrédulos, mas simplesmente para firmar o princípio de que "chegou a hora de começar o julgamento pela casa de Deus" (1Pe 4.17). Mais significativo ainda é o fato de que Jesus lembra os discípulos em conflito repetidamente de que os relacionamentos deles com outros na igreja são distintamente relacionamentos familiares. Sendo assim, quando eles não se reconciliam, todos incorrem em juízo maior. De acordo com Mateus 5.23-24, um conflito não reconciliado com um irmão é razão para deixar de adorar o Pai. Se filhos e filhas querem adorar o Pai da maneira correta, eles primeiro precisam deixar sua oferta no altar e se reconciliarem com o irmão. O modo como você trata seu irmão é algo emblemático que demonstra seu relacionamento com o Pai. Um modo pelo qual buscamos colocar em prática esse princípio em nossa igreja é resguardando a mesa do Senhor. Quando celebramos a Ceia, encorajamos quaisquer cristãos que estejam recusando a se reconciliar com algum irmão que deixem de participar da Ceia e procurem imediatamente esse irmão, após o culto, e busquem se reconciliar. Ao longo dos anos levei diversos membros em nossa igreja a compartilharem como eles seguiram essa instrução. Eles se disseram dispostos a se abster da Ceia do Senhor até que tivessem feito uma tentativa sincera de reconciliação, pois entendiam a grande importância que Cristo atribui à unidade no âmbito das relações familiares.

Mateus 18 Mateus 18.15-19 é outra passagem clássica sobre a resolução de conflitos. E mais uma vez deixamos de notar com extrema facilidade o uso intencional que Cristo faz da linguagem familiar. Se há um momento em que devemos ser lembrados de que somos irmãos e irmãs em Cristo é especialmente em meio aos nossos conflitos. Mas em vez disso, nós, com bastante frequência, reduzimos essa passagem a uma série de passos mecânicos e passamos a punir o outro, levando minimamente em conta o fato de que a parte ofensora é um irmão na família de Deus. No entanto, Jesus estabele regras para a disciplina dentro de um contexto de amor e preocupação paternais que podemos perceber ao longo de todo o capítulo. Seu foco não está simplesmente em alguém que peca e é confrontado, mas em como restaurar nosso irmão desobediente no contexto da família do Pai. O capítulo se inicia tendo em vista esse tema, quando Jesus coloca diante de seus discípulos uma criança e diz que os pequeninos eram os maiores no reino do céu (Mt 18.1-4). Note aqui como as Escrituras novamente entrelaçam as funções de Deus como Pai e Rei. As duas imagens não devem ser separadas.

A PACIFICAÇÃO NA FAMÍLIA DE DEUS

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Nos versículos 5-9 de Mateus 18, Jesus alerta aqueles que levariam um dos pequeninos do Pai a pecar. Então nos versículos 10-14 o Pai é comparado a um pastor que cuida de cada ovelha individualmente. A passagem se encerra com a garantia do cuidado paternal: "não é da vontade de vosso Pai, que está no céu, que um só destes pequeninos pereça" (Mt 18.14). Em Mateus 18.15-20 uma linguagem que fala de irmão e pai abre e fecha o texto. No versículo 15 os pecados tratados são pecados cometidos por irmão contra irmão. Nos versículos 19-20 Jesus nos instrui no exercício da disciplina prometendo a bênção e a sabedoria do Pai. Esse tema familiar continua no diálogo posterior de Pedro com Cristo, quando ele pergunta ao Senhor com que frequência deveria perdoar seu irmão. Jesus responde com uma parábola e, então, conclui fazendo novamente uma referência ao Pai, proferindo uma ameaça àqueles que não levam o perdão a sério: "E, irado, entregou-o aos carrascos, até que ele pagasse tudo o que lhe devia. Assim também vos fará meu Pai celestial, se cada um de vós não perdoar de coração ao seu irmão"(Mt 18.34-35).17 Para muitas pessoas, a gravidade da punição do Pai para os que não perdoam um irmão parece ser inconsistente com as muitas e grandes evidências que existem, em outras passagens, de sua abnegada misericórdia e perdão. Mas aos olhos de Jesus não há tal inconsistência, pois ele conhece seu Pai verdadeiramente. Deus Pai não pune a falha em demonstrar misericórdia e perdão apesar de seu caráter, mas sim a pune por causa de seu caráter: porque ele é o Pai de toda a misericórdia e perdão. Mateus 18 deixa evidente, então, que em seus ensinamentos sobre os relacionamentos na igreja, Jesus insere nossos conflitos numa estrutura de relacionamentos familiares: relacionamentos entre irmãos e irmãs. Aquele que peca contra nós é nosso irmão. Aquele a quem devemos procurar é nosso irmão. Aquele a quem devemos buscar convencer e restaurar é nosso irmão. E todos esses esforços de pacificação são feitos sob a bênção, sabedoria, força e imitação de nosso Pai Celestial. A pacificação não tem uma importância secundária na família de Deus. Ela define o caráter de Deus Pai, e deve definir o caráter de seus filhos e filhas. Esta deve ser a marca da família de Deus.

1 Coríntios A última passagem importante para a resolução de conflitos nas Escrituras é 1Coríntios 6.1-8, onde Paulo trata da questão de levar nossas disputas diante de tribunais civis. Ele está profundamente preocupado com o péssimo testemunho 17Não devemos interpretar mal o ponto levantado aqui por Jesus como se ele apoiasse a visão da salvação pelas obras. Ao contrário, Cristo meramente aponta que nós conhecemos os verdadeiros crentes por seu fruto. Os crentes demonstram a verdadeira fé ao perdoar os outros.

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da igreja diante dos olhos do mundo — assim como os líderes da igreja de hoje devem se preocupar com a conduta incorreta da igreja em relação aos conflitos diante dos olhos dos incrédulos. Paulo repreende em termos específicos: "Atreve-se alguém entre vós, quando há queixa de um contra outro, a levar a questão para ser julgada pelos injustos, e não pelos santos? [...] Entretanto, um irmão leva outro irmão ao tribunal, e isso perante os incrédulos!" (1Co 6.1,6). Paulo usa um tom de quem está chocado quando nos acusa de trapacear e tratar mal um ao outro. No entanto, ele faz mais do que apenas dizer que agimos mal para com "o outro". Paulo explicitamente nos lembra, nos versículos 6 e 8, que esse "outro" que tratamos mal é nosso "irmão". "Entretanto, um irmão leva outro irmão ao tribunal, e isso perante os incrédulos? [...] Em vez disso, por que não sofreis a injustiça? Por que não sofreis o prejuízo? Mas sois vós mesmos que fazeis injustiça e cometeis fraude, e isso contra irmãos" (1Co 6.6-8). A questão que Paulo levanta é clara. Somos uma família — a família de Deus. Os problemas em discussão não dizem respeito a mim ou a você, mas a "nós", à família de Deus. Nossos conflitos não devem ser ostentados diante do mundo; eles devem ser mantidos em família. Manter confidenciais as questões familiares deve servir como uma das principais iniciativas para a pacificação.18

APLICANDO A FILIAÇÃO À NOSSA PACIFICAÇÃO O resgate da teologia da filiação para a pacificação tem uma aplicação bastante concreta para a prática atual da pacificação. Permita-me falar de dois efeitos práticos da filiação em relação a percepção, orientação e motivação das pessoas na pacificação. Primeiramente, a filiação remodela a percepção que a pessoa tem da "outra" pessoa envolvida no conflito. Raiva, ódio, amargura, inveja, desejos egoístas e ambições fúteis não apenas nos levam ao conflito, mas também pervertem e distorcem a percepção que temos das pessoas envolvidas no conflito. Essa distorção fica evidente de muitas maneiras. Nós transformamos as pessoas em objetos impessoais, tratando-as como coisas a serem usadas por nós. Em vez de vê-las como pessoas com as quais nos "relacionamos", nós as vemos como instrumentos para alcançar nossos interesses e satisfazer nossos desejos. Depois de usá-las nós as descartamos. Quando tratamos as pessoas como objetos é mais fácil humilhá-las com nossas palavras. Jesus chama atenção para essa mesma dinâmica em Mateus 5.22, quando ele nos adverte contra permitirmos que nossa raiva nos faça dizer palavras ofensivas. Quando estamos envolvidos em um conflito, em vez de nos referir a

"Veja mais sobre confidencialidade no capítulo 12, "Práticas de disciplina da igreja".

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outra pessoa como "irmão", nós o chamamos de "insensato" ou "tolo". O próprio Jesus foi alvo desse tipo de ofensa quando, em resposta ao fato de ele ter exorcizado um demônio, os fariseus o acusaram de trabalhar por meio do poder de Belzebu (o diabo, Mt 12.22-24). Uma maneira até mais sutil de humilharmos as pessoas é nos referindo a elas com uma linguagem unidimensional, que reduz seus status como irmãos ou irmãs. Deixamos de usar nomes pessoais como Miguel ou Rosa e, em vez disso, nós os os membros" e assim em diante. chamamos "ele", "ela", "eles'', "as partes", "o réu", " Um bom exemplo desse tipo de linguagem é visto no início da revelação bíblica. Quando Deus pega Adão em pecado, praticamente se pode ouvir o tom desdenhoso de sua resposta, quando ele indiretamente acusa a Deus, dizendo: "a mulher que me deste" (Gn 3.12). Do mesmo modo, em uma passagem onde a palavra irmão é usada frequentemente para ressaltar a natureza ultrajante do homicídio de Abel, Caim se exime da responsabilidade caçoando de seu relacionamento com ele: "por acaso sou guarda do meu irmão?" (Gn 4.9). Dita desse modo por Caim, a palavra irmão não é urna palavra de afeição, mas de desdém. Outra maneira pela qual humilhamos é pela tendência de demonizar aqueles com os quais estamos em conflito. Com que rapidez a outra pessoa se torna nosso inimigo, nosso oponente. Com que rapidez atribuímos maldade e motivos maliciosos àqueles que divergem de nós ou que desaprovam nossas ações. Rapidamente lhes designamos um lugar no "território do diabo", enquanto montamos nosso próprio território e nos preparamos para a guerra entre "nós e eles". Ao reconhecer essa dinâmica de humilhação que é tão predominante nos conflitos, nós, como pastores pacificadores, devemos buscar resgatar a linguagem da família, ajudando as pessoas envolvidas no conflito a identificarem quem elas realmente são: irmãos e irmãs em Cristo. Em segundo lugar, a filiação motiva as pessoas em conflito, ao reorientar seu foco na direção de Deus e para longe de si mesmas. O conflito tende a polarizar nossos relacionamentos e reduzir nosso campo de visão a uma mera visão horizontal de referência. Nós vemos apenas "o outro lado" e ficamos cegos em relação ao nosso Deus — à Trindade abençoada. Reduzimos as partes em um conflito a "nós contra eles" ou "eu contra ele (ou ela)". As pessoas em conflito perdem a noção de que existe uma terceira parte envolvida: Deus. Elas esquecem que ele é alguém próximo e poderoso e que não é apenas Pai, mas também Rei. Ele é o Pai que amorosamente disciplina seus filhos e o Rei que sujeita os que têm o coração duro. Pastores dotados de uma robusta teologia da filiação buscarão reorientar os olhos das pessoas em conflito. Esses pastores lembrarão as partes de que elas não estão sozinhas, que a despeito de qualquer obstáculo que possa se apresentar diante delas, Deus pode suprir todas as suas necessidades de se reconciliar com seus irmãos.

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A própria metodologia das Escrituras para motivar os santos a fazerem as pazes é demonstrada por seu frequente uso da linguagem da filiação. Além disso, como vimos, interligada à realidade de Deus como nosso Pai está o sentimento de admiração de Deus como nosso Rei, o Rei dos reis! Como Pai-Rei, Deus tem o poder de fazer a paz e transformar corações, pois é capaz de trazer todas as pessoas e situações debaixo de seu poderoso domínio paternal — inclusive nossa própria descrença! E claro que a maior motivação para levantar os olhos dos abatidos, dos desesperados, daqueles em conflito, é o próprio evangelho, que nos diz que nosso Pai celestial nos ama, deu seu Filho por nós e envia aos nossos corações seu Espírito que diz: "Abba, Pai". Como John Owen certa vez perguntou: "Se o amor de um pai não fizer um filho encantar-se com ele, o que fará?"." Em síntese, quando estamos perdidos em meio à densa névoa do conflito, podemos recuperar a visão clara, a direção correta e a motivação sincera ao recuperar uma teologia bíblica da filiação. E ao recuperar essa visão da condição de filhos, podemos voltar a ter uma visão vital da igreja como família de Deus — uma família que está sempre "procurando cuidadosamente manter a unidade do Espírito no vínculo da paz" (Ef 4.3). A igreja cristã sofre de falta de credibilidade em seu testemunho de Cristo quando mostra ao mundo sua impotência em resolver conflitos. Como podemos afamar que o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todos, quando nós frequentemente fracassamos em viver de acordo com seu poder redentor, mostrando-nos incapazes de conviver em harmonia? Como podemos afirmar que Deus é Rei acima de tudo, quando nós, seus filhos e filhas, nos recusamos a fazer as pazes com nosso Pai, duvidando de seu poder para transformar os corações? Uma das principais maneiras de resgatar nosso testemunho é redescobrir o propósito criador e redentor de Deus para nós como seus filhos e filhas e como uma família de irmãos e irmãs. Nós representamos melhor Deus como Pai quando agimos como filhos — confiando que ele nos concederá poder e sabedoria e obedecendo-o como pacificadores. Dentre todo o povo de Deus, os pastores deveriam ser os que mais praticam a pacificação. Que maior alegria existe do que ensinar nosso povo (nossos irmãos e irmãs em Cristo) a serem pacificadores à semelhança de seu Pai celestial? E o que o mundo diria quando nos visse glorificando verdadeiramente a Deus, como filhos e filhas, ao manifestar a misercórdia de nosso Pai, sua compaixão e amor uns pelos outros? Esse é um desafio sem igual para nós, como líderes da igreja, e pela glória de Deus nós o aceitaremos.

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ohn OWEN, Collected Works, vol. 2. Carlisle: Banner ofTruth, 1965, p. 36.

6 CONFESSANDO NOSSOS PECADOS UNS PARA OS OUTROS

essoas em conflito se deixam facilmente cegar por atitudes e ações pecaminosas que obstruem sua visão. Impossibilitadas de verem as coisas como realmente são, elas se sentem justificadas naquilo que dizem e fazem aos outros. Não é de admirar que, em vez de buscar a reconciliação, essas pessoas, cegas para seus atos, continuem a brigar, a culpar o outro e a lançar acusações. Lidar com esse tipo de conflito que se perpetua em si mesmo envolve muito mais do que simplesmente seguir os passos corretos para uma pacificação. Como pacificadores sábios, se nós esperamos trazer soluções duradouras para conflitos complexos, devemos começar por dar um passo atrás e olhar para o todo da questão, que é exatamente o que fizemos nos primeiros capítulos deste livro. Nós começamos tentando entender melhor quem somos como pessoas em conflito — pessoas que, em vez de manter Cristo e a cruz no centro, sucumbem à incredulidade e acabam caindo em padrões de reação pecaminosos, por causa dos desejos pecaminosos que controlam nossos corações (capítulos 1-3). Depois passamos a considerar quem é Deus como Senhor sobre o conflito — um Deus cuja glória é manifestada principalmente como a de um Deus reconciliador, cujos atributos pacificadores são mais facilmente notados em seu cuidado paternal e na forma como reina sobre nós (capítulos 4-5). Tendo lançado esses fundamentos, nos capítulos remanescentes nós nos concentraremos na prática da pacificação — nos aspectos práticos da pacificação. Pensando mais a fundo, mencionar os aspectos práticos da pacificação é uma maneira pobre para descrever o que realmente acontece. A pacificação não trata de pessoas "consertando" pessoas, como um técnico conserta um aparelho. Ela é mais parecida com uma cirurgia, uma cirurgia nos olhos. Os pastores são chamados para a sutil habilidade e a delicada prática de ajudar irmãos e irmãs a remover as vendas de seus olhos, permitindo com isso que eles vejam a necessidade de confessar seu próprio pecado e conceder o perdão. Pois se de fato queremos um dia testemunhar uma reconciliação verdadeira, o processo de pacificação deve começar pela confissão.

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O alinhavar da reconciliação é feito por meio do processo de confissão e perdão. Se a costura desse processo for fraca, a reconciliação que acontecerá será vulnerável a futuros danos e rupturas. Assim, como líderes, devemos ser experientes na teologia e na prática da confissão e do perdão. Neste capítulo vamos explorar a natureza da confissão bíblica e no capítulo 7 estudaremos mais a fundo o perdão bíblico.

GUARDANDO-NOS DA FALSA CONFISSÃO Tiago nos instrui a confessar nossos pecados uns aos outros (Tg 5.16). Já testemunhei longos conflitos dissiparem-se como a bruma da manhã por meio de uma única confissão sincera do pecado. Acredito que, assim como eu, a maioria dos mediadores cristãos dirá que o momento decisivo de uma mediação acontece quando uma das partes começa a se arrepender com sinceridade de coração. Porém, infelizmente, a confissão que sai dos lábios das pessoas geralmente nasce morta. Pense nos personagens bíblicos como o faraó, Balaão, Acã, Saul e Judas, que confessaram: "Eu pequei". No entanto, mais adiante sua confissão provou-se débil, falsa, apática, sem vida. Quem de nós nunca fez uma confissão como a deles ou já não testemunhou esse tipo de confissão daqueles a quem aconselhamos?' Existem duas maneiras pelas quais conseguimos evitar que pessoas em conflito façam uma confissão falsa. Primeiro, devemos ajudá-las a alcançar o verdadeiro arrependimento ao genuinamente compreender e aceitar a misericórdia de Deus que nos é oferecida em Cristo. Em segundo lugar, devemos ajudá-las a diferenciar o remorso do verdadeiro arrependimento.

Apreendendo a misericórdia de Deus em Cristo O Catecismo de Westminster fornece uma definição clara do arrependimento sincero. O catecismo pergunta, "O que é o arrependimento para a vida?", e responde, "O arrependimento para a vida é uma graça salvadora [At 11.18, 2Tm 2.26], por meio da qual um pecador, tendo verdadeira noção de seu pecado [At 2.37-38] e percepção da misericórdia de Deus em Cristo [J12.12; Jr 3.22], se enche de tristeza e horror pelos seus pecados, abandona-os e volta para Deus [ Jr 31.18-19, Ez 36.31], inteiramente resolvido a prestar-lhe nova obediência [2Co 7.11; Is 1.16-17] ."2

'Considere o faraó, que continuou a oprimir o povo de Deus (Ex 9.27); Balaão, que continuou a buscar a destruição de Israel (Nm 22.34); Acã, que escondeu os ídolos em vez de destruí-los (Js 7.20); Saul, a quem o Senhor rejeitou como rei (1Sm 15.23); e Judas, que se enforcou (Mt 27.3-4). 2 Breve Catequismo de Westminster, pergunta e resposta 87, em Westminster Confession of Faith: Together with the Larger Catechism and the Shorter Catechism with the Scripture Proofs, 3a ed. Atlanta: Committee for Christian Education and Publication, 1990, p. 27.

CONFESSANDO

Nossos rEc.ADOS -t.NS PARA. OS OI 1'RCS

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Como podemos ver, o arrependimento verdadeiro é uma graça salvadora. E a fonte de todas as graças salvadoras é Deus. Deus é quem dá a graça do arrependimento. O arrependimento não é algo que alguém possa produzir por meio de uma decisão própria ou por estar em um estado emocional de tristeza. Portanto, não podemos forçar as pessoas em conflito a se arrependerem, confessarem seu pecado e fazerem as devidas reparações. Mas podemos (e devemos) convidá-las a confessar seu pecado, com a esperança de que Deus irá conceder a elas um coração arrependido. O catecismo prossegue, contando que um coração arrependido é resultado de um pecador que consegue apreender ou ter a percepção da misericórdia de Deus em Cristo. O arrependimento verdadeiro implica compreender a misericórdia de Deus em Cristo pela fé, algo que liberta a pessoa e a torna disposta a se arrepender verdadeiramente e de maneira duradoura. Tanto Saul quanto Davi confessam: "Eu pequei". Porém, a oração de arrependimento de Davi revela a diferença entre as duas confissões: Davi se lança sobre a misericórdia de Deus. Ele ora: "O Deus, compadece-te de mim, segundo teu amor; apaga minhas transgressões, por tuas grandes misericórdias" (Si 51.1). O que leva Davi ao arrependimento verdadeiro e duradouro é uma apreensão, uma percepção da abundante misericórdia de Deus. Confissões de pecado ineficazes são em essência confissões de pecado sem a presença de Deus. Como pastor pacificador, errei algumas vezes por convidar as pessoas a confessarem seus pecados uns aos outros sem antes voltá-las adequadamente a Deus e a sua misericórdia. Consequentemente, suas confissões foram feitas com base em suas próprias forças, em suas próprias percepções de justiça. Suas confissões se tornaram uma forma sutil e enganosa de fazer justiça: "Me desculpe — e agora me deixe em paz". Por outro lado, descobri que é uma grande alegria ouvir as pessoas fazerem confissões sinceras, quando elas entendem verdadeiramente a misericórdia de Deus em Cristo. Quando isso acontece, as pessoas demonstram um espírito arrependido e quebrantado que, segundo Deus, é o melhor e mais aceitável sacrifício.

Diferenciando o remorso do arrependimento A segunda maneira para impedir que pessoas em conflito façam confissões não sinceras é ajudá-las a diferenciar o remorso do verdadeiro arrependimento. Em sua segunda carta aos Coríntios, Paulo, o apóstolo pacificador, escreve: "Pois, fostes entristecidos segundo a vontade de Deus, para que não sofrêsseis dano algum por nossa causa. Pois a tristeza segundo a vontade de Deus produz o arrependimento que conduz à salvação, o qual não traz remorso; mas a tristeza do mundo traz a morte" (2Co 7.9-10). Aqui Paulo se refere à diferença entre o remorso ("pesar mundano") e o verdadeiro arrependimento (o resultado do "pesar divino").

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O PASTOR PACIFICADOR

Qual é a diferença? O remorso e o arrependimento se diferem um do outro em pelo menos três aspectos: com relação a Deus e ao indivíduo, com relação ao pecado e ao indivíduo e com relação aos outros e ao indivíduo. Deus e o indivíduo: O remorso resulta de temer ao homem, enquanto o arrependimento resulta de temer a Deus. O temor ao homem é uma cilada, diz Salomão (veja Pv 29.25), e uma das maneiras pela qual ela nos captura é estimulando em nós um senso de remorso. Nós sentimos remorso do que os outros descobriram sobre nós e por termos sido expostos. Em resposta a isso, nos escondemos de Deus e tentamos nos encobrir e proteger do olhar acusador e penetrante dos outros, assim como Adão fugiu de Deus e se escondeu no jardim. Assim que nos sentimos devidamente "protegidos", em vez de enxergar nosso pecado pelo que ele é, nós nos apressamos em conquistar a simpatia das pessoas pela "injustiça" que nos foi feita, e em angariar apoio para o nosso lado da história, para a nossa própria causa na disputa. O arrependimento, por outro lado, busca primeiramente a Deus. Ele se lança diante de Deus e de sua misericórdia, assim como Davi se lançou diante do Senhor, implorando: "O Deus, compadece-te de mim, segundo teu amor; apaga minhas transgressões, por tuas grandes misericórdias" (S151.1). Nós sabemos quando a graça do arrependimento foi dada a uma pessoa se ela se aproxima de Deus e acata sua misericórdia em Cristo. Em outras palavras, uma pessoa que confessa verdadeiramente seu pecado a um irmão valoriza a expiação de Cristo por ele. Essa pessoa sabe que a pena por seu pecado foi paga por Cristo, e por isso a culpa por seu pecado não pode mais condená-la. Pelo contrário, revestida pela justiça de Cristo, está livre para se aproximar do trono da graça e receber a misericórdia. O remorso, ao contrário, busca sua própria redenção. Em uma tentativa de aliviar a consciência culpada e de reparar qualquer dano feito a nossa imagem, o remorso busca uma série de alternativas criativas. Por exemplo, em vez de confessar verdadeiramente o pecado, o remorso compele uma pessoa a oferecer sacrifícios substitutos. Conheci um missionário que, em vez de se arrepender de seu próprio pecado e de pagar um débito que tinha, aliviava a sua consciência destacando todos os seus trabalhos missionários em favor dos pobres. Só quando essa dinâmica lhe foi mostrada foi que ele começou a ver a mentira sutil que vinha contando a si mesmo durante todo o tempo: o sacrifício é melhor que a obediência! O arrependimento genuíno recebe o sacrifício que mais agrada a Deus: o sacrifício de seu Filho. E assim como Davi, o arrependimento diz: "Pois não tens prazer em sacrifícios [...] Sacrifício aceitável para Deus é o espírito quebrantado; ó Deus, tu não desprezarás o coração quebrantado e arrependido" (S1 51.16-17). Além disso, o arrependimento entende que no fundo o pecado busca sua própria satisfação. Assim o arrependimento busca mudar o objeto da satisfação de uma

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pessoa do pecado para Deus. Como Davi, o pecador dirá: "Restitui-me a alegria da tua salvação" (S151.12). Pessoas verdadeiramente arrependidas são aquelas que sentem grande alegria em Deus e em suas coisas. Elas têm Deus em alta conta. Elas temem, amam, confiam e obedecem a Deus e tem nele seu prazer. Esses sentimentos e essa devoção são sinais do verdadeiro arrependimento. O pecado e indivíduo. O remorso e o arrependimento também diferem em relação ao pecado e ao indivíduo. Enquanto a pessoa com remorso se lamenta por não ser tão grande quanto os outros pensavam, o arrependimento mostra à pessoa como ela realmente é. O remorso, por exemplo, se lastima: "Não acredito que eu fiz aquilo". Mas o arrependimento confessa: "Eu não só acredito que fiz aquilo, como sei que isso é só a ponta do iceberg". Embora o remorso se entristeça pelo pecado, ele não se arrepende e tampouco vê necessidade de fazê-lo. Ele apenas decide não pecar novamente, dizendo: "Não acredito que fiz aquilo. Não sou realmente esse tipo de pessoa. Não farei isso novamente. Foi apenas um pequeno deslize, porque eu estava sob estresse. Eu não peco assim o tempo todo". Já o arrependimento, pelo contrário, se aflige pela corrupção do pecado. Entendendo a natureza das garras do pecado, o arrependimento diz, como Paulo: "Desgraçado homem que sou!" (Rm 7.24). O remorso se lamenta pelo fruto do pecado, enquanto o arrependimento chora tanto pelo fruto quanto pela raiz do pecado. Assim, quando Davi diz, "Eu nasci em iniquidade, e em pecado minha mãe me concebeu" (Sl 51.5); o arrependimento implora: "O Deus, cria em mim um coração puro"(v. 10). O verdadeiro arrependimento se arrepende da raiz do pecado — do pecado em nossos corações — e não apenas da manifestação externa de nosso pecado. Enquanto o remorso se sente arrependido pelos pecados que cometeu, o arrependimento se arrepende dos pecados que cometeu tanto por ação quanto por omissão. Na verdade, o arrependimento se arrepende até mesmo pelos nossos melhores atos de justiça, pois ele sabe que aos olhos de Deus nossa justiça não passa de trapos imundos. Os outros e o indivíduo. Finalmente, o remorso e o arrependimento se diferem em relação aos outros e ao indivíduo. O remorso ou pesar mundano leva à autojustificação ou à autocondenação. Quando nos punimos, também punimos os outros. Nós ficamos ressentidos com os outros quando nos tratam mal, nos ofendemos rapidamente e apontamos sua culpa. O arrependimento, por outro lado, leva à justiça de Cristo. Nós nos regozijamos pelo fato de que não somos condenados. Nós nos gloriamos pela obediência perfeita e pelo amor perfeito de Cristo, e logo, como Cristo, também lamentamos pelos pecados dos outros e buscamos ajudá-los a se reconciliarem com Deus. Nesse espírito, Davi implora: "Restitui-me a alegria da tua salvação e sustenta-me com um espírito obediente. Então ensinarei teus caminhos aos transgressores, e

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pecadores se converterão a ti" (Si 51.12-13). O arrependimento sincero transforma uma pessoa em um evangelista, um pacificador, um verdadeiro irmão ou irmã no Senhor que ajuda outros irmãos e irmãs quando eles pecam. Enquanto o remorso nos faz desprezar os outros em seu pecado ou nos instiga a acompanhá-los, o arrependimento nos compele a restaurar os outros. O arrependimento faz com que uma pessoa compartilhe: "Eu também sou um pecador como você. Deixe-me mostrar a você o bom caminho que leva a Deus e à vida". Da mesma maneira que o remorso afasta uma pessoa do povo de Deus, o arrependimento a traz de volta para a verdadeira comunhão do povo de Deus.

Confissão sincera Como pastores e líderes da igreja, nosso desejo é que nosso povo confesse seus pecados uns aos outros e que suas confissões sejam sinceras como a de Davi, e não falsas como a de Saul. Assim, mesmo em meio ao conflito, devemos ensinar novamente a natureza do verdadeiro arrependimento. Devemos trabalhar e orar para que, por meio da pregação do evangelho, nosso povo possa apreender a misericórdia de Deus em Cristo e estar apto a distinguir entre remorso e arrependimento sincero, e finalmente conhecer a graça do arrependimento verdadeiro. No entanto, até então nosso trabalho não terá acabado. Se o povo de Deus deve fazer confissões verdadeiras, sinceras de seus pecados, para isso devemos ajudá-los a remover a venda de seus próprios olhos.

REMOVENDO A TRAVE DE NOSSOS PRÓPRIOS OLHOS No sermão do Monte, Jesus nos ensina que, antes de desafiarmos os outros, devemos desafiar a nós mesmos: "Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tens uma trave no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do olho; e então enxergarás bem para tirar o cisco do olho de teu irmão" (Mt. 7.4-5). Jesus insinua que o pecado cega. Que os conflitos confundem. Que ciscos se parecem com traves e traves com ciscos. Como pastor pacificador você deve aprender a detectar os efeitos que o pecado tem de nos cegar. As pessoas em conflito aconselhadas por você estarão cegas para o modo pelo qual elas possam ter contribuído para um conflito, ou dado ocasião ou até mesmo agravado um conflito. Por exemplo, no conflito temos a tendência de buscar o apoio de outros para nossa causa "justa". Nós nos cercamos de pessoas que concordam com nossa versão da história. Além disso, temos a tendência de aumentar a culpa dos outros, transformar ciscos em traves, diminuir nossas próprias ofensas o tempo todo e reduzir traves a ciscos. Ainda pior, não refletimos sobre nossa própria culpa. Em vez disso, nossos pensamentos se consomem com a outra pessoa. E por isso que Jesus nos diz para primeiro tirar a trave de nossos próprios olhos.

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Tirar a trave de nossos próprios olhos envolve dois passos-chave. O primeiro é reconhecer e confessar a Deus a atitude pecadora que levou a palavras e ações pecadoras. O segundo passo é que devemos confessar nossos pecados ao nosso irmão. Esse passo implica a compreensão do que torna verdadeira e divina uma confissão. Vamos primeiros analisar a confissão de nossa atitude pecadora.

Confessando nossa atitude pecadora Atitudes levam a ações. A raiva me leva ao modo imprudente como acuso alguém. Meus medos me convencem a ignorar os pedidos dessa pessoa de "nos encontrarmos para conversar sobre isso". Minha ansiedade me leva a tomar o controle, coagir ou fugir. Atitudes também são janelas de oportunidade para os ídolos que trazemos no coração. Nossos medos, raiva e ansiedade revelam os deuses em que confiamos e adoramos no lugar do Deus verdadeiro. Por exemplo, se tememos o modo como alguém poderá reagir a nós provavelmente é por estarmos colocando nossa esperança na aprovação das pessoas, em vez de confiar em Deus e buscar sua aprovação. Como essa atitude pecadora revela o profundo estado de desordem que afeta nossa adoração, a verdadeira confissão de pecado a um irmão requer que primeiramente confessemos nosso pecado a Deus. Filipenses 4.2-9 fornece uma grande ajuda nessa questão. Ao longo dessa carta, Paulo deixa subentendida a presença de relacionamentos frágeis e até mesmo rompidos na igreja de Filipos. No segundo capítulo Paulo conclama os filipenses à unidade, dizendo a eles para que tenham "o mesmo modo de pensar, o mesmo amor, o mesmo ânimo, pensando a mesma coisa" (Fp 2.2). Ele os adverte contra a atitude pecadora da ambição e presunção egoístas e do orgulho (v. 3). Consequentemente, ele os convida à humildade, a pensar nos interesses dos outros (v. 4). E ancora toda a sua exortação na voluntária humilhação de Jesus Cristo, que sendo em sua própria natureza Deus, se tornou um servo obediente à morte e morte de cruz (v. 5-8). A luz da história do evangelho, Paulo diz a eles: "Fazei todas as coisas sem queixas nem discórdias" (Fp 2.14). Fica evidente que pressões externas e internas estão enfraquecendo seus laços e alguns, como Evódia e Síntique, estão abertamente em conflito entre si e esse conflito já se tornou público. O contexto deixa evidente, então, que Filipenses 4.2-9 não é apenas mais um conselho piedoso, mas um chamado definitivo para que a igreja se alinhe com os objetivos de Deus. Arrependimento, perdão e reconciliação são necessários. Consequentemente, Paulo adverte: "Suplico a Evódia e a Síntique que entrem em acordo no Senhor" (v. 2). No entanto, o conselho de Paulo não para por aqui. O que acontece entre Evódia e Síntique afeta toda a família, a comunidade inteira. A fragilidade ou

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o rompimento de um relacionamento preocupa a todos. Então, no versículo 3 Paulo convida toda a igreja a auxiliar essas mulheres na resolução de seu conflito.3 A confissão e o perdão geralmente demandam mais do que duas pessoas empenhadas para resolver suas diferenças. A reconciliação demanda o corpo de Cristo. Então Paulo acrescenta: "E peço também a ti, meu verdadeiro companheiro, que as ajudes, pois trabalharam comigo no evangelho." No entanto, as preocupações de Paulo sobre o conflito em ebulição nos versículos 2-3 não acaba nisso. Ao contrário, ele volta toda a igreja na direção de Deus. Sabendo como o conflito cega as pessoas para Deus, Paulo firma suas esperanças em Deus em meio ao conflito. Ao fazer isso, ele destaca diversas atitudes que revelam os ídolos que as pessoas carregam no coração, e lhes dá esperança no Deus que conserta corações, reconcilia relacionamentos e faz com que as pessoas vivam em paz: Alegrai-vos sempre no Senhor; e digo outra vez: Alegrai-vos! Seja a vossa bondade conhecida por todos os homens. O Senhor está perto. Não andeis ansiosos por coisa alguma; pelo contrário, sejam os vossos pedidos plenamente conhecidos diante de Deus por meio de oração e súplica com ações de graças; e a paz de Deus, que ultrapassa todo entendimento, guardará o vosso coração e os vossos pensamentos em Cristo Jesus. Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai. O que aprendestes, recebestes, ouvistes e vistes em mim, tudo isso praticai; e o Deus de paz estará convosco (Fp 4.4-9).

Pessoas em conflito geralmente reservam pouco espaço para Deus em seus pensamentos (veja S1 10.4). Podemos usar o nome Deus, mas usá-lo em vão. Essa tendência de deixar Deus de lado fica evidente pelo sentimento frequente de desespero que sentimos no conflito. Nós nos desesperamos com a possibilidade de a outra pessoa nunca mudar ("Ele simplesmente não entende"). Nós nos desesperamos com nós mesmos ("Eu sou o que sou"). E ficamos especialmente inclinados a desistir de Deus. E por isso que o conselho de Paulo se concentra em nosso relacionamento com Deus. Veja os imperativos: "Alegrai-vos sempre no Senhor". "O Senhor está perto". "Sejam os vossos pedidos plenamente conhecidos

'A dificuldade gramatical está na expressão "a ti, meu verdadeiro companheiro." A expressão está no singular. Mas, se está no singular, quem é gnësie syzyge então? É alguém da congregação? Epafrodito? Moisés Silva comenta: "Com base nas informações limitadas de que dispomos, a interpretação mais razoável é que o apelo é na verdade uma maneira pela qual Paulo convida os diversos membros da igreja a se mostrarem verdadeiros companheiros no mundo do evangelho. (Sobre o uso que Paulo faz da segunda pessoa do singular para se referir aos destinatários da carta, cf. Rm 2.1,17; 8.2; 9.20; 11.17 e seguintes; 1Co 14.17; 15.36; Gl 6.1. A maioria dessas ocorrências, no entanto, tem um tom negativo)". Moisés SILVA, PhifippianS. Grand Rapids: Baker, 1992, p. 222.

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diante de Deus". E veja novamente as promessas: "e a paz de Deus, que ultrapassa todo entendimento, guardará o vosso coração e os vossos pensamentos em Cristo Jesus"; "e o Deus de paz estará convosco" (Fp 4.4-7,9). Evódia e Síntique irão confessar seus pecados uma à outra e conceder o perdão apenas quando ambas voltarem o coração e os olhos para o Senhor — o Senhor que deu sua vida por elas, que está com elas e lhes promete paz. Em outras palavras, a verdadeira obra de pacificação deve começar com irmãos e irmãs adorando o Pacificador. Para um povo em conflito e sem esperança, para os desesperados, ansiosos e raivosos filipenses, Paulo prega a adoração prática, isto é, a adoração de Deus à luz desse conflito presente e concreto. Ele dá uma pausa na hostilidade e volta o coração dos filipenses na direção de Deus. Na realidade, ele está dizendo: "Parem de olhar para si mesmos e voltem seus olhos para Deus. Não amaldiçoem o conflito, mas consagrem-no a Deus. Considerem quem ele é e o que fez por vocês e por seus irmãos. Deus está no conflito, ele é soberano e reinará através do conflito. E Deus quem irá nos reconciliar e nos transformar. Essa grande verdade é motivo para nos alegrarmos, e não para nos desesperarmos. " Portanto, não é estranho que a primeira ordem de Paulo às pessoas em conflito seja: "Alegrai-vos sempre no Senhor" (Fp 4.4). Esse imperativo não é apenas um chamado geral para adorar a Deus, mas um chamado específico para louvar a obra principal e central de Deus: o Senhor Jesus. "Alegrai-vos sempre no Senhor" é um lembrete do evangelho da graça, da obra expiatória e reconciliadora de Cristo. Temos a paz de Deus e sua promessa de paz porque fomos justificados por seu sangue. Nossa cegueira para o pecado e indisposição em perdoar revelam mais do que um fracasso em pensar em Deus. Revelam nosso fracasso em nos lembrarmos de nossas próprias ofensas contra Deus, de sua maravilhosa graça e da absolvição de nosso pecado. Quando somos ofendidos um pelo outro, nos esquecemos da bondade, tolerância e paciência de Deus para conosco. Nós nos esquecemos dos dez mil talentos que ele perdoou (veja Mt 18.22-35). "Alegrai-vos sempre no Senhor" é uma fórmula de Paulo para nos ajudar a lembrar e agradecer ao Senhor pela graça da reconciliação. Filipenses 4.4 é o hyperlink de Paulo para Mateus 18.22-35. Nesta última passagem, em resposta à pergunta de Pedro sobre como reagir a um irmão que peca contra ele, Jesus conta a história do evangelho. Isto é, Jesus conduz Pedro à dimensão vertical do relacionamento com Deus. Diante da dívida de cem denários que nosso irmão tem para conosco, Jesus aponta nossa dívida de dez mil talentos para com Deus. E ainda assim, como Paulo nos lembra, Deus, nosso Mestre, nos perdoa. Uma maneira de ajudar as pessoas a verem sua cegueira diante da obra reconciliadora de Deus e de sua Palavra é por meio de um simples desenho. Enquanto

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estão me contando sobre seu conflito, eu desenho dois círculos representando as duas partes no conflito. Então, eu conto com minhas palavras a história que ouvi delas, para ter certeza de que as entendi com precisão, apontando o seu círculo e então para o círculo que simboliza a outra parte com a qual estão em conflito. Finalmente, eu pergunto: "Eu entendi bem vocês? Vocês me contaram todos os fatos?". Quando as duas partes se mostram satisfeitas quanto ao meu entendimento do conflito, eu então desenho um grande ponto de interrogação sobre os dois círculos e pergunto: "O que acham que está faltando?". Geralmente as pessoas ficam perplexas, pois pensam que já contaram toda a história. Neste ponto eu me volto para Filipenses 4.2-3 e, usando os dois círculos, falo sobre Evódia e Síntique. A caneta se move para frente e para trás e eu pergunto novamente "Quem está faltando nessa história? Paulo ainda deve falar de quem?". Por fim os olhos delas se acendem e começam a ver a história de uma maneira diferente. Deus está faltando! Neste ponto, eu lhes mostro como Paulo não omite Deus, mas sim direciona os filipenses a Deus nos versículos 4-9. O convite de Paulo para nos regozijarmos no Senhor tem um componente final. "Alegrai-vos sempre no Senhor" é um chamado a realinhar nossa atitude e nossas prioridades com as de Deus. As prioridades do Senhor devem ser as nossas. Quando começamos a reorientar nosso foco para o Senhor e suas prioridades, começamos a ver que o conflito que vivemos não é um acaso, mas sim um treinamento dado por Deus, e que a prioridade do Senhor é a redenção e a reconciliação. Paulo continua nos versículos 5-6 aplicando a teologia à atitude pecadora do coração. E essa atitude que revela afalta de Deus no conflito. No versículo 5 Paulo diz: "Seja a vossa bondade conhecida por todos os homens. O Senhor está perto." Esse é mais um conselho que nos parece enigmático e sem qualquer relação com o chamado para que Evódia e Síntique se reconciliassem — até que paramos para pensar naquilo que o conflito gera. O conflito gera insensibilidade. As ofensas nos deixam furiosos. Em meio ao conflito, tendemos a ficar irritados e ofendidos com os outros. Falamos sem pensar, demoramos a escutar e ficamos com raiva com facilidade, utilizamos nossas línguas como espadas imprudentes e passamos por cima das pessoas. Não deveria nos admirar, portanto, o fato de que Paulo aconselhe aqueles em conflito a serem gentis e bondosos. Mas ele faz mais. Paulo acrescenta uma razão relacionada à dimensão vertical da nossa relação com Deus: "Seja a vossa bondade conhecida por todos os homens. O Senhor está perto" (Fp 4.5). Essa declaração é ao mesmo tempo uma promessa e um aviso. Ela traz para nós, que precisamos da graça do autocontrole, uma promessa: a promessa de que Deus está presente para nos ajudar, de que ele não nos abandonou e que sua graça é suficiente para nós. No entanto, ela também avisa aqueles que são muito orgulhosos para exercer o autocontrole: o Senhor está

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presente e próximo. Os olhos de Deus estão sobre nós para ver se nos voltamos para ele em busca de ajuda. Portanto, vamos agir com reverência diante de Deus e com bondade diante um do outro. Se o conflito traz indiferença, ele também gera ansiedade. Portanto, Paulo nos diz a seguir para deixar de lado nossa ansiedade e substituí-la por uma confiança piedosa em Deus: "Não andeis ansiosos por coisa alguma; pelo contrário, sejam os vossos pedidos plenamente conhecidos diante de Deus" (Fp 4.6). Pois qualquer que fosse o motivo pelo qual Evódia e Síntique estavam brigando, não é difícil imaginá-las lutando contra a ansiedade, a preocupação e o medo. No conflito, nossos corações se enchem de medo das consequências que esperamos enfrentar ou sobre o tempo que nos custará a busca de uma solução. Além do mais, quando alguém faz uma acusação contra nós, tememos ser descobertos, expostos e publicamente envergonhados. Quando a fofoca inevitavelmente se espalha, tememos que nossa reputação seja prejudicada e nosso nome difamado. Tememos até mesmo uma ação judicial. Fica evidente, então, como a ansiedade e o medo podem se tornar deuses poderosos e como nosso coração, lamentavelmente, irá se encolher diante de suas ameaças e se render às suas ordens. E em vez de reagir ao conflito segundo nossos princípios, nós cedemos aos medos que ele nos provoca. Negamos o problema, tentamos ignorá-lo, construímos barreiras para nos proteger ou reagimos com agressividade. Raramente nos submetemos a Deus e levamos a ele nossas súplicas, que é precisamente o que Paulo nos diz para fazer. Ele instrui a igreja a deixar de lado a ansiedade e substituí-la por oração e ação de graças. A ansiedade deve ser levada a Deus e nosso conflito deve ser colocado diante da perspectiva de tudo que Deus fez e está fazendo em nossa vida. Quando lançamos nossas ansiedades aos pés do Senhor, Paulo promete que a paz de Deus guardará nosso coração e mente em Jesus Cristo. Note como essa promessa sustenta o imperativo, como a graça assegura a lei. Nós podemos orar porque nosso Deus é um Deus que ouve nossa oração e dá a graça da paz a seus filhos ansiosos. Por último Paulo ordena: "Tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai" (Fp 4.8). O conflito nos faz perder a perspectiva e ver as coisas de maneira míope. O objeto da ofensa toma conta do nosso horizonte. E por isso que Paulo propõe que voltemos nossos pensamentos para o que é nobre, verdadeiro e bom. Ele não está nos propondo colocar óculos cor-de-rosa ou deixar de lado o mal que nos foi feito. Ao contrário, ele está nos aconselhando a não permitir que determinada ofensa envenene nosso relacionamento com a outra pessoa. Quando nossa visão se

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afunila em torno do conflito, vemos apenas a ofensa da outra pessoa contra nós. Essa perspectiva só nos leva a pensar mal da outra pessoa e nos cega para todo o bem que ela já fez. Por isso Paulo está nos encorajando a ver as coisas de uma perspectiva correta, como elas realmente são. Eu me lembro de uma noite em que estava sentado sozinho na minha sala de estar, fervendo de raiva mesmo enquanto lia a Bíblia. Minha mulher havia agido mal comigo naquele dia e com o passar do dia aquilo havia se avolumado dentro de mim e se tornado uma ofensa enorme. Pouco a pouco a Palavra de Deus começou a penetrar em meu coração de pedra com sua mensagem de graça e perdão para mim. E enquanto isso acontecia, aquela ofensa foi recolocada dentro da devida perspectiva. Eu percebi que o cisco do pecado que minha mulher cometera havia se tornado uma trave em meus olhos, bloqueando a minha visão dos últimos vinte e cinco anos de amor, afeição e trabalho que ela dedicara a mim, aos nossos filhos e aos outros. A palavra de graça que sai dos lábios de Deus condenou o meu pecado. Eu não havia apenas pecado contra minha esposa, eu havia pecado contra Deus. Então me ajoelhei e confessei meu pecado a ele. Eu me segurei firmemente em sua promessa de perdão. Depois corri até o quarto onde ela estava dormindo para acordá-la e confessar meus pecados. Assim como aconteceu comigo, acredito que apenas o evangelho pode dar nova perspectiva das coisas — primeiro para ver Deus de uma nova ótica e então ver nosso irmão ou irmã de uma perspectiva correta. Como pastores pacificadores, somos chamados a ajudar a restaurar essa visão, trazendo as lentes corretivas do evangelho para que atuem sobre a visão distorcida que nosso povo tem de si mesmo em meio ao conflito. Devemos trabalhar para fazer com que nosso povo veja o Senhor em toda a sua glória, sabedoria, poder, bondade, justiça, misericórdia e verdade, à medida que as lentes do evangelho atuarem sobre o conflito. Pelo Espírito e por meio da Palavra, podemos ajudar a abrir os olhos cegos das pessoas para que possam ver seu pecado, a forma como agiram com raiva, ansiedade e medo e como isso as cegou para Deus e para seu irmão.

Confessando nossos pecados uns aos outros Uma vez que tenhamos ajudado a pessoa a identificar e confessar sua atitude pecadora diante de Deus, podemos ajudá-la a se confessar para a outra parte do conflito. Nós, líderes, com frequência supomos que as pessoas da nossa igreja sabem o que é uma confissão benfeita. Essa suposição talvez seja excessivamente bondosa. Presenciei muitas vezes a maneira como confissões malfeitas só pioraram o sentimento de ofensa que já inquieta o coração do ofendido. Ironicamente, a pessoa que vai se confessar diante do outro também costuma subverter a própria intenção de se confessar, utilizando um tom de voz acusatório ou fazendo um pedido de perdão não verdadeiro. Ao mesmo tempo, quem recebe o pedido de

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perdão frequentemente é levado a sentir como se fosse culpado. Como Tiago diz: "Meus irmãos, isso não deve ser assim" (Tg 3.10)! Considero os sete pontos da confissão, elaborados por Ken Sande'', um guia prático e extremamente útil para ensinar as pessoas como fazer uma confissão clara e sincera. Vou comentar mais a fundo cada um deles, e farei algumas modificações, unindo o ponto "reconheça a ofensa" ao ponto "admita de forma específica"' e acrescentando "dê tempo ao tempo" como último ponto. 1. Dirija-se a todos os envolvidos. O primeiro modo pelo qual as pessoas enfraquecem sua confissão é deixando de se dirigir a todos os envolvidos no conflito. A primeira pessoa a quem devemos nos dirigir quando confessamos um pecado é Deus. Como Davi diz no Salmo 51.4, "Pequei contra ti, e contra ti somente, e fiz o que é mau diante dos teus olhos." Embora Davi tenha pecado contra BateSeba e por fim confessa a ela, ele entende que seu pecado mais grave foi contra Deus. Lamentavelmente, em todos esses anos como pastor e conselheiro, quando pergunto às pessoas em conflito, "você já confessou seu pecado a Deus?", a grande maioria admite que não. O conflito nos cega verdadeiramente a Deus. Porém, essa mesma admissão abre as portas para nós, pastores, colocarmos em prática a própria obra para a qual Deus nos chamou: levar as pessoas de volta a ele. Ela também dá oportunidade de anunciarmos a elas as maravilhosas promessas divinas de perdão e purificação (veja 1Jo 1.8-9). Ele nos perdoa até mesmo quando confessamos nossa falha em confessar. O pecado não afeta somente a pessoa que ofendemos diretamente, mas também outras pessoas indiretamente envolvidas no conflito. Algum tempo atrás perguntei a minha esposa se ela gostaria de fazer uma caminhada no final da tarde. Eu estava me sentindo muito bem por ter tomado a iniciativa de convidála e desejar sua companhia. Ela disse sim e começou a se arrumar para sair. Eu esperei. Quando ela quis trazer o cachorro, eu concordei, mas então ela não conseguia encontrar a coleira. Quando encontrou uma, estava quebrada, então pegou outra, mas estava sem fecho. Quando ela foi procurar outra, eu explodi: "Agora já chega! Vá passear com o cachorro. Eu tenho trabalho a fazer". Saí pisando duro e me tranquei no meu escritório para escrever um sermão — provavelmente sobre pacificação!

4 SANDE, The Peacemaker, p. 126-34. Quanto mais séria a ofensa, mais necessário é fazer uma confissão completa e detalhada. 'Reconhecer a ofensa significa reconhecer o remorso por ter feito mal a alguém. Eu coloco esse tópico junto com admita de forma específica porque existe uma sobreposição suficiente entre esses dois tópicos para apresentá-los como um só. A ideia é expressar o remorso por alguma coisa específica — não sobre alguma "culpa" amorfa e abstrata. Ao mesmo tempo, também não admitimos simplesmente uma lista de coisas específicas; expressamos remorso de cunho moral e emocional pelo que fizemos.

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No dia seguinte, enquanto memorizava a passagem de Gálatas 5.22 sobre os frutos do Espírito, Deus entrou em meu coração de pedra e mostrou o meu pecado: minha impaciência. Ele me mostrou que eu não havia apenas sido impaciente, mas tinha demonstrado falta de amor, crueldade, tinha sido áspero, destemperado e assim por diante. Aquela noite na mesa do jantar eu sabia que tinha que confessar meu pecado não apenas para minha esposa, mas também para minhas filhas, pois todas elas tinham ouvido e visto o que eu fizera. Nossos pecados podem atingir uma pessoa específica, mas geralmente envolvem outras. Portanto, precisamos nos dirigir a todos os envolvidos: a Deus, à pessoa a qual ofendemos e aos que presenciaram tudo. 2. Evite dizer se, mas e talvez. Uma segunda maneira pela qual as pessoas enfraquecem e geralmente destroem uma confissão é quando acrescentam qualificadores específicos à sua confissão. Um bom exemplo é uma declaração feita por um senador dos Estados Unidos há alguns anos, na qual ele confessou estar cometendo assédio sexual contra algumas jovens de sua equipe. Observe as palavras-chave que arruínam esta confissão: "Se algum de meus comentários ou ações tiverem de fato sido inconvenientes, ou se me conduzi de maneira que causou qualquer desconforto ou vergonha a algum membro de minha equipe, por isso estou sinceramente arrependido. Nunca tive a intenção de pressionar, ofender, ou de fazer ninguém se sentir desconfortável, e eu lamento sinceramente se isso ocorreu com qualquer um dentro ou fora de minha equipe".6 As palavras-chave são se e intenção. Se, mas e talvez são palavras que travam qualquer confissão. Efetivamente apagam todas as palavras confessadas antes e depois delas. Além do mais, transformam a confissão em uma forma sutil de transferir a culpa e geralmente transferem-na para aquele cujo perdão estamos buscando! O mesmo pode ser dito da expressão "nunca tive a intenção". Ainda que possa ser verdade que não tivéssemos a intenção de machucar ninguém com a atitude que tomamos, dizer "nunca tive a intenção" é algo que mais nos exime da culpa do que admite o verdadeiro mal que fizemos e a ofensa que cometemos. O segundo ponto de uma confissão benfeita, portanto, é "evitar" o uso de qualificadores desse tipo. Uma maneira de testar a força de nossa confissão é fazê-la para Deus. O que Deus pensaria se disséssemos a ele: "Senhor, por favor, perdoe-me, pelo sangue de seu Filho, Jesus Cristo, mas saiba que não era minha intenção pecar", ou "Se eu não estivesse sob tanto estresse, não teria pecado contra ti"? Ao perceber como essas palavrinhas qualificadoras minimizam nosso pecado diante do Senhor, podemos entender melhor como nossa confissão é inadequada. Podemos ver como uma confissão como essa minimiza não apenas nossa culpa, mas também a redenção de Cristo. 6 Ex-Senador Robert Packwood, conforme relatado pela Associated Press, "Oregon Senator Accused of Many Sexual Advances," Billings Gazette, 11 de Dezembro de 1992.

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3. Admita de forma específica. Ao ensinar as pessoas a fazerem uma confissão sólida, devemos instruí-las a admitir seu pecado de forma específica. Quando as pessoas confessam seus pecados apenas dizendo "me desculpe" ou "me desculpe se te magoei", isso logo nos leva a perguntar: "Devo desculpá-lo pelo quê?" O que está faltando é especificidade. Consequentemente, confissões genéricas fazem parecer à parte ofendida que o ofensor não percebe a gravidade de sua ofensa. E importante notar aqui que admitir deforma especifica não sugere que o perdão dependa de admitir toda uma lista de pecados como numa confissão medieval. Ao contrário, ao confessar de forma honesta e específica, estamos informando a parte da qual buscamos perdão que reconhecemos a gravidade de nossa ofensa e o modo como pecamos contra ela e a machucamos. Confissões genéricas também dão pouca evidência de que o ofensor está verdadeiramente arrependido de seu pecado. Veja novamente a declaração do senador que demos como exemplo acima. Ele declara que está de desculpando pelo que fez, mas seu pedido de desculpas é desfeito por sua observação anterior: "Não tecerei comentários sobre nenhuma alegação específica". Como ele pode estar "sinceramente arrependido" quando não está convencido de como ele especificamente ofendeu alguém? Além disso, em vez de se concentrar em si mesmo e na gravidade de sua ofensa, ele se volta para o modo como ela afetou os ofendidos: "se me conduzi de maneira que causou qualquer desconforto ou vergonha a algum membro de minha equipe, [...] Nunca tive a intenção de pressionar, ofender, ou de fazer ninguém se sentir desconfortdvel" (itálico acrescentado). Em outras palavras, sua maneira de dizer "desculpe-me, eu magoei você" retrata de forma incorreta a sua ofensa, fazendo com que ela pareça simplesmente a causa do desconforto emocional da parte ofendida, em vez de reconhecê-la pelo que ela realmente é: uma transgressão da lei moral de Deus. Por isso essa confissão fracassa em demonstrar qualquer evidência de arrependimento verdadeiro. Uma maneira pela qual ajudo as pessoas em conflito a fazerem confissões específicas é apresentando-lhes dois exemplos. Eu digo: "Destes dois exemplos que eu vou dar, me diga qual lhe parece uma confissão sincera". Então, eu digo: "Desculpe-me por chatear você". Logo em seguida, faço uma confissão sincera e específica: "João, quero que saiba que, enquanto pensava sobre o que fiz a você, me dei conta de que te tratei mal. Eu envergonhei você publicamente aquela noite na festa. O que eu fiz foi errado e sei que devo tê-lo magoado profundamente". Inevitavelmente as pessoas percebem a notável diferença entre os dois tipos de confissão, e ficam mais propensas a ouvir sobre como podem confessar sinceramente seu próprio pecado para a pessoa a quem ofenderam. Outra maneira para encorajar as pessoas a serem específicas quando se confessam é relembrá-las de que Cristo morreu por pecados específicos, não apenas por pecados genéricos. Por exemplo, Mateus 5.22 nos ensina, indiretamente, que

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Cristo morreu pelas palavras específicas e impensadas que dizemos uns aos outros como "insensato" e "tolo". Cristo perdoa não apenas o pecado em geral, mas nossos pecados específicos.' Finalmente, quando eu instruo as pessoas a evitarem usar essas palavras qualificadoras, costumo testar a força de sua confissão desafiando-as a fazê-la diretamente a Deus. Por exemplo, em uma reunião de mediação, quando as pessoas estão dispostas e prontas a confessar seu pecado, repasso com elas os sete pontos da confissão. Então elas contam para mim o que planejam dizer. Inevitavelmente, na confissão aparece várias vezes a palavra "desculpa" mais falta algo de específico ou concreto. Então pergunto a elas se é assim que confessariam seu pecado a Deus. Então digo, "repita sua confissão para ele", como se a confissão estivesse sendo feita ao Senhor. Geralmente quando a ouvem com os "ouvidos de Deus", começam a notar quão fraca e inadequada sua confissão soa. 4. Aceite as consequências. Em uma confissão benfeita a pessoa reconhece que deve aceitar as consequências de suas ações. Muitas pessoas têm dificuldade de perdoar a outra, pois aquela que está se confessando não admite as consequências de seu comportamento ofensivo. Teologicamente falando, podemos dizer que uma pessoa faz uma confissão desse tipo porque separa a justificação de Deus (o fato de que Deus perdoa) de sua santificação (o fato de que Deus nos convida a produzir o fruto do arrependimento), aceitando a primeira e rejeitando a última. Já ouvi um caso em que uma tesoureira da igreja entrou no escritório do pastor dizendo que precisava confessar um pecado. Ela estava desviando dinheiro da igreja já há alguns meses e havia roubado uma soma substancial. Após confessar seu pecado, o pastor a assegurou do perdão de Deus. Quando ela se levantou para sair, ele disse a ela que deveria abordar os líderes da igreja para ver como poderia fazer a restituição. Nesse momento, a mulher ficou nervosa: "Mas eu confessei meu pecado. E você disse que eu estava perdoada". Ela confessara seu pecado, mas não queria aceitar as consequências de seu comportamento. Em casos assim, nós, como pastores pacificadores, devemos ajudar o confessor a refletir e aceitar as potenciais consequências de seu comportamento, aceitando assim não apenas o perdão de Deus, mas também seu chamado ao arrependimento. Esse processo leva naturalmente à quinta característica de uma confissão benfeita. 5. Mude seu comportamento. Uma confissão benfeita também incluirá o compromisso da pessoa, pela graça de Deus, mudar seu comportamento. Se nosso objetivo é crescer para sermos como Cristo, então só confessar não é o bastante.

Não estou sugerindo que a confissão só possa ser verdadeira se a pessoa confessar todos seus pecados específicos. Neste caso, nenhum de nós conseguiria fazer uma confissão completa. Em vez disso, estou buscando confrontar o erro comum que as pessoas cometem por confessar apenas de maneira genérica que pecaram e erraram.

CONFESSA.NDO NOSSOS PECTAf)OS I- INS PARA OS OUTROS

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Precisamos mudar nosso comportamento. Devemos colocar nossa confissão em ação, substituindo hábitos pecaminosos por hábitos piedosos, como Paulo diz em Efésios 4.31-32: "Toda amargura, cólera, ira, gritaria e blasfêmia sejam eliminadas do meio de vós, bem como toda maldade. Pelo contrário, sede bondosos e tende compaixão uns para com os outros, perdoando uns aos outros, assim como Deus vos perdoou em Cristo." Além disso, provaremos a sinceridade de nossa confissão se levarmos a sério nossa mudança de comportamento. Esse desejo de mudar é demonstrado de modo mais tangível quando o ofensor faz em sua confissão uma lista das ações que tomará para remediar a ofensa. Um dos grandes benefícios de compartilhar esses planos é que a pessoa ofendida fica mais propensa a perdoar. 6. Peça perdão. Uma confissão benfeita não apenas admite o pecado, mas também pede perdão. Em vinte e cinco anos de pastoreio, posso contar nos dedos as vezes em que ouvi alguém dizer: "Você me perdoa?". A maioria das vezes as pessoas, quando confessam algo, partem do pressuposto que o pedido de perdão está implícito em seu pedido de desculpa. Então o que geralmente ouço é "Me desculpe" e, como resposta, a parte ofendida concede o perdão. Mas essa suposição não está correta. Uma confissão adequada precisa incluir um pedido sincero de perdão. Precisamos perguntar à pessoa que ofendemos, magoamos ou prejudicamos, "Você me perdoa?", pois ao perguntar isso, reconhecemos e assumimos que não podemos perdoar a nós mesmos. Devemos pedir a outra pessoa que nos perdoe, pois nossa ofensa foi contra ela, e apenas essa pessoa (além de Deus) pode nos liberar da dívida de nosso pecado contra ela, perdoando-nos. 7. Dê tempo ao tempo. O último passo ao fazer uma confissão de peso é dar tempo para a parte ofendida perdoar. Partindo do pressuposto de que a pessoa que estamos aconselhando tenha feito uma confissão benfeita, nós, como pastores pacificadores, temos a incumbência de ajudá-la a ver a diferença entre a reação imediata de Deus diante de uma confissão feita e as várias razões pelas quais aquele que foi ofendido pode demorar a reagir a ela. Quando pedimos a Deus que perdoe nossos pecados, ele nos perdoa imediatamente, pois prometeu nos perdoar quando pedirmos. E assim que o apóstolo João nos encoraja:"Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça" (1Jo 1.9). Como pastor ou líder espiritual, é importante apontar para aqueles que você aconselha essa e outras passagens da Escritura que nos asseguram do perdão de Deus.'

8 Passagens ricas e explícitas das promessas do evangelho sobre o perdão ou a salvação permeiam a Escritura. Algumas que costumo usar são Ex 33.18-34.7; S1 103.8-13; Jr 31.34; Ez 18.30-32; Rm 3.9-26; 5.1-11; 8.1; 2Pe 3.9.

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Embora Deus nos perdoe imediatamente, o ser humano não o faz. Algumas vezes as pessoas se mostram relutantes ou lentas em perdoar. Essa reação em si pode se tornar uma causa para um conflito posterior. A demora em perdoar pode levar a pessoa que confessa seus pecados a pensar que continua não perdoada. Se a consciência do confessor for frágil, ele pode continuar preocupado com essa falta de perdão e desenvolver sentimentos de mágoa e tristeza. Em casos assim, é importante que ajudemos o confessor a dar tempo à pessoa ofendida. Devemos ensiná-lo que a parte ofendida precisa de tempo para orar sobre a confissão feita e trabalhar seus sentimentos. Além disso, devemos ajudar o confessor a separar suas responsabilidades das responsabilidades da pessoa que é chamada a perdoar. Por exemplo, se confesso meu pecado a um irmão, não posso e não devo ser a pessoa que demanda o seu perdão. Diante de Deus, é minha responsabilidade confessar o meu pecado, enquanto a responsabilidade dele é perdoar. Esse conselho para dar um tempo não é um conselho para não se fazer nada. Ao contrário, podemos encorajar o confessor a usar esse período de espera para refletir sobre a seriedade de seu pecado e em como ele é destrutivo, enquanto ao mesmo tempo ele contempla quão grande é a obra reparadora de Cristo em seu nome, para que Deus possa perdoá-lo. Também devemos encorajar o confessor a orar pela pessoa ofendida que está relutando em perdoá-lo. O confessor pode refletir sobre essa demora em perdoar assim como sobre as muitas coisas que podem tentar a pessoa que foi ofendida a não perdoar, algo que irá então roubar o contentamento dessa pessoa no evangelho. Assim, o confessor pode orar para que a pessoa ofendida seja libertada da amargura, dos pensamentos de vingança e do pesar da perda. Tomar esses passos é um modo proativo de dar tempo ao tempo. Em resumo, esses sete pontos da confissão são um guia útil para acompanhar uma pessoa na confissão de seu pecado diante de outra. Eles não devem ser levados ao pé da letra, é claro, como se uma confissão só fosse verdadeira se cada ponto fosse cumprido à risca. Em vez disso, pense nesses sete passos como uma lista de checagem ou um planejamento para chegar a uma confissão sincera. REFLEXÕES SOBRE A CONFISSÃO Todas as vezes que estamos em conflito precisamos considerar o papel que desempenhamos no conflito e confessá-lo. Como posso ter ofendido a outra pessoa? Qual foi o tom de voz que usei? O que eu deveria ter dito ou feito que deixei de dizer ou fazer? O que disse ou fiz que não deveria ter feito? Todo conflito em que estamos envolvidos é uma oportunidade para uma análise pessoal. Como Davi, precisamos orar: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me e conhece os meus

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pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno" (Si 139.23-24). Sempre fico impressionado com esse pedido de Davi. Há alguns anos a capital de nossa nação estava em tumulto por causa da nomeação de um conselho independente para investigar as violações da lei e a má conduta de nosso presidente. Aqui, no Salmo 139, Davi pede ao Espírito de Deus para ser esse conselho independente, pedindo a ele não apenas para encontrar simples provas documentais, mas para sondar seu coração. Essa súplica demonstra a verdadeira liderança bíblica, pois Davi reconhece que a confissão do pecado deve começar por si mesmo, por nós, pastores. Devemos liderar por ensinamentos e pelo exemplo. Uma excelente história sobre o poder da graça presente de Deus em favor daqueles que confessam seu pecado recentemente chamou minha atenção na organização em que trabalho. Uma denominação específica solicitou que o Peacemaker Ministries apresentasse um seminário sobre pacificação antes de sua assembleia nacional. Depois desse evento, recebemos uma carta de um dos líderes da denominação. Ele compartilhou que após terem ouvido o chamado de Cristo para que fossem pacificadores, as coisas na assembleia nacional não poderiam continuar como de costume. Em vez disso, a assembleia experimentou um verdadeiro espírito pacificador de amor fraternal. Como o líder denominacional contou: O comitê que estava trabalhando na revisão do pacto de membresia voluntariamente tomou de volta seu trabalho, dizendo que existiam novas questões que necessitavam ser tratadas à luz do que fora dito na conferência sobre pacificação. O comitê que estava trabalhando no código de disciplina levantou e engajou a Assembleia em algumas discussões de pontos de vista, mas o trabalho em si foi retomado [...] para olharem mais a fundo as questões levantadas pelo chamado feito para sermos pacificadores. Um dos comitês arregaçou as mangas e tratou de um conflito que vinha se arrastando por vinte e cinco anos. Eles apresentaram um relatório no último dia com um relato equilibrado da questão e encorajaram todas as partes envolvidas a perguntarem: "O que eu fiz para contribuir com esse conflito atual?". Em seguida, foi feita uma oração e então cantamos um Salmo. Enquanto cantávamos um dos homens que havia ficado de um dos lados da questão foi visto com o braço em torno de outro homem, que havia ficado do lado oposto, e lágrimas corriam por seu rosto.'

Não devemos ver esse espírito de pacificação como algo fora do normal, mas como norma para os líderes de Deus. Que glória foi dada a Cristo naquele dia e à sua igreja, quando uma denominação inteira de ministros começou a tirar as vendas dos próprios olhos, confessou seus pecados e perdoou um ao outro! Que essa confissão se torne uma prática regular nas vidas de nossas famílias,

'Carta escrita a David Edling do Peacemaker Ministries. Utilizada com permissão.

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igrejas, e denominações para que o mundo possa ver o evangelho da graça no modo como vivemos. Pai Todo-poderoso e misericordioso; Erramos e nos distanciamos de seus caminhos como ovelhas perdidas. Seguimos em demasia os planos e desejos de nossos próprios corações. Transgredimos suas leis divinas. Não fizemos o que deveríamos ter feito; E fizemos o que não deveríamos ter feito; Não há saúde em nós. Mas tu, ó Senhor, tenha misericórdia de nós, miseráveis transgressores. Poupe, ó Deus, aqueles que confessam suas culpas. Restaure, ó Senhor, aqueles que são penitentes; Segundo as promessas que fizeste à humanidade em Jesus Cristo, nosso Senhor. E conceda, ó Pai misericordioso, por causa de Cristo; Que possamos de agora em diante viver uma vida piedosa, correta e sóbria, Para a glória de seu santo nome. Amém."

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Extraído de Book of Common Prayer. Nova York: Seabury Press, 1953, p. 6.

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onforme vimos no capítulo 6, Cristo nos convida, como líderes espirituais da igreja, a gentilmente restaurar no coração de nossos irmãos pecadores a esperança de que eles poderão confessar seu pecado a Deus e àquele a quem ofenderam. No entanto, como parte desse processo, uma pergunta que geralmente deixamos de fazer ao ofendido é: "Você pode ou deve deixar passar essa ofensa?" Neste mundo conturbado que constantemente incita o pecado, devemos olhar a cada ofensa como um chamado para "nos reconciliarmos", ou Deus nos permite deixar passar e tolerar uma certa dose pecado? Eu uso a palavra tolerar em sua acepção que vem do latim — ou seja, no sentido de "aguentar ou suportar um fardo". Tolerar o pecado de alguém não é de forma alguma minimizar os imperativos morais absolutos que Deus exige. Ao contrário, fechar os olhos para o pecado requer o julgamento do pecado. Tolerar o pecado é antes de tudo julgar que a pessoa realmente cometeu um dano moral. Então, tolerar ou deixar passar um pecado é algo que só pode ser feito corretamente se, antes de tudo, o pecado cometido for julgado por aquilo que é: uma ofensa contra Deus e contra o próximo.

QUANDO DEVEMOS DEIXAR PASSAR UMA OFENSA? Deixar passar ou tolerar o pecado de outra pessoa requer mais do que um julgamento inicial do pecado. Também requer que eu julgue a minha paciência, ou seja, se naquele momento eu conseguirei suportar, resistir e ser paciente diante de uma atitude ou ação pecadora específica de alguém. E faço esse julgamento reconhecendo que a santificação é uma transformação progressiva, e assim espero que Deus transforme essa pessoa em seu devido tempo. Essa resposta ao pecado não deve ser novidade para nós, pois o próprio Deus tolera os pecadores. Embora todo pecado mereça a ira de Deus, ele não nos aniquila imediatamente a cada ofensa cometida. Em vez disso, ele exerce sua "bondade, tolerância e paciência" para conosco, na esperança de que nós nos distanciaremos do pecado e nos voltaremos para ele (Rm 2.4). E por Deus ser paciente em relação

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a nós que somos convidados a ser igualmente pacientes em relação aos outros — a ser pacientes a despeito do seu pecado (Ef 4.2). Por Deus ser o primeiro pai, temos seu modelo de pai para seguir. Como um pai sábio, Deus não pega seus filhos pelo colarinho a cada infração de suas regras. Pelo contrário, ele prefere trabalhar nas áreas fundamentais e essenciais onde precisamos melhorar. Nós, também, seguindo os passos de nosso Pai, procuramos tolerar os pecados menores de nossos filhos, para que possamos auxiliá-los a se concentrarem em seus pecados constantes, aqueles em cujas garras estamos presos e que nos levam a hábitos que dominam nossa vida. Não é surpresa, portanto, o fato de que Deus nos encoraja algumas vezes a deixar passar uma ofensa: "A sensatez do homem o torna paciente, e sua virtude está em esquecer as ofensas" (Pv 19.11). "A ira do insensato logo se revela, mas o prudente encobre o insulto" (Pv 12.16). Deixar passar uma ofensa é uma expressão de justiça da parte de um pacificador, se a ofensa não for séria. E claro que a palavra séria leva à pergunta: "Como determinamos se uma ofensa é séria e quando nós, como pastores, devemos aconselhar alguém a deixar passar uma ofensa?". E existem ainda outras questões relacionadas a isso: "Como podemos diferenciar a verdadeira virtude e graça de deixar passar um pecado da atitude de falsa negação ou fuga?". Quando somos verdadeiros pacificadores e não apenas falsificadores da paz? Como essas perguntas requerem informações específicas sobre o caso em questão, não podemos criar regras absolutas. Em lugar disso, devemos buscar uma sabedoria maior. Como mencionei anteriormente, deixar passar uma ofensa requer dois tipos de julgamento, aos quais me referi como o julgamento do pecado e o julgamento da paciência. Esses dois julgamentos trabalham em conjunto. Primeiramente, o julgamento do pecado sabiamente reconhece e identifica o pecado. Então, o julgamento da paciência busca discernir a natureza, qualidade e caráter daquele pecado específico e no que ele difere de outros pecados. O Catecismo Maior de Westminster, um documento histórico e padrão seguido por muitas igrejas presbiterianas e congregacionais, fornece uma ajuda extremamente útil para nos guiar nessa distinção. Na pergunta 150, ele diz: "Todas as transgressões da lei de Deus são igualmente hediondas em si mesmas e na visão de Deus? E responde a essa pergunta com um retumbante "não", dizendo que, com efeito, embora todos os pecados sejam hediondos ou perversos aos olhos de Deus e aos nossos próprios olhos, nem todos os pecados são igualmente hediondos. Deus considera alguns pecados mais hediondos do que outros. Essa qualificação é garantida pela Escritura, que faz uma graduação de pecados e fornece diversos critérios gerais para julgar um pecado como mais hediondo que outro.' 'Por exemplo, Levítico 4.1-6.7 fala sobre pecados não intencionais e intencionais, pecados por omissão e comissão. Veja o Catecismo Maior de Westminster, pergunta e resposta 150 e 151 em Westminster Confession of Faith, p. 109.

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O que, então, torna alguns pecados mais hediondos? Que critérios devemos usar quando estivermos considerando se devemos deixar passar uma ofensa? O catecismo responde com quatro orientações gerais para discernir quais pecados são mais hediondos do que os outros.

Quem pecou? Primeiramente, devemos fazer a pergunta: Quem pecou? Os pecados são mais hediondos de acordo com o status ou privilégio que possui a pessoa que ofende a outra. E menos provável que se deixe passar um pecado cometido por alguém muito respeitado e que "tem mais conhecimento do que faz"do que por alguém que "tem menos conhecimento do que faz" (veja 2Sm 12.14, 1Rs 11.4,9; Rm 2.17-24, 2Co 5.1-13). Uma ofensa cometida por um cristão que confessou a Cristo e conhece os dez mandamentos é mais hedionda do que a mesma ofensa cometida por um não cristão que não traz no coração a palavra de Deus ou não a aprendeu. Da mesma forma, uma pessoa em posição de autoridade é mais responsável que seus subordinados (veja Sm 12.7-9; Jr 5.4-5; Ez 8.11-12; Rm 2.17-24). Quando a ofensa é cometida por um pai, professor ou autoridade civil é mais provável que não se deva deixa o pecado passar. Esse princípio também vale para nós que ocupamos cargos na igreja. Em vez de adotar uma mentalidade corporativista que deixa passar as ofensas e falhas de nossos colegas líderes, nós deveríamos ser os mais abertos a críticas.2 Devemos ser os primeiros a reconhecer a grave natureza do nosso pecado, e caso ele seja de natureza pública, devemos aproveitar a oportunidade para dar o exemplo aos membros da igreja por meio da nossa própria confissão pública.

Pecou contra quem? Em segundo lugar, consideramos alguns pecados mais hediondos que outros de acordo com o status da pessoa ofendida. Aqui devemos perguntar: Contra quem foi cometida a ofensa? Esse pecado é daquele tipo que abertamente desonra ou ridiculariza a Deus? Num certo sentido, todas as ofensas desonram Deus, mas há ofensas específicas que difamam publicamente seu nome ou sua causa. Por exemplo, os mercadores que vendiam mercadorias no templo estavam aberta e descaradamente pecando contra Deus. Assim, quando Jesus chega para expulsálos do templo, ele exclama: "Está escrito: A minha casa será casa de oração; vós, porém, a transformastes em antro de assaltantes" (Lc 19.46). Além disso, devemos perguntar: O ofendido ocupa uma posição de autoridade? Pecar contra um presbítero ou pastor é mais sério do que pecar contra um colega. Judas descreve os iníquos dizendo que eles rejeitam a autoridade e 2 Veja minha brochura, Alfred J. POIRIER, Words that Cut: Learning to Take Criticism in Light of the Gospel. Billings: Peacemaker Ministries, 2003.

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difamam os anjos (literalmente, as glórias).3 Isaías descreve a decadência moral de Israel prevendo que o menino se rebelará contra o ancião e o desprezível contra o nobre (Is 3.5). Paulo instrui Timóteo a alertar a igreja a nem sequer cogitar fazer uma acusação contra um presbítero, a não ser que a alegação seja feita por duas testemunhas (1Tm 5.19; cf. Dt 19.15). Também é mais grave pecar contra alguém com quem tenhamos um relacionamento próximo, como uma esposa ou um irmão em Cristo, do que contra um estranho ou não crente (1Co 6.8). Paulo diz à igreja de Corinto para deixar que Deus julgue os pecados do mundo, mas os repreende por deixarem de julgar os da casa de Deus. O membro que estava cometendo incesto com a mulher de seu pai devia ser condenado e banido, caso não se arrependesse (1Co 5.1-13), pois um pouco de má influência contamina todo o grupo. Em outras palavras, o pecado dele deve ser levado muito a sério porque pode potencialmente corromper os membros de todo o corpo. Finalmente, um pecado é mais hediondo se cometido contra pessoas mais fracas. Jesus profere um "ai" para cada um que leve um de seus pequeninos a pecar (Mt 18.6-9). Embora esse aviso seja claramente para os iníquos, ele também se aplica aos discípulos de Cristo. O apóstolo Paulo defende algo similar quando fala de ofender nossos irmãos mais fracos (Rm 14; 1Co 8.11-12). Ele expressa choque em relação a certos crentes de Corinto que, tendo uma consciência forte a respeito das liberdades cristãs, estão tentando aqueles de consciência mais fraca por meio de suas ações arrogantes.

Qual é a natureza da ofensa? Em terceiro lugar, alguns pecados são mais graves que outros de acordo com sua natureza e qualidade. Em alguns casos, o motivo que leva ao pecado difere. O dinheiro roubado da igreja foi resultado de uma necessidade física ou de um desejo de satisfazer algum prazer (Pv 6.30-32)? Em outros casos, a motivação do pecado deve ser considerada. Ele foi cometido por ignorância ou com conhecimento da letra expressa da lei? O pecado de Salomão de casar-se com diversas esposas estrangeiras é considerado um escândalo, pois Deus havia se revelado a Salomão e havia explicitamente lhe dito para não pecar em seus caminhos (1Rs 11.9-10). O pecado é mais hediondo se envolve atos em vez de apenas ser expressado em atitudes ou palavras. Ainda que possamos deixar passar o pecado de alguém que grita com a esposa, seríamos obrigados a reagir se ele a agredisse fisicamente.

3Calvino entende que a expressão as "glórias" se refere a autoridades civis ou eclesiásticas. Em contraste, outros tradutores veem a referência de Judas a "glórias" como uma referência aos seres angelicais. De qualquer modo, a força da desaprovação de Judas surge do fato de que os perversos rejeitam aqueles em posição de eminência e autoridade.

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Ou embora possamos deixar passar um compromisso cancelado para um encontro para jantar, não iríamos deixar passar em branco a quebra de uma promessa que envolvesse significativas consequências legais ou financeiras. Por exemplo, tivemos um caso no qual uma jovem quis alugar um imóvel de outro membro da igreja. Ela se comprometeu a alugá-lo e pagou o primeiro aluguel. Mas, passados quatro dias, a jovem voltou para a casa dos pais sem dar sequer um aviso prévio à proprietária do apartamento. A proprietária pediu que eu a aconselhasse, e me perguntou se deveria ir em busca de mediação ou arbitragem ou simplesmente deixar passar a ofensa. Nesse caso específico, decidimos que ela não deveria deixar passar essa ofensa, pois era de uma natureza que justificava que chamássemos a parte ofensora para se arrepender, fazer algum tipo de reparação, e ponderar com cuidado acerca da séria natureza de se manter as promessas legais e financeiras, mesmo quando elas possam pesar no bolso (veja Js 9.18-20; S1 15.4; Mt 5.33-37). Existem ofensas de muitos outros tipos que o catecismo nos apresenta para consideração. A ofensa foi cometida à luz de um conhecimento maior, após uma demonstração de misericórdia, ou depois de uma censura privada ou pública? Ela é cometida publicamente, de forma deliberada, com malícia ou frequência?4 A análise dessas qualidades pode fornecer a orientação necessária para determinar se devemos ou não deixar passar uma ofensa.

Quais foram as circunstâncias da ofensa? Por fim, podemos avaliar a gravidade de um pecado e julgar se é sábio ou não deixá-lo passar se levarmos em conta o tempo e local da ofensa. Ela foi cometida em dia de Santa Ceia ou durante o culto? Ela chegou a público de tal maneira que ao deixá-la passar estaríamos permitindo que a igreja fosse maculada? Certa vez tivemos um caso em que um membro da nossa igreja teve uma altercação com outro irmão em um restaurante local, por causa de um acordo de negócios. Palavras ameaçadoras foram trocadas e tudo isso foi feito publicamente. Ao ouvir sobre o incidente em segunda mão, fiz algumas perguntas sobre o problema. O membro da minha igreja achava que ele podia deixar passar a ofensa do outro. No entanto, tratava-se de uma questão que não se poderia deixar passar, mas que deveria ser resolvida — e tinha que ser por meio da mediação. Em síntese, existem quatro critérios gerais que podemos usar para avaliar se um pecado deve ser deixado passar ou tratado: Quem pecou? Contra quem o pecado foi cometido? Qual é a natureza da ofensa? E quais foram as circunstâncias

'Veja o Catecismo Maior de Westminster, pergunta e resposta 151, 3 em Westminster Confession of Faith, p. 112.

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da ofensa? Como líderes, devemos cuidadosamente aplicar esses critérios às circunstâncias de vida dos membros da igreja para que possamos aconselhá-los com sabedoria sobre como reagir. E claro que devemos também aplicá-los a nossas próprias vidas. Um incidente ao qual esses quatro critérios se aplicam envolveu um pecado que cometi. Certa vez, enquanto contava uma história sobre mim mesmo, usei o nome do Senhor em vão. Os que me ouviam deveriam ter deixado passar essa ofensa? Nesse caso, diversos fatores revelaram que não podiam deixar passar o meu pecado. Primeiro, eu, a parte ofensora, era o pastor. Em segundo lugar, as pessoas que eu ofendi (além do Senhor) eram meu rebanho, o que incluía os mais fracos e as crianças que têm uma dificuldade natural de controlar suas palavras. Em terceiro lugar, a natureza da ofensa foi que usei o nome do Senhor como uma mera interjeição, desvalorizando o santo nome de Deus. E finalmente, o tempo e local da ofensa foram o Dia do Senhor, durante a pregação da Palavra de Deus!

Duas questões que podem ser usados no diagnóstico Existem duas questões não tratadas no catecismo que podem nos auxiliar a determinar se devemos ou não deixar passar uma ofensa. Primeiro, a ofensa é um pecado persistente, um pecado habitual ou resultado de dependência de um pecado em particular? Paulo diz às igrejas da Galácia para restaurar aqueles que são surpreendidos em algum pecado (G16.1). O comentário de Siede sobre prolambanõ, a palavra grega para "surpreendido", é útil aqui: "Em Gálatas 6.1 Paulo nos encoraja a termos clemência diante de um pecador, se ele for 'surpreendido em algum pecado'. Aqui prolemphthe sugere que o 'pecador caiu forçosamente nas garras do pecado antes que fosse capaz de refletir'." Em outras palavras, ele está preso na armadilha do pecado e não pode se libertar. Assim, somos chamados a agir com misericórdia ao tentar libertá-lo. Certa vez vi um jovem da minha congregação em uma livraria local. Ele estava ao lado da banca de revistas, e quando me aproximei dele, pude ver que ele estava olhando material pornográfico. Embora pudesse ter passado despercebido, eu sabia que, como seu pastor, a coisa mais amorosa a fazer era me aproximar dele. Por causa da natureza explícita deste material eu não podia deixar passar a ofensa. A pornografia é algo que mutila e domina a vida da pessoa. Ele havia sido literalmente "surpreendido" em seu pecado. Então eu gentilmente me aproximei dele e coloquei a mão em seu ombro. Quando ele se virou para ver quem era, seu 5 Burghard SIEDE, "Take, Receive," em The New International Dictionary of New Testament Theology, vol. 3, ed. Colin Brown. Grand Rapids: Zondervan, 1997, p. 750 [Também publicado no Brasil por Edições Vida Nova sob o título Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento]. O pro funciona como um intensificador do verbo.

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rosto ficou vermelho de vergonha e culpa. Mesmo estando envergonhado como ele estava, esse encontro foi o começo de seu arrependimento, de muito aconselhamento e de um conhecimento maior da misericórdia e do poder de Deus para salvar pessoas com vícios sexuais. A segunda pergunta que podemos usar no diagnóstico é a seguinte: essa ofensa está atrapalhando meu relacionamento? Um bom modo de determinar se devemos deixar ou não passar determinado pecado é avaliando quaisquer mudanças em nosso relacionamento com a pessoa que nos ofendeu. Eu costumo aplicar o "teste dos dois dias": se eu me pegar frequentemente refletindo sobre o pecado cometido por um irmão ou irmã por mais de dois dias, se aquilo está lá quando me levanto e quando me deito, se me pego pensando nele enquanto estou tomando banho ou dirigindo, e se eu resisto a cumprimentar este sujeito na igreja, então não posso deixar passar a ofensa. Tenho que tratar do problema com essa pessoa. A partir dessas perguntas fica evidente que a maneira como reagimos às ofensas de outras pessoas é um chamado à sabedoria. Em alguns casos, as Escrituras indicam que é melhor deixar passar a ofensa — suportar o fardo do pecado de outra pessoa. Em outras situações, é mais caridoso se aproximar da outra pessoa na esperança de libertar nosso irmão ou irmã do pecado em que se encontra preso.

O PERDÃO VERDADEIRO NÃO É... Ainda que algumas vezes determinemos ser mais caridoso deixar passar uma ofensa, algumas vezes chegar a essa conclusão é de fato apenas um disfarce para a decisão de não perdoar. E existem muitas outras formas sutis que a decisão de não perdoar pode assumir. Se pretendemos detectá-las, devemos entender a natureza e o caráter do perdão bíblico. Não existe um lugar melhor para começarmos nossos estudos sobre o perdão do que relembrando as coisas surpreendentes que a Bíblia diz sobre ele. O perdão é um dos atos principais pelos quais Deus expressa a grandeza de sua glória (Ex 34.7), e é a condição necessária da expiação de Cristo (Hb 9.22). O único artigo na Oração do Pai Nosso ao qual Jesus acrescenta explicações é sobre o perdão (Mt 6.12-14). O perdão é a base da nova aliança ( Jr 31.34; Hb 8.12) e o próprio motivo das orações de Jesus e de Estevão por aqueles que os perseguiam (Lc 23.34; At 7.60). É a promessa que acompanha o chamado ao arrependimento e ao batismo (At 2.38). Quando Jesus explica porque deve derramar sua vida, ele diz que seu objetivo é o perdão; o perdão é o significado do cálice levantado (Mt 26.28). E Jesus nos chama para declarar essa grande mensagem do perdão para o mundo (Lc 24.46-47). Você tem um vislumbre da glória do perdão verdadeiro? As pessoas da sua igreja têm esse vislumbre? Como pastores pacificadores precisamos resgatar para as pessoas a glória, a importância e a relevância prática do perdão bíblico. Assim

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como elas precisam de nossa orientação quando se confessam para um irmão da igreja, também precisam de nossa ajuda para aprender como conceder o perdão verdadeiro. Em qualquer tipo de processo de pacificação, como a negociação, mediação ou a própria disciplina eclesiástica, o perdão divino deve ser constantemente ensinado e praticado, pois ele é absolutamente crucial para uma reconciliação verdadeira e duradoura entre as partes em conflito. Embora a importância do perdão seja algo que nós continuamente ensinamos e reforçamos para a congregação, devemos também estar cientes e prontos a contrapor as vozes em nossa cultura (e até mesmo na subcultura evangélica) que falam às pessoas sobre essa mesma questão. A noção de perdão se tornou mais popular nos últimos dez ou vinte anos. Eu ouvi uma pessoa recentemente dizer: "Errar é humano, perdoar é... moda". Hoje o perdão é o assunto do momento. Mais que isso, o perdão é agora um assunto legítimo para ser analisado e discutido por psicólogos.6 Por mais que essa moda caia bem, a igreja dificilmente poderia aceitá-la. O fato de o perdão ter se tornado um assunto da moda não levou a uma visão mais clara a seu respeito, mas sim a distorções severas do perdão bíblico, o que por sua vez levou a uma maior confusão sobre a verdadeira natureza do perdão. Não deve causar surpresa, portanto, o fato de que o perdão tenha lá seus críticos! Apesar disso tudo, Deus usa a heresia e a falsidade para levar a igreja a pensar, articular e praticar a verdade bíblica de forma mais cuidadosa e consistente. Em outras palavras, essa onda cultural em relação ao perdão é um chamado para despertar a igreja a fim de que guarde vigilantemente a verdade bíblica do perdão. Se devemos guardar essa verdade, no entanto, precisamos conhecer os erros e distorções sobre o perdão que nos desafiam.' Isto é, precisamos saber o que perdão não é Primeiramente, o perdão cristão não é, como o mundo pensa, ser indulgente ou apaziguar o ofensor. E em segundo lugar, não é uma forma terapêutica de autoajuda — uma visão que grande parte da igreja defende hoje como resultado da influência dominante de um modelo terapêutico.' Vamos examinar essas duas visões de maneira mais profunda.

6Veja Gary Thomas, "The Forgiveness Factor: Social Scientists Discover the Power of a Christian Virtue," Christianity Today 41, n° 1 (10/01/2000): p. 38-45. 'Veja meu artigo sobre visões cristãs contemporâneas e integrativas acerca do perdão em Alfred J. POIRIER, "Taking up the Challenge,"Journal of Biblical Counseling 18, n° 1 (outono/1999): p. 30-37. Para perceber como a cosmovisão "terapêutica" permeou nossa cultura, veja Philip RIEFF, The Triumph of the Therapeutic: Uses of Faith after Freud. Chicago: University of Chicago Press, 1966, 1987. 'Veja L. Gregory JoNEs, Embodying Forgiveness: A Theological Analysis. Grand Rapids: Eerdmans, 1995, para uma discussão mais extensa dessas duas tendências gerais.

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Perdoar não é tolerar os perversos Aos ouvidos do mundo, o perdão cristão pode parecer fatalista — um chamado à docilidade diante da ameaça de um mal real. Lamentavelmente, tais acusações geralmente procedem. Em nossa ânsia de resolver os conflitos, somos facilmente tentados a aceitar o arrependimento superficial. Nós nos apressamos em fazer a parte ofendida perdoar sem fazer o mesmo esforço para tratar das verdadeiras ofensas cometidas pelo ofensor — das questões de justiça pendentes que ainda exigem uma satisfação — e sem reconhecer a gravidade do pecado do ofensor. O efeito desse processo é justamente o oposto daquele que pretendíamos. Recebemos meras desculpas em vez de uma verdadeira confissão da transgressão. Buscamos fazer com que o ofensor concorde com a ideia de que precisa mudar, mais do que ver que precisa dar passos concretos para compensar aquele contra o qual ele pecou e modificar seu próprio comportamento anterior. Se acompanharmos essa prática ao longo dos anos, logo um sólido fatalismo acerca do perdão terá se infiltrado em nosso coração. A imprensa tem sido rápida em notar esse tipo de perdão fatalista: • Em Edmonton uma mulher é atropelada na calçada e morta. Oito meses depois, o motorista é multado em 400 dólares, e a filha dessa mulher lhe dá um aperto de mão e lhe diz que ele está perdoado. • Um taxista é assassinado por dois passageiros de dezesseis anos. Seu táxi desgovernado mata uma mulher. O juiz que preside o julgamento se recusa a transferir o caso da vara de menores para a vara comum. O marido da mulher reage da seguinte forma: "Tudo bem; eu não quero que seja aplicada uma pena muito severa a esses 'dois jovenzinhos"'. • Um jovem morre esfaqueado pelo amigo durante uma festa regada a muita bebida. Sua mãe diz que não guarda "ressentimentos" do assassino e que "ele já sofreu demais" pelo que fez. • Molhe McLeod é abusada sexualmente por seu pastor quando pequena. Mais tarde, aos vinte anos, ela traz a história a público e escreve cartas para certos membros em sua congregação, contando a eles o que aconteceu. Todos respondem que ela deve perdoar seu agressor. Em vez disso, ela conclama sua denominação para revogar a ordenação de seu pastor. A denominação ainda não respondeu a seu pedido. Essas não são histórias de perdão verdadeiro. São histórias que falam da triste resignação de pessoas que desistiram da justiça e não têm esperança de reconciliação. Elas são o doloroso debater de almas cuja vida foi tragada por um mundo

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cínico que defende a crença de que "não existe Deus; não existe justiça. Tudo que acontece apenas é." O perdão, que deveria ser um dos maiores atos de conteúdo moral da humanidade, é reduzido a um encolher de ombros que se entregam ao negro desespero do fatalismo. Mais de cem anos atrás, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche dirigiu críticas mordazes contra as virtudes cristãs, particularmente contra o perdão. Ele acusou os cristãos de difundir uma mentira por chamar a fraqueza de "virtude" e a submissão servil de "humildade", e por chamar a raiva reprimida ou o apaziguamento covarde pelo nome de "perdão".9 As acusações continuam até os dias atuais. Eticistas seculares condenam os ensinamentos cristãos e a prática do perdão. Aos olhos deles parece que negamos a justiça, banalizamos grandes ofensas, condenamos a vítima e fazemos concessões aos perversos. Outra visão errônea do perdão que vem de dentro da igreja é a visão terapêutica do perdão.

O perdão não é uma forma terapêutica de autoajuda A acusação do mundo de que o perdão cristão implica indulgência para com perversos surge em parte como resultado das próprias práticas da igreja. Vozes dominantes no evangelicalismo involuntariamente incentivam este tipo de crítica ao tratar o perdão cristão como uma forma de terapia de autoajuda. Elas enxergam o perdão não pelas lentes bíblicas de uma teologia centrada na reconciliação em Cristo, mas pela lente terapêutica do bem-estar psicológico de uma pessoa. Essa lente terapêutica coloca a pessoa, e não Deus, no centro do palco da reconciliação. Essa lente terapêutica reduz o mundo aos limites do indivíduo independente, autônomo, em vez de ver a pessoa inserida na comunidade mais ampla da fé. Considere as citações a seguir que são indicativas dessa percepção do perdão: A única maneira de curar a dor que não se cura sozinha é perdoando a pessoa que machucou você [...] Quando se liberta o malfeitor do mal, extirpa-se um tumor

9"A fraqueza é uma mentira transformada em algo digno de mérito [...] uma impotência que não reverte em bondade do coração; ansiosa modéstia que não reverte em humildade; sujeição àqueles que se odeia que não reverte em 'obediência'[...] a incapacidade de se vingar é chamada falta de vontade de se vingar, talvez até mesmo de perdão". Em Friedrich NIETZSCHE, On the Genealogy of Morais, trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale, Ecce Homo, trad. Walter Kaufmann ,1967; reimp. New York: Vintage Books, 1989, 1°. ensaio, sec. 14, 47. Esse volume contém os títulos escritos por Nietzsche. Veja também Simon WIESENTHAL, The Sunflower. New York: Schocken Books, 1976. Wiesenthal relata uma história na qual um nazista implora o perdão de um prisioneiro judeu pelos crimes cometidos contra o povo judeu. No final, o judeu deixa o homem mergulhado na miséria de sua culpa e coloca-se para o leitor a seguinte pergunta: Eu teria ou deveria ter perdoado esse nazista? Acompanhando essa história estão respostas de trinta e dois dos maiores teólogos, eticistas e filósofos do mundo, cada qual tentando responder à pergunta proposta por Wiesenthal.

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maligno de sua vida interior. Liberta-se um prisioneiro, mas se descobre que o verdadeiro prisioneiro era você mesmo." O caminho de Cristo era o caminho do perdão, mesmo antes que ele fosse pedido, e mesmo quando não fora nem nunca seria pedido pelo outro."

Em ambas as declarações, o perdão é compreendido dentro do contexto do indivíduo, e não dentro da estrutura de um relacionamento entre pessoas. Na primeira declaração, o perdão é visto como sendo mais algo sobre mim do que sobre nós. Gira em torno de curar minha própria psique, e não de restaurar um relacionamento entre mim e outra pessoa. Na última declaração, o perdão é meramente unilateral. Existe pouco senão nenhum anseio de vê-lo concretizado na verdadeira dinâmica da repreensão, confissão, perdão e reconciliação. A forma terapêutica do perdão não apenas se limita tipicamente ao contexto do indivíduo, mas também minimiza a natureza do pecado. Ela minimiza o pecado do outro contra mim. Essa dinâmica não chega a ser surpreendente, pois quando o pecado é removido do contexto dos relacionamentos, ele subitamente não parece tão sério. Procure identificar essa dinâmica nos comentários a seguir sobre o pecado e o perdão: O perdão é uma invenção de Deus para chegar a um acordo com um mundo no qual, a despeito de suas melhores intenções, as pessoas são injustas umas com as outras e se magoam profundamente."

10 Lewis SMEDES, Forgive and Forget: Healing the Hurts We Don't Deserve. San Francisco: HarperSanFrancisco, 1984; San Francisco: HarperCollins, 1996, p. 133. A página citada é da edição de 1996. Em outra definição de perdão, note a cláusula resultante: "O perdão é a superação dos pensamentos, sentimentos e comportamentos negativos [...] para que aquele que perdoa possa ser curado" (itálico acrescentado). Encontrado em J. M. BRANDSMA, "Forgiveness," em Baker Encyclopedia of Psychology and Counseling, 2a ed., ed. David. C. Benner e Peter C. Hill. Grand Rapids: Baker, 1999, p. 468. "David AUGSBURGER, The Freedom of Forgiveness. Chicago: Moody Press, 1970, p. 36. Discordo da afirmação de Augsburger de que Jesus perdoa até mesmo aqueles que jamais pediriam o perdão. Augsburger falha ao desconsiderar a dinâmica bíblica de que, embora a pessoa ofendida possa ter a disposição e o desejo de perdoar o ofensor, o perdão efetivamente só acontece quando aquele que ofende, em resposta à oferta de perdão, se arrepende de verdade (cf. Mt 18.15-35; Lc 17.1-3; 24.46-47; At 2.38). Margaret Gramatky Alter parece cair na mesma falta de clareza de Augsburger, quando ela salienta que "o perdão de Jesus não depende de um pedido de desculpas", ou que "Jesus inclui Zaqueu antes que ele se arrependesse", ou novamente que "o perdão precede o arrependimento" em Margaret Gramatky ALTER, "The Unnatural Act of Forgiveness: Exploring Jesus' Radical Method of Restoration," Christianity Today 41, n° 7 (junho de 1997): p. 30. Ambos Augsburger e Gramatky Alter erram por deixar de fazer a distinção entre o que eu chamo de disposição de perdão e transação do perdão. "SMEDES, Forgive and Forget, p. xii (itálico acrescentado).

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Algumas vezes nossas lutas pessoais, turbulentas demais para serem contidas, transbordam e afetam espectadores inocentes. Não temos a intenção de machucá-los; eles apenas estão no lugar errado na hora errada."

A visão terapêutica do perdão, conforme captada por essas declarações, deixa evidente uma escassa visão do pecado e do mal. Em vez de reconhecer a depravação total do ser humano, ela presume a inocência e requer pouca reivindicação de responsabilidade pessoal. Ao contrário de Isaías que, contrito em resposta a seus pecados, exclama "Ai de mim! Estou perdido!" (Is 6.5), essa visão gera uma atitude bastante imparcial diante do pecado: o pecado simplesmente acontece. O pecado "transborda". As vítimas são apenas incautos peregrinos que se encontram no "lugar errado na hora errada". O mais perturbador é que essa visão secular e terapêutica do perdão está sendo integrada à visão bíblica do perdão na igreja, se não a suplantando. Muitos de nossos estudiosos, teólogos, pastores e conselheiros estão desconstruindo a riqueza do perdão bíblico. Se eles estão confusos, quem pode culpar aqueles que se assentam nos bancos da igreja? Quem de nós já não ouviu comentários do tipo: • "Como posso perdoar se meus sentimentos não mudaram? Eu ainda estou chateado com o que você fez". • "Como posso perdoá-los? Eu não consigo esquecer o que eles fizeram". • "Eu perdoo, mas não quero ter mais nada a ver com você". • "Tudo bem". Como pastores, devemos estar atentos a estes equívocos relacionados ao perdão que resultam da sua prática indevida e não bíblica na vida quotidiana. Devemos não apenas pregar e ensinar sobre o perdão, mas também aplicar de forma específica e concreta o que ele realmente implica — o que ele deve ser entre irmãos e irmãs na família de Deus. O perdão, então, não é indiferença diante de perversos, tampouco um método para apaziguar a psique de alguém. Como igreja de Cristo, somos convidados a demonstrar para um mundo cético e observador o que o perdão realmente é, e por isso nós mesmos devemos entendê-lo e abraçá-lo. Com esse chamado em mente, vamos voltar nossa atenção à Palavra de Deus e ver como Cristo define o perdão.

"Ibid., p. 10.

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O PERDÃO BÍBLICO É... Um dos principais ensinamentos de Jesus sobre o perdão pode ser encontrado em Mateus 18. Embora os versículos 21 a 35 tratem explicitamente do perdão, os primeiros vinte versículos situam essa passagem num contexto de restauração e pacificação na família de Deus e, assim, por implicação, têm muito a nos ensinar sobre o perdão.

O perdão bíblico é o reconhecimento da perversidade do pecado Como vimos acima, o mundo frequentemente vê o perdão cristão como mero apaziguamento de perversos. Em nossa pressa de perdoar, frequentemente deixamos de notar a gravidade do pecado ou da ofensa cometida. Nessa situação, acabamos nos unindo mais ao ofensor e negligenciando a pessoa ofendida. Os ensinamentos e a prática de Jesus são radicalmente diferentes. Ele sempre leva o pecado a sério, como fica especialmente evidente em Mateus 18. Uma das primeiras coisas que a instrução de Jesus faz não é prometer, mas advertir: Mas a quem fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim seria melhor se lhe pendurassem no pescoço uma pedra de moinho e afundasse nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos! Pois é inevitável que eles venham; mas ai do homem por meio de quem o escândalo vier! (Mt 18.6-7)

Ao proferir esse aviso, Jesus ressalta um ponto importante que não deve ser negligenciado: o pecado é algo inevitável. Como Jesus diz: "E inevitável que eles venham". Esse comentário não tem a intenção de ser fatalista, mas serve, ao contrário, para enfatizar esse aviso para aqueles que perpetuam o pecado. O pecado não "acontece simplesmente"; não é um acidente. As pessoas pecam. As pessoas ofendem. Seja intencionalmente ou não, as pessoas — agentes morais — cometem pecados. Ao submeter os ofensores aos "ais" divinos ("Ai do mundo [...] ai do homem por meio de quem o escândalo vier"), é evidente que Jesus considera os ofensores moralmente culpáveis por suas ofensas. A solidez desses "ais" revela a gravidade do pecado contra outra pessoa. Cristo adverte em uma linguagem extremamente vívida que é melhor ter uma pedra de moinho amarrada ao pescoço e ser lançado ao mar do que levar alguém a pecar. Frequentemente na busca por reconciliar ofensor e ofendido, deixamos de dar esse conselho para o ofensor. Podemos acusá-lo(a) do pecado, mas raramente ajudamos o ofensor a ver as pesadas consequências de seu pecado contra outra pessoa. Logo, precisamos realinhar nosso aconselhamento com o aconselhamento

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de Jesus, que frequentemente une o seu chamado à obediência à exortação sobre as consequências do pecado. Por exemplo, ao lidar com o que pode ser considerado por alguns como um "conflito de baixo potencial ofensivo" — o fato de ficar injustificadamente irado e amaldiçoar o outro — Jesus faz advertências severas: Ouvistes que foi dito aos antigos, "Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento." Eu, porém, vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão será passível de julgamento; quem o chamar de "insensato", será réu diante do tribunal; e quem o chamar de "tolo", será réu do fogo do inferno (Mt 5.21-22).

O que em nosso modo de ver não passa de um pequeno lapso no falar, de um desabafo infeliz num momento de estresse, Cristo condena mostrando-nos que tais "pequenos pecados" merecem a penalidade máxima: o inferno. Não devemos menosprezar a importância de Mateus 18.6-7 para entender a natureza do perdão. Ao introduzir seus ensinamentos sobre reconciliação e perdão com esse aviso contra o pecado e suas terríveis consequências, Jesus não nos permitiria ser tolerante com o perverso ou ser indiferente às preocupações do ofendido. O verdadeiro perdão não é desculpar ou ignorar o mal. Pelo contrário, o perdão bíblico — perdoar como Deus perdoa — é reconhecer a grave natureza do pecado em toda a sua depravação moral. Em outras palavras, o perdão bíblico reconhece a perversidade do pecado. Consequentemente, quando convidamos uma pessoa a perdoar outra que a ofendeu, não estamos pedindo para a pessoa ofendida minimizar a dimensão do pecado pelo qual o ofensor é responsável ("Bem, todos pecam") ou minimizar a ofensa ("Ora, não foi nada"). O verdadeiro perdão acontece quando o ofendido olha para o agressor e vê o pecado cometido por ele como algo merecedor da ira divina à luz da grandiosa santidade de Deus. O perdão bíblico, portanto, é concedido não a partir de uma posição de fraqueza, mas de verdadeira força moral e clareza de visão. Pois o perdão bíblico por si só reconhece a atrocidade do pecado contra um Deus sagrado, e por si só entende a imensidão da dádiva concedida ao pronunciar as palavras: "Eu te perdoo".14 Essa dádiva evidentemente é um pagamento total pelo pecado, e isso é exatamente o que o evangelho declara que Cristo nos deu! O perdão conquistado por Cristo vem pelo preço de sua morte por uma ofensa real, por uma culpa verdadeira. A própria necessidade da encarnação, vida, morte e ressurreição do Filho de Deus como base para o perdão deve ser suficiente para responder qualquer acusação

140 pecado perdeu seu caráter hediondo. A maioria das pessoas pensa no pecado como algo insignificante, em vez de reconhecê-lo pelo que ele é: uma tentativa de destruir e matar a Deus, o único que é totalmente sábio, sagrado, bom e justo.

CONCELDENDO C' PERDA() NTRDADEiRo

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de que o perdão bíblico significa meramente ignorar o pecado, banalizá-lo ou tolerar os perversos. Cristo não desconsiderou o pecado; antes, ele pagou totalmente seu preço.

O perdão bíblico é uma aliança O perdão cristão não apenas reconhece a perversidade do pecado, mas também vê a Deus por quem ele realmente é. Em outras palavras, o perdão verdadeiro reconhece Deus como seu Criador, como Senhor sobre o perdão e como aquele que o concede, e sendo assim, busca agir de acordo com sua perfeita vontade. Então devemos perguntar: Qual é a vontade de Deus para o perdão? A intenção de Deus é que o perdão se dê dentro da comunidade da aliança. Até mesmo na criação, Deus criou não apenas Adão, mas também Eva. Ele fez não apenas o "eu", mas o "nós". Nós nascemos em uma família. E nossas famílias fazem parte de comunidades mais amplas, uma das quais é especificamente a comunidade da fé. É aqui, na comunidade da fé, na família de Deus, que nossos relacionamentos são alicerçados e regulados por nossa união com Cristo (Ef 4.11-16). Cada um de nós entra nessa comunidade pela palavra do evangelho, assinada e selada por meio dos sacramentos do evangelho. No corpo de Cristo, em união com Cristo, nós aprendemos que estamos indissociavelmente unidos uns aos outros nessa aliança. Dentro dessa comunidade de fé, aprendemos a estender o perdão para nossa família e amigos e até mesmo para a comunidade civil em que vivemos. Eu perdoo minha esposa, meu filho, meu pai, meu irmão, minha irmã, meu próximo. Jesus nos relembra da natureza de aliança desses relacionamentos nas três passagens a seguir: "Portanto, quando apresentares tua oferta no altar, se ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa diante do altar a oferta e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; depois vem apresentar a oferta (Mt 5.23-24)". "Tende cuidado de vós mesmos; se teu irmão pecar, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe (Lc 17.3)". "Se teu irmão pecar contra ti, vai a sós com ele e repreende-o; se te ouvir, ganhaste teu irmão (Mt 18.15)".

Note como Jesus não fala em perdoar o inimigo, o agressor ou o pecador, mas sim em perdoar seu irmão. Além disso, Jesus baseia todo seu ensinamento sobre o perdão em Mateus 18, no contexto da família de Deus (como vimos no capítulo 5). Para Cristo, então, o perdão acontece em primeiro lugar não apenas dentro de uma comunidade, mas dentro da comunidade cristã, a comunidade dos

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perdoados. Em outras palavras, ele se concretiza em meio àqueles com os quais mais estamos unidos em aliança. Essa natureza comunitária do perdão bíblico expõe os pressupostos deficientes que estão implícitos no modelo terapêutico do perdão. O perdão não é, como esse modelo presume, algo individualista e de natureza psíquica. O perdão não começa e termina com a pessoa que está perdoando e sua ênfase não está em como o perdão pode me ajudar. Qualquer que seja o benefício que o perdão pode trazer para mim pessoalmente, ele não diz respeito a mim, mas sim a nós. Ele diz respeito a pessoas criadas por Deus para viver em relacionamento com ele e umas com as outras. Como tais, somos na essência da nossa identidade amantes de pessoas e restauradores de relacionamentos rompidos. Nós somos de fato guardiões do nosso irmão!

O perdão bíblico diz respeito principalmente a Deus O caráter de aliança horizontal do perdão bíblico por si só pressupõe sua radical dimensão vertical, ou seja, o fato de que o perdão é algo que diz respeito a nós e Deus. Como vimos em nosso estudo sobre a confissão, o perdão diz respeito primeiramente e principalmente a Deus. Não se trata apenas de ética, como os terapeutas modernos o classificariam. O perdão é teologia — uma teologia construída tendo Deus como centro. Considere como a Escritura toda apresenta essa compreensão vertical do perdão, radicalmente centrada em Deus. Quem somos como pecadores perdoados tem tudo a ver com aquilo que somos diante de Deus. De acordo com os Salmos, o homem verdadeiramente abençoado é aquele a quem Deus perdoou ("Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada e cujo pecado é coberto! Bem-aventurado o homem a quem o SENHOR não atribui culpa e em quem não há engano" 5132.1-2). Quando Davi confessa seus pecados de adultério e homicídio, sua confissão e seu pedido por perdão são direcionados primeiramente e sobretudo a Deus, pois reconhece que foi a Deus que ele ofendeu: "Pequei contra ti, e contra ti somente, e fiz o que é mau diante dos teus olhos..." (S1 51.4). A grande promessa da nova aliança, a esperança da humanidade, é que com a vinda de Cristo, Deus concederá o perdão de uma vez por todas ("Porque perdoarei a sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados", Jr 31.34). E é essa mensagem de perdão que Deus comissiona seu povo a proclamar ao mundo ("e [Jesus] disselhes: Está escrito que o Cristo sofreria, e ao terceiro dia ressuscitaria dentre os mortos; e que em seu nome se pregaria o arrependimento para perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém", Lc 24.46-47). Por fim, a própria inclinação de Deus para o perdão, e o modelo de perdão que ele nos mostra, nos constrangem a perdoar nosso próximo: "assim como o Senhor vos perdoou, também perdoai," exorta Paulo (Cl 3.13).

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Conseguimos começar a entender por que essa dimensão vertical do perdão é tão importante quando retornamos a Mateus 18 e observamos mais de perto a parábola final. A pergunta de Pedro — "Senhor, até quantas vezes deverei perdoar meu irmão que pecar contra mim? Até sete vezes?" (v. 21) — não é uma simples pergunta. Seu questionamento é feito com angústia, pois ele sente que perdoar é difícil. Cristo responde: "Não te digo que até sete vezes; mas até setenta vezes sete" (Mt 18.22). Sua resposta implica algo bem pior e, no entanto, bem mais maravilhoso. O perdão que começa pelo ser humano é impossível. E impossível porque apenas aqueles a quem Deus perdoa podem perdoar seus irmãos e irmãs. Nós perdoamos porque Deus nos perdoou primeiro. O perdão, então, diz respeito primeiramente e principalmente a Deus, pois sem Deus não existe perdão. A luz de sua natureza divina, não podemos e não devemos reduzir o perdão a uma técnica terapêutica pronta, à espera de ser aplicada por qualquer um que se disponha a ser treinado. Becky Pippert ilustra bem esse ponto. Como autora e palestrante cristã, ela conta que frequentou um curso em Harvard chamado sistemas de aconselhamento. Veja o que ela escreve a respeito: Estávamos observando um estudo de caso no qual o terapeuta, utilizando a psicoterapia psicodinâmica, ajudou o paciente a descobrir que sentia uma hostilidade encoberta em relação à sua mãe. Antes que o professor passasse ao próximo caso, levantei minha mão e perguntei: "Vamos supor que o paciente tenha retornado algumas semanas depois e dito: 'Eu gostaria de ir além da minha ira. Gostaria de conseguir amar minha mãe e perdoá-la'. Como essa psicoterapia psicodinâmica ajuda pessoas com um pedido como esse?". Todos ficaram em silêncio. Então o professor respondeu: "Acho que eu diria: 'Boa sorte!'. Se vocês estão buscando um coração transformado estão procurando no departamento errado."15

Esse professor reconheceu que o perdão não pode ser gerado em uma sala de aula ou no consultório do terapeuta, por meio de mera sabedoria humana, técnica ou esforço. É algo sobrenatural, algo milagroso. O perdão é dom e obra divina. É parte da restauração dos cosmos pelo Messias. O perdão não apenas começa primeiramente e principalmente com Deus, mas também flui de Deus. Em outras palavras, o perdão é de natureza divina e flui do poder divino. O perdão é algo impossível por meio do simples poder humano. Pedro teve que aprender essa lição quando pensava em perdoar seu irmão não duas ou três vezes, mas sete vezes. Nessa passagem Pedro é a síntese do homem perfeito, mas distante da graça. Ele se esforça para ser melhor do que a média, mas mesmo sendo "acima da média" — mesmo sendo "o melhor" — ele ainda precisa colocar um limite em sua capacidade de perdoar. 15Becky

PIPPERT, Hope Has lis Reasons, ed. rev. Downers Grove: InterVarsity, 2001, p. 117.

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O PASTOR 'ACIFICA1)OR

A resposta de Jesus reforça o que Pedro está começando a ver: o quanto é presunçoso o esforço para perdoar por suas próprias forças, segundo sua própria sabedoria, de acordo com seus próprios critérios de sucesso. Perdoe seu irmão não sete vezes, ordena Jesus, mas vezes sem fim. (ou seja, interpretando a palavra "vezes" não no sentido finito de tempo, mas segundo o calendário eterno de Deus). O mandamento de Jesus para perdoar mostra a Pedro a falência não do fraco, mas do forte, não do pior, mas do melhor. Embora a resposta de Cristo possa a princípio parecer um conselho desesperado, ele não para por aí. Ao contar sua parábola do mestre perdoador, ele relembra a Pedro (e também a nós) do grandioso poder de Deus, de suas infinitas misericórdias para conosco, do fato de Deus não se lembrar mais de nossos pecados. Por implicação, ele enaltece a grandiosidade da graça transformadora de Deus pela qual as pessoas são perdoadas, justificadas, regeneradas e continuamente habitadas pelo Espírito de Deus. Em essência, Jesus está dizendo a Pedro que o mesmo poder e graça que faz com que o perdão entre na vida de Pedro vai permitir que ele perdoe a outros. A obra do perdão é possível para o homem apenas porque nada é impossível para Deus. Pedro então aprende que o perdão é um dom, antes de ser um mandamento. Pois aquilo que Deus comanda, ele concede." Como pastores pacificadores, devemos regularmente relembrar nossas ovelhas de que o perdão diz respeito primeiramente e principalmente a Deus. Como Pedro, elas vão reconhecer que o verdadeiro perdão não será fácil; por isso, devemos prometer a elas a esperança de que o perdão é possível, não por meio de técnica e tampouco por suas próprias forças, mas pela plena fé em Deus e no perdão que ele lhes concede. O perdão é possível quando o Espírito Santo trabalha em nosso coração, direcionando nossa fé para a pessoa e obra de Cristo, para a glória de Deus nosso Pai, que nos perdoou e nos adotou como filhos. Apenas nesse contexto de redenção podemos convidar nossas ovelhas a perdoar.

O perdão bíblico é uma promessa Até este ponto, nosso estudo do perdão nos mostrou que o perdão bíblico reconhece a perversidade do pecado e apoia a supremacia de Deus no processo da reconciliação. Mas como pastores e líderes, como podemos ajudar os membros de nossa igreja a compreender esses conceitos ricos e traduzi-los em um entendimento funcional do perdão? Em nosso ministério da Palavra, como descrevemos a natureza do perdão e a explicamos? Quando aconselhamos as pessoas a perdoar, o que estamos essencialmente instruindo-as a fazer? Um modo de responder a essas questões é perguntando: O que significa para Deus perdoar? O Catecismo Maior de Westminster nos ajuda nesse aspecto "Agostinho, Confissões, livros 10, 29, 31, 37.

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ao fornecer a seguinte definição da quinta súplica do Pai Nosso ("perdoa-nos as nossas dívidas..."): "Nós oramos por nós mesmos e pelos outros, para que Deus em sua livre graça, por meio da obediência e satisfação de Cristo, apreendidas e aplicadas pela fé, possa absolver-nos da culpa e da punição do pecado, aceitar-nos em seu Amado; continuar seu favor e graça para conosco, perdoar nossos fracassos diários, e encher-nos de paz e alegria ao nos dar a cada dia mais e mais certeza do perdão"." Essa definição demonstra duas atitudes principais que Deus toma quando nos perdoa: Deus nos libera da dívida (nos absolve) e nos abençoa (nos aceita). Então a definição acrescenta a súplica para que ele possa "continuar seu favor e graça para conosco", o que implica que essa liberação e bênção de Deus têm um foco futuro. Ambas podem ter uma visão voltada para o futuro porque Deus prometeu essa liberação e bênção não apenas hoje, mas amanhã e em todos os dias seguintes. Para nossos propósitos aqui, o ponto que queremos destacar é que tanto a liberação quanto a bênção fluem de uma promessa. Em outras palavras, perdoar para Deus significa que ele promete nos liberar de um débito e nos abençoar. Essa promessa se torna mais evidente quando nos lembramos dos termos da nova aliança. Em Jeremias 31.34, Deus declara: "Porque perdoarei a sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados." Aqui Deus baseia a nova aliança na promessa maior de nos perdoar. O perdão é definido pelo fato de Deus não se lembrar de nossos pecados. Isto é, o Senhor promete não se lembrar de nossa ficha de maldades contra ele e não usar isso contra nós. Ele promete não nos acusar diante dos outros. Ele promete não se lembrar mais de nossos pecados. Tudo que Deus promete a nós é encarnado por Cristo. Como Paulo proclama: "Pois, tantas quantas forem as promessas de Deus, nele está o sim" (2Co 1.20). Comentando este versículo, Calvino nos relembra que "nós apreciamos a Cristo apenas quando o aceitamos revestido por suas próprias promessas"." Podemos parafrasear isto e dizer que apreciamos a Cristo somente quando aceitamos a promessa de Deus de nos perdoar em Cristo. Essa natureza de promessa do perdão e da reconciliação é vista em muitos lugares nas Escrituras. Um desses lugares é na bênção de Arão, uma passagem bastante conhecida e usada em nossas liturgias (veja Nm 6.24-26). Embora essa bênção não use nunca a palavra perdão, ela transpira o caráter do perdão. Até mesmo quando pressupõe um estado inicial de alienação, ela promete uma esperança maior de reconciliação. Se a maldição é o julgamento de Deus sobre seu povo pelo pecado, a bênção é a promessa de Deus de perdoar nosso pecado e de se reconciliar conosco.

17Catecismo Maior de Westminster, pergunta e resposta 194 em Westminster Confession of Faith, p. 148 (itálico acrescentado a ambas as citações). "Calvino, Institutas, 1:426.

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O PASTOR PACIFICADOR

Além do mais, por essa graça divina ser dada como uma bênção, ela é de natureza singularmente promissória. Embora dada sob a forma de uma oração, essa bênção é uma promessa. O Senhor diz a Moisés: "Assim [Arão e seus filhos] invocarão o meu nome sobre os israelitas, e eu os abençoarei' (Nm 6.27). Deus diz para o sumo sacerdote orar sobre a mesma coisa que ele promete nos dar. Embora a princípio possa parecer que essa bênção é composta de três bênçãos separadas e distintas, uma observação mais próxima mostrará que cada bênção subsequente revela características mais profundas e ricas de uma promessa — como as pétalas de uma flor que se abrem. A primeira bênção é: "O SENHOR te abençoe e te guarde". Aqui o sumo sacerdote invoca a Deus para que nos faça o bem e preserve e proteja nosso relacionamento de aliança com ele. A segunda bênção é: "Que o SENHOR faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti". O sumo sacerdote recorre ao Senhor para que esteja presente entre nós e faça sua presença ("rosto") particularmente graciosa. O pecado nos aliena de Deus e dos outros, por isso o sumo sacerdote pede ao Senhor que não fique longe de nós, mas perto — que faça seu rosto resplandecer sobre nós. Ele ora para que Deus não permita que nosso pecado impeça seu relacionamento conosco. A terceira bênção é: "Que o SENHOR levante sobre ti o seu rosto e te dê a paz". Deus promete que em vez de permanecer distante, ele vai se reconciliar conosco. Embora sua face já tenha estado virada em justa ira, agora Deus promete virar sua face para nós — não para dar uma mera olhada rápida, mas com um olhar de deleite, afeição e atenção que nos convida a nos aproximar dele com seu sorriso acolhedor. Qual é o resultado dessa bênção? O último pedido é para que o Senhor nos "dê a paz". Essa é a grande palavra que ouvimos ser anunciada acerca da nossa justificação (S132.1, Rm 5.1) e a palavra de bênção usada nas saudações de Paulo: "graça e paz". No anúncio dessa palavra, ouvimos a promessa do evangelho. Deus promete a paz. Felizmente, a bênção de Arão não é direcionada apenas para os antigos israelitas ou restrita ao sacerdócio de Arão. O que nessa passagem vemos em sombras revela-se em sua totalidade no brilho fulgurante de Jesus Cristo, pois Jesus é agora nosso verdadeiro Sumo Sacerdote. Arão era um vago e imperfeito protótipo daquele que viria. Então, quão mais agora, que Jesus Cristo veio, essa promessa de bênção se refere a nós, com ainda mais certeza da reconciliação e do favor de Deus! Nós lembramos nossas ovelhas dessas grandes verdades, quando pronunciamos esta bênção sobre elas? Elas ouvem essa bênção como algo vindo do Cristo ressuscitado, sentado à direita do Pai, como algo que nos assegura o seu dom de reconciliação? Como pastores, uma maneira eficiente de ajudar as pessoas a entender a natureza do perdão é ensinando-as que, quando perdoam umas às outras, estão

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fazendo promessas semelhantes às promessas que Deus faz a nós. Ken Sande sintetiza as muitas promessas bíblicas de perdão em quatro promessas-chave que são simples e fáceis de lembrar e, por isso, verdades muito fáceis de transmitir e que ajudam as pessoas a se lembrar o que estão fazendo quando perdoam. São quatro promessas que posso escrever em um pedaço de papel e colar em minha geladeira para que, tendo perdoado, eu não me esqueça do que prometi. As quatro promessas-chave do perdão são as seguintes: • Eu não irei pensar sobre esse incidente. • Eu não irei trazê-lo à tona e usá-lo contra a outra parte envolvida. • Eu não irei conversar com outras pessoas sobre esse incidente. • Eu não irei permitir que esse incidente fique entre nós e atrapalhe nosso relacionamento pessoal." Essas promessas verdadeiramente demonstram o que significa "não me lembrarei mais dos seus pecados". As lembranças da ofensa que a outra pessoa cometeu contra nós são substituídas pelo perdão que é fruto da lembrança do que Deus fez por nós (veja Lc 6.27-28; Ef 4.31-5.2; Fp 4.8-9). E claro que perdoar geralmente não é algo instantâneo, que acontece de uma só vez, mas sim um processo. Nós perdoamos alguém e então continuamos a perdoar. Nós prometemos e então continuamos a manter nossas promessas. Em outras palavras, nós perdoamos como Deus nos perdoou em Cristo. Deus nos justifica de uma vez por todas. No entanto, quando nós diariamente oramos a Deus suplicando seu perdão, ele reafirma seu perdão para conosco, prometendo bênção e não maldição.

O perdão bíblico é implementado em dois estágios Tendo reconhecido o perdão como uma promessa, devemos agora considerar como ele é implementado. As Escrituras veem o perdão em dois estágios. O primeiro estágio acontece em nosso coração e o outro estágio se manifesta em nossas ações. Nós chamamos o primeiro estágio de "disposição de perdão" e o segundo de "transação do perdão". Disposição de perdão. Marcos 11.25 é a base para termos ou assumirmos uma disposição de perdão. Lá Jesus ordena: "Quando estiverdes orando, se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai, para que também o vosso Pai que está no

"Sande, The Peacemaker,p. 209 [Também publicado no Brasil pela CPAD sob o título O pacificador].

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céu vos perdoe as vossas ofensas." Aqui o trabalho do perdão é visto como algo que precede qualquer transação concreta entre o ofensor e a parte ofendida. Cristo convida a pessoa ofendida a perdoar o ofensor de coração, antes de acontecer qualquer transação concreta na qual o ofensor se arrepende e o ofendido perdoa. A disposição de perdão pergunta: Qual é a sua atitude diante da pessoa que o ofendeu? Como Jesus mostra, isso se dá no contexto de oração, adoração e louvor. Essa disposição surge não de seu relacionamento com a parte ofensora, mas de seu relacionamento com o Pai celestial. Enquanto você está pensando em como Deus te perdoou e abençoou, a imagem de seu ofensor vem à sua mente. E Deus convida você a considerar a ofensa em termos de seu próprio relacionamento com ele — aquele a quem você ofendeu, mas que mesmo assim procurou e perdoou você. Essa progressão de pensamento e mudança de coração é muito semelhante ao que Jesus diz que deve acontecer (Mt 18.21-35). A luz da misericórdia do mestre para com seu servo devedor (o relacionamento vertical), o servo, por sua vez, é chamado a demonstrar misericórdia para com seu companheiro endividado (o relacionamento horizontal). Algumas vezes a aparência da disposição de perdão é enganosa. O que algumas pessoas dizem ser disposição de perdão ("Eu já o perdoei em meu coração") é na verdade uma indisposição de se reconciliar, um disfarce para a amargura. Nós sabemos que uma pessoa tem pouca disposição de perdoar se não for até o ofensor e mostrar a ele sua falta (Mt 18.15), repreender aquele que pecou contra ela (Lc 17.3-4), liberar o ofensor do jugo do pecado (Gl 6.1), ou orar pelo ofensor. Quando há verdadeira disposição de perdão, se somos a parte ofendida, nós temos uma prontidão interior para perdoar e uma resolução de amar nosso inimigo. Nós não preservamos a ofensa sustentando-a contra quem nos ofendeu nem tampouco ficamos falando com outros a respeito dela. Ao contrário, estamos dispostos a oferecer as promessas do perdão ao ofensor que confessa sua ofensa, e a liberá-lo daquela dívida contra nós. Em outras palavras, nós tomamos a iniciativa de fazer tudo o que pode ser feito para que a reconciliação aconteça. Além do mais, à semelhança de nosso Senhor, não devemos nos deixar vencer pelo mal cometido por nosso ofensor, mas devemos vencer o mal com o bem (Rm 12.21), demonstrando bondade, tolerância e paciência (Rm 2.4). E devemos continuar a falar a verdade em amor, na esperança de que Deus trará arrependimento ao coração do ofensor e o levará a confessar seu pecado e a pedir o nosso perdão. Transação do perdão. Na disposição de perdão nós vamos até nossos inimigos, sempre nos movendo na direção do último passo, a transação do perdão, pois essa é a última etapa que completa o processo de perdão. O perdão não pode ser alcançado por completo sem esse passo final, pois a disposição de perdão é unilateral; apenas uma pessoa está ativamente buscando o perdão. Já a transação do perdão

CONC D hN 1)0 O PUAZD AO V 11:DA )E1R

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é algo recíproco, bilateral. Tanto ofendido quanto ofensor estão envolvidos nessa etapa — o ofendido repreendendo, o ofensor se arrependendo; o ofensor confessando, o ofendido dando o perdão. Na transação do perdão nós damos passos específicos no sentido de nos reconciliarmos com aquele que nos ofendeu, e essa pessoa, por sua vez, reage a isso. Em Lucas 17.3, Jesus instrui: "e se teu irmão pecar, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe." Note o padrão que ele descreve: pecar, repreender; se arrepender, perdoar. Da mesma forma, em Mateus 18.15 Jesus ensina: "Se teu irmão pecar contra ti, vai a sós com ele e repreende-o; se te ouvir, ganhaste teu irmão." Novamente, observe o padrão: pecar, ir e mostrar o pecado; ouvir, ganhar o irmão. A natureza bilateral dessa transação fica clara e evidente. As duas partes envolvidas estão agindo em amor. Só assim o perdão pode se dar de maneira completa. Esses dois estágios do perdão repousam sobre um padrão divino. Deus escolhe nos perdoar. Ele obtém tudo o que é preciso para nosso perdão ao enviar seu Filho para fazer reparação por nós, ao ressuscitá-lo dos mortos, ao enviar o prometido Espírito Santo e ao derramar esse Espírito sobre sua igreja, e ao enviar pessoas para nos convidarem ao arrependimento. Ao longo de todo esse processo, Deus derrama sobre nós sua bondade, tolerância e paciência. Até esse ponto, toda a história da redenção mostra a disposição de perdoar. Apenas quando Deus nos dá um novo coração e nos capacita a confessar nosso pecado e nos arrepender é que nós tomamos parte na transação concreta do perdão.

REFLEXÕES FINAIS

Vamos resumir rapidamente o que aprendemos sobre o perdão. O perdão bíblico reconhece a perversidade do pecado e não se contenta com um apaziguamento fatalista. Ao contrário, ele surge com aquele dom criativo e transformador que só a misericórdia e a sabedoria de Deus podem oferecer. O perdão bíblico não é uma forma terapêutica de autoajuda para curar almas independentes. Pelo contrário, ele surge do reconhecimento de que somos pessoas ligadas por uma aliança, uma aliança selada pelo sangue de Deus. E uma aliança feita por Deus e por meio da qual ele nos une como família, como seus filhos. A luz dessas grandes verdades, o perdão bíblico parte do pressuposto de que nós podemos e devemos perdoar porque somos primeiramente e principalmente aqueles que foram grandemente perdoados. O perdão bíblico segue o exemplo do próprio perdão de Deus em relação a nós, segundo o qual prometemos ao ofensor não mais guardar sua ofensa contra ele. Finalmente, o perdão bíblico envolve duas etapas: uma disposição de perdoar e a transação do perdão. O perdão verdadeiro é um coração pronto e disposto a perdoar assim como uma antecipação da futura confissão do ofensor, sobre a qual as promessas de perdão podem ser conferidas.

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O PASTOR PACIFICADOR

Se formos pastores sábios, não seremos ingênuos em relação a nenhuma dessas falsas noções de perdão que nossa cultura adotou e que se alastram por nossas igrejas. Em vez disso, buscaremos trazer à tona as mentiras e reconstruir as ruínas — a fim de resgatar para a igreja, em palavras e ações, o que significa viver juntos uma vida de reconciliação. A medida que buscarmos reconstruir essas bases, será muito útil examinar continuamente nossas próprias práticas de perdão bem como aquelas adotadas em nossa igreja. Portanto, devemos nos fazer algumas das seguintes perguntas: • Nós fazemos as quatro promessas do perdão (ou promessas semelhantes) quando perdoamos? • Quando olha para nossa igreja, o mundo vê a natureza de promessa do perdão, ou é justamente esse o tipo de perdão que nossa igreja precisa resgatar? • Nossa igreja pratica o perdão como uma indulgência ao pecado, como uma forma de terapia ou como o verdadeiro perdão bíblico? Além disso, devemos nos lembrar que, como líderes da igreja, nosso chamado ao ministério da reconciliação na comunidade dos perdoados abrange todo um complexo de graças. O perdão não é uma ferramenta ou uma habilidade, mas um hábito sagrado a ser praticado em conjunto com outras graças: adoração, sacramentos, oração e disciplina. Por meio dessas graças Deus transforma pecadores em filhos, e filhos em irmãos. Esse é o perdão que Jesus quer que pratiquemos. Por fim, quando nos dispomos a restaurar a glória e a bondade do perdão cristão ao corpo de Cristo, devemos sair em busca de oportunidades para dividir a esperança que temos. Pois podemos ter certeza de uma coisa: o poder de atração do perdão verdadeiro é o que irá levar este mundo quebrado a Cristo.

8 BUSCANDO O INTERESSE DOS OUTROS

confissão e o perdão são fundamentais para a reconciliação bíblica. Sem eles, a resolução dos conflitos que surgem em torno de questões materiais não chegaria a muito mais do que o acordo proposto por Salomão: cortar o bebê ao meio. Fica claro que o acordo de Salomão pretendia apontar para a própria coisa pela qual as duas mulheres, assim como nós, costumamos discutir — mas conflitos giram em torno de pessoas antes de girarem em torno de problemas. Os conflitos envolvem Deus, você e eu, antes de envolverem os problemas relacionados a como alocar fundos no orçamento da igreja, quem contratar, que programas eliminar, qual currículo selecionar, e outros inúmeros problemas com que nos deparamos todos os dias. Apesar disso, os problemas a serem resolvidos continuam existindo. Então, nós devemos considerar como passar da reconciliação de pessoas para a resolução de problemas. Como resolvemos nossas diferenças de uma forma que não se contente apenas com um mero acordo como o de Salomão? Os últimos dois capítulos se dedicaram a lidar com questões pessoais, questões ligadas ao coração do conflito, ou seja, com pacificação e pessoas. Neste capítulo vamos mudar nosso foco para a pacificação e problemas, em um esforço para lidar com as questões materiais do conflito. Os pastores pacificadores que são sábios antecipam o surgimento de conflitos em torno desses tipos de questões e, portanto, buscam evitá-los treinando seus líderes e os membros da igreja para negociar de um modo que cumpra um dos primeiros chamados do evangelho: o chamado para buscar os interesses dos outros (Fp 2.3-4). Como pastores temos inúmeras oportunidades de ensinar nosso povo a negociar de maneira sábia, bíblica e consistente. Deixe-me dar um exemplo. Débora e Joana me pediram para conversar com elas sobre um assunto muito importante. Percebi pelo tom de voz das duas que o assunto era sério. Quando nos encontramos, elas se sentaram de frente para mim e expressaram suas preocupações

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FICADOR

e medos. O conselho de jovens estava discutindo acaloradamente a respeito do currículo que iriam usar. Débora e Joana eram duas líderes piedosas, dedicadas e competentes que supervisionavam o ministério de jovens para meninas na faixa etária do ensino fundamental. As coisas tinham corrido bem nos dois últimos anos, mas com a nova safra de professores que entrara naquele ano, as coisas começaram a complicar. Alguns professores se sentiam ofendidos por alguns dos materiais que estavam sendo utilizados. Alguns achavam que não era apropriado para a idade das meninas, enquanto outros achavam que era apropriado para qualquer idade! E havia ainda alguns que tinham dúvidas sobre a questão. Suspeitas começaram a ser levantadas e julgamentos cruéis começaram a surgir, incitando as pessoas a questionarem a ortodoxia e maturidade espiritual da parte oposta. Alguns apenas queriam paz. Por fim, Débora e Joana convocaram uma reunião com todos os professores. Quando elas entraram em meu escritório, a reunião estava a poucas horas de acontecer. Parecendo aflitas, elas pediram ajuda: "Pastor, o que devemos fazer?". Eu tinha apenas uma hora com elas. Como poderia prepará-las adequadamente para responder ao conflito que estava acontecendo, senão já em ponto de fervura? Como pacificador, que conselho pastoral eu deveria dar a elas? Então, decidi que era melhor gastar aquela hora ensinando Débora e Joana a como buscar os interesses dos outros. Resumindo, eu ensinei a elas sobre negociação. Eu não resolvi o conflito por elas; em vez disso; eu ensinei a elas como resolvê-lo explicando-lhes o processo de negociação. Negociar é deliberar com outra pessoa sobre uma questão de interesse comum a fim de chegar a um acordo. A negociação difere da mera discussão de questões pessoais de uma forma importante. Diferentemente de apenas sentar e discutir questões pessoais (tais como raiva, mágoa, culpa e afins), a negociação envolve um conflito no qual uma coisa substancial é objeto de disputa e as partes em disputa estão buscando chegar a algum tipo de acordo. Enquanto as questões pessoais são tratadas com a confissão e o perdão, conduzindo a uma reconciliação, questões reais (ou materiais) são tratadas com deliberação e consenso (ou negociação), conduzindo a um acordo entre as partes. Um exemplo óbvio de negociação é a compra de um imóvel. Minha própria igreja recentemente negociou com outra igreja a compra de seu imóvel. A questão real ou material era "a compra e venda do imóvel". Os representantes de ambas as igrejas eram responsáveis perante aqueles que respectivamente os constituíram. Eles não podiam simplesmente virar as costas e ir embora. Um acordo de algum tipo tinha que ser alcançado.

'Eu me refiro a este caso durante todo este capítulo. O leitor deve saber que o caso, embora baseado em uma situação real, é também um cenário composto de muitos outros casos que envolveram o ensino da negociação a membros de igreja.

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As questões mais corriqueiras que as pessoas negociam todos os dias não são tão óbvias. Por exemplo, quando você e sua esposa querem sair para comer, se ela prefere comida chinesa e você mexicana, vocês têm uma oportunidade de negociação. Vocês têm que comer algum tipo de comida (essa é a questão real em discussão), e, portanto, vocês devem chegar a um acordo real. E esse elemento adicional que distingue a negociação da mera discussão e requer uma sabedoria maior. Se pensarmos em nossas próprias igrejas, podemos ver que nosso povo negocia sobre muitas questões grandes e pequenas, entre elas a escolha de pessoas para os cargos da igreja, os critérios para a contratação de um pastor, o salário dos funcionários, o currículo da escola dominical, o orçamento da igreja, o uso das instalações, políticas de emprego, atividades da mocidade, a música a ser tocada na igreja, e até mesmo a cor do carpete do templo! No caso de Débora e Joana, o currículo do ministério voltado para meninas era a questão em disputa. O desafio para todos nós é este: estamos negociando de uma maneira que reflete quem somos como filhos de Deus? Em outras palavras, enquanto negociamos, reconhecemos que a outra parte é alguém feito à imagem e semelhança de Deus, possivelmente até mesmo um irmão ou irmã em Cristo? Alguma vez damos atenção para o fato de que Deus é verdadeiramente soberano, até mesmo no processo de negociação? Nós nos preocupamos com os interesses legítimos da outra pessoa e buscamos promover o seu bem-estar? Com essas questões em mente, vamos primeiramente considerar os três estilos básicos de negociação.

ESTILOS BÁSICOS DE NEGOCIAÇÃO Os três estilos básicos de negociação são o competitivo, o cooperativo e o bíblico. Para entender mais plenamente a negociação bíblica, vamos examinar o estilo bíblico de negociação à luz dos outros dois estilos.

Negociação competitiva A negociação competitiva é simplesmente um cabo de guerra no qual você agressivamente busca seus próprios interesses e deixa que os outros se preocupem com os deles. E algumas vezes classificada como uma negociação em que uma parte ganha e a outra perde, também chamada de situação de soma zero, pois para um ganhar, o outro deve perder. Em outras palavras, é amplamente hostil. Sua abordagem competitiva insiste em um ponto apenas: "Eu vou conseguir o que quero; você não". As pessoas que sempre têm que ter a última palavra negociam dessa forma. Também é a abordagem típica daqueles que levam seus conflitos à justiça. A negociação competitiva é o que estava acontecendo na situação descrita sobre nosso ministério voltado para meninas. As pessoas envolvidas já tinham

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O PASTOR PACIFICA DOR

tomados posições quanto ao currículo e haviam adotado uma mentalidade do tipo ganhar ou perder. Ou iriam conseguir o que queriam ou o "inimigo" iria vencer.

Negociação cooperativa Um segundo estilo de negociação é a negociação cooperativa. A negociação cooperativa é uma parceria na qual você deliberadamente busca soluções que sejam benéficas para todos os envolvidos. Nós chamamos essa abordagem de estilo ganhaganha de negociação. É o modelo predominante hoje nos círculos seculares de mediação, conforme ensinam Roger Fisher e William Ury do Projeto de Negociação da Harvard Law School, em seu bestseller Como chegar ao sim.2 Embora a negociação cooperativa claramente tome emprestado o conceito de verdade da graça comum e ajude a trazer civilidade para a resolução do conflito, ela se mantém essencialmente afastada de Deus em termos de seus pressupostos básicos. Por exemplo, Fisher e Ury confessam: "Como chegar ao sim não é um sermão sobre a moralidade do certo e errado; é um livro sobre como se sair bem em uma negociação".3 Aqui podemos ver que, para Fisher e Ury, as éticas geralmente levadas em conta são divorciadas das operações e dinâmicas para se chegar a um entendimento com outras pessoas (e menos ainda religiosamente determinadas). O resultado é a suposição de que as pessoas podem se sair muito bem sem Deus, sem seu evangelho e sem a verdade. Uma consequência adicional da negociação cooperativa é que as pessoas simplesmente são ensinadas a como pecar de maneira mais eficaz. Elas aprendem como conseguir o que querem de um modo mais racional. Um professor de Nova Iorque que ensina negociação na Universidade de Siracuse chamou certa vez o Peacemaking Ministries e comentou, com muita perspicácia, que estava sentindo dificuldade em ensinar a negociação cooperativa, pois achava que na melhor das hipóteses ela só conseguia fazer as pessoas agirem por interesse próprio, encontrando um ídolo que pudessem satisfazer, em vez de promoverem verdadeiramente a integridade, a bondade e a justiça. Em outras palavras, ele reconheceu que na abordagem cooperativa as partes fundamentalmente conspiram para ajudarem uma a outra a conseguir aquilo que querem — e ponto final.

'Roger FISHER, William URY e Bruce PATTON, Getting to Yes, 2a ed. New York: Penguin Books, 1991 [Também publicado no Brasil por Imago Editora sob o título Como chegar ao sim]. O trabalho de Fisher e Ury continua a receber aclamação popular. E fruto do Projeto de Negociação da Harvard Law School, uma das organizações-líderes em lidar com resolução de conflitos envolvendo todo o espectro de relacionamentos, dos relacionamentos domésticos aos relacionamentos empresariais, até a política internacional. 'Ibid., p. 154.

BUSCA.NDO O IN''] E'RESSE DOS OLTR.C.)S

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Negociação bíblica Como cristãos, não devemos nos satisfazer simplesmente com técnicas de negociação cooperativa. Em vez disso, devemos desenvolver um método de negociação baseado na Bíblia e teologicamente sólido, alicerçado na realidade de Deus, em sua lei moral e no evangelho de Cristo e que seja ensinado e praticado no contexto da igreja cristã. Nós chamamos esse método de "negociação bíblica". O que difere a abordagem bíblica do estilo secular cooperativo de negociação é que este último deixa de fora o aspecto vertical da negociação que diz respeito a Deus. Especificamente, na negociação cooperativa os negociadores não perguntam o que é justo e honesto de acordo com os padrões de Deus, tampouco tratam das razões do coração à luz das Escrituras — não confrontam a ambição egoísta, a vaidade fútil e outros motivos impuros, nem estimulam as partes a buscarem os interesses dos outros. Se Débora e Joana tivessem negociado seu conflito de acordo com a abordagem cooperativa, elas poderiam ter sido tentadas a apenas "serem agradáveis". Elas poderiam ter voltado ao conselho de jovens e terem chegado a um acordo que simplesmente consertasse a situação. Então a questão em disputa, a escolha do currículo, teria sido transigida e resolvida — cortada ao meio, por assim dizer, e dada a cada uma das partes, como o bebê de Salomão. Os interesses de todos seriam satisfeitos. Mas no fim, esses interesses satisfeitos, se não estivessem de acordo com os interesses de Deus, seriam inúteis. A negociação bíblica se preocupa não apenas com os interesses dos outros, mas também com os interesses de Deus, buscando combinar a verdade da Palavra de Deus, a sede de Deus por justiça e misericórdia, e a fome de Deus por sabedoria. Além do mais, as partes em uma negociação bíblica resolvem ajudar uma à outra a conseguir as coisas de que precisam e que estejam de acordo com a vontade de Deus. Essas condições da negociação bíblica implicam no fato de que às vezes não se deve negociar por motivo algum. Um caso desse tipo aconteceu quando Acabe pediu a Nabote que vendesse a ele a sua vinha (1Rs 21.1-3). Nabote corretamente recusa o pedido de Acabe, pois a lei de Deus proibia Nabote de vender sua terra (veja Lv 25.23-34). No entanto, existem muitas outras ocasiões em que somos chamados a participar de uma negociação bíblica. Para ocasiões como essas Deus nos deu passagens-chave das Escrituras para informar, guiar e governar nosso pensamento, enquanto buscamos considerar os interesses dos outros: Ó homem, ele te declarou o que é bom. Por acaso o SENHOR exige de ti alguma coisa além disto: que pratiques a justiça, ames a misericórdia e andes em humildade com o teu Deus? Miqueias 6.8 Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Mateus 22.39

O PASITOR

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O amor [...]não busca os próprios interesses. 1 Coríntios 13.4-5 Portanto, tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei também a eles. Mateus 7.12 Não façais nada por rivalidade nem por orgulho, mas com humildade, e assim cada um considere os outros superiores a si mesmo. Cada um não se preocupe somente com o que é seu, mas também com o que é dos outros. Filipenses 2.3-4 Sede astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas. Mateus 10.16

Além disso, a lei moral de Deus e o maior dos mandamentos — amai-vos uns aos outros — devem moldar a forma como negociamos com as pessoas. A lei moral de Deus dá substância ao que significa fazer o bem aos outros e amá-los. O amor, por sua vez, tira nossa atenção de nossos próprios interesses e a direciona para os interesses dos outros. Entender a dimensão vertical da negociação bíblica assim como essas orientações bíblicas que governam esse processo não é o bastante. Nós, como líderes, ainda precisamos de um modo para traduzir esses princípios e verdades em passos práticos e passíveis de serem ensinados, de modo que as pessoas da igreja possam aplicá-los em uma negociação. Talvez a maneira mais simples de ensinar as pessoas a como agirem em um processo da negociação é ensinando a elas o que Peacemaking Ministries chama de princípio de negociação PAUSE. Ken Sande criou um acróstico fácil de memorizar para delinear os passos básicos em uma negociação. O acróstico forma em inglês a palavra PAUSE: P = Prepare [Preparar] A = Affirm relationships [Afirmar relacionamentos] U = Understand interests [Entender interesses] S = Search for creative solutions [Buscar soluções criativas] E = Evaluate options objectively and reasonably [Avaliar as opções de forma objetiva e sensata (de acordo com os padrões de justiça de Deus)]4 PAUSE é o próprio processo que ensinei a Débora e Joana, aconselhando-as a seguir esses passos quando se reunissem com o conselho de jovens para tentar chegar a um consenso sobre o currículo.

4

SANDE, The Peacemaker, p. 227-228 [Também publicado no Brasil pela CPAD sob o título O

pacificador].

BUSCANDO O CNTERHSSN, rx OU l'ROS

161

O PRINCÍPIO PAUSE DE NEGOCIAÇÃO A fim de ajudar Débora e Joana a verem como o princípio PAUSE de negociação é aplicado na vida real, eu as direcionei para Daniel 1, como um exemplo de negociação bíblica. Aqui nós vemos que os babilônios tinham recentemente levado Daniel para o cativeiro, e o chefe dos oficiais do rei seleciona Daniel como um dos vários nobres israelitas a serem treinados para o serviço no palácio do rei. Parte desse processo envolveria comer e beber porções diárias da mesa do rei, o que Daniel escolhe não fazer por medo de se contaminar. Preparar Pense no que poderia acontecer se Daniel buscasse a negociação competitiva nessa situação. Ele poderia tentar matar o chefe dos oficiais do rei , ou poderia tentar fugir com seus amigos e escapar da Babilônia. Mas Daniel não faz nenhuma dessas coisas. Em vez disso, ele negocia com o chefe dos oficiais. Embora não saibamos ao certo se ele se preparou para essa negociação, podemos presumir que sim. Sua proposta sábia não surge do nada; Daniel deve ter se sentado e refletido sobre as coisas. Ele deve ter se preparado sobre quando, o que e onde ele iria negociar com o chefe dos oficiais. Da mesma maneira, nós precisamos ensinar nosso rebanho a preparar mente e coração para a negociação. A Bíblia está repleta de conselhos para pesarmos nossos caminhos e planejarmos a fim de fazer o bem (veja Pv 14.8,15,22; Is 32.8). Na maioria das vezes falamos antes de pensar, demonstrando falta de consideração pelos interesses ou necessidades dos outros. Essa tendência fica ainda mais evidente quando nos deparamos com um problema como o de Daniel. Em vez de calarmos nossa mente e coração, preparando-nos de forma piedosa, nós agimos e falamos impulsivamente com o único objetivo de servir nossos próprios interesses, o que apenas ajuda a piorar o conflito. A preparação foi a primeira coisa que tratei com Débora e Joana. Juntos, pensamos e desenvolvemos uma lista de coisas que deveríamos fazer para nos preparar. Nossa lista parecia um pouco com a lista abaixo: 1. Orar. Pedir que o Senhor abrisse nossos olhos para maneiras como nós

poderíamos ter contribuído para o conflito. 2. Ter em mãos todos os fatos. Nunca devemos presumir que sabemos tudo. 3. Identificar as questões e preocupações de cada uma das partes. Não podemos

buscar seus interesses se não sabemos quais são eles. 4. Identificar os desejos do coração. Se elevarmos esses desejos à condição de

exigências, eles se tornam idólatras e dominam nosso coração.

1621

O pAsToR pAel

FI c/\ DOR

Por exemplo, como líderes, Débora e Joana desejavam "paz" — uma falsa paz que não envolvesse o conflito. Seu pensamento inicial não era fazer o que era certo, mas simplesmente evitar o conflito. Elas precisavam identificar esse desejo equivocado. Quando o identificaram, perceberam que as outras pessoas do conselho tinham um desejo muito similar. Na verdade, alguns já haviam dito algo sobre deixarem o conselho, pois não queriam lidar com o estresse de ter que brigar. Quando Débora e Joana prepararam seus corações, identificando seus desejos pecaminosos, elas encontraram um ponto em comum com muitos dos membros do conselho e uma questão sobre a qual puderam falar. Assim elas puderam redirecionar o grupo a buscar os interesses de Deus: o amor e a verdade fraternais, a verdadeira e justa paz. Dentre outras maneiras pelas quais as pessoas podem se preparar para a negociação estão as seguintes: 5. Buscar conselhos piedosos. Débora e Joana fizeram isso quando buscaram meu aconselhamento como seu pastor. No entanto, eu mesmo só pude aconselhá-las porque previamente eu havia buscado o aconselhamento e o treinamento oferecido pelo Peacemald.ng Ministries. De modo semelhante, quando nossa igreja buscou negociar a compra do imóvel de outra igreja, nossos presbíteros buscaram o aconselhamento de outros mais qualificados que eles, que compartilhassem das mesmas convicções básicas sobre a negociação bíblica. Eles queriam levar em conta não apenas seus próprios interesses, mas também os interesses da outra igreja. 6. Criar opções que possam ser aceitas pela outra parte.É muito fácil tornar-se míope em relação às possíveis opções que possam facilitar o acordo mútuo sobre uma questão em disputa. Parte da preparação é começar a admitir essa cegueira em relação a outras opções. Débora e Joana se preparam para negociar, resolvendo admitir diante do grupo sua própria cegueira para outras opções por meio das quais a questão do currículo poderia ser resolvida. Quando chegou o momento de elas compartilharem isso, sua abertura encorajou os demais a pensarem de forma diferente da que vinham pensando até então. 7. Antecipar as reações e objeções da outra parte, e buscar eliminá-las com respostas bíblicas e sensatas. Uma das primeiras coisas que Débora e Joana descobriram enquanto conversávamos era que seu maior erro havia sido falhar no ensino dos professores! Elas falharam em deixar clara a natureza do currículo e como ele poderia ser ensinado e a variedade de opiniões doutrinárias que os líderes da igreja permitiam. Débora e Joana sabiam que esse descuido era culpa delas, então, elas se preparam para confessá-lo

E.31-. ISCANDO O :ENTERFSSE DOS OUTROS

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aos professores. Consequentemente, a primeira coisa que elas fizeram quando sentaram para negociar foi confessar seu pecado e pedir perdão. Esse passo inicial da parte delas ajudou muito no redirecionamento do foco do grupo do ataque mútuo para a atitude de fazer cada um analisar sua própria contribuição para agravar o conflito, confessando seu pecado e concedendo o perdão à outra parte. Afirmar relacionamentos Depois de termos discutido os passos para a preparação, conversei com Débora e Joana sobre como afirmar relacionamentos. A Escritura nos convida a amar os outros de um modo específico: como irmãos e irmãs em Cristo. Pedro especificamente exorta seu povo: "Finalmente, tende todos vós o mesmo modo de pensar; mostrai compaixão e amor fraternal, sede misericordiosos e humildes" (1Pe 3.8). Na negociação bíblica, é importante afirmarmos nosso relacionamento com nosso irmão ou irmã em Cristo. A negociação gira mais em torno de uma pessoa do que em torno de um produto. Quer estejamos discutindo o currículo da escola dominical ou a compra de uma propriedade, estamos falando com irmãos e irmãs e buscando o melhor para eles em Cristo. Não somos partes em uma negociação; somos herdeiros, unidos pela graça, envolvidos em uma negociação. E esse relacionamento que devemos buscar proteger e preservar, falando a verdade em amor. A luz desse princípio, direcionei Débora e Joana para a passagem de Daniel 1 e perguntei: "Como Daniel afirma os relacionamentos?" Eu queria que vissem quão mais do que Daniel elas podiam esperar a graça de Deus. Pois, diferentemente delas, Daniel teve que enfrentar dois obstáculos que pareciam instransponíveis ao tentar afirmar seu relacionamento com o chefe dos oficiais. Primeiro, o chefe dos oficiais não era crente — nem tampouco um irmão ou irmã em Cristo. Segundo, ele estava acima de Daniel. Débora e Joana observaram que, apesar dessas dificuldades, Daniel afirmou o relacionamento. Embora o chefe dos oficiais não fosse um irmão da aliança Daniel, reconhecendo que ele era feito à imagem e semelhança de Deus, aplica em primeiro lugar o princípio da regra de ouro ("Faça aos outros o que você gostaria que fizessem a você"). Segundo, Daniel evita o que o Catecismo Maior de Westminster chama de os pecados dos inferiores.'

'O Catecismo Maior de Westminster, pergunta e resposta 128, em Westminster Confession of Faith, p. 84-86. De acordo com o Catecismo Maior, "Os pecados dos inferiores contra os seus superiores são: toda negligência dos deveres exigidos para com eles (Mt 15.4-6); a inveja (Nm 11.28-29), o desprezo (1Sm 8.7; Is 3.5) e a rebelião (2Sm 15.1-12) contra suas pessoas (Ex 21.15) e posições (1Sm 10.27), em seus conselhos (1Sm 2.25), mandamentos e correções (Dt 21.18-21) legítimos; a maldição, a zombaria (Pv 30.22,17) e todo comportamento rebelde e escandaloso, que vem a ser uma vergonha e desonra para eles e para o seu governo (Pv 19.26)".

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PASTO-,R pÁc-TricAD(..n

Ele demonstra respeito pela autoridade e compreensão por sua própria posição — uma posição subordinada à do chefe dos oficiais. O texto deixa essa dinâmica evidente de diversos modos. Primeiro, Daniel pede permissão ao chefe dos oficiais para não se contaminar comendo e bebendo da comida e do vinho do rei (Dn 1.8), e ele precede seu apelo com uma súplica: "Peço-te..." (v. 12). Daniel não se revolta, nem se rebaixa, ameaça ou faz exigências ao chefe dos oficiais. Em seguida, ele fala de modo a reconhecer sua posição subordinada e expressar sua submissão à autoridade. Ele especificamente chama a si mesmo e a seus amigos de "teus servos" (v. 12-13), agindo assim com honra e respeito. Finalmente, Daniel afirma a autoridade do chefe dos oficiais pedindo que ele fosse o juiz: "Peço-te que faças uma experiência com os teus servos por dez dias, dando-nos apenas legumes para comer e água para beber. Então, na tua presença, que a nossa aparência seja comparada com a dos jovens que comem das iguarias reais, e faze aos teus servos de acordo com o que observares." (v. 12-13). Tendo aprendido muito com Daniel, Débora e Joana procuraram aplicar sua sabedoria ao problema em questão. Nós discutimos especificamente o que envolveria para os professores da escola dominical afirmarem seus relacionamentos uns com os outros. Nesse ponto, Débora mencionou que o grupo já havia se dividido em facções a respeito do currículo. Eles não estavam mais considerando um ao outro como irmãos em Cristo, irmãos que compartilham da mesma fé, esperança, amor e perdão. Embora fossem de fato filhos do mesmo Deus, estavam agindo como inimigos. Portanto, Débora e Joana precisavam direcionar o grupo, e cada integrante do grupo, para que se lembrassem de sua união em Cristo. Sugeri algumas passagens das Escrituras e ensaiei com elas como poderiam usar esses versículos para convidar os membros do grupo a verem novamente quem é Deus como seu Pai celestial, quem são eles como filhos de Deus e irmãos em Cristo, e o que compartilham em termos do Espírito Santo — em outras palavras, levá-los a verem seus objetivos e laços comuns como crentes e a fonte comum de auxílio e sabedoria em Cristo (veja Mt 7.7-12; Ef 4.1-6; Cl 3.8-17; Tg 1.5; 1Pe 3.8).

Entender interesses O terceiro passo na negociação bíblica que discuti com Débora e Joana é como entender os interesses dos outros. Mostrei a elas Filipenses 2.3-4, que fornece muita orientação nesse sentido: "Não façais nada por rivalidade nem por orgulho, mas com humildade, e assim cada um considere os outros superiores a si mesmo. Cada um não se preocupe somente com o que é seu, mas também com o que é dos outros." A fim de ajudá-las a entender o que esse versículo significa, desenhei os

BUSCANDO O

DC..,S OUTROS

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três níveis de uma disputa: questões, posições e interesses. Geralmente, tomamos conhecimento apenas dos primeiros dois níveis: questões e posições. Podemos comparar esses níveis com a ponta de um iceberg que sai da água, algo facilmente visível ao olho nu. Os interesses, por outro lado, estão abaixo da superfície. Eles escapam à nossa consideração. Deixe-me explicar melhor o que quero dizer. Questões. A questão em torno de um problema em negociação é algo fácil de discernir. E a "ponta do iceberg" que podemos ver. Ela pode ser definida se fizermos uma pergunta. No caso de Débora e Joana, a questão era: Qual currículo devemos usar? As questões são os problemas tangíveis e mensuráveis. Elas são o problema ou razão que se apresenta e que antes de tudo o mais nos leva à negociação. No caso de Daniel, a questão em disputa era: Que comida Daniel deveria comer? Essa é a questão sobre a qual Daniel e o chefe dos oficiais negociam. E algo tangível (comida) e é a razão evidente pela qual Daniel busca falar com o chefe dos oficiais. Posições. Se a questão é a ponta do iceberg, aposição é a porção que vem logo abaixo dela. Enquanto a questão pode ser feita sob a forma de pergunta, a posição é a respectiva resposta que cada uma das partes envolvidas dá a essa pergunta. No caso de Débora e Joana as posições eram simples. Um grupo respondia à questão exigindo que "O currículo fosse mantido; que não fosse alterado". Já o outro lado respondia: "Jogue-o fora!". Enquanto Débora, Joana e eu analisávamos Daniel 1, ficou evidente para nós quais eram as posições iniciais na questão em torno de Daniel dever ou não comer a comida do rei: o chefe dos oficiais dizia que sim; Daniel respondia que não. A maioria de nossas negociações acaba em um ponto como esse, quando nós, como partes envolvidas, expressamos nossas posições opostas. Em vez de tentar escutar e discernir os interesses ocultos da outra parte, nós continuamos a reafirmar nossa própria posição. Assim nosso diálogo se torna circular, repetitivo e frustrante. Quando começamos a sentir pouca receptividade da outra parte, nós vamos à guerra. Fincamos ainda mais o pé em nossa posição, buscando ganhar apoio dos que nos cercam. Tentamos conseguir o que queremos na base da força, ameaça ou da maioria. E quando o outro lado não cede, nós o acusamos sem misericórdia de ser obstinado, teimoso e irracional por não aceitar nosso ponto de vista. Essa disputa vai evoluindo e se transforma em um conflito que frequentemente separa amigos e às vezes até mesmo igrejas inteiras. Essa progressão descendente descreve bem o que tinha começado a acontecer em nosso conselho de jovens. As posições não eram mais apenas posições. Elas logo se tornaram crenças fortemente mantidas e defendidas. Um lado acusava o outro de não ser "ortodoxo" e de comprometer sua fé, enquanto o outro lado

166

O P1\STCP P.ACIEFICAD(..-)P

os acusava de serem fariseus e legalistas. Quaisquer interesses que eles porventura algum dia tivessem compartilhado haviam se perdido na fúria e no embate desse conflito. Esse cenário lhe parece familiar? Como pastor pacificador que ensina a negociação, você deve convidar as pessoas a serem sábias conselheiras, discernindo os interesses do coração. Como Provérbios 20.5 nos orienta: "O propósito no coração do homem é como as águas profundas, mas o homem inteligente o descobrirá". Eu compartilhei com Débora e Joana como Jesus nos dá um grande exemplo disso na própria resposta que dá a um homem que queria que Jesus dividisse sua herança. Em Lucas 12.13-15 lemos: "Alguém dentre a multidão lhe disse: Mestre, diz a meu irmão que reparta comigo a herança. Mas ele lhe respondeu: Homem, quem me constituiu juiz ou intermediário entre vós? E disse ao povo: Cuidado! Evitai todo tipo de cobiça; pois a vida do homem não consiste na grande quantidade de coisas que ele possui". Jesus não disse simplesmente não; ele se voltou para o coração do homem, seus interesses, suas motivações. Eu encorajei Débora e Joana a fazerem o mesmo. Então, nós discutimos o que significa entender os interesses dos outros. Interesses. Se questões e posições constituem dez por cento do iceberg, interesses são tudo o que está abaixo do nível da água, escondido da visão. Interesses são as motivações que constituem a base da posição de cada uma das partes: suas preocupações, desejos, expectativas, limitações, valores e assim por diante. Esses interesses podem ser pecaminosos ou justos ou simplesmente diferentes dos nossos próprios interesses. Interesses são geralmente pressupostos implícitos ou tácitos. Quando eles emergem, tomam forma na linguagem do desejo: "Eu quero X", "Eu anseio por X", "Eu desejo X" ou "Eu preciso que isso ou aquilo aconteça". Ensinar as pessoas a negociarem é ajudá-las a entender os verdadeiros interesses que estão motivando a outra parte. Enquanto eu ensinava a Débora e Joana, fiz a elas as seguintes perguntas para ajudá-las a identificar os interesses representados dentre o conselho: O que estava gerando o conflito em torno do currículo? Que interesses cada pessoa tinha em defender tão firmemente sua posição? Como Débora e Joana poderiam descobrir os verdadeiros fatores que controlavam a disputa, os fatores com os quais era preciso lidar para chegar a um acordo? A fim de responder a essa última pergunta, encorajei Débora e Joana a fazerem três perguntas para desvendar mais sobre os interesses dos respectivos membros do conselho: (1) O que cada pessoa quer preservar? (2) O que cada pessoa quer evitar? (3) O que cada pessoa quer alcançar? A essa altura, eu novamente fiz com que voltassem ao livro de Daniel. E perguntei a elas: Que interesses, tanto comuns quanto diferentes, tinham Daniel e o chefe dos oficiais? O que cada um queria preservar, evitar e alcançar? Como

BUSCANDO O INTERHSS E DOS OUTROS

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vimos, posições tendem a ser mutuamente excludentes e incompatíveis. Tais posições podem fazer parecer que não temos nada em comum com a outra parte e que não existe espaço para chegar a uma solução. Se Daniel tivesse olhado apenas para as posições opostas que ele e o chefe dos oficiais tinham, nenhum acordo teria sido alcançado. Mas Daniel olhava muito além dessas posições, pois colocava em prática Filipenses 2.3-4 e Provérbios 20.5. Em virtude da proposta que ele fez, Daniel seguramente prova que pensou não somente em seus próprios interesses, mas também nos interesses do chefe dos oficiais. Ao longo do processo é evidente que ele descobre valores em comum com os quais ambos podem concordar. Por exemplo, o interesse do chefe dos oficiais é obedecer ao rei (Dn 1.10). Daniel não se opõe a isso, mas ele quer obedecer a seu Deus (v. 8).6 O chefe dos oficiais quer aprendizes saudáveis (v. 10). Daniel compartilha desse mesmo objetivo (v. 13). O chefe dos oficiais teme que possa por em risco sua cabeça (v. 10). Daniel claramente compreende o dilema do pobre homem, visto que faz um apelo respeitoso ao oficial para que considerasse uma forma alternativa de alcançar o mesmo objetivo (v. 11-14). Como podemos ver, embora Daniel e o chefe dos oficiais não concordem quanto a quem devem obedecer em última instância, eles dividem um interesse comum quanto a manter a saúde de Daniel. E por meio desse interesse comum que Daniel negocia. Note que o que Daniel negocia não é o resultado final, mas um processo. Mantendo a consideração por seu superior, ele se preocupa com seus interesses e negocia um processo pelo qual repetidas vezes o chefe dos oficiais pôde inspecionar Daniel e seus amigos para ver se seu objetivo comum (que os aprendizes se mantivessem saudáveis) poderia ser alcançado por meio da nova dieta de Daniel. O exemplo de Daniel deixa evidente que embora as posições deem pouco espaço de negociação às partes, os interesses dão a elas liberdade e criatividade para negociar. Enquanto as posições colocam as partes em conflito, os interesses geralmente se encaixam. Buscando caminhar nos passos de Daniel, Débora e Joana levaram em conta os possíveis interesses dos lados opostos — tanto os interesses comuns quanto os diferentes. Elas concordaram que todos os professores queriam (1) que a verdade de Deus fosse conhecida e (2) a consciência de ninguém fosse violada por material de ensino que pudesse considerar censurável (de acordo com Romanos 14). Concentrando-se nessas crenças compartilhadas, o grupo pôde começar a analisar suas reais opções.

6Tremper LONGMAN III, Daniel in NIV Application Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1999, p. 52-53. Longman argumenta (junto com Calvino) que a questão não eram apenas as leis da comida kosher, mas seu desejo de dar a Deus o crédito por sua aparência e sabedoria.

1-_,À,-zTe--)R pAc t r i cADe--)R

1681

Em síntese, sempre que negociamos, devemos estar cientes de nossos próprios interesses, dos interesses da outra pessoa, dos interesses que temos em comum e dos interesses diferentes. E, sobretudo, devemos separar os interesses pecaminosos dos interesses piedosos.

Buscar soluções criativas O quarto passo na negociação é buscar soluções criativas. Depois de considerar todos os interesses, soluções criativas podem ser propostas. E esse passo, evidentemente, que prova a sabedoria de Daniel. Pense nas soluções insensatas que ele poderia ter cogitado: "Vou começar uma revolta". "Vou fugir da Babilônia". "Vou ceder e desobedecer a Deus — com certeza ele entende a situação difícil em que eu me encontro. É melhor eu comer a comida do rei e sobreviver, para que possa ser capaz de aconselhar o rei em questões mais graves". Mas Daniel não reage de nenhuma dessas maneiras. Tremper Longman faz algumas observações muito úteis sobre esse ponto: Daniel não entra em pânico; ele não fica com raiva. Ele simplesmente escolhe outra estratégia para atingir seu objetivo. Nós vemos aqui o início de um tema que irá se desenvolver ao longo de todas as narrativas envolvendo Daniel. Ele é a encarnação de um homem sábio — um homem que sabe como passar pelas situações da vida. Ele sabe a atitude certa para a devida situação; ele conhece a palavra adequada para obter o resultado que se espera de um homem de Deus".7

Uma boa técnica para encontrar soluções criativas, como aquelas que propus a Débora e Joana, é o brainstorming. O brainstorming busca libertar as pessoas da mentalidade míope e fixa que frequentemente encontramos nas negociações. Uma mentalidade fixa é aquela que acredita que para uma parte "ganhar" a outra deve "perder" e vice-versa. Em um mundo governado por esse tipo de mentalidade, ou Daniel teria morrido de fome ou o rei teria voltado atrás em sua ordem. No entanto, raramente tais soluções são as mais sábias ou as melhores. Daniel sabia pensar "fora da caixa". Sua solução criativa procurou o interesse do rei assim como o seu próprio. O primeiro estágio do brainstorming é orar e pedir a Deus que dê sabedoria, compreensão e criatividade ao grupo. Segundo, todos no grupo têm permissão de oferecer soluções sem nenhuma crítica inicial dos outros — não importa o quão simplória a proposta possa ser. Durante essa parte da sessão, as pessoas podem acrescentar sugestões às ideias dos outros. Um dos grandes efeitos desse exercício é fazer com que os lados opostos passem a agir como se fossem um só. Tendo encontrado interesses comuns, agora eles podem agir em conjunto para encontrar soluções práticas.

'Ibid., p. 54.

BUSCANDO O1 \ 1'ERESSE DOS

UTROS

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Avaliar as opções de forma objetiva e sensata Imediatamente após terem buscado soluções criativas, as partes devem dar o quinto e último passo da negociação bíblica: avaliar as opções deforma objetiva e sensata. Por forma objetiva queremos dizer que as opções devem ser avaliadas com base em fatos e por meio de padrões de julgamento imparciais, tais como: padrões bíblicos de justiça, padrões que sejam legítimos para ambos os lados (estes, mesmo sendo legais, devem ser justos ou estarem de acordo com a lei de Deus), fatos verificáveis ou mensuráveis (como documentos escritos), opiniões de conselheiros confiáveis, regulamentos ou estatutos, "práticas de mercado" e precedentes. Por forma sensata queremos dizer que as opções devem ser pesadas segundo um juízo sólido, em contraste com juízos infundados ou irracionais. Eu disse a Débora e Joana que teriam que ser especialmente cautelosas em manter o conselho concentrado nas questões e nos fatos, enquanto eles avaliavam as opções de que dispunham, pois os membros do grupo seriam tentados a voltar a fazer julgamentos cruéis, atribuindo motivos escusos uns aos outros. Também disse que elas poderiam ter que ajudar o grupo a encontrar uma solução como a de Daniel, pois se não conseguissem chegar a um acordo sobre as questões materiais, os dois lados teriam a opção de negociar um processo. Esse processo poderia ser simplesmente levar a questão do currículo aos líderes da igreja e deixá-los decidir. Em decorrência da negociação, o conselho criou diversas propostas. Uma era de criar um grupo formado por membros de ambos os lados da disputa para revisar o currículo. Eles se certificariam de que qualquer material considerado digno de alguma objeção não fosse incluído nas aulas que seriam dadas na igreja. Esse plano permitiria que professores e pais que não considerassem o material digno de objeção pudessem usá-lo para ensinar seus filhos em casa.

Síntese A negociação bíblica busca os interesses dos outros. Essa forma de pensar não é fácil, pois os resquícios do pecado que habita em nós — a vaidade fútil e a ambição egoísta — buscam nos sabotar a cada passo do caminho. Negociar questões do coração é algo ainda mais desafiador. Acrescente a essa mistura uma pitada de desejos conflitantes e você poderá ter uma verdadeira fogueira das vaidades! A melhor forma de impedir que potenciais conflitos se transformem em grandes e ardentes chamas é aplicando o princípio PAUSE. O princípio PAUSE pode servir como um freio, ajudando-nos a sermos prontos a ouvir, tardios para falar, e tardios para se irar (Tg 1.19). Essa atitude de pausar nos lembra de que está em jogo algo muito mais importante do que a questão material em disputa: nossos relacionamentos com Deus e com o próximo.

o PASTOR PACIFICADOR

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O princípio PAUSE também funciona como um mapa, fornecendo uma visão geral do território que devemos atravessar enquanto buscamos lidar com o conflito. Ele nos dá ainda uma direção clara sobre como canalizar nossa teologia em passos muito práticos e fáceis de entender. Como mencionei anteriormente, eu tive apenas uma hora para preparar Débora e Joana. Não bastava que eu soubesse como negociar; elas precisavam saber. Por causa desse tipo de situação, procuramos tornar o princípio PAUSE uma parte essencial do treinamento de líderes em nossa igreja, e até introduzi-lo nas aulas para novos membros. Nosso objetivo é viver em obediência à ordem apostólica e conforme o exemplo de nosso Senhor: Não façais nada por rivalidade nem por orgulho, mas com humildade, e assim cada um considere os outros superiores a si mesmo. Cada um não se preocupe somente com o que é seu, mas também com o que é dos outros. Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, que, existindo em forma de Deus, não considerou o fato de ser igual a Deus algo a que devesse se apegar, mas, pelo contrário, esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo e fazendo-se semelhante aos homens (Fp 2.3-7).

FAZENDO UM APELO RESPEITOSO

Neste ponto, precisamos tratar das duas últimas questões a respeito de uma negociação sábia. A primeira é ensinar os outros a como fazer um apelo respeitoso, e a segunda é lidar com pessoas difíceis. Vamos começar pela questão do apelo respeitoso. Existem duas razões ou ocasiões principais que motivam uma pessoa a apelar a outra para reconsiderar sua decisão: (1) O apelo é necessário para que alguém, superior a essa pessoa, possa fazer uma decisão sábia baseada em informações precisas ou novas, ou (2) a pessoa fez uma promessa a alguém e as circunstâncias são tais que a própria pessoa ou aqueles a quem representa sofreriam muito ou seriam levados a infringir a lei de Deus se a pessoa tentasse manter essa promessa. Em relação à primeira razão, como já mencionei anteriormente, algumas vezes as negociações não se dão entre semelhantes. Em geral a parte contrária ou está sob nossa autoridade ou acima de nós em autoridade. No caso de Daniel, por exemplo, ele era subordinado ao chefe dos oficiais. Portanto, é necessário que líderes-servos tenham sabedoria e proporcionem aos que estão sob sua autoridade (como esposa, filhos e membros da igreja) um modo por meio do qual eles possam respeitosamente apelar a nós quando discordarem de nossas decisões. A passagem de 1Pedro 3.7 é útil nesse aspecto, pois representa uma janela através da qual podemos observar um desses relacionamentos — o relacionamento entre marido e mulher. Pedro instrui: "Da mesma forma, maridos, vivei com elas a vida do lar, com entendimento, dando honra à mulher como parte mais frágil e

BUSCANDO O IN'FERESSE DOS OtiffRos

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herdeira convosco da graça da vida, para que as vossas orações não sejam impedidas." A expressão "parte mais frágil" já levou a todo tipo de consideração quanto a dizer em que sentido a esposa é "mais frágil". No entanto, pelo texto podemos inferir que a pessoa que é a "parte mais frágil" é "mais frágil"com respeito a ela estar em uma posição subordinada. Isto é, como alguém subordinado, ela tanto é beneficiada quanto prejudicada em consequência daqueles que têm autoridade sobre ela. Como o contexto mais amplo dessa seção de 1Pedro está relacionado às consequências negativas de se ter maus senhores (2.18) ou um marido que não crê na Palavra (3.1), é provável que Pedro esteja exortando os maridos a serem especialmente sensíveis para a posição geralmente difícil de sua mulher como a mais frágil" (ou subordinada), tratando-a com respeito e como herdeira em conjunto da vida. Em outras palavras, Pedro quer que aqueles em posição de autoridade se coloquem no lugar de seus subordinados, tentando entender seus interesses e tendo empatia por seus desafios, medos e preocupações. Uma maneira pela qual podemos ajudar nossa esposa, nossos filhos ou membros de nossa igreja não é só contando a eles que têm o direito de apelar de nossas decisões, mas também mostrando a eles como fazer um apelo respeitoso. Existem diversas maneiras de mostrar isso na igreja. Primeiro, deixe que todos os membros saibam como e quando eles podem abordar a liderança da igreja com um pedido para que reconsidere ações que vocês tomaram em conjunto. Segundo, certifique-se de que as pessoas às quais foi atribuída alguma tarefa saibam quem tem responsabilidade imediata sobre elas, para que saibam a quem apelar. Terceiro, informe as pessoas a respeito de como as decisões são tomadas na igreja, corrigindo quaisquer expectativas falsas que possam ter. (Por exemplo, muitas igrejas não informam devidamente seus membros sobre a diferença entre liderança representativa e congregacionalismo.) Frequentemente os líderes se sentem ameaçados diante da perspectiva de estar aberto a apelos, mesmo que respeitosos, pois em muitos apelos está implícita uma crítica construtiva às decisões, às políticas, à liderança da igreja, e assim por diante. Essa reação é lamentável, pois quando os líderes resistem a críticas construtivas, eles incentivam o conflito.' Além do mais, deixam escapar a oportunidade de demonstrar às pessoas que eles não são papas em miniatura nem saem por aí tomando decisões infalíveis sem levar em conta os interesses dos membros da igreja. A postura de estar aberto a apelos respeitosos não nos torna sujeitos aos caprichos das pessoas, mas comunica a elas que estamos dispostos a ser um líder"parte

servo. Como líderes-servos devemos nos empenhar para aprender com nossos

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Veja POIRIER, Words That Cut.

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O 'PASTOR PACA FICADO R

erros e para fazer com que seja prazeroso para aqueles debaixo de nossa autoridade seguir a nossa liderança. Além disso, quando nos empenhamos para imitar o modelo de liderança serva, demonstrado em 1Timóteo 3.4-5, 12 e Tito 1.6, devemos ser sábios e fiéis mordomos que perguntam a si mesmos: Estou fazendo alguma coisa ou agindo de algum modo que deixa as pessoas exasperadas em sua tentativa de se submeter a minha autoridade e de me seguir (Ef 6.4; Cl 3.21)? Evidentemente é melhor que se faça essa pergunta preventivamente — antes que os problemas surjam. Assim, quando estiver prevendo problemas desse tipo, tome medidas para evitá-los. Deixe-me dar um exemplo de uma situação desse tipo. Há alguns anos foi solicitado ao conselho da igreja que considerasse a ideia de um programa intergeracional para a escola dominical (mais adiante chamado de Classes da Aliança). Nós encorajamos esse programa e alguns anos depois tivemos duas classes desse tipo. Chegou então a hora em que precisávamos decidir se deveríamos adotar esse tipo de programa para toda a igreja (pois estávamos tendo dificuldades logísticas apoiando as duas coisas, ou seja, classes voltadas para determinadas idades e classes intergeracionais). Nós sabíamos que uma mudança como essa causaria um tumulto, então fizemos o seguinte: Primeiro, convocamos uma reunião especial com toda a congregação para apresentar nosso objetivo de instituir as Classes da Aliança como a principal e única forma de ensino da escola dominical. Segundo, apresentamos as razões pelas quais nós, como liderança, havíamos decidido seguir naquela direção (ou seja, respondemos à pergunta por quê?). Então, respondemos à pergunta e se. A maioria das mudanças, especialmente uma grande mudança de forma e estrutura, é percebida como um risco, senão uma perda. Existe sempre o fator desconhecido. E se não funcionar? Estamos presos a essa mudança? E se ela não cumprir os propósitos que esperamos que cumpra? Nós respondemos a essas perguntas dizendo às pessoas que iríamos instituir o programa por um ano e, então, permitir que elas fizessem uma avaliação para ver se havíamos alcançado nossos objetivos. Só então tomaríamos a decisão de continuar ou não com as novas Classes da Aliança. A seguir, encorajamos as pessoas da igreja a nos dizer o que estavam achando, ao longo de todo o ano. Dissemos a elas: "Digam o que estão gostando nessa experiência e o que não estão. E façam sugestões de maneiras pelas quais possamos resolver os problemas apontados, ou nos digam o que vocês consideram que não dá para resolver." Mantivemos as linhas de comunicação abertas. Queríamos que eles aprovassem a experiência de coração. Queríamos que se apropriassem desse novo ministério e não simplesmente engolissem uma decisão imposta de cima para baixo pelo conselho. Nem sempre agimos tão sabiamente com os membros da igreja. Mas dessa vez, por ter dado a eles uma oportunidade de fazer um apelo respeitoso aos seus líderes, e por ter dado sequência ao desejo que nós mesmos anunciamos

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de ouvi-los, o resultado final foi uma transição muito pacífica para um ministério novo e mais amplo, que foi recebido de maneira entusiasmada por quase todos na igreja. Mesmo aqueles que não gostaram da decisão disseram que estavam totalmente satisfeitos com o processo de tomada de decisão. Como líderes, havíamos agido com sensibilidade e consideração para com aqueles abaixo de nós.

LIDANDO COM PESSOAS DIFÍCEIS Na negociação você eventualmente encontrará pessoas que se recusam com convicção a negociar ou até mesmo a falar com você. Elas se recusam a confessar seu pecado ou a responder a seus apelos. Quando não for possível envolver outras pessoas ou recorrer a outros processos (por exemplo, quando a igreja não puder ser envolvida ou uma ação judicial não for apropriada), o que se deve fazer? Que conselho dar àqueles que estão passando por uma situação assim? Para começar a responder a essas perguntas, deixe-me descrever um cenário que pode ser bem parecido com alguma situação que você um dia enfrentará. Kay chegou para uma sessão de aconselhamento em um sábado, no final de novembro. Os círculos escuros em torno dos olhos deixavam claro que ela estava em péssimas condições. Ela disse que não tinha dormido nada por duas semanas. O medo açoitava sua alma como um chicote. Ela tremia visivelmente. Kay começou a contar sua história descrevendo suas condições de trabalho. Ela era solteira e trabalhava como secretária para um homem muito difícil que era agressivo, arrogante e pomposo. Ele era cheio de soberba e adorava zombar dela e de sua fé cristã. E, de acordo com Kay, tinha o hábito de se exaltar, gritar e zombar até mesmo dos clientes! Por isso Kay viera à igreja naquele dia, perguntando se seria correto deixar seu trabalho. "Pastor, será que posso procurar outro lugar para trabalhar? Conheço um juiz que está precisando de uma secretária e sei que ele me contrataria". Eu disse a Kay que certamente não existia um mandamento divino que dissesse para vivermos sob perseguição se houvesse um modo de escapar dela. Durante séculos os cristãos haviam fugido da perseguição. Ela se sentiu aliviada. Então, acrescentei: "Minha preocupação é que você possa enfrentar o mesmo problema no próximo lugar em que for trabalhar". "O que o senhor quer dizer, pastor?", perguntou ela . Eu li para ela 1Pedro 2.18-25 e Romanos 12.14-21, passagens que orientaram nossa discussão sobre sofrer injustamente e como reagir em situações difíceis diante de pessoas difíceis e abusivas. Uma das perguntas que fiz foi: "Kay, como você reage às atitudes de Bart, seu patrão? Você costuma amaldiçoá-lo ou abençoá-lo? Paulo nos instrui a abençoar aqueles que nos amaldiçoam. Você o abençoou? Orou por ele?".

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O PASWR PACIFICADOR

O comportamento de Kay mudou completamente. Ela baixou a cabeça em uma expressão de vergonha. "Não," disse ela. "Nunca orei por ele". Eu novamente a provoquei: "Kay, quando almoça com seus colegas de trabalho, você fala bem de Bart? Ou você fala mal dele para seus colegas todos os dias?" Bem timidamente ela respondeu: "Sim, você está certo. Eu nunca o abençoei, só o amaldiçoei. Ele destruiu minha vida. Mas consigo perceber o que você está dizendo — eu não amei meu inimigo". Nós conversamos sobre vingança e sobre como lidar com injustiças. Olhamos para o próprio exemplo de Jesus, apontado por Pedro. Quando Jesus era insultado, ele não retaliava, mas entregava-se ao Pai que julga com justiça (1Pe 2.23). Parte do meu conselho a Kay foi para que seguisse a Cristo nesse aspecto. Eu queria que ela entendesse que estava sofrendo exatamente o que as Escrituras descrevem com tanta clareza. Por último, li com ela a passagem de Romanos 12.21. Eu fiz uma pergunta a qual eu mesmo resistia. Eu temia falar disso. Aqui estava um versículo que eu frequentemente desejava que não estivesse na Escritura: "Kay, você 'vence o mal com o bem'? Que bem você pode fazer para vencer o mal de Bart?" Como era de se esperar, Kay a princípio se afligiu diante da ideia de fazer o bem a um homem que havia constantemente e de modo intencional feito o mal a ela. Ela também se perguntou o que especificamente este "bem" poderia ser. Ele era um homem rico; ela, uma pobre secretária. O que ela poderia dar a um homem que parecia ter tudo e não precisar de nada? Sob a orientação do Espírito Santo, logo me veio à mente que "bem" poderia ser. Como eu sabia dos excelentes dotes culinários de Kay, sugeri que ela fizesse um bolo para Bart. O Natal estava perto e seria um bom período para fazer um bolo para ele, como um presente de Natal. Essa ideia parecia uma boa maneira — uma espécie de "bem" — para vencer o mal de Bart. Kay concordou e então começou a agir com mais sabedoria que seu próprio conselheiro. Ela não esperou pelo Natal, pois dar algo no Natal poderia ser algo que Bart esperasse (mesmo que ela nunca tivesse dado um antes). Em vez disso, Kay fez o bolo para a próxima segunda-feira. Ela chegou mais cedo e foi imediatamente para o escritório de Bart. Ele não estava ali, então ela deixou o bolo em sua mesa e foi trabalhar. Ela conta que Bart entrou no "ringue" aquele dia como sempre. Como um campeão mundial de luta, ele abriu a porta, deu seu rosnado habitual, latiu algumas ordens, distribuiu algumas pancadas e foi para sua sala, batendo a porta atrás dele. Kay, com medo e tremendo, esperou por sua reação. Alguns minutos depois, Bart saiu da sala segurando o bolo nas mãos e visivelmente muito surpreso. "Isso é para mim?"

Bt S CXNDO O INTERESSE DOS OUTROS

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Kay respondeu que sim. "O que estamos comemorando?" Bart perguntou. "Nada," disse Kay. "Eu só queria te abençoar com um bolo". Ninguém podia imaginar que um bolo dado com amor poderia transformar um leão em um ursinho de pelúcia, mas transformou! Kay e eu continuamos a nos encontrar. Eu disse a ela que a nova atitude de Bart poderia não durar muito, e certamente não durou. Ele logo voltou a seus velhos modos. Mas, de acordo com Kay, o clima no escritório tinha mudado. Kay e seus amigos começaram a orar por Bart, a abençoar aqueles que os amaldiçoavam, vencendo o mal com o bem. Cerca de dois meses se passaram e eu perguntei a Kay se ela havia aceitado o novo trabalho. "Ah," ela disse, "decidi não me candidatar. As coisas estão indo bem no trabalho. Estou dormindo bem. E Bart realmente precisa de alguém que ore por ele. Eu amo meu trabalho e tenho pena daquele pobre homem. Você sabe, pastor, ninguém o ama. Ele afastou a todos — família, amigos e colegas. Ele não mais se refere a mim de maneira agressiva e não ridiculariza a minha fé, embora ainda ladre ordens a todos da mesma forma. Mas acho que vou continuar trabalhando lá mesmo". Nem todas as tentativas de "vencer o mal com o bem" terão um resultado tão bom como aconteceu com Kay. Mas Cristo não nos chama a descobrir o que vai acontecer antes de agirmos. Ele nos chama a caminhar pela fé em sua Palavra — a amar nosso inimigo mesmo se isso não funcionar no curto prazo. PENSAMENTOS FINAIS Negociar questões controvertidas, buscar o interesse dos outros e lidar com pessoas difíceis são coisas de que não se pode escapar neste mundo. Todos nós "negociamos" algo, em algum momento da vida. Embora devamos tratar primeiramente das questões do coração, existirão muitos problemas reais ou materiais que também precisam ser resolvidos. Esses problemas poderão estar relacionados a recursos financeiros, estratégias, objetivos do ministério, funcionários e muitas outras questões concretas que precisam ser negociadas. A questão não será se negociaremos essas questões, mas como as negociaremos. Vamos nos esforçar para estar prontos a ouvir, ser tardios para falar, e tardios para se irar? Vamos trabalhar para chegar a um consenso enquanto buscamos o interesse dos outros? No meio do calor de uma discussão, vamos manter nossos olhos voltados para a base de nossa união, como nos relembra o apóstolo Paulo em sua grande carta sobre a unidade, a carta aos Efésios? Com toda humildade e mansidão, com paciência, suportando-vos uns aos outros em amor, procurando cuidadosamente manter a unidade do Espírito no vínculo

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O PASTOR P\ I[

da paz. Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança do vosso chamado; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por todos e está em todos (Ef 4.2-6) Nós só poderemos fazer isso pela graça e sabedoria que Deus tão abundantemente nos deu em sua Palavra e por seu Espírito. O princípio PAUSE, a atitude de buscar os interesses dos outros, de aprender como fazer um apelo respeitoso e como lidar com pessoas difíceis são todos caminhos de sabedoria, caminhos que nos ajudam a negociar os problemas da vida com o amor e a justiça do evangelho. Eles são ferramentas com as quais um pastor pode e deve equipar as pessoas de seu rebanho, se espera que se tornem pacificadoras competentes.

9 O PASTOR COMO MEDIADOR

princípio PAUSE disponibiliza uma ferramenta eficaz e proveitosa que ......) nós, pastores e líderes, podemos utilizar para treinar membros de nossas igrejas a responder com sabedoria a conflitos, quando houver questões importantes em jogo. Mas o que acontece quando as negociações falham, quando a comunicação entre as partes envolvidas no conflito chega a um impasse? E se as partes, por mais que tenham tentado, não consigam chegar a um acordo sobre suas diferenças nem chegar a uma solução justa para ambas? O que fazer se elas não entrarem em acordo por si mesmas? Deus não nos deixa sem esperança. Ele instrui seu povo a conseguir ajuda, a buscar auxílio. Os próximos cinco capítulos analisam o caráter da pacificação assistida no tocante à mediação, arbitragem, e disciplina eclesiástica. Entretanto, antes de voltarmos um olhar aguçado sobre os detalhes da mediação, permita-me traçar em linhas gerais a figura do pastor como mediador.

A BÍBLIA: A MAIOR MEDIAÇÃO QUE JÁ EXISTIU Mediação e arbitragem soam como ferramentas técnicas do direito. Parece mais provável encontrá-las na pasta de um advogado do que na Bíblia de um pastor. No entanto, as Escrituras pensam diferente. Embora exista um lado "técnico" tanto na mediação quanto na arbitragem, e um sábio mediador saiba bem buscar conselho daqueles que possuem conhecimento técnico da área, a mediação, em sua essência, é menos uma "ferramenta" e mais "um jeito de ser". A mediação trata sobre ser um mediador — um mediador orientado pela Bíblia, centrado na igreja e cujas raízes estão em Cristo. Se você não quer ser um mediador, deixe a Bíblia de lado, pois ela é apaixonada por paz e pacificação. Lembre-se da frequência com que a Bíblia nos chama a fazer a paz. Que esses versículos desçam sobre seus ouvidos e coração de modo que você possa se lembrar de novo da declarada paixão de Deus pela pacificação:

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O PASTOR PXCIFICADOR

"Portanto, sigamos as coisas que servem para a paz e as que contribuem para a edificação mútua" (Rm 14.19).

"

procurando cuidadosamente manter a unidade do Espírito no vínculo da paz" (Ef 4.3). ...

" Tende paz entre vós" (1Ts 5.13). "Procurai viver em paz com todos e em santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" (Hb 12.14).

Seu coração consegue ouvir o chamado imperativo para uma vida vigorosa como pacificadores — o chamado imperativo para procurar cuidadosamente fazer tudo o que leva a paz, para que tenhamos paz entre nós, para procurar viver em paz com todos? A pacificação não parece ser uma ferramenta, menos ainda uma opção; é mais um jeito de ser. Além do mais, em consequência da natureza humana, a pacificação é um jeito de ser necessário. Implícito nesses versículos e por todas as Escrituras está o fato de que as pessoas destroem a paz — a paz é fragmentada em mil pedaços, amizades se rompem, relacionamentos se partem. O mais importante, porém, é que esses versículos demonstram que Deus é zeloso acerca da paz, que ele tem paixão pela paz. Não deveríamos também nós, chamados a ser embaixadores da reconciliação, compartilharmos dessa sua paixão? A mediação e a arbitragem não são privilégios da comunidade jurídica. A mediação fala sobre ser mediador, e o próprio evangelho é a grande metanarrativa do Deus-homem Mediador e de sua mediação redentora. As implicações desse paradigma trazem em si um grande significado para nós, pastores. Nós, que dizemos ter sido chamados para o ministério da reconciliação, deveríamos ser os mais familiarizados e transformados por essa história de mediação. Se conhecemos nossa Bíblia e nosso Deus, sabemos que esse chamado à pacificação — à mediação — não tem suas raízes em alguns versículos espalhados, mas sim no rico e profundo solo da história divina, que se estende tão longe no passado quanto o jardim do Éden, a queda do homem e a promessa de Deus de um mediador. De Gênesis 3 a Apocalipse 21, a Bíblia é um livro repleto de conflitos — do homem contra Deus, de Deus contra o homem, do homem contra o homem. Mas a Bíblia é mais que isso: ela é a revelação especial de Deus do seu reconciliador; as boas-novas da promessa de Deus de que enviaria um Mediador — o vindouro Príncipe da Paz. A história da redenção é uma história de reconciliação, de uma reconciliação que tem tudo a ver com pacificação assistida. A redenção clama por uma ação divina; não podemos nos salvar ou reconciliar por nós mesmos. A reconciliação requer o outro, requer o Messias como mediador.

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É essa promessa que os pastores colocam antes de tudo, no centro nas mesas de negociação. Em meio ao tumulto de contratos descumpridos, violações da verdade e informações jurídicas, a boa-nova é que o Mediador se coloca entre Deus e os homens. Temos aqui um Deus bastante presente, o Deus-homem, prometendo ajudar as pessoas escravizadas por suas iras, luxúrias, enganos e desejos. Temos aqui o Mediador que vem com promessa e poder para reconciliar inimigos, quitar débitos, restaurar a confiança, cumprir promessas e fazer a restituição. Em outras palavras, o Messias é nosso Mediador em todas as disputas. Ele é o Príncipe da Paz que traz paz para um mundo em conflito. Portanto, não deveríamos estranhar termos como mediação, arbitragem, pacificação assistida e pastor pacificador, se nossos ouvidos estiverem devidamente voltados para as Sagradas Escrituras. A mediação não deveria ser um conceito ou processo que o mundo ensina à igreja, mas sim uma verdade essencial e primária que a igreja ensina ao mundo. A mediação é a história da Bíblia. Em Gênesis 3 nos deparamos com o primeiro e fundamental conflito. O homem se rebela contra Deus, e os dois se distanciam. A partir daqui, a Bíblia apresenta diversos estudos de caso diante do tribunal de Deus: Deus contra Adão

e Eva; Adão contra Eva; Caim contra Abel; Lameque contra quem se colocar em seu caminho. E o conflito prossegue, atingindo até mesmo o apostolo Paulo, quando ele e Barnabé discutem sobre a adequação de Marcos para o ministério. Quem de nós já não leu essa história e, espantados, não nos perguntamos: "Até tu, Paulo? Até Barnabé, o mediador?" O conflito está em toda parte. Cada livro da Bíblia está repleto de histórias de conflito entre o povo de Deus! Com base somente nisso alguém poderia desacreditar a Bíblia ou a fé cristã como fonte de ajuda, dizendo: "Veja só como eles brigam entre si!" No entanto, esse mesmo relato desse conflito difundido entre seres humanos e Deus e entre o próprio povo não deve ser causa de vergonha, mas de esperança, pois essas histórias são contadas pelo próprio Deus. Ele as registrou e conta para nós. E por meio delas ele aponta o caminho da paz a seu povo, a um povo que quebrou a aliança. Quando dedicamos tempo a ler às Escrituras e a examinar com atenção essas histórias, descobrimos que Deus não está sentado na sombra, distante do calor de nossos conflitos. Ao contrário, ele se coloca bem no centro de nossas lutas e conflitos. Ele está na fornalha do nosso ódio, malícia e disputas, do mesmo modo que esteve com Sadraque, Mesaque e Abednego. E esse Deus, o Deus da paz, nos redime do fogo. Esse Deus, o Príncipe da paz, pega essas mesmas chamas do conflito e as transforma em fogo purificador, purificando os filhos de Levi. A história da redenção, portanto, é uma história de conflito e reconciliação. Seu personagem principal é o Deus Mediador. Sua mensagem principal proclama que " Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões dos homens; e nos encarregou da mensagem

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da reconciliação" (2Co 5.19). Essa mensagem é nossa esperança fundamental. Como pastores, não entramos no meio de uma briga sozinhos, por nossa própria conta e risco. Nosso Deus vai à nossa frente. Ele nos equipou com sua Palavra e seu Espírito. E tudo isso repousa sobre a obra de Cristo, que veio, ressuscitou e agora reina. Agora ele media por meio de nós, pois nos encarregou da função de pacificadores. Portanto, qualquer mediação que façamos, nós a fazemos em Jesus, nosso Mediador, e por meio dele. "Em Cristo" é onde os pastores se colocam para mediar, para ajudar pessoas em conflito. E para Cristo que levamos as pessoas, abrindo as portas por meio de sua Palavra e convidando-as a entrar nesse lugar, "em Cristo". Somente nesse lugar encontramos a paz. A doutrina bíblica da justificação, a fonte de todas as bênçãos da redenção, encontra "em Cristo" sua vitalidade — na união com Cristo. Paulo conclui a grande passagem em que trata da justificação pela fé com uma palavra de paz, e ambas, justificação e paz, se dão por meio de Cristo e em nossa união com ele: "Portanto, justificados pela fé, temos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.1, grifo acrescentado). Paulo, então, fala das glórias desse estar "em Cristo" a fim de nos assegurar do amor de Deus, repetidamente retratando o amor de Deus como uma busca incansável por reconciliação com o ser humano por meio da mediação de outro: seu próprio Filho. A reconciliação encontra-se em Cristo. Paulo explica: "Porque se nós, quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E não somente isso, mas também nos gloriamos em Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual recebemos agora a reconciliação" (Rm 5.10-11). Não podemos deixar esses versículos passarem despercebidos. Eles são ditos de forma contundente, revelando os profundos vales e os altos picos do amor de Deus em meio ao conflito. Uma passagem como essa faz nosso discurso sobre solução de conflitos e mediação entre partes parecer algo ameno, sem cor, sem vida. Para Paulo, a questão que ele tem diante dos olhos e do coração não é um conflito qualquer, inofensivo. E uma questão de ódio, de inimizade. A reconciliação bíblica se passa num cenário de almas sombrias, faces avermelhadas, vozes alteradas, ira avassaladora, paixões exacerbadas, vingança e sangue. A reconciliação bíblica é o único remédio para o poder infernal que transforma a carne rosada, macia e sem corte em temíveis espadas cortantes, que ferem e decapitam. Por isso, para o apóstolo Paulo, a questão central não é termos uma mera diferença, mas sermos inimigos. O fato de sermos inimigos implica uma história, uma antiga herança de ódio que envolve rivais e suas famílias — os filhos de Deus contra os filhos do diabo. O fato de sermos inimigos nos desperta para o que está em jogo e o que será necessário

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para assegurar uma reconciliação. Exigirá nada menos do que a morte — a morte daquele outro — a própria morte do único Filho de Deus. A história da morte substitutiva e reconciliadora de Cristo é o drama supremo da pacificação bíblica. Qualquer outro conflito desaparece diante da magnitude desse. Consegue perceber agora como a pacificação bíblica não é apenas mais uma ferramenta que o pastor tem em mãos diante de uma crise? Ela é um jeito de ser. Como povo reconciliado com Deus pela morte do seu Filho, como povo que está "em Cristo", nosso Mediador, somos enviados como embaixadores da reconciliação e da paz (2Co 5.18-21). Esse chamado, esse envio tem implicações imensas. Pastorear é pacificar. Pastorear é mediar. Tudo o que fazemos é pacificação, pois é isso que somos agora em Cristo, o Mediador. Pregar é pacificar. Orar é pacificar. Ministrar os sacramentos é pacificar. Liderar é pacificar. Disciplinar é pacificar. Tudo que diz respeito ao pastorado é pacificar, não porque a pacificação assume ilegitimamente o espaço das demais áreas do pastorado, mas porque o ponto de integração do universo é o único homem e mediador, Jesus Cristo. E nós, como pastores, somos seus servos-mediadores. Somos servos do evangelho, o evangelho da mediação. O que anunciamos é a grande história de intimidade, traição e restauração, cujo personagem central proclamamos ser o único mediador entre Deus e os homens — o homem Jesus Cristo (1Tm 2.5). O que fazemos, afinal, como servos mediadores? Que papel desempenhamos como pastores pacificadores? Desempenhamos um papel coadjuvante que em certo sentido é muito simples. Parafraseando Paulo, entramos no covil de inimigos engalfinhados uns contra os outros e anunciamos: "...não pregamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo, o Senhor, e a nós mesmos como vossos servos por causa de Jesus" (2Co 4.5). Em outras palavras, os pastores mediam a Cristo. Os pastores trazem para a mesa dos inimigos o banquete do Cordeiro. Mediação, reconciliação é fazer inimigos comerem do Cordeiro sacrificado e beberem do seu sangue. Nesse cenário, sangues rivais, diluídos pelo veneno do ódio, reconciliam-se pelo sangue rico e espesso do Cordeiro. Em síntese, os pastores servem o Cordeiro para inimigos jurados de morte. Os pastores são ajudantes que lavam os pratos sujos dos nossos ódios, iras, luxúrias, enganos, malícias e palavras obscenas na corrente purificadora do sangue de Cristo. E um trabalho cansativo. E uma verdadeira batalha. É o trabalho do Messias. Mas somos constrangidos a perseverar, pois servir dessa forma é o que está no coração do nosso chamado como pastores, como mediadores.

PAULO: O MEDIADOR QUINTESSENCIAL Amo de coração a verdade de que toda a Bíblia trata de pacificação e que Cristo, seu personagem central, é nosso grande mediador. No entanto, por mais gloriosas

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que essas verdades possam ser, eu nunca fico ansioso para entrar no covil de inimigos que estão atracados uns contra os outros com a finalidade de "mediar a Cristo". Para dizer a verdade, por natureza, estou sempre à procura da saída mais próxima. Se há uma coisa que eu não faço naturalmente é tomar a iniciativa de mediar um conflito! Foi por isso que há alguns anos procurei um mentor para me ajudar como mediador. E encontrei o mentor que procurava no apóstolo Paulo. Uma vez que pastorear é mediar, não fiquei surpreso de encontrar em uma pessoa como Paulo tanta sabedoria para a prática da mediação. Paulo foi designado apóstolo de Jesus Cristo, o grande Pastor das nossas almas. Foi designado para levar o evangelho aos gentios, para ser um embaixador de Cristo, chamando a todos, de todos os lugares, para que se arrependessem e se reconciliassem (veja At 17.30 e 2Co 5.20). Como um judeu que se tornara apóstolo para os gentios, ele conhecia intimamente a dinâmica do conflito entre judeus e gentios e a promessa e o poder avassaladores do evangelho da reconciliação. Se havia um homem talhado para usar o manto de mediador, esse homem era Paulo. Suas cartas são cartas de mediação, que chamam homens e mulheres a se reconciliarem com Deus em Cristo. Nelas Paulo está sempre apresentando a pessoa e a obra de Cristo como meios para a reconciliação. Eu sabia que poderia aprender muito com esse apóstolo mediador. Por isso, voltei às suas epístolas e comecei a estudá-las de novo. Mas elas não me pareciam as mesmas de antes. A teologia que eu havia aprendido ainda estava toda lá — mas, ainda assim, era diferente. Algo havia mudado radicalmente a forma como eu as lia e entendia. As epístolas de Paulo não mais se pareciam com os livros que eu tinha na prateleira — com os volumes de teologia sistemática, os livros de teologia bíblica, com os comentários acadêmicos. Para minha surpresa, elas eram cartas! Mas não eram cartas de qualquer tipo. Paulo as escrevera como um pastor que escreve para pessoas envolvidas em um conflito. Suas cartas eram o conselho de um mediador para pessoas que precisavam se reconciliar, um conselho permeado pelo evangelho da paz. Por exemplo, eu costumava ouvir a saudação de abertura das cartas de Paulo como uma fórmula epistolar, quando, na verdade, ele começa suas cartas com o tema da paz. "Graça e paz" é uma saudação típica de Paulo.' Essa saudação não é mera formalidade, como o nosso "Caro João". Antes, para Paulo, "graça e paz" é como um esboço em escala menor da imagem de uma grande montanha, que

lAparece dessa forma em 10 das 13 cartas (Rm 1.7; 1Co 1.3; 2Co 1.2; G11.3; Ef 1.2; P11.2; C11.2; lTs 1.1; 2Ts 1.2; Tt 1.4). Nas cartas a Timóteo Paulo acrescenta à saudação a palavra misericórdia. E na carta a Filemom, a saudação graça e paz é dada da parte de Deus e da parte do Senhor Jesus Cristo. Portanto, podemos dizer que a saudação "graça e paz" é exclusiva de Paulo.

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mais tarde, em seu estúdio, ele transformará em um imenso quadro como os de Thomas Cole, Asher Durand, ou Albert Bierstadt. Do mesmo modo, "graça e paz" é algo que capta, em escala menor, a grandiosidade da magnífica obra divina de redenção que Paulo desenvolve no restante de suas cartas.2 No entanto, essa expressão é mais do que um mero esboço. E a primeira menção ao evangelho — o primeiro passo que esse mediador toma para trazer as pessoas afastadas de volta para Deus e umas para as outras. Desde o início, as cartas repletas de conselhos escritas por Paulo tratam da obra reconciliadora de Deus. Assim, não nos surpreende o fato de Paulo terminar suas cartas do mesmo modo. Ele frequentemente encerra suas cartas abençoando as igrejas com a expressão "o Deus da paz" (veja Rm 15.33;16.20; 2Co 13.11; Fp 4.7-9; lTs 5.23; 2Ts 3.16). Para Paulo a paz é aquele estado final e objetivo, aquela reconciliação com Deus e de um com o outro que o evangelho de Cristo traz. Essa paz ocupa o ponto máximo da afeição de Paulo; é ela que ele anseia ver derramar-se sobre o povo de Deus. E por isso que Paulo é o mediador quintessencial. Portanto, deve nos trazer grandes benefícios o fato de examinarmos suas cartas através das lentes da paz, à medida que buscamos compreender melhor a prática da mediação.

1CORINTIOS: SABEDORIA PARA UM MEDIADOR Consideremos em particular a primeira carta de Paulo aos coríntios. Ninguém discutiria o fato de que a igreja de Corinto estava coalhada de conflitos (graças aos próprios coríntios). Quando Paulo finalmente chega ao ponto de tratar das questões específicas sobre as quais os coríntios o haviam informado, ele já tinha levado seis capítulos tratando de suas divisões e facções, sobre as quais, ao que parece, eles eram completamente cegos. E meio difícil não imaginar que Paulo tenha dado um sorriso irônico quando escreve em 1Coríntios 7.1: "Agora, quanto às coisas sobre as quais escrevestes...".3 Quaisquer que fossem os assuntos urgentes que os coríntios pensavam ter, parece que conflito não era um deles! Eles estavam cegos para as suas "lealdades denominacionais" e seu caráter mundano, dos quais a inveja e as discussões que os afligiam eram meras evidências. Estavam cegos às suas falhas no exercício da disciplina, permitindo que o incesto no meio deles

2 S. E. PORTER, "Peace, Reconciliation," in Dictionary of Paul and His Letters, ed. Gerald F. Hawthorne e Ralph P. Martin. Downers Grove: InterVarsity, 1993, p. 695-99 [Também publicado no Brasil por Edições Loyola sob o título Diciondrio de Paulo e suas cartas]. 3 Parece que a discussão chegou aos ouvidos de Paulo pelos da família de Cloé (1Co 1.11). Acadêmicos fazem conjecturas e propõem que essas pessoas da família de Cloé eram provavelmente de outra igreja, possivelmente de Éfeso. Mas tinham contato com a igreja de Corinto.

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corresse à solta. E também estavam cegos para a grosseira anomalia de um irmão levar o outro aos tribunais seculares. Como poderiam estar tão cegos a ponto de não ver as divisões entre eles, as brigas, as coisas que não estavam fazendo e deveriam fazer, bem como as que estavam fazendo e que não deveriam? Como pastores mediadores, a primeira lição que aprendemos com os coríntios é que os mediadores são pessoas chamadas para trabalhar com os cegos, para guiá-los para fora da escuridão que obscurece a sua visão. Além disso, a luz que com que devemos iluminar os cegos, para lhes trazer vida e abrir os olhos, não é nossa. Deve ser a luz de Cristo, a luz do evangelho. A cegueira dos coríntios diante de seus conflitos também tem implicações que vão bem além dos conflitos imediatos que enfrentamos como mediadores. Há muito mais coisas que Deus pretende nos ensinar a partir do péssimo exemplo deles. Nós, assim como os coríntios, em geral somos cegos aos verdadeiros problemas, aos problemas mais importantes de que devemos tratar. De fato, essa inabilidade de enxergar os verdadeiros problemas torna questionáveis as próprias perguntas que costumamos fazer. Não será possível admitir que nossos extensos debates — sobre a introdução de aconselhamento bíblico no currículo dos seminários, sobre a pregação bíblico-teológica em contraste com a aplicação, sobre músicas e estilos de adoração, e assim por diante — não estão lidando com o verdadeiro problema ou, pelo menos, não têm tanto peso quanto lhes atribuímos? Será que nossas igrejas e seminários não estão fazendo como os coríntios, ou seja, discutindo coisas de importância secundária como se fossem de importância fundamental? Um grande amigo meu foi chamado recentemente por uma igreja, como pastor associado, para ajudar a construir relacionamentos mais fortes entre os membros da congregação. Um de seus antigos professores diminuiu esse chamado de forma sutil, ao perguntar a ele: "Por que eles simplesmente não contratam um psicólogo?" Esse professor é um homem inteiramente dedicado à proclamação da Palavra e à ministração dos sacramentos. Porém, aos olhos dele, é como se o papel desse pastor se limitasse ao que ele diz diante do púlpito e ao que faz diante da mesa da Santa Ceia. Quando ouvi essa história, a única coisa que fiz foi balançar a cabeça. Que tipo de pastores estamos formando para as igrejas de amanhã, se menosprezamos o trabalho de construir, reconciliar e restaurar relacionamentos dentro da igreja — se menosprezamos as questões de maior importância? Por que menosprezamos com tanta rapidez a própria obra que o apóstolo Paulo fez em suas cartas aos coríntios? A verdade é que, como pastores, vocês são mediadores. E não podem ser outra coisa. A questão não é se você é um mediador, mas que tipo de mediador será. Ficará só observando, enquanto casais em sua igreja passam da separação ao divórcio? Ficará cego à ruína dos relacionamentos e, como os coríntios, se envolverá

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em disputas e busca por outras coisas secundárias? Ou fugirá para outra igreja quando o caldo engrossar? Ou irá, como Paulo, trazer o evangelho do Mediador (1Co 3.11) à zona de conflito entre as pessoas? Paulo recorre a um argumento semelhante usando a metáfora da construção. Ele afirma que todos estão envolvidos em construir a igreja. A grande pergunta é esta: sobre qual alicerce estão construindo e com que materiais — madeira, palha, prata ou ouro (1Co 3.10-15)? O ouro e a prata verdadeiros com os quais nós, mediadores, ajudamos os cegos e reconstruímos relacionamentos é o evangelho. Mediadores mediam o evangelho. A primeira coisa que anunciamos às partes envolvidas em um conflito deve ser o evangelho. Se essa abordagem soa surpreendente ou pouco usual, é por ser contrária aos nossos instintos. Não é dessa maneira que temos a tendência de reagir aos conflitos que enfrentamos diariamente. Por exemplo, qual é a sua primeira reação quando ouve dizer que há um conflito na igreja? Como você costuma reagir quando sua esposa acusa, ameaça ou menospreza você? Como você aproxima pessoas que há muito tempo pararam de ouvir uma a outra? Se você for como eu, sua resposta instintiva — se não for desesperar-se, retaliar, ou ficar indiferente — certamente ficará longe de ser uma resposta plena de graça. Porém, em Coríntios Paulo nos lembra de que nossa resposta ao conflito deve ser a mensagem da cruz — o evangelho de Cristo, o Mediador. Paulo transmite essa mensagem de várias formas. Suas cartas são cartas de pacificação em que as próprias palavras fluem da sabedoria e da experiência de um experiente co-mediador, que sempre nos aponta para o Mediador maior, Jesus Cristo. Mas a forma mais notável pela qual ele media o evangelho são seus frequentes apelos à nossa união "em Cristo" ou "com Cristo". Por exemplo, observe como Paulo começa sua carta para os conturbados coríntios. Em 1Coríntios 1.2, ele os chama de "santificados em Jesus Cristo". Paulo se dirige a pessoas em conflito apontando para elas um aspecto que têm em comum. Ele diz às pessoas em conflito: "Vocês são o povo de Cristo". Outro exemplo ocorre quando Paulo agradece a Deus por essas pessoas em conflito! Mais uma vez essa abordagem nos parece totalmente contrária aos nossos instintos naturais. Como Paulo pode dar graças a Deus por um povo tão briguento? E lembre-se de que aqueles com quem ele está falando também estão em conflito com ele, Paulo. As cartas de Paulo, particularmente as cartas para a igreja de Corinto, são endereçadas a pessoas que incluem os inimigos do apóstolo. Mas ao fazer isso Paulo não está abençoando as facções em guerra. Antes, ao dar graças, Paulo está tirando o olhar do povo dos conflitos e dirigindo-o para Cristo: "Sempre dou graças a Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi dada em Cristo Jesus" (1Co 1.4).

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Dar graças não é uma linguagem típica de mesas de negociação ou de locais onde inimigos se enfrentam. Porém, sábios pastores mediadores, como Paulo era, entram nos ambientes sufocantes, abafados, carregados de reclamações, acusações, mentiras, ameaças e abrem a janela, deixando entrar a brisa fresca e leve da ação de graças. Ele agradece pela graça dada em Cristo Jesus. Podemos sentir que, para Paulo, a graça somente é graça por ser a graça de Cristo. O doador é a própria doação. Devemos parar um pouco e considerar quão extraordinárias são as palavras de Paulo para essa igreja dividida, facciosa, tolerante ao incesto, com membros que levam uns aos outros ao tribunal. Coloque-se no lugar de Paulo. Quando você vê um membro da igreja brigando, líderes discutindo, professores de escola dominical reclamando, esposa gritando e facções se formando, sua reação natural é dar graças? Nessas horas sua mente se volta rapidamente para pensamentos cativos "em Cristo", ou sua vontade é passar a mão em seu currículo, pedir demissão e deixar a igreja sem pastor? Você vai em frente ou vai em direção a Cristo? Para ser bem honesto, minha reação natural decidamente não é dar graças. Eu me sinto mais como se estivesse "no inferno" do que "em Cristo". No entanto, o salmista nos lembra da presença constante de Deus, especialmente nos momentos mais difíceis da vida: "Quando eu tiver de andar pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo" (S123.4); "se fizer a minha cama nas profundezas, tu estás ali também" (Sl 139.8). Cristo está presente em nossos conflitos. E por isso que Paulo pode dar graças em meio ao fogo cruzado das partes em conflito, e não apenas quando a reconciliação está à vista. Outra ocasião em que Paulo aponta nossa união com Cristo a fim de mediar o evangelho é quando ele apela às facções que se formaram na igreja de Corinto para que parem de brigar. Ele faz seu apelo "em nome de nosso Senhor Jesus Cristo" (1Co 1.10). O pronome "nosso" é particularmente importante, pois exprime nossa unidade em meio à diversidade — nossa esperança de que, embora estejamos divididos e brigados, ainda assim temos um só Senhor. E somente por estarmos nele, "em Cristo", que a unidade pode ser alcançada e mantida. Portanto, Paulo pode fazer uma pergunta retórica, "Será que Cristo está dividido?" (1Co 1.13), pois já prevê que a resposta será: não, Cristo não está dividido. Cristo não é uma mercadoria qualquer que possa ser comprada e vendida pela melhor oferta, nem é um escravo dos nossos próprios interesses e reclamações egoístas. Não podemos dizer "Cristo é nosso", e com isso dizer indiretamente: "portanto, Cristo não é de vocês". No entanto, é exatamente isso que fazem os cristãos em conflito. Buscamos ter o monopólio de Cristo. Cristo justifica a mim, não a você. Cristo apoia a minha versão do fato, não a sua. Ele aprova as minhas respostas e a mim, e condena você. Mas então Paulo pergunta: "Será que Cristo está dividido?"

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Aqui, mais uma vez, apontando para nossa união em Cristo, Paulo traz vários facções de volta à união, ao voltá-las para o caminho da redenção — a cruz. Como pastores, devemos ver como todo esse discurso sobre pacificação e mediação, sobre ajudar pessoas em conflito, nos mostra que o conflito proporciona uma grande oportunidade para que falemos de novo do evangelho e possamos ouvi-lo de forma diferente. Será que nossa própria relutância em nos envolver como pacificadores nos conflitos pode ser devida a uma compreensão empobrecida do evangelho? Será que nossa tendência de rebaixar o aconselhamento pastoral e a pacificação pode ser fruto de uma mentalidade segundo a qual o evangelho é apenas uma porta de entrada para o reino e um passaporte para o céu? Será que nosso próprio fracasso como pacificadores resulta do fato de vermos os conflitos através de uma perspectiva secular, em vez de vê-lo pelo que é — um subproduto da grande batalha cósmica entre Deus e Satanás, entre o Espírito e nossa natureza pecadora (Mt 6.13; Lc 22.31; Gl 5.16-17; Tg 4.1-4)? Deve ser. Pois essa mesma relutância que temos quanto à pacificação não aparece quando somos chamados a responder sobre o sofrimento físico. Os pastores se veem como os principais responsáveis por cuidar daqueles que passam pelo sofrimento físico. Somos os primeiros a fazer nossas rondas nos hospitais, segurando a mão dos que tiveram um derrame, sofreram um aborto, sofrem de câncer ou de uma série de outros males. E procuramos ser peritos em discernir para nosso povo os misteriosos desígnios de Deus, quando são afligidos por atos da providência divina em sua própria pele. No entanto, há uma grande ruptura aqui. Como pode ser que, de um lado, nós nos especializamos em confortar os que sofrem e, de outro, nós ao mesmo tempo nos esquivamos de ajudar os que passam por conflitos? Por que o sofrimento físico exige nossa atenção e mexe com nosso coração, enquanto esse terrível mal do conflito, fruto do pecado, não nos comove? Por que corremos para aliviar a dor física e nos arrastamos para aliviar a dor do conflito? Não tenho resposta para essas perguntas. Elas assombram minhas noites. Elas me enchem de vergonha. Será que isso pode ser semelhante ao espinho na carne de Paulo, pois a pacificação expõe nossas maiores fraquezas como pastores? Não há dúvidas de que a pacificação nos tira de nossa zona de conforto — e nos leva além de nossas "cômodas" responsabilidades ministeriais. Pense na pregação, por exemplo. Posso pregar o evangelho de Cristo atrás de um púlpito e facilmente me dar por satisfeito ao receber alguns cumprimentos. Mas quando tenho que desviar das flechas de casais em conflito, quando tenho que ouvir os problemas de líderes insatisfeitos, quando tenho que respirar o ar repleto de ameaças de membros da igreja envolvidos em uma discussão, quando tenho que abrir caminho entre o denso nevoeiro

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de suas histórias de conflito, nessas horas eu me sinto completamente perdido. A mesma mensagem que me parecia tão clara no domingo de manhã, na luz translúcida do santuário onde o povo de Deus se reune para adorá-lo, agora me parece pouco prática, fraca e insuficiente para as trevas de conflito. É nessas horas que sentimos o quanto somos fracos e o quanto o chamado pastoral pode ser precário. E é justamente nessas horas que nós, como pastores, pacificadores e mediadores, precisamos ouvir com novos ouvidos o evangelho, primeiro para nós mesmos, antes de podermos levá-lo a outros. Outra maneira pela qual Paulo media as discussões dos coríntios através do evangelho é mostrando-lhes como o evangelho nos torna humildes. Não é uma simplificação dizer que os conflitos são causados pelo orgulho. Essa relação entre orgulho e conflito fica bem evidente quando reconhecemos as muitas formas como o orgulho se disfarça. Além das costumeiras arrogância e ameaças das partes em conflito, o orgulho pode assumir a forma da piedade — de alguém egoísta que resolve não se envolver no conflito, de alguém condescendente que concorda com as exigências do outro por uma falsa paz. As chamas do orgulho podem ser altas como as de um incêndio que consome uma floresta inteira, ou veladas, como as que se ocultam sob a vegetação rasteira. Qualquer que seja a forma que o orgulho assuma, Paulo corta o mal pela raiz. Ele relembra às várias facções que brigavam na igreja de Corinto quem eles realmente eram e de onde tinham vindo. E os chama a refletir novamente sobre a própria antítese do orgulho — Cristo e sua cruz: Irmãos, observai o vosso chamado. Não foram chamados muitos sábios, segundo critérios humanos, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Pelo contrário, Deus escolheu as coisas absurdas do mundo para envergonhar os sábios; e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as desprezadas e as que são nada para reduzir a nada as que são, para que nenhum mortal se glorie na presença de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como está escrito: Quem se gloriar, glorie-se no Senhor (1Co 1.26-31).

O problema com pessoas em conflito é que pouco se vê da parte delas o tipo certo de vanglória. Elas pouco se gloriam em Jesus Cristo. Elas pouco se gloriam por sua misericórdia, seu perdão, sua sabedoria, sua justiça. E é exatamente essa cegueira à supremacia de Cristo que Paulo procura trazer à tona. Enquanto cada um ficava se vangloriando de seu próprio líder — sou de Apolo, sou de Pedro, sou de Paulo — o apóstolo volta os olhos deles para o Salvador, Senhor e Mediador de todos eles, aquele em quem viviam, se moviam e existiam.

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Paulo continua seu chamado à humildade quando, no encerramento desse trecho em que havia se dirigido às várias facções, ele relembra os coríntios de que, se eles tinham algo, era por tê-lo recebido em Cristo: Irmãos, apliquei essas coisas a mim e a Apolo, por causa de vós, para que aprendais por nosso intermédio a não ir além do que está escrito, de modo que nenhum de vós se encha de orgulho em favor de um contra o outro. Pois, quem te faz diferente dos demais? E o que tens que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te orgulhas, como se não o tivesse recebido? (1Co 4.6-7)

O orgulho havia elevado suas diferenças à condição de nítidas barreiras, divisões denominacionais. Cada facção via suas distintas diferenças como algo que elas mesmas haviam criado, como motivo para terem razão. Paulo as torna humildes com a mensagem da graça: "E o que tens que não tenhas recebido?" Ou seja, tudo aquilo que alguém tem e que o torna único, distinto de seus irmãos e irmãs, é uma diferença recebida das mãos de Deus, que não é algo de que se orgulhar, mas sim algo para ser usado na edificação da igreja. Um último exemplo do apelo de Paulo à união em Cristo é seu constante lembrete para os cristãos de Corinto que brigar com um irmão ou irmã é brigar com Cristo. Subjacente a essa ideia está a realidade de que Cristo está em todos, e todos representam Cristo uns para os outros. Daí Paulo poder dizer que destruir um irmão ou irmã é o mesmo que destruir o santuário de Deus, onde seu Espírito habita (1Co 3.16-17). No capítulo 8 de 1Coríntios, quando fala do irmão que tem conhecimento e o compara com o irmão de consciência fraca, Paulo faz um apelo tanto ao amor altruísta que caracteriza o sacrifício expiatório de Cristo quanto à forma como o efeito desse sacrifício consiste na união com Cristo. De modo mais específico quando reprova o forte por destruir o mais fraco, Paulo explicitamente descreve este último como alguém "por quem Cristo morreu" (1Co 8.11). Nessa expressão "por quem Cristo morreu" temos uma reivindicação de domínio, propriedade. Em geral nas disputas não tomamos cuidado com a forma como tratamos ou consideramos a parte contrária. Reduzimos nosso irmão à condição de "coisa". Nós o descrevemos com palavras impessoais, como "a parte contrária". O mediador Paulo chama a atenção das duas partes. Ele reposiciona as perspectivas que elas tem uma da outra em sua conclusão, ao enfatizar a singular relação redentora que temos uns com os outros — afinal, somos irmãos (1Co 8.11-13). E como irmãos, fomos comprados com o sangue de Cristo, pertencemos a ele. A ninguém passa despercebida a santidade, a sacralidade e a preciosidade que essa verdade deve ter para Paulo. Ferir um irmão é ferir um membro de Cristo. Ele pode até ser um "vaso de barro" mas traz em si um extraordinário tesouro.

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Além disso, ao descrever o irmão mais fraco como alguém "por quem Cristo morreu", Paulo procura colocar o irmão mais forte em nítido contraste com Cristo. Ele coloca Cristo na frente desse irmão, como um espelho, e pergunta: "Suas atitudes e ações se parecem com as dele?" Enquanto o irmão mais forte vinha reafirmando seu conhecimento, seus direitos e a si mesmo sobre o irmão mais fraco, Paulo lhe mostra a postura contrária de Cristo. Diferentemente das atitudes e ações do irmão mais forte, Cristo abriu mão de seus direitos em favor de seu irmão. Ele humilhou-se em favor de seu irmão. Em amor, ele se entregou à morte em favor de seu irmão mais fraco. Você percebe como Paulo media uma disputa entre irmãos? Ele rapidamente busca desfazer a briga ao fazer com que as pessoas em conflito despertem para o fato de quem elas são. Elas não são inimigas, são irmãs em Cristo. A questão que devemos propor para as pessoas da nossa igreja é a mesma: Contra quem vocês estão lutando? Ele (ou ela) não é seu irmão? Também devemos perguntar: Como quem você está agindo — como Cristo? Ou está apenas reafirmando seus próprios direitos, exigências, enfim, a si mesmo? O conselho de Paulo não para aí. Ele continua a dizer ao irmão mais forte: "Pecando dessa forma contra os irmãos e ferindo-lhes a consciência fraca, pecais contra Cristo" (1Co 8.12). Essa afirmação deveria nos chocar, mas ela é tão fundamentalmente paulina! Eclesiologia é cristologia! Esse irmão é mais do que um irmão. Ele representa Cristo. Acalente essa verdade em seu coração. Aplique-a às pessoas de sua igreja em meio aos seus conflitos. Abra-lhes os olhos, para que possam ver contra quem estão na verdade brigando. Como parecemos justificados aos nossos próprios olhos quando espalhamos rumores, fazemos acusações, destruímos nossos irmãos e irmãs, tudo isso sem sequer levar em consideração que estamos falando e agindo contra Cristo. Quem de nós, em meio a um conflito — seja com nosso cônjuge, filhos, um irmão ou irmã — vê a si mesmo como alguém que está lutando contra Cristo? Quem de nós, se Cristo estivesse visivelmente presente, iria amaldiçoá-lo face a face, atribuir falsas razões a ele, ou dizer: "Eu te amo, mas não suporto você?" São perguntas como essas que devemos fazer primeiro a nós mesmos e depois às pessoas a quem ministramos, quando vamos até elas como mediadores, em meio a seus conflitos. CONCLUSÃO O que fiz neste capítulo foi refletir um pouco sobre esse processo que chamamos mediação. Espero que minhas reflexões tenham feito você ao menos parar para reconsiderar a natureza de seu chamado pastoral. Elas me levaram a isso, e continuam

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a levar. A princípio achei que a linguagem e os termos típicos da mediação e arbitragem me soavam como uma linguagem muito jurídica. Eles pareciam trazer um poder oculto que ia além das simples ferramentas que eu tinha para ajudar minhas ovelhas. Mas então aconteceu uma mudança de paradigma. A Bíblia mudou, ou melhor, mudou a meu ver, porque eu mudei. Comecei a ver na Bíblia respostas, orientações e direção para os detalhes comuns da vida, para o dia a dia. Junto com essa nova perspectiva, comecei a ver minha mente transformando antigas maneiras de pensar que na verdade nunca haviam me servido muito bem. A Bíblia toda pareceu criar vida para mim e me impactar no que diz respeito à essência do meu chamado. A palavra de Deus não era uma caixa de ferramentas, na qual eu poderia encontrar uns poucos instrumentos úteis para uma reconciliação. Antes, a Bíblia era e é a palavra de reconciliação de Deus para nós. É Cristo nos falando em meio ao pecado e sofrimento, às promessas quebradas, aos relacionamentos dilacerados, aos casamentos amargurados. Ela é a poderosa palavra de reconciliação proferida por Cristo, para que façamos as pazes com Deus, com os outros seres humanos e com nós mesmos. Cristo é nossa paz, nosso Mediador, que media nossos inúmeros conflitos e nos torna um em Cristo. Que imenso privilégio, portanto, cabe a nós, pastores, que devemos levar essa palavra de reconciliação para o meio de um conflito e, pela força misteriosa do evangelho, ver vidas transformadas, relacionamentos reconciliados, e laços de união fortalecidos!

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esus Cristo é nosso Mediador, e como servos dele, somos chamados para mediar sua graça — não em sentido sacerdotal, mas como embaixadores da reconciliação. Mas como essa coisa de "mediar o evangelho" se dá na prática, nos conflitos do dia a dia? Como é isso de ajudar pessoas em conflito? No capítulo 8 vimos que treinar nossos irmãos e irmãs em negociação é uma maneira simples, mas de vital importância, por meio da qual podemos ajudar as pessoas da nossa '.igreja a se tornarem pacificadores. Essa é uma área em que nós, como líderes da igreja, podemos crescer em sabedoria e habilidade. No presente capítulo vamos examinar cuidadosamente os processos de mediação e arbitragem, duas outras maneiras práticas de ajudar as pessoas a resolverem conflitos, especialmente quando há questões importantes a serem tratadas. Muito embora vamos estudar alguns dos procedimentos mais formais envolvidos no processo de mediação e arbitragem, tenha em mente que mediação e arbitragem fazem parte da vida cotidiana. Quem de vocês, pais, não é diariamente um árbitro nas brigas de seus filhos? Quem de nós não se vê frequentemente entre pais e filho, irmãos e irmãs, mediando suas brigas familiares? Portanto, a mediação e arbitragem são simplesmente uma extensão das diversas maneiras pelas quais ajudamos pessoas a solucionarem seus conflitos. Com esse princípio em mente, vamos voltar nossa atenção para as práticas da mediação e da arbitragem pastoral, familiarizando-nos com suas raízes bíblicas assim como com suas expressões contemporâneas. Permita-me começar com uma história que propõe uma questão para pastores e outros líderes da igreja: A mediação é assunto do pastor?

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A MEDIAÇÃO É ASSUNTO DO PASTOR? Uma empresária da cidade me ligou um tempo atrás para perguntar se uma certa pessoa (que chamarei daqui por diante de Sr Jones) era membro da minha igreja. Disse a ela que ele de fato tinha sido, mas que havia se mudado para outro estado há cerca de um ano.

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Ela ficou em silêncio. Então arrisquei perguntar: "Em que posso ajudá-la? Você está procurando por ele?" Com uma nota de frustração, a mulher me contou que esse ex-membro da minha igreja tinha uma dívida exorbitante com ela, algo em torno de 23 mil reais. Por mais de um ano ela havia tentado receber esse débito, mas ele nunca retornava as ligações nem respondia as cartas enviadas. As poucas vezes em que conseguiram falar com ele, fizera uma porção de promessas e pedira que "esperassem só até amanhã". Depois que ela terminou de contar a história, perguntei-lhe: "Por que está me ligando?" Ela respondeu: "Porque somos uma empresa cristã e eu não acredito nessa história de levar irmãos para os tribunais. Então, resolvemos ligar pensando que talvez você, como pastor dele, pudesse nos ajudar. Queremos que o Sr Jones nos pague e estamos dispostos a entrar em uma mediação ou arbitragem conduzida por cristãos para solucionar esse problema. Acreditamos que a igreja deve ajudar, mesmo porque é isso que está escrito em 1Coríntios 6. Sua teologia e eclesiologia aplicadas ao contexto empresarial me soaram agradavelmente surpreendentes. Eles queriam obedecer às Escrituras e sabiar bem o que Deus exigia que se fizesse em casos como o deles. E raro a empresa ou organização cristã que procura aplicar princípios bíblicos na prática. Assim disse a ela que tentaria descobrir por onde o Sr Jones andava e que faria tudo que estivesse ao meu alcance para que essa dívida fosse paga. Depois de uns poucos telefonemas, descobri que o Sr Jones e sua família estavam frequentando uma igreja que pertencia a uma denominação irmã. Isso me encheu de esperança. Certamente, pensei eu, essa questão seria tratada de forma bíblica e oportuna. O que eu não esperava era a resposta fria que obtive quando liguei para o pastor da igreja da qual o senhor Jones agora era membro! Quando falei com o pastor dele ao telefone e expliquei toda a questão, colocando-me à disposição para ajudá-lo no que fosse preciso, o que ouvi foi: "Quem você pensa que eu sou para me envolver em questões de negócio de alguém da igreja? Eu sou um pastor! Não posso me envolver em questões como essa! Não tenho tempo para isso. Já estou sobrecarregado, ministrando às pessoas da igreja. Você ligou para a pessoa errada. Sou um pastor, e não um juiz. " E, dito isso, ele bateu o telefone na minha cara. Sua resposta propõe uma excelente pergunta: Pastor ou juiz? Esse era um assunto da alçada de um pastor, diante do qual ele tinha que ter assumido sua responsabilidade pastoral? Talvez ele devesse ter passado o assunto para os diáconos que lidam com assuntos financeiros. Talvez ele devesse ter aconselhado esses irmãos em disputa a levar essa questão a um tribunal de pequenas causas ou a contratar um advogado cristão. O que você faria no lugar dele? Você pensa que esse tipo de conflito é assunto que deva ser tratado pelo pastor?

ARBII-R,NGENI

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A resposta que recebi desse pastor é um sintoma de uma questão muito mais profunda que está acontecendo na igreja evangélica contemporânea. No cerne desse assunto está a questão do que significa para as igrejas de hoje "pastorear" seus membros. Em outras palavras, quais responsabilidades nós, como líderes, temos com relação à vida dos membros da igreja? Nossa jurisdição alcança apenas a vida espiritual das pessoas (questões relacionadas à adoração, oração, leitura da Bíblia, devocionais e testemunho) ou ela também abrange a vida social e empresarial dos membros da igreja? Por exemplo, em se tratando de dinheiro, somos responsáveis apenas por nos assegurar que todos estejam dando seus dízimos ou também é nossa responsabilidade saber se gastam o restante de seu dinheiro com sabedoria? A resposta fica bastante evidente quando examinamos a Escritura toda e aprendemos que entre os "pecados relacionados ao dinheiro" não se inclui apenas o fato de deixar de dar o dízimo. Eles incluem também deixar de pagar o cartão de crédito ou suas dívidas aos credores, bem como deixar de cumprir as promessas, juramentos e contratos feitos em negócios. E triste admitir que a resposta que ouvi desse pastor é típica de muitas outras que já conheci. Não importa o quanto alardeamos sobre a inerrância ou a suficiência das Escrituras, pois agimos como liberais: fazemos a nossa própria Bíblia dentro da Bíblia. Nossas Bíblias se parecem mais com a Bíblia do Thomas Jefferson. Nós selecionamos, cortamos e colamos aquilo de que gostamos e que estamos dispostos a obedecer, e consideramos as demais passagens que ficaram de fora, como Mateus 18.15-20 e 1Coríntios 6.1-8, como algo que não tem a menor autoridade ou relevância para nossa vida.

UMA SOCIEDADE LITIGIOSA Vivemos hoje em uma sociedade muito litigiosa.' Ou, como descreve Jerold Auerbach de forma tão eloquente, somos um povo de uma piedade legal cuja "lei é nossa religião nacional; os advogados são a nossa classe sacerdotal; o tribunal é nossa catedral, onde são representadas peças da paixão contemporânea".2 E compreensível, portanto, que sejamos cegos aos mandatos de Mateus 18.15-20 e 1Coríntios 6.1-8. Não temos consciência de como nem porque Cristo designou a igreja para o seu papel singular de solucionar conflitos entre os fieis e de ser luz para o mundo. Há pelo menos duas razões para essa cegueira. A primeira está no fato de que as pessoas percebem cada vez menos as instituições como capazes de fornecer

Jethro K. LIEBERMAN, The Liti gious Society. New York: Basic Books, 1981. Jerold AUERBACH, justice without Law?. New York: Oxford University Press, 1983, p. 9.

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O :PASTOR.

pAcif: CADOR.

auxílio real na solução de conflitos. O ministro da Justiça Warren Burger notou esse problema há vinte anos atrás, quando disse: "Um dos motivos pelos quais nossos tribunais ficaram abarrotados é pelo fato de que o povo americano tem cada vez mais procurado a justiça para resolver uma variedade enorme de ansiedades e aflições de caráter pessoal. Remédios para injustiças pessoais que antes eram considerados responsabilidade de outras instituições que não os tribunais são agora audaciosamente tidos como 'prerrogativas' legais". Espera-se que os tribunais preencham o vazio deixado pelo declínio da igreja, família e pela comunidade de bairro".3 Da mesma forma que a igreja abandonou o aconselhamento pastoral, passando-o para a jurisdição da psicologia moderna e para o movimento de aconselhamento, ela também abandonou seu papel de direito e jurisdição sobre as disputas civis entre cristãos. Quando a igreja de fato intervém, é somente em casos de questões em que há evidente erro doutrinário ou imoralidade. O fato de ter abdicado dessa responsabilidade serviu apenas para fortalecer a percepção das pessoas de que não é apropriado nem se justifica o fato de a igreja se envolver nas disputas civis entre cristãos. A própria ideia dos líderes da igreja terem um direito e autoridade legítimos para agir como um "tribunal" — tendo real jurisdição sobre a vida e a doutrina de seus membros, inclusive em matéria financeira e de negócios, e terem a capacidade de proferir julgamentos a esse respeito que devem ser obedecidos — é algo completamente estranho à nossa compreensão evangélica contemporânea da igreja e de sua liderança. Ao lado dessa abdicação da igreja de sua autoridade concedida por Deus, as pessoas aumentaram sua confiança na autoridade civil. Depositamos mais esperança do que nunca em nossos tribunais para solucionar as injustiças que sofremos, sejam elas reais ou subjetivas. Eugene Kennedy comenta com muita propriedade: "Os tribunais, talvez a última das instituições com autoridade intacta, se transformaram no último recurso para atribuir a culpa, real ou imaginária, a terceiros. O aumento estarrecedor de processos de imperícia, de forma mais proeminente contra médicos, mas também contra professores, distritos escolares além de processos de negligência contra pais é um grande sinal de que as pessoas querem que alguém pague quando as coisas não andam bem ou como deveriam em suas vidas" .4 Em termos teológicos, Kennedy está dizendo que quando as pessoas

'Ministro da Justiça Warren Burger, "Annual Report on the State of the Judiciary," American Bar Association Journal (março/1982): p. 68; citado em Judith M. Keegan e Glenn G. Waddell, "Christian Conciliation: An Alternative to `Ordinary' ADR," Cumberland Law Review 29, no. 3 (1998-1999): p. 583. 4 Eugene KENNEDY, "The Looming 80's," New York Times Magazine, 02/12/1979; citado em LIEBERMAN, Litigious Society, p. vii (itálico acrescentado).

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rejeitam um Deus soberano, elas exigem que a reparação seja feita por uma corte soberana. Hoje, o povo americano espera que as cortes façam algo que eles creem que Deus não possa fazer.' Lamentavelmente, esse tipo de atitude também se encontra em nossas igrejas. O fato de que nosso Senhor nos deu tribunais civis para solucionar alguns de nossos litígios civis e criminais, não se discute. No entanto, para muitos cristãos, esses tribunais são os únicos que Deus nos deu. Para eles é uma ideia totalmente estranha ver os líderes de sua igreja como um tribunal designado por Deus para a igreja. No entanto, é exatamente dessa forma que Deus vê aqueles que ele aponta para liderar sua igreja. Ele ordena que a igreja tenha um tribunal e um processo próprio para solucionar os conflitos que surgem entre a família de Deus. O fato de não vermos esses tribunais e processos sendo praticados hoje dentro das igrejas evangélicas é prova não somente de que abrimos mão da responsabilidade que Deus nos deu como autoridade na igreja, mas também uma prova de que desenvolvemos uma eclesiologia deficiente. A essa altura, seria aconselhável que você fizesse uma pausa e perguntasse a si mesmo se a sua igreja de alguma maneira tem sido cega aos mandatos de Mateus 18.15-20 e 1Coríntios 6.1-8. E, pensando no outro lado da mesma moeda, o que você e os outros líderes de sua igreja têm feito para se assegurar de que estão obedecendo à palavra de Deus? Em seu artigo intitulado "Em direção a uma teologia bíblica do litígio: o olhar de um professor de direito sobre a passagem de 1Coríntios 6.1-11", Robert Taylor confessa que 1Coríntios 6 coloca uma série de questões difíceis à igreja que ela precisa começar a se fazer — questões com as quais devemos lidar se queremos obedecer a Deus. Ele faz, por exemplo, as seguintes perguntas: Qual argumentação teológica poderia ser oferecida para essas visões paulinas? Por que para Paulo o litígio aparece sob uma luz tão negativa, mas a mediação sob uma luz bem mais favorável? [...] Que compreensão de litígio ou mediação, seja ela explícita ou implícita, os intérpretes de Paulo propõem? [...] A teologia bíblica do litígio teria algo a dizer para a nossa sociedade contemporânea tremendamente litigiosa, onde cristão processa cristão sem o menor escrúpulo? E por que é melhor para um cristão deixar seus direitos de lado e sofrer prejuízo do que litigar? Em síntese, por que os cristãos não deveriam processar uns aos outros e o que há de errado em litigar?6

5 LIEBERMAN, Litigious Society, p. 3. Lieberman fornece exemplos do caráter progressivamente litigioso dos tribunais da Roma antiga, durante o início do primeiro século. 6 Robert TAYI,OR, "Toward a Biblical Theology of Litigation: A Law Professor Looks at 1Cor. 6:1-11," Ex Auditu 2 (1986): p. 105-106.

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O - pAsTe--)R. PACE FICADOR.

A essas perguntas poderíamos acrescentar mais estas: Que tipo de ensino e treinamento a maior parte dos líderes e membros de igreja recebem a fim de obedecer 1Corintios 6, sem falar em Mateus 18.16? E quais armadilhas ou ciladas esses líderes podem encontrar pela frente se nós nos precipitarmos nessa área que temos negligenciado há tanto tempo? Esses são os tipos de questões que devemos fazer a nós mesmos e às nossas igrejas se não quisermos ser acusados de estar negando a sola Scriptura. Embora nos vangloriemos de confessar a Sagrada Escritura, nossa falha em colocar em prática a mediação e a arbitragem é, na realidade, uma negação implícita da Escritura. Nesse caso em particular, somos culpados em dois aspectos. Primeiro, ao nos recusar a obedecer ao chamado da Escritura para que a igreja aja como um tribunal para nossas disputas civis, estamos negando as Escrituras tenham autoridade sobre todas as áreas da vida. Segundo, ao levar nossas disputas para os tribunais civis à procura de que sejam julgados segundo a lei civil, estamos tratando os tribunais seculares, em termos de lei, quase como uma tradição equivalente à Escritura em autoridade. Contudo, Deus nos deu a igreja para ser um tribunal de mediação e arbitragem entre seus fieis. Mateus 18 e 1Coríntios 6 não são meras sugestões ou alternativas, mas sim mandatos divinos. Não temos outra opção a não ser obedecer a Deus e nos dedicar como pastores a ser treinados e a treinar e preparar nossos membros para resgatar o verdadeiro ministério da reconciliação, que nos foi dado graciosamente pelo Senhor para nosso bem e para sua glória.

O CHAMADO DA IGREJA E ALGO SINGULAR? Como vimos no capítulo 9, a primeira e mais evidente razão pela qual as igrejas devem ter uma participação ativa na vida das pessoas no que diz respeito à mediação é o fato de o próprio Cristo ser nosso Mediador (1Tm 2.5; Hb 8.6,9.15,12.24). Como nosso profeta, sacerdote e rei, ele reconcilia o homem com Deus e Deus com o homem. Assim, a mediação da igreja é legítima pelo fato de ser parte do chamado bíblico da imitatio Christi — o chamado para "imitar a Cristo". A mediação também é indiretamente defendida ao longo das Escrituras, onde encontramos homens e mulheres participando na mediação em seu sentido mais amplo. Ou seja, vemos homens e mulheres que se colocaram entre duas partes em conflito. Abigail, em 1Samuel 25, é um clássico caso, pois ela se interpõe entre seu marido, Nabal, e Davi, suplicando a Davi que desista de seu intuito de levar a adiante o iminente ataque planejado. No Novo Testamento, Barnabé age como mediador, ajudando a desconfiada igreja de Jerusalém a se reconciliar e a aceitar o apóstolo Paulo (At 9.19-27). Mais adiante, como vimos no capítulo 6, o próprio Paulo instrui a igreja de Filipo a ajudar Evódia e Síntique a que "entrem

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em acordo no Senhor". Isto é, Paulo invoca uma pacificação assistida — pede que um mediador "as ajude" a se entenderem (Fp 4.2-3). Um texto que devemos considerar mais de perto é Mateus 18.16, um versículo que se abriga no contexto do chamado de Jesus em prol da restauração de um irmão que pecou. No versículo 15, Jesus nos diz para ir a sós com o irmão que pecar, repreendendo-o, a fim de que ele se restaure. Só porque Jesus não especifica a natureza do pecado que ele cometeu, não devemos excluir daqui certos pecados. Por exemplo, retomando o tópico dos pecados ligados ao dinheiro, não devemos excluir da condição de pecado a atitude de quebrar contratos, deixar de pagar dívidas ou devolver o que é devido, entre outros pecados relacionados ao mundo dos negócios. Se esse primeiro passo não der resultado, Jesus nos diz para dar mais um segundo passo: "Mas se ele não te ouvir, leva ainda contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda palavra se confirme pela boca de duas ou três testemunhas" (Mt 18.16). Esse versículo propõe a nós, pastores e cristãos em geral, uma pergunta importante: "O que Jesus quis dizer quando diz para 'levar contigo mais uma ou duas pessoas'"? Jesus encontra uma base para incluir outras pessoas no processo de restauração ao apelar para Deuteronômio 19.15: "Uma testemunha não poderá se levantar sozinha contra alguém por alguma maldade ou algum pecado, qualquer que seja o pecado cometido. O fato se estabelecerá pela palavra de duas ou três testemunhas." Esse versículo trata da necessidade de se ter mais de uma testemunha para se chegar a um veredito em um julgamento, o que fica evidente pelo fato de que se fala em duas ou três "testemunhas". Portanto, nos parece que Mateus 18.16 não está falando de mediadores, mas sim de testemunhas para uma ofensa de âmbito civil ou um crime. Se Mateus 18.16 está tratando apenas da necessidade de testemunhas para uma ofensa de âmbito civil ou um crime, então, pode parecer que este não é um texto que claramente nos incentiva à mediação. No entanto, um pouco mais de reflexão sobre o caráter dessas testemunhas nos leva a não conceber sua função de forma tão restrita. Ao examinarmos este versículo com mais atenção, encontraremos pelo menos dois traços de evidências que sugerem que essas testemunhas estão menos para testemunhas e mais para conselheiros. Primeiro, diferentemente do versículo 17, onde está escrito "dize-o à igreja", o versículo 16 continua a ser um encontro não ligado a um contexto de julgamento. As questões ainda estão sendo tratadas e discutidas informalmente, e não há um juiz ouvindo o caso. Por isso, a pessoa ou as duas pessoas que se diz para que sejam levadas junto não devem ser concebidas como testemunhas para um processo. Jesus ainda tem em vista a possibilidade de que o irmão ofensor ouça, e se ele de fato assim o fizer, o processo de reconciliação termina aqui. Não há necessidade de levar o caso a julgamento pelo tribunal da igreja.

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Segundo, em todos os três versículos (Mt 18.15-17), a questão que determina se o processo de restauração deve continuar é o fato de o irmão ofensor "se recusar a ouvir". Esse fator é determinante de que aqueles que procuram levá-lo a se restaurar estão fazendo mais do que apenas dar seu testemunho em apoio à alegação da ofensa cometida. Somos levados a presumir que essa pessoa ou essas duas pessoas que foram levadas junto estão falando, aconselhando, exortando e chamando a atenção desse irmão — fazendo todo esforço para que ele as ouça — e não apenas meramente estabelecendo evidências da ofensa que ele cometeu. Ou seja, essas pessoas citadas no versículo 16 estão agindo primordialmente como conselheiros. Portanto, fica evidente que o contexto do versículo 16 apresenta essas "testemunhas" agindo com um intuito mais amplo do que o de uma testemunha que apenas depõe em um tribunal. No entanto, não devemos por isso presumir que elas não tenham qualquer função de testemunha. As palavras dessa passagem parecem também incluir não só o que o suposto ofensor diz, mas também o que diz o irmão que o acusa de ofensa perante os demais. Portanto, as testemunhas citadas são necessárias para ouvir e testemunhar as palavras dos dois — tanto do ofensor quanto do ofendido — a fim de definir quem está dizendo a verdade, no caso apresentado por cada uma das partes. Elas certamente irão aferir a força das alegações feitas e, caso as acusações feitas forem levianas, inconsistentes, as testemunhas dirão isso ao ofendido. Mas se não forem, elas ressaltarão ao ofensor a gravidade das acusações feitas contra ele e insistirão para que se arrependa. Além do mais, a citação que Jesus faz de Deuteronômio 19.15 pode ter uma força antecipatória, antecipando a fase três, quando então essas testemunhas não mais agirão como conselheiros, mas sim como testemunhas de fato, em um tribunal eclesiástico, contra aquele irmão ofensor que se recusa a ouvir o que elas o aconselham a fazer. Mateus 18.16, portanto, não pode ser sumariamente descartado como algo irrelevante ao chamado da igreja à prática da mediação. Antes, ele sustenta o que em sentido amplo pode ser chamado "mediação". Ou seja, Jesus está convocando uma ou duas testemunhas a agirem primeiro como conselheiros para as duas partes em disputa. Somente depois de ter verificado a validade das acusações e a recusa do ofendido em escutá-los, essas pessoas devem agir como testemunhas perante um tribunal ou corte da igreja. Vimos então que Mateus 18.16 de fato tem em mente um ministério de mediação dentro da igreja local. Se isso vale para seus membros, quanto mais para aqueles que exercem autoridade dentro da igreja. A mediação é parte da agenda pastoral. Fiquei ainda mais convencido disso recentemente, quando estive envolvido em uma mediação que durou cerca de um ano meio. Eu estava mais familiarizado com o processo padrão de mediação, em que o tempo para se chegar a um

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acordo entre as partes era limitado a um ou dois dias. No entanto, no caso em questão estávamos fazendo uma mediação entre duas famílias da igreja, e o processo envolveu tanto a breve mediação de uma crise quanto um aconselhamento de longo prazo, para chegarmos a uma reconciliação. Grande parte desse aconselhamento foi moldada por minha decisão de apontar para o evangelho por muitas vezes, aplicando suas verdades centrais a aspectos particulares do conflito ao longo de todo o processo. O momento decisivo nesse caso aconteceu quando o Espírito Santo moveu poderosamente o coração de uma das partes envolvidas, tornando-a mais sensível e permitindo que ela realmente ouvisse e acreditasse em tudo que eu vinha lhe ensinando sobre quem ela era em Cristo — ou seja, o momento decisivo aconteceu quando ela ouviu e acreditou no evangelho. Quando este caso estava chegando perto de um desfecho, não tive como não comparar minhas diferentes experiências em mediação. E percebi que a típica prática de mediação, que era voltada para o conflito, não era suficiente para o propósito de solucionar o conflito. Esse caso em particular não havia exigido apenas um período de tempo maior; ele exigira também a participação da igreja. Exigira a existência de um corpo de fieis que juntos aderem a uma teologia bíblica e que se encontram regularmente para adorar. Exigira a pregação constante da palavra de Deus e a ministração da Ceia do Senhor, à qual eu sempre aconselhei a pessoas em conflito para que não participassem, caso não tivessem dado os passos necessários para se reconciliar com seu irmão ou irmã (veja Mt 5.23-24). Você pode ter uma ideia da pressão firme, embora gentil, que isso exerceu sobre as famílias em conflito, no sentido de que perseverassem no árduo trabalho de reconciliação. Por fim, exigiu a participação de outras pessoas da igreja, como os presbíteros e amigos de confiança das duas partes, que foram instrumentais para levar as partes a se reconciliarem. Estou enfatizando o papel central da igreja no processo de mediação para que nós, pastores, possamos ser encorajados a ver que pacificação não é uma tarefa reservada a advogados ou mediadores profissionais. É parte do nosso chamado. É isso que significa cuidar ou "governar" a igreja (1Tm 3.5; 5.17). Cristo nos deu a igreja, com presbíteros devidamente indicados, como o contexto específico para solucionar nossos conflitos, para restaurar a paz e a justiça, e para produzir os doces frutos da reconciliação (veja Mt 18.15-20; Lc 17.1-10; 1Co 6.1-8; Ef 3.10; 1Ts 5.12-13; 1Tm 3.1-8; 5.17; Hb 13.17). A MEDIAÇÃO CRISTÃ Depois de te tido uma visão geral da mediação nos dias de hoje, vamos examinar agora algumas especificidades da mediação. Isso inclui o papel do mediador, seus objetivos e o processo de mediação em si.

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O papel do mediador A mediação é o processo pelo qual duas partes em conflito chamam um terceiro para ajudá-las a chegar a um acordo que solucione esse conflito. A palavra-chave aqui é ajudar. Diferentemente de um painel de árbitros ou de um tribunal eclesiástico, os mediadores não decidem pelas partes o acordo ao qual elas chegarão. Essa é uma decisão que é deixada às próprias partes, para que elas determinem entre si. No entanto, mediadores cristãos na verdade ajudam a dar forma a um acordo final, ao ministrar às partes sábio aconselhamento bíblico. Por exemplo, um mediador cristão pode aconselhar uma das partes a olhar para além dos limites do que é considerado legal, procurando ver o que é justo e equitativo. Em um dos casos que atuei como mediador, parte do conselho que dei foi no sentido de esclarecer a uma das partes acerca da taxa de juros exorbitante que estava sendo imposta a outra parte pelo contrato em discussão. Ela precisou ser lembrada que a outra parte, de quem estava procurando cobrar aquela taxa exorbitante, era seu irmão em Cristo. Além disso, um dos mediadores, familiarizado com a taxa de juros normalmente cobrada naquele tipo de contrato, teve condições de dizer à pessoa que os estava cobrando que aquela taxa era ilegal. Ter alguém com esse tipo de conhecimento da área em discussão é um dos critérios mais benéficos na hora de escolher os mediadores. Uma das primeiras coisas com que as partes devem entrar em acordo é no que diz respeito à escolha dos mediadores. Na igreja, os mediadores serão sempre o pastor e os líderes. No entanto, como demonstra o exemplo anterior, em geral outros homens e mulheres de notório conhecimento na área, sabedoria, idoneidade e caráter cristão são as melhores opções. Em minha própria igreja, já encorajei muitas pessoas que trabalham lá, como diáconos, e outras pessoas habilidosas e interessadas no assunto a participarem dos treinamentos oferecidos pelo Peacemaker Ministries. E também encorajo você, pastor, bem como os líderes e membros da sua igreja a também pensar em algum tipo de treinamento. Mediadores auxiliam as partes em litígio de várias formas. Primeiro, eles em geral são chamados para ajudar a encorajar as partes relutantes a aceitar um processo de mediação. Essa cena é bem semelhante àquela cena típica da esposa que procura o pastor pedindo para que convença seu marido a fazer aconselhamento. Segundo, mediadores proporcionam às partes em conflito um novo grau de objetividade que elas perderam ao longo da disputa. Por ter perdido essa objetividade, estão à procura de um mediador em quem possam confiar, para que lhes dê conselhos imparciais e justos. Como pastores e líderes, vocês já desfrutam da tremenda confiança e aceitação por parte dos membros da sua igreja, como alguém que cuida bem do rebanho. Por fim, mediadores ajudam as partes em conflito ao abrir um canal de comunicação, esclarecer tópicos que estão confusos e ao melhorar a compreensão

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geral que cada parte tem do problema. Mediadores, na verdade, ajudam os irmãos em conflito a ser prontos a ouvir, tardios para falar e tardios para se irar (Tg 1.19).

Os objetivos de um mediador O mediador não precisa ter em mente apenas os objetivos gerais que orientam uma pacificação (glorificar a Deus, servir aos outros e crescer à semelhança de Cristo)', mas também deve procurar alcançar objetivos mais específicos na tarefa concreta de mediar uma disputa como, por exemplo, assegurar que as partes cheguem a um acordo duradouro. Há três objetivos específicos que o mediador precisa batalhar para alcançar: • Satisfação com o processo em si (1Co 14.40) • Satisfação pessoal (Mt 7.12; Tg 2.1-4) • Satisfação com o produto da mediação (Pv 28.5)8 Como pastor mediador, você deve buscar se assegurar que as partes fiquem satisfeitas com o processo de mediação em si. Isso significa que você sempre está prestando atenção ao fato de que o modo como um mediador conduz as partes a um acordo é tão importante quanto o conteúdo desse acordo. Cabe a você assegurar-se de que as partes claramente entendam o que envolve o processo de mediação, de que o processo em si transcorra com ordem e respeito, e que as partes sejam tratadas com igualdade (1Co 14.40). O mediador deve tratar as partes do processo como ele mesmo gostaria de ser tratado. Uma das preocupações que você deve ter no processo de mediação é que todos os envolvidos tenham acesso às informações necessárias sobre o procedimento que será seguido, bem como uma justa oportunidade de apresentar seu lado da questão. Outra preocupação que você deve ter é que todos sejam orientados com relação à questão do tempo, o que deverá servir para antecipar ou corrigir falsas expectativas quanto ao resultado que umas poucas horas ou mesmo um dia ou dois de mediação possam produzir. Recentemente, cometi uma falha ligada justamente a isso. Fui negligente em deixar claro a questão do tempo no processo de mediação. Eu estava mediando um conflito entre um dos meus presbíteros e um empregado dele, que também era membro da nossa igreja. Separamos um dia inteiro para tratar da questão, mas

7 SANDE, The Peacemaker, p. 31-37 [Também publicado no Brasil pela CPAD sob o título O pacificador]. 'Ken SANDE e Ted KOBER, Guiding People through Conflict. Billings: Peacemaker Ministries, 1998, p. 20.

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eu deixei de informar a ambos o que era razoável esperar da mediação naquele período de tempo. O empregado pensou que a mediação duraria apenas um dia e que nada mais aconteceria depois disso. No final do dia, com muitos itens ainda pendentes, saímos da mediação muito frustrados. Embora estivesse saindo de férias no dia seguinte, ele encontrou tempo para me escrever uma carta a respeito do seu desapontamento. Nela ele me disse que suas férias estavam arruinadas pelo fato de a mediação não haver chegado a um bom termo. E evidente que eu sabia que a mediação não havia acabado, assim como sabia que ele iria sair de férias. Minha expectativa era retomar a mediação quando ele voltasse de férias, mas eu não deixei isso claro para ele. Com isso, no caso em questão, eu falhei em assegurar que ele ficasse satisfeito com o processo em si. Essa falha que cometi levou aquela pessoa a pensar que ninguém, inclusive eu, estava dando ouvidos ao que ele dizia — o que nesse caso era uma questão importante do conflito. Essa percepção, por sua vez, alimentou ainda mais a visão negativa que ele tinha de seu empregador e de pessoas em posição de autoridade. Todos esses fatores combinados, provocados pela minha negligência, serviram para tornar ainda mais difícil que as partes chegassem a um acordo. Em segundo lugar, como pastor mediador você deve buscar se assegurar de que haja satisfação pessoal, o que significa dizer que você e cada um dos envolvidos devem tratar os demais com respeito e igualdade (veja Mt 7.12; Tg 2.1-4). Nosso grande modelo de pacificação é o próprio Deus, que frequentemente nos lembra de que ele não é parcial, bem como nos exorta para que não sejamos parciais nem demonstremos favoritismo quando estivermos julgando alguém.9 O mediador age como um juiz, pedindo que as partes digam a verdade em amor e gentilmente repreendendo aquele que quebrar as regras básicas ao depor. E nesse ponto que questões como ofensa, repreensão, convicção do pecado, arrependimento e perdão devem entrar na discussão. O que fica muito claro durante o processo de mediação é que a verdadeira questão que está sendo discutida é o problema a ser tratado. Mas o que piora o conflito, transformando-o num verdadeiro incêndio, são as diversas maneiras, pequenas ou mesmo mais pesadas, como as partes se ofendem mutuamente em um conflito. Por exemplo, quando alguém quebra um contrato por deixar de pagar sua dívida, o pastor mediador não deve pensar que simplesmente arrumar uma forma da parte pagar o que deve será suficiente para se chegar a um acordo duradouro. Antes, a parte que deixou de pagar a dívida quando deveria pode precisar confessar o pecado de ter quebrado sua promessa a um irmão, esquivando-se de seus

9Acerca da imparcialidade com respeito ao caráter de Deus, veja Dt 10.17; 16.19; 2Cr 19.7; Jó 34.19; Pv 24.23-24; Mt 22.16; Lc 20.21; At 10.34; Gl 2.6; 6.7-8; Ef 6.9; Cl 3.25; 1Pe 1.17. Acerca da imparcialidade com respeito ao ser humano, veja Ex 23.3; Dt 1.17; Pv 22.22; Ml 2.9; Tg 3.17.

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telefonemas e mentindo. Além disso, as duas partes devem se confessar, por terem machucado uma a outra com palavras ferinas. Há razão para que Jesus fale de irmãos em conflito que se iram e chamam um ao outro de nomes como insensato ou tolo. Todos esses pecados precisam ser confessados e cada um deles precisa se perdoado. Nós, como pastores mediadores devemos ficar muito felizes com situações como essa, pois elas proporcionam uma grande oportunidade para que mostremos o poder presente e real do evangelho diante desses detalhes essenciais envolvidos nas confusões da vida cotidiana. Por fim, o pastor mediador deve procurar assegurar que haja satisfação com produto da mediação. Produto nesse caso diz respeito aos aspectos principais o relacionados ao sujeito ou a sua propriedade. Por exemplo, no caso da dívida que não foi paga, o mediador precisa se assegurar de que a questão do pagamento seja tratada e que a forma como se dá o acordo em torno dessa dívida seja expressa de forma clara e igualitária pelo acordo feito na mediação. Quando você analisa esses três objetivos específicos, sobre qual deles você, como mediador, considera ter o maior controle? Sua influência sobre o produto da raediação é muito pequena. No caso de um litígio que envolva um contrato ou um imóvel, por exemplo, você tem muito pouco a fazer quanto aos reais termos desse acordo. No entanto, você tem um controle bem maior sobre a forma como o processo de mediação é conduzido e a forma como as pessoas se comportam em relação à outra. Com mais frequência do que se pensa, se o acordo de mediação mais tarde for desfeito, isso não acontecerá em função do modo como o principal problema foi solucionado, mas sim por uma falha no processo ou por uma falha em lidar com as questões pessoais envolvidas.

O processo de mediação Em geral, o processo de mediação pode ser dividido em três fases: 1) a fase anterior à mediação (que envolve trazer as partes para a mediação); 2) a fase da mediação em si (que envolve a solução do conflito); e 3) a fase posterior à mediação (que envolve assegurar a durabilidade, o cumprimento do acordo). Diferentemente do aconselhamento, quando se está aconselhando só uma pessoa que passa por algum conflito, na mediação você estará lidando com pelo menos duas partes. Como bem sabe, aconselhar duas pessoas não é apenas uma questão de acrescentar mais uma pessoa ao processo. Há um aumento exponencial em termos de informação, questões a serem resolvidas, interesses, emoções, preocupações e expectativas. Consequentemente, a mediação possui muito mais ciladas nas quais um mediador pode cair quando está tentando ajudar as partes em conflito. Não tenho aqui a intenção de me alongar muito mais com respeito às questões relacionadas ao processo. No entanto, permita-me indicar a você duas

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ferramentas valiosas para conduzi-lo durante um processo de mediação: o livro de Ken Sande, The Peacemaker, e outro livreto seu intitulado Guiding People through Conflict.rn Ambos podem fornecer uma orientação detalhada quando você estiver ajudando pessoas em conflito, antes, durante e após a mediação. Eu uso The Peacemaker principalmente na fase anterior à mediação, quando estou tentando trazer as pessoas para um processo de mediação. Durante essa fase, peço as partes que leiam trechos selecionados dos seis primeiros capítulos deste livro, para que elas possam ver os benefícios de uma mediação e como isso pode ajudá-las a glorificar a Deus, servir aos outros e crescer à imagem de Cristo. Também quero que as partes mudem sua maneira de pensar, passando da acusação, das atitudes de jogar a culpa no outro, de minimizar seu próprio pecado, e outros hábitos pecaminosos, para tirarem a trave dos próprios olhos. Além dessa leitura, eu costumo passar como lição de casa algumas perguntas, ao final de cada capítulo, que as ajudarão a se preparar para o primeiro encontro de mediação. A segunda ferramenta que apontei, Guiding People through Conflict, é particularmente útil no processo de mediação propriamente dito. Este material conduz você através dos passos da mediação. No final desse livreto, você encontrará uma lista que o mediador poderá usar para se assegurar de que fez tudo o que era preciso em cada fase da mediação. O benefício primordial da mediação, tanto para pastores quanto para as partes envolvidas, está no fato de que conseguem alcançar uma nova visão da sabedoria e do poder do evangelho. O pecado de cada um, a santidade de Deus, a expiação de Cristo, a igreja como família, e sua própria participação no processo como pacificadores renova sua fé na realidade e relevância do evangelho. Elas conseguem perceber o senhorio de Cristo como algo que se estende além do mundo espiritual, alcançando até mesmo o mundo aparentemente "não espiritual" das coisas corriqueiras de sua vida. Deus parece maior agora. Ele é Senhor sobre todas as coisas da vida — inclusive sobre os conflitos, o mundo dos negócios, nossa vida financeira, os contratos que assinamos, e as promessas que fazemos. A mediação conduzida pela igreja faz com que vejamos ainda mais que Cristo, o Senhor, é nosso Mediador, nosso Maravilhoso Conselheiro, nosso Princípe da Paz. ARBITRAGEM NA IGREJA

Se as partes não conseguirem resolver o conflito por meio da mediação, sempre terão a opção de recorrer à arbitragem. Nos próximos parágrafos, iremos examinar primeiro as instruções de Paulo sobre arbitragem em 1Coríntios 6. Depois, iremos examinar rapidamente alguns aspectos particulares da arbitragem. '°SANDE, The Peacemaker, SANDE e KOBER, Guiding People through Conflict.

MEDIAÇÃO L ARBITRAGEM

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1Corintios 6 Não deve nos surpreender o fato de descobrir que 1Coríntios 6.1-8 é outra passagem que a igreja tem há muito tempo evitado. Os próprios coríntios evitaram mencionar essa questão dos litígios civis a Paulo, quando pediram seus conselhos. A nossa negligência nesse aspecto é um reflexo da deles. E assim como acontecia com eles, o nosso comportamento somente prova o quanto nossos pensamentos e práticas têm sido influenciados mais pelo mundo do que pela palavra de Deus. Há muito trabalho a ser feito nessa área de arbitragem se quisermos ser obedientes a Deus e à sua Palavra, e pastorear seu povo com fidelidade. Colocando as coisas em contexto, 1Coríntios 6.1-8 é a segunda reprimenda que Paulo dirige aos coríntios com respeito às suas práticas de disciplina na igreja, ou melhor, à sua falha nesse aspecto. No capítulo 5, Paulo os reprova por deixar de julgar um homem que estava cometendo incesto. Aqui, no capítulo 6, Paulo os reprova por um assunto relacionado a isso — sua falha em levar os conflitos a julgamento pela igreja. Implicitamente Paulo também está criticando os líderes da igreja por deixarem de estabelecer um fórum ao qual os cristãos de Corinto pudessem submeter seus conflitos à arbitragem. Talvez seja mais importante observar o estado emocional de Paulo do que o contexto de 1Coríntios 6. Ele está indignado e perplexo com as ações dos coríntios. Ele prossegue fazendo mais seis perguntas retóricas, feitas de forma brusca, ininterrupta, que de fato são reprimendas mal disfarçadas. No versículo 4, zomba dos coríntios, dizendo a eles que constituíssem como juízes até mesmo homens de menor estima na igreja, em vez de resolverem seus conflitos perante incrédulos. E caso eles não tenham entendido a zombaria, ele expressamente diz a eles, no versículo 5, que está dizendo essas coisas para "envergonhá-los". A ira de Paulo se eleva ao ponto máximo nos versículos 9 a 10, quando ele profere uma forte reprimenda contra os adúlteros, os homossexuais, os idólatras, os ladrões, os avarentos, os que cometem fraudes e os caluniadores, afirmando que não herdarão o reino de Deus. Certamente Paulo está associando as ações dos coríntios que levam um irmão ao tribunal com essa lista de pessoas que vivem em franca e deliberada rebeldia contra Deus. Para entender as palavras de admoestação de Paulo, precisamos entender primeiro o que ele não está criticando. Ele não está dizendo que os conflitos não devem acontecer, pois não é um sonhador. Ele também não está defendendo a rejeição de qualquer tipo de tribunal. O que ele espera é que existam tribunais nas igrejas para solucionar os conflitos entre cristãos. Nem devemos pensar que Paulo esteja condenando os procedimentos legais, pois ele os valoriza em Romanos 13.1-7, quando a questão sob julgamento seja do tipo que chamaríamos de infração criminal (e não uma infração civil).

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No entanto, Paulo está criticando os coríntios em vários aspectos. Primeiro, pela descrição que ele faz dos juízes seculares podemos inferir que os tribunais destes últimos adotam um padrão e um método diferentes para chegar a uma decisão. Eles são os tribunais dos "injustos" (1Co 6.1) e dos "incrédulos" (v. 6). Paulo traça um contraste entre eles e um tribunal eclesiástico, que é o tribunal dos santos (v. 1-2) e dos irmãos (v. 5). Paulo entende a necessidade de haver uma solução dos conflitos, mas pelo fato de o padrão e o método seguidos pela atividade judiciária serem tão diferentes daquele seguido pelos cristãos, ele espera que a igreja tenha em vez disso seu próprio tribunal para solucionar os conflitos entre os membros. E censura os coríntios por deixarem de providenciar esse espaço. Paulo coloca então seu primeiro desafio para nós: Temos um fórum para arbitragem em nossa igreja? Estamos preparados para lidar com os litígios civis entre cristãos? Se não estamos, por que não? O que devemos fazer para remediar essa falha, se não quisermos ser alvo da mesma reprimenda que Paulo dirigiu aos coríntios? Segundo, Paulo está criticando a forma como esses conflitos estão afetando o testemunho da igreja. Por duas vezes ele expressa seu choque pelo fato de os coríntios estarem levando suas questões "perante os incrédulos" e para "ser julgada pelos injustos" (1Co 6.1,6), porque quando os cristãos levam suas questões para serem solucionadas fora da igreja, e as tornam públicas nos tribunais seculares, eles denigrem o nome, a sabedoria e o poder de Cristo perante os olhos do mundo. Essa forma de agir é diretamente contrária à missão da igreja, à missão de ser luz para o mundo! Essas questões, mais uma vez, colocam outros desafios para nós: As nossas igrejas são conhecidas na comunidade em que estão inseridas como locais de mediação e arbitragem de conflitos? Os membros da sua igreja sabem que quando tiverem um conflito com um irmão eles podem levar o caso ao pastor e aos líderes para ser solucionado? Nós compreendemos que o testemunho da nossa igreja é o testemunho em favor de Cristo, e levamos esse testemunho a sério? Como Paulo insiste em dizer: "O fato de terdes processos judiciais uns contra os outros demonstra que já estais derrotados"(1Co 6.7). Paulo não está dizendo que nunca devemos ter conflitos entre nós. Antes, ele está falando que não devemos ter processos na justiça contra irmãos. Ou seja, Paulo está descrevendo um igreja que perdeu o juízo — onde um irmão está levantando o braço contra outro irmão. Em vez de amor, temos entre nós um espírito de rivalidade, que só visa os próprios interesses, um espírito de um antagonismo egoísta, cheio de desconfianças, julgamos o outro de forma pouco caridosa, temos inveja entre tantas outras coisas que hoje tomaram conta das igrejas. Irmãos, isso não deve ser assim! O fato de que tais contendas e discórdias existam entre irmãos é a acusação final que Paulo faz aos coríntios. Suas ações vão contra a própria natureza da igreja

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como família de Deus. Três vezes nos versículos 5 a 6 Paulo enfatiza que aqueles que eles estão levando ao tribunal são irmãos: "Digo isso para vos envergonhar. Será que não há entre vós ao menos um que seja sábio para julgar as questões entre seus irmãos? Entretanto, um irmão leva outro irmão ao tribunal, e isso perante os incrédulos?" E ainda mais, Paulo conclui a reprimenda que faz aos coríntios exasperado por eles estarem agindo dessa forma em relação a irmãos: "Mas sois vós mesmos que fazeis injustiça e cometeis fraude, e isso contra irmãos" (v. 8). As atitudes dos coríntios deixam transparecer uma desconsideração total pelo caráter singular da igreja de Cristo e sua missão, e para nossa vergonha, isso é o que também demonstram nossas próprias atitudes. Que possamos recuperar a mesma paixão que Paulo tinha por Cristo e por sua igreja e, pela graça de Deus, busquemos instituir as políticas e práticas necessárias para solucionar nossos próprios conflitos por meio da mediação e da arbitragem.

Como a arbitragem é diferente da mediação Tivemos uma pequena ideia da paixão que Paulo tinha pela pacificação em nossa exposição de 1Coríntios 6. Vamos agora destacar alguns aspectos particulares da arbitragem na igreja comparando-a com a mediação. Começaremos por uma simples definição. A arbitragem é um processo pelo qual as partes concordam em relatar seu conflito a uma ou mais pessoas, a quem atribuíram autoridade para chegar a uma decisão final sobre a questão. Esse é o processo que Paulo parece ter em mente em 1Coríntios 6. Em muitos aspectos é semelhante às audiências conduzidas pelos juízes do Antigo Testamento, designados por Moisés para solucionar os conflitos do povo de Israel (veja Ex 18.17-27; Dt 16.18-20).11 Há dois modos significativos pelo qual a arbitragem é diferente da mediação. A diferença mais importante entre elas está no fato de que, na arbitragem, as partes abrem mão de seu poder de julgamento em favor de um terceiro — o árbitro — limitando assim sua influência sobre a forma como a questão será resolvida. A explicação desse aspecto limitante da arbitragem aos irmãos em conflito pode servir como um bom incentivo para que aceitem fazer um esforço para se entender por meio da mediação, visto que na mediação as partes têm um controle bem maior sobre a natureza do acordo a que chegarão.

11Veja o excelente estudo de Brian S. Rosner sobre essa seção, no qual ele argumenta de forma convincente que a discussão de Paulo em 1Coríntios 6 é biblicamente fundamentada na própria sabedoria e nas preocupações de Moisés sobre esse assunto, ao designar homens retos e justos para atuarem como juízes. Brian S. ROSNER, Paul, Scripture, and Ethics: A Study of 1 Corinthians 5-7. Grand Rapids: Baker, 1994, p. 94-122.

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A arbitragem também difere da mediação pelo fato de que lida primordialmente com questões substantivas (fáticas, com o problema do conflito em si), enquanto a mediação cristã gasta um tempo considerável tratando de questões de caráter pessoal e sentimental. Na arbitragem, o árbitro não se envolve em aconselhamento pessoal durante o processo de solução do litígio, nem lida com nenhuma das partes de maneira privada. Quando o árbitro resolve dar algum conselho, ele o faz publicamente, na presença das duas partes e dirigindo-se a ambas. No entanto, muito embora o árbitro propriamente dito se abstenha de se envolver em aconselhamento pessoal, isso não impede que existam outras pessoas na igreja que façam um acompanhamento das partes em conflito e as aconselhem acerca das questões pessoais envolvidas na questão. Além disso, a arbitragem conduzida no contexto da igreja não impede que as partes busquem conselho fora dela — tal como assessoria legal ou de algum perito — como auxílio para a questão submetida à arbitragem. Até este ponto, a minha igreja não participou de nenhuma arbitragem de questões ligadas a seus membros. No entanto, já tivemos alguns membros envolvidos em conflitos com cristãos de outras igrejas e, nessas ocasiões, contamos com os serviços do Peacemaker Ministries para nos orientar ao longo do processo. Por exemplo, recentemente recebi um telefonema de um homem que me perguntava se uma pessoa chamada Fred Anderson frequentava a minha igreja. Eu lhe disse que sim. Esse homem então se identificou como um cristão que frequentava outra igreja bastante conhecida na cidade e prosseguiu, relatando as circunstâncias que o haviam levado a fazer esse telefonema. Pelo que parecia, Fred Anderson havia quebrado um contrato e agora devia a esse homem a quantia de 155 mil reais. A minha parte seria fazer o Fred, nosso irmão em Cristo, sentar-se à mesa para uma conversa. Apelamos para a ajuda do Peacemaker Ministries e os dois homens concordaram em submeter aquele conflito a eles e se submeter também a um acordo de mediação-arbitragem. Em um acordo de mediação-arbitragem, as partes em disputa primeiro tentam um mediação. Se a mediação não for bem-sucedida, ou se restaram questões substantivas a serem tratadas, elas levam a mediação perante um tribunal de arbitragem. Foi exatamente assim que aconteceu no caso de Fred Anderson. Enquanto muitas das questões pessoais foram tratadas durante a mediação, a questão substantiva — a quantia devida — foi levada para arbitragem. Lá, um árbitro ouviu o caso e proferiu uma decisão definitiva. Embora o processo não tenha sido perfeito nem esses dois irmãos plenamente reconciliados, a igreja cumpriu com sua responsabilidade de resolver os conflitos no âmbito interno, e não perante tribunais seculares. Foi fiel em preservar o nome de Cristo e exercer justiça. Quanto a mim, cresci na compreensão de como pastorear minhas ovelhas "onde quer que elas se encontrem" — nos detalhes muitas vezes confusos, mas de

M.EDIAçÃO E .ARBITRAGEM

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vital importância de suas vidas, encorajando-as a honrarem sua palavra, seus contratos, a confessarem seus pecados, a perdoar o outro e a glorificar a Deus. Espero ter inspirado você a perseguir esse mesmo objetivo.

ATREVE-SE ALGUÉM ENTRE NÓS A LEVAR A QUESTÃO A SER JULGADA PELOS INJUSTOS? Mediação e arbitragem são duas das principais formas de ajudar as pessoas da igreja a se reconciliarem. Mais do que simplesmente um assunto jurídico, ambas são assunto pastoral. Mais do que meras ferramentas de negociação, ambas são de sermos mediadores, árbitros, pacificadores. Acima de tudo, formas de ser ambas devem ter seu devido lugar e função na igreja, a família de Deus, onde Cristo reina por intermédio de sua Palavra e seu Espírito, unindo nossos corações pelo vínculo do amor cristão. Esse amor que levará o mundo a se voltar para Cristo é um amor prático. Ao levar nossas desavenças para serem julgadas pelos injustos, estamos publicamente dando testemunho de um outro deus que não Cristo. No entanto, ao obedecermos a Cristo, o Senhor, e praticarmos a mediação e a arbitragem no âmbito da igreja, demonstramos ao mundo a verdadeira presença de Cristo em sua igreja neste mundo. E isso pode fazer o mundo assistir e dizer, como disse nos dias de Moisés: "Esta grande nação é realmente um povo sábio e inteligente. Pois que grande nação tem deuses tão próximos quanto o SENHOR está de nós, todas as vezes que o invocamos? E que grande nação há que tenha estatutos e preceitos tão justos quanto toda esta lei que hoje ponho diante de vós?" (Dt 4.6-8).



11 PRINCÍPIOS DE DISCIPLINA NA IGREJA

- orno vimos nos capítulos 9 e 10, mediação e arbitragem são formas de ajudar as pessoas a fazerem as pazes entre si. Nas páginas seguintes, veremos .,,...., como a disciplina na igreja é outra forma possível de ajudar as partes em conflito a se reconciliarem. Porém, enquanto as práticas da mediação e arbitragem raramente despertam o desdém das pessoas, a simples menção da expressão "disciplina eclesiástica" gera toda espécie de reações negativas. Mediação soa como pacificação, mas disciplina eclesiástica soa como punição. Reconciliação é um termo que parece amigável aos olhos das pessoas, mas disciplina não. No entanto, R. C. Sproul nos lembra o seguinte: "A igreja é chamada não apenas a um ministério que reconcilie as pessoas que a frequentam, mas a um ministério que as alimente. Parte desse processo de alimentá-las inclui a disciplina eclesiástica."1 Ainda me lembro de uma pessoa que estava frequentando nossa classe de discipulado ter visivelmente se encolhido quando me ouviu falar sobre disciplina na igreja. Depois de ter ouvido sua história pude entender sua reação. A forma como ele reagiu era baseada em sua experiência de abusos com a disciplina na igreja, e não com urna prática de disciplina apropriada, segundo a palavra de Deus. Ele tinha vindo de urna igreja em que certo domingo, diante de toda a congregação, de forma arbitrária e sem aviso prévio, o pastor expulsara alguns membros — a ponto de dividir casais e famílias inteiras. Curiosamente, esse homem de que estou falando permaneceu nessa igreja por mais um ano. Quando lhe perguntei por quê, ele me disse que havia sido criado com a visão de que o pastor era um representante de Deus. Assim, desafiar, questionar ou mostrar resistência às ideias do pastor era o mesmo que desafiar, questionar ou mostrar resistência ao próprio Deus. Somente depois de sofrer por posteriores comportamentos ultrajantes foi que ele sentiu que aquilo não estava certo. Ele se desiludiu e resolveu mudar —

'R. C. SPROUL, In Search ofDignity. Ventura: GL Publications, Regal Books, 1983, p. 182.

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não só de igreja, como também de cidade. Então, mudou-se para Billings e ouviu falar muito bem da nossa igreja. Contudo, mesmo depois de passar aproximadamente um ano fazendo amizades e relacionamentos novos na igreja, e mesmo depois de ter visto em primeira mão nossas práticas de reconciliação, ele ainda se encolhia ao ouvir a expressão "disciplina na igreja". Ainda que a experiência dele seja um pouco fora do comum e extrema, as pessoas que entram para nossas igrejas trazem consigo várias ideias preconcebidas sobre Deus, a liberdade humana e autoridade, assim como experiências próprias e marcantes do que significa ser parte do corpo de Cristo em uma igreja local. Todos esses fatores informam ou desinformam os conceitos que elas têm sobre disciplina na igreja. Por exemplo, muitos tendem a identificar a disciplina eclesiástica com a sua forma pública mais radical e extrema: a expulsão de membros. Essa visão é semelhante à maneira como algumas pessoas veem a disciplina de crianças como castigo físico. Lamentavelmente, nós, líderes, temos feito pouco para mudar essa falsa impressão. Nós mesmos temos a tendência de restringir o uso da expressão "disciplina eclesiástica" somente para atos de censura formal, públicos e do tipo mais radical possível, como a expulsão. Um dos efeitos colaterais dessa interpretação restritiva de disciplina na igreja é que as pessoas passam a vê-la mais como um incidente ou evento isolado do que como um processo contínuo. Em outras palavras, não pensamos na disciplina como um aspecto normal da vida cristã — como uma síntese de uma vida cristã disciplinada composta de autodisciplina, constante e frequente encorajamento, admoestações, exortações, oração, pregação, ouvir a palavra de Deus, arrepender-se, buscar a santidade e assim por diante. Em vez disso, reduzimos a disciplina a um único ato de punição e a relegamos à hipótese extrema, ao fim da participação em uma comunidade cristã, ou seja, à expulsão. Nossas igrejas são uma prova viva dessa maneira de pensar, na medida em que é bem mais provável que vejam a disciplina como algo que abala e interrompe a vida cristã do que algo que sutil e prontamente vai dando forma à vida cristã desde o início. Outra percepção equivocada da disciplina na igreja é gerada pela visão que as pessoas têm de autoridade. Para muita gente, qualquer forma de exercício de autoridade é abuso de poder. E não estou falando verdadeiro abuso de autoridade cometido por pastores, como o que a pessoa que citei anteriormente sofreu em sua igreja. Ao contrário, estou me referindo ao ethos cultural geral que poderíamos chamar de suspeita nietzschiana — uma suspeita amorfa de que toda autoridade não passa de uma ambição por poder ou um desejo de manter a estrutura de poder.'

2

Veja capítulo 7, "Concedendo o perdão verdadeiro" para a discussão sobre o perdão.

PRINCÍPIOS DE DISCIPLINA NA [CREIA

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Essa visão de suspeita em relação ao poder é o que está por trás do que as pessoas pensam, quando associam disciplina com uma atitude sempre grosseira, não amável, impessoal e formal. Repito que pode haver razão para essa associação com base na experiência pessoal de cada um, especialmente quem já teve a oportunidade de ter testemunhado líderes que foram grosseiros e impessoais na forma de tratar membros da igreja. No entanto, como ensina um antigo axioma sobre disciplina: "o abuso não justifica o não uso". Somente por alguns cometerem abusos de autoridade em termos de disciplina, isso não é motivo para que o uso adequado da disciplina não seja colocado em prática. Existe ainda outra face dessa suspeita em relação ao poder que também pesa na atitude comum de desdém pela disciplina na igreja. E o amor excessivo por liberdade. Podemos até cantar em nossas igrejas, "Abençoado é o laço que nos une", quando na realidade nosso espírito independente clama: "Liberdade em primeiro lugar!". Confessamos que o casamento é a união de duas pessoas em uma só carne, mas muitos em nossas igrejas apelam para a falsa impressão imaginária de que Deus jamais desejaria que permanecêssemos presos a uma união infeliz. Falamos a respeito de como somos membros do corpo de Cristo, templos de Deus, família de Deus, mas essas metáforas coletivas não passam de meras metáforas. Uma vez que a autonomia humana está florescendo em nossas igrejas, fica evidente que, em nossa mente, na realidade essas metáforas não passam de belas imagens. Na realidade, não somos criaturas criadas em aliança, mas sim nobres bestas humanas que aderem a contratos sociais e os rompem quando eles começam a impor limites à nossa liberdade. Embora não seja meu intuito investigar mais a fundo as questões relacionadas à autoridade e à liberdade, o mero reconhecimento de que essas influências culturais estão atuando sobre nós deveria nos ajudar a reexaminar nossa própria visão e a visão dos membros da nossa igreja, toda vez que nos reunirmos para discutir o que significa "ser igreja" e o que significa abraçar e praticar como comunidade a disciplina na igreja. Na classe de discipulado eu costumo propor a seguinte pergunta para desafiar as pessoas a pensarem: "Quem você conhece na igreja que esteja sendo disciplinado no momento?" Então, antes que possam me responder, eu digo: "Todos nós! Estamos todos sob disciplina, pois todo aquele que está em Cristo é um discípulo de Cristo, e discípulos são simplesmente pessoas que andam sob disciplina." E evidente que não são apenas as pessoas da nossa igreja que têm problemas com a questão da disciplina. Nós, pastores, também temos, como fica evidente por nossa resistência ao chamado para disciplinarmos as pessoas. Quem de nós alguma vez já não tentou racionalizar, dizendo que teme sofrer um processo na justiça, que disciplinar é falta de amor, que não devemos julgar as pessoas, que não tem certeza se isso está certo, que exige um tempo do qual você não dispõe,

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ou até mesmo que tem medo do que outros possam pensar da sua igreja? Desculpas não faltam. Eu me recordo de certa vez em que estava aconselhando um pastor do estado de Indiana. Ele tinha vindo assumir o lugar de um grande pastor, conhecido por "ter feito a igreja crescer". A igreja de fato havia crescido, passando de uns poucos membros para mais de 400 pessoas — porque, como igreja, eles aceitavam as pessoas "como elas eram". E, lamentavelmente, o pastor anterior e seus presbíteros haviam permitido que as pessoas continuassem "como elas eram". Ao chegar na igreja, o novo pastor estava enfrentando grande resistência por parte dos presbitérios sobre o modo como tratar um antigo membro. Quando descobriram que esse membro estava cometendo adultério, os presbíteros permitiram que ele deixasse a igreja e passasse a frequentar outra igreja, e lhe deram até uma carta de transferência! A desculpa deles era a seguinte: "Não acreditamos que discipliná-lo seja uma atitude amorosa". UM BREVE ESBOÇO HISTÓRICO Uma forma de nós, pastores, começarmos a admitir nossa atitude reticente e nossa própria resistência em exercer disciplina na igreja é estudando como a igreja historicamente tratou essa área do ministério pastoral. João Calvino foi um dos que muito fez para elucidar essa questão para nós; portanto, eu darei a seguir um breve esboço histórico baseado no exemplo desse pai espiritual da Reforma.

A Reforma do século XVI Os reformadores deram um grande fôlego à retomada da disciplina na igreja. Para eles, a disciplina era uma questão de grande importância. Embora se discuta se eles consideravam a disciplina como uma marca da verdadeira igreja, todos os reformadores viam a disciplina, se não como uma marca da essência (esse) da verdadeira igreja, ao menos como algo indispensável para seu bem-estar (bene esse).3 Sem dúvida, o lugar de honra por essa retomada da disciplina cabe a João Calvino que, ao descobrir o governo eclesiástico bíblico, resgatou juntamente a disciplina eclesiástica bíblica. Como disse um recente estudioso sobre Calvino: "Tentar traçar a influência da disciplina ao longo do ministério de Calvino é essencialmente

'Veja a Confissão Belga, "Artigo 29: The Marks of the True Church," in Ecumenical Creeds and Reformed Confessions. Grand Rapids: CRC Publications, 1988, p. 108. O Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor 31, pergunta 83, considera a disciplina como uma das chaves do reino. O canôn de Dortrecht, artigo 17, juntamente com a Palavra e os sacramentos, vê a disciplina como um "meio de graça". A Confissão de Westminster afirma o mesmo e dedica um capítulo inteiro a expor o caráter e a natureza das censuras eclesiásticas, Confissão de Westminster, cap. 30.

PRINCÍPIOS 1)P., DISCIPLINA NA ICIRI1A

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escrever uma nova biografia sobre ele".4 Calvino foi expulso de Genebra, na Suíça, em 1538, em razão de suas propostas de disciplina. E a condição para que ele voltasse a Genebra, três anos mais tarde, em 1541, foi justamente sua posição a respeito da disciplina: "Eu jamais teria aceitado a proposta desse ministério se eles não jurassem sobre esses dois pontos: defender o catecismo e a disciplina".5 Como em nossos dias, Calvino também estava ciente de que muitas pessoas "em sua aversão pela disciplina, se encolhiam diante da simples menção a essa palavra". Ele, porém, jamais se encolheu diante da necessidade de exercer disciplina na igreja. E ele respondia à questão da necessidade de disciplina com a seguinte pergunta retórica: O que aconteceria se cada um pudesse fazer o que bem entendesse? No entanto, é isso que aconteceria se à pregação da doutrina não fossem acrescentadas admoestações, correções, e outras formas de auxílio desse tipo que ajudam a sustentar a doutrina e impedir que ela permaneça sem aplicação, ociosa. Portanto, a disciplina é como uma rédea que contém e doma aqueles que se levantam contra a doutrina de Cristo; ou como uma espora para incentivar os menos inclinados e ainda como a vara de um pai, que castiga como moderação e com a mansidão do Espírito de Cristo aqueles que cometeram falhas mais graves. [...] Ora, este é o único remédio que Cristo tem imposto e o único que tem sido sempre aplicado entre os homens de Deus.6 É importante destacar duas coisas sobre a citação anterior. Primeiro, Calvino

tinha em mente a disciplina "(d)aqueles que cometeram falhas mais graves". Segundo, ao pensar nesses que cometeram falhas mais graves, ele aconselha a igreja a discipliná-los como um pai disciplina seu filho — com moderação e mansamente. Independente de qual seja a imagem estereotipada que se possa ter de Calvino, eis aqui mais um bom exemplo de que essa imagem não procede. Calvino nos chama a ser como pais mansos e moderados para o nosso rebanho. Embora Calvino não cite a disciplina como uma marca da igreja em suas Institutas, ele por certo argumenta em favor da sua necessidade para preservar a igreja, em sua réplica ao cardeal Sadoleto. A carta de Calvino para Sadoleto foi escrita em defesa da reforma em Genebra e em denúncia dos avanços do papado. Um aspecto substancial do apelo de Sadoleto para que o povo de Genebra voltasse a se submeter à Roma está no seu argumento de que somente a Igreja de Roma carregava as marcas da verdadeira igreja de Cristo.

4 Stephen M. JOHNSON, "The Sinews of the Body of Christ: Calvin's Concept of Church Discipline," Westminster Theological Journal59 (outono/1997): p. 87. 'Ibid., p. 88, citando William MONTER, Calvin's Geneva. New York: Robert E. Krieger, 1975, p. 97. 6CALVINO,

Institutas, 2:1229-30.

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É à luz dessa controvérsia que Calvino contra-ataca, alegando que a verdadeira igreja é aquela que exerce a disciplina (algo que, segundo ele, a igreja de Roma não vinha fazendo): "Há três coisas sobre as quais a segurança da igreja se baseia e se sustenta: a doutrina, a disciplina e os sacramentos".7 A palavra-chave aqui é segurança. Embora Calvino não considere a disciplina como uma das marcas da igreja, ele certamente a vê como algo que preserva a igreja. Enquanto o evangelho é a alma do corpo de Cristo, a disciplina são os tendões desse corpo, que mantêm a igreja unida: Vamos deixar claro uma coisa: se nenhuma sociedade, na verdade nenhuma casa, nem mesmo nenhuma família, por menor que seja, pode se sustentar em condições adequadas sem disciplina, quanto mais na igreja ela se faz necessária [...] assim como a doutrina redentora de Cristo é a alma da igreja, a disciplina funciona como os seus tendões, por meio dos quais os membros do corpo se mantém unidos, cada um em seu devido lugar. Portanto, todo aquele que deseja acabar com a disciplina ou impedir a restauração da ordem — faça isso deliberadamente ou por ignorância — certamente estará contribuindo para final dissolução da igreja.'

Nitidamente, a disciplina para Calvin() é um aspecto vital da verdadeira igreja. Seja ela considerada como uma marca (Confissão Belga), uma das "chaves do reino" (Catecismo de Heidelberg, Confissão de Westminster), ou um meio de graça (os escritos de Calvino e os canônes de Dort), a disciplina são os tendões do corpo de Cristo.

O período Moderno A despeito dos grandes passos que Calvin() e os primeiros reformadores deram com respeito à instituição da disciplina na igreja, sua prática parece ser um eterno problema para pastores, algo que não deveria nos causar surpresa. Poucas gerações depois de Calvino, Richard Baxter (c. 1656), em sua obra, The Reformed Pastor, lamenta o estado em que a igreja se encontrava naquela época: Meu segundo pedido aos ministros dessas paragens é no sentido de que eles venham por fim, sem mais demora, a se dispor de forma unânime a praticar aquelas partes da disciplina na igreja que são indiscutivelmente necessárias, e que são parte de seu trabalho. E triste ver bons homens se deixarem acomodar por tanto tempo, negligenciando constantemente um dever de tamanha importância. A reclamação comum é: 'O povo não está pronto para isso; eles não vão suportar'.

?John COLIN, ed., John Calvin and Jacopo Sadoleto: A Reformation Debate. Grand Rapids: Baker, 1976, p. 63. 8CALVINO, Instituías, 2:1229-30.

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PRINCÍPIOS DE DISCIPLINA NA IGREJA

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Sem deixar que os pastores pusessem a culpa no povo, Baxter aponta o dedo para nós, ministros, e pergunta para a nossa vergonha: "Será que não é você que não consegue suportar os problemas e a ira que isso vai ocasionar?"' Uma recente intervenção executada pelo Peacemaker Ministries demonstrou o quanto essas palavras de Baxter ainda se aplicam nos dias de hoje. O mediador responsável estava escutando as objeções que um dos presbíteros da igreja levantava contra a questão da disciplina. Esse presbítero era professor de teologia sistemática em um grande seminário evangélico. A medida que for lendo as objeções que ele levantou, pergunte a si mesmo se já não pensou a mesma coisa em algum momento: • Se forem confrontadas, as pessoas vão simplesmente virar as costas e procurar outra igreja. • As pessoas de hoje jamais aceitarão esse tipo de prestação de contas — elas nos acusarão de as estarmos julgando e sendo legalistas. • Disciplinar é uma coisa que exige muito tempo, e em igrejas grandes não tem como fazer esse acompanhamento de todos os membros. • Os ensinamentos sobre disciplina são inconsistentes com nossa ênfase sobre a graça e o amor de Deus. O mediador respondeu a cada uma dessas objeções citando a própria Bíblia. Por fim, depois de tê-lo ouvido e sido convencido, o professor admitiu: "Pelo que me parece, temos apenas que seguir a Bíblia". Não é essa a única reação que podemos ter? Não importa o quanto nossos corações resistam à tarefa difícil e desagradável da disciplina, a grande questão é: O que diz a Bíblia? Devemos demonstrar que a nossa aliança com a palavra de Deus não é uma confissão vazia, mas uma verdadeira prática.

9 Richard BAXTER, The Reformed Pastor, 1974; reimpr. Carlisle: Banner of Truth Trust, 2001, p. 46-47. As citações foram extraídas da edição de 2001. Wilhelmus à Brakel (ca. 1700) faz uma queixa semelhante: "Em terceiro lugar, o exercício da disciplina na igreja é quase inteiramente negligenciado. Não temos mais um modelo do que a igreja deve ser. Portanto, todos ficam satisfeitos se muitas pessoas vêm para a igreja, e se muitas delas se tornam membros. Tais igrejas são então citadas como igrejas que florescem. Em muitas delas, se não na maioria das localidades, aqueles que sabem recitar o Pai-nosso, os Doze artigos de fé, ou decoraram umas poucas questões já são aceitos como membros. O conhecimento suficiente das verdades fundamentais não é mais exigido, e também não mais se exige que a pessoa se separe do mundo e viva de modo a refletir a imagem de Cristo. Se não levarem vidas inteiramente ímpias, já basta." Wilhelmus à BRAKEL, Th.F., The Christian's Reasonable Service, trad. Bartel Elshout, 4 v. Ligonier: Soli Deo Gloria, 1993, 2:72.

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O PASTOR PACIFICA_ DOR

Embora seja fácil apontar as falhas cometidas pela igreja, a história da prática da disciplina não é toda cruel. Nos Estados Unidos, por exemplo, Lynn Buzzard documentou práticas disciplinares exercidas por cinco igrejas batistas de fronteira, de 1781 a 1860. Ele descobriu que essa cinco igrejas tiveram 1.636 casos de disciplina, sendo que muitos desses casos foram analisados mais de uma vez, em geral cinco ou seis vezes. Os casos iam desde excesso de bebida, dívidas não pagas, quebra de promessas, difamação de vizinhos, falsos ensinos e pessoas envolvidas com a maçonaria.1° Fica claro, portanto, que a igreja colocou em prática a disciplina em vários pontos da história. Mas o que torna essa lista tão interessante é o tipo de pecado que essas igrejas consideravam dignos de consideração. Quando foi a última vez na sua igreja que alguém foi disciplinado por deixar de pagar suas dívidas, por deixar de cumprir obrigações contratuais ou por deixar de cumprir suas promessas? A maré, no entanto, parece estar mudando. Meus próprios colaboradores no Peacemaker Ministries me concederam o privilégio de ensinar sobre disciplina na igreja por todo o país, nas mais diferentes igrejas e para um amplo espectro de líderes evangélicos. Posso garantir que encontrei pastores e líderes que não só admitiram a falha da igreja em exercer disciplina, mas também expressaram um sincero desejo de resgatar uma visão bíblica de igreja e da disciplina como um aspecto que nutre a igreja. Voltemos agora nossa atenção para essa questão: para os princípios bíblicos da disciplina na igreja.

PRINCÍPIOS BÁSICOS DE DISCIPLINA NA IGREJA Um bom lugar para começarmos a resgatar a visão bíblica de disciplina é perguntando: O que significa para alguém ter fé em Cristo? O que significa depositar em Cristo sua confiança? Em grande parte Jesus responde a essas perguntas em sua Grande Comissão, quando diz aos discípulos: "Toda autoridade me foi concedida no céu e na terra. Portanto, ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; ensinando-lhes a obedecer a todas as coisas que vos ordenei; e eu estou convosco todos os dias, até o final dos tempos" (Mt 28.18-20).

Pensando em Jesus Cristo como Senhor O Cristo em quem cremos e confiamos é o Senhor ressurreto. A ele foi dada toda autoridade no céu e na terra. E mais, ele é o nosso Senhor crucificado, cujo

"Lynn R. BUZZARD e Thomas S. BRANDON Jr., Church Discipline and the Courts. Wheaton: Tyndale, 1987, p. 56-57.

PRINCÍPIOS 1)E :DISC1 P LA NA NA 1. (i3R.I.-.:JA

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evangelho afasta de forma mansa, mas poderosa, qualquer dúvida que possamos ter quanto a autoridade e o poder nele investidos ou quaisquer temores que possamos ter de submeter nossa liberdade pessoal a sua autoridade e senhorio. Como cristãos, jamais nos esquecemos de que a sua coroa real repousa sobre uma cabeça perfurada por espinhos. Assim, estamos dispostos a seguir os passos dele, ao longo da via dolorosa, como discípulos que carregam a cruz. E por nossa união com Cristo, lançamos fora todas as motivações arrogantes de sermos donos do próprio nariz ou de assegurarmos nossa liberdade individual. Somos agora servos de Jesus Cristo, seus escravos, discípulos do Senhor. E esse Cristo ressuscitado que envia seus discípulos para discipular as nações. Discípulos são pessoas que vivem sob a disciplina de Cristo, do mesmo modo que o próprio Cristo vivia sob a disciplina do Pai durante sua jornada por este mundo. Como nos lembra o autor de Hebreus, Cristo "aprendeu a obediência por meio das coisas que sofreu" (Hb 5.8). E é por ter obedecido até mesmo a ponto de morrer em uma cruz que Jesus tem direito ao nome que está acima de todo nome — "Senhor". Jesus Cristo é Senhor. A medida que procuramos ser discípulos de Cristo e obedecer ao "ide e fazei discípulos", será um grande encorajamento para nós e algo que persuadirá os que nos ouvem se formos fieis em lembrar e comunicar a essência do que significa o fato de Cristo ser nosso Senhor. O conceito bíblico de "Senhor" não deve ser reduzido a um poder bruto, sem restrições. "Senhor" é o nome de Deus na aliança — é um nome relacional. O fato de que Jesus Cristo é Senhor significa para mim, um cristão, que não vivo por conta própria, mas fui comprado por um preço, o sangue de Cristo. O fato de que Jesus Cristo é Senhor significa para mim que não estou sozinho, que pertenço ao povo da aliança, ao povo de Deus. Portanto, é uma confissão comunitária, antes de ser a minha confissão individual. E confessar aquele que já tem autoridade sobre nós. Nenhum de nós vem a este mundo sozinho. Passamos a existir com autoridade e identidade preexistentes, e recebemos um nome, somos definidos e orientados não por nós mesmos, mas por outros: por Deus, nossos pais, família, parentes, amigos, nossa igreja, nossa cidade e nosso país. Assim, de forma semelhante, quando as pessoas entram para a igreja, elas entram para um povo que já existia antes delas, unido pela promessa que a Bíblia chama de aliança da graça, a nova aliança. Cristo, o Senhor ressurreto, diz então a seus discípulos que sejam batizados. O batismo é um sacramento de iniciação e inclusivo. E um sinal de nossa união com Cristo e, por meio disso, nosso rompimento com o pecado. Como exclama Paulo: "Nós, que morremos para o pecado, como ainda viveremos nele? Ou ignorais que todos nós, que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte?" (Rm 6.2-3). O batismo, portanto, significa um meio de disciplina. Marca a pessoa como alguém diferente, separado do pecado e do mundo. E a marca de

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O PASTOR .PA.CIF C ADOR

que pertencemos a um novo povo — a família de Deus. O batismo é a identificação de que somos um discípulo — alguém que vive sob a disciplina de Cristo. No entanto, pelo fato de o batismo nos incluir na comunidade da aliança de Deus, ele também implica que podemos ser excluídos dessa comunidade. Se com o batismo Deus nos chama "meu povo", o batismo também implica que, sob certas circunstâncias, pode haver uma perda desse relacionamento com Deus, e então ele dirá: "Você não é meu povo". Por associação, não deveríamos esquecer do outro sacramento que o Senhor ressuscitado nos deixou — a Ceia do Senhor. Este é um sacramento contínuo e amadurecedor. Quando é ministrado, cada pessoa que o recebe é chamada a sondar e a julgar a si mesma como um pecador que necessita de Cristo (1Co 11.27-28). A Ceia do Senhor, portanto, é um meio regular de conformarmos nossa vida à disciplina de Cristo, e uma grande parte desse processo está em reconhecer que somos todos membros de um só corpo, uma só fé, um só Espírito, um só Pai e Senhor (Ef 4.4-6). Somos discípulos que ceiam não somente com o Senhor, mas também uns com os outros e, por meio disso, expressamos nossa unidade em disciplina. Cristo, o Senhor, na Grande Comissão também disse a seus discípulos para que ensinassem os novos discípulos a obedecerem tudo que lhes havia ordenado. O ministério da Palavra é o principal meio de graça, seja ele ministrado comunitariamente (pela pregação e pelo ensino), em grupos (pelo estudo bíblico em grupos ou nos lares), ou mesmo individualmente. Jesus orou: "Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade" ( Jo 17.17). Em outras palavras, a palavra de Deus não apenas nos ensina sobre a verdade e como obedecê-la, mas também nos transforma, dando-nos forças para nos afastarmos de nossos caminhos de pecado e vivermos a verdade. Por isso, ela também é um meio de disciplina. Fica evidente, portanto, porque Paulo instrui Timóteo e Tito, dois presbíteros dedicados ao ensino, a exercer regularmente a disciplina na igreja por meio da pregação e do ensino da Palavra. Paulo diz especificamente para Timóteo: Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; a fim de que o homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo para realizar toda boa obra. Eu te exorto diante de Deus e de Cristo Jesus, que há de julgar os vivos e os mortos, pela sua vinda e pelo seu reino, prega a palavra, insiste a tempo e fora de tempo, aconselha, repreende e exorta com toda paciência e ensino (2Tm 3.16-4.2).

Observe como Paulo ensina, em 3.16, que a Palavra não é apenas para instrução, mas também para correção. No entanto, o que caracteriza essa correção não é somente o ato de repreender, mas também de instruir em justiça. Em outras palavras, a verdadeira disciplina bíblica, exercida pelo ministério da Palavra, não é somente corretiva, ou seja, não se resume a dizer às pessoas aquilo em que devem

Pl.::INCIÍPIOS DE DISCIPI.ANA.

II.GREJJ\

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crer ou não; ela é também moralmente instrutiva, pois ensina as pessoas a serem sábias em todos os aspectos da vida. Em linhas parecidas, observe como a lista de Paulo em 4.2 sobre como usar com eficácia as Escrituras (para aconselhar, repreender e exortar), somada ao versículo 16 do capítulo 3 (que diz que devem ser usadas "para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça"), sugere que o ministério da Palavra é multidimensional. Nós ensinamos e repreendemos; nós encorajamos e exortamos; nós corrigimos e instruímos. Todas essas atividades fazem parte do ministério de nutrir as pessoas com a Palavra e tem relação com a prática da disciplina. Vamos agora nos voltar para Tito e analisar mais de perto as instruções de Paulo para ele, especialmente em relação a como ele deve usar a Palavra: Tu, porém, fala o que está em harmonia com a sã doutrina. Exorta os mais velhos para que sejam equilibrados, respeitáveis, sóbrios, sadios na fé, no amor e na constância; as mulheres mais velhas, de igual modo, sejam reverentes no viver, não caluniadoras, não dadas a muito vinho, mestras do bem, para que ensinem as mulheres novas a amarem o marido e os filhos, a serem equilibradas, puras, eficientes no cuidado do lar, bondosas, submissas ao marido, para que não se fale mal da palavra de Deus. Exorta de igual modo os jovens para que sejam equilibrados (Tt 2.1-6).

A visão que Paulo tem para o ministério da Palavra é de algo bem mais amplo do que aquilo que muitos têm aprendido nos seminários, e vai muito além do que se possa alcançar através de um sermão de domingo. Paulo instrui Tito para que volte o ensino para classes específicas de pessoas: os homens mais velhos; os jovens; as mulheres mais velhas; as mulheres novas, escravos e livres. Em outras palavras, Paulo está mostrando a necessidade de se ter contextos de pequenos grupos onde a Palavra possa ser ensinada e aplicada de modo mais direto e específico a diferentes pessoas com necessidades diferentes. Como e o que Tito ensina a uma mulher mais velha a respeito de ter autocontrole (entre outras características que ele menciona) será de certo modo diferente do que ele ensinará aos jovens. Ainda mais importante do que a abrangência é o foco de sua visão para a Palavra. Ao dizer para Tito como aplicar a Palavra, Paulo fala repetidamente da necessidade de ensinar as pessoas a terem autocontrole — ou seja, terem autodisciplina. Em outras palavras, Paulo está ensinando que todas as pessoas do povo de Deus são pessoas que vivem sob disciplina e, como tais, devem conformar sua vida ao Senhor, aprendendo a ter autodisciplina. Como discípulos do Senhor, somos um povo vinculado à aliança da Palavra de Deus. Nossos padrões, nossa moral, nossos objetivos, desejos e toda a nossa filosofia de vida muda quando entramos para a igreja de Cristo e ouvimos a palavra de Deus. Não nos deixamos mais influenciar pela cultura ou por nossos próprios desejos, mas somos agora guiados pela Palavra. E essa Palavra é o evangelho, que nos ensina a dizer sim para Cristo e não para a impiedade.

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O PASTOR PACIFICADOR

Em Tito 2.11-14 Paulo fala desse não do evangelho, que é fruto da graça de Deus. Mais uma vez a instrução que Paulo dá a Tito é inspiradora: Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação a todos os homens e ensinando-nos para que, renunciando à impiedade e às paixões mundanas, vivamos neste mundo de maneira sóbria, justa e piedosa, aguardando a bendita esperança e o aparecimento da glória do nosso grande Deus e Salvador, Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo por nós para nos remir de toda a maldade e purificar para si um povo todo seu, consagrado às boas obras.

Muitos pensam que a graça é a liberdade de sempre dizer sim a tudo, inclusive a nossos desejos pecaminosos. Pensam que não têm mais com que se preocupar acerca do pecado, pois a graça lhes forneceu um novo arranjo — eles pecam e Deus os perdoa. No entanto, Paulo, o apóstolo da graça, diz o contrário. A graça, segundo ele, nos ensina a dizer não, pois ela nos mostra onde está a verdadeira liberdade: não está no pecado e na devassidão, mas sim em vidas que controlam a si mesmas. Portanto, a graça nos ensina a ter disciplina. E Paulo prossegue, mostrando que a graça também tem a ver com a atitude de doar-se a si mesmo — a atitude de Jesus. E o propósito de Jesus de se entregar por nós, segundo Paulo, está no fato de ele poder redimir (ou libertar da escravidão) para si mesmo um povo ansioso em fazer o bem. A partir desses versículos podemos deduzir que disciplina é mais do que uma questão individual. E uma questão comunitária que envolve todo o corpo de Cristo. Juntos somos disciplinados. Juntos somos ensinados a dizer não. Curiosamente, Paulo encerra essa parte de sua carta insistindo para que Tito ensine as questões tratadas no capítulo 2 a seu povo, e as ensine de um modo especial. Ele ordena a Tito: "exorta e repreende com toda autoridade" (Tt 2.15). Com isso, vemos mais uma vez que o ensino não é algo meramente instrutivo, também é corretivo. Ensinar não é apenas exortar, é também repreender. Em síntese, ensinar é disciplinar. Assim, o discipulado é a disciplina da igreja, e a disciplina da igreja tem tudo a ver com discipulado. E como tal envolve bem mais do que proferir uma censura pública contra algum membro. Implica que a igreja lance mão dos vários meios de graça para nutrir com fidelidade os discípulos de Cristo, de modo que eles possam crescer em conhecimento, amor e adoração a Jesus Cristo, o Senhor ressurreto. Disso concluímos que a disciplina na verdade começa pelas obrigações pastorais comuns de discipular o povo de Deus por meio da pregação, do ensino, do aconselhamento e do preparo dos santos (veja Ef 4.11-13; Fp 4.9; Cl 3.16; 1Tm 4.13-16; 2Tm 3.16-4.2; Tt 2.1-3.11). Além dessas coisas, o verdadeiro discipulado bíblico inclui a criação de contextos apropriados para o encorajamento mútuo intencional, por meio de pequenos grupos (veja, por exemplo, Ml 3.16;

PRINCÍPfts

DiscímNA N,N, IGREJA

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2Tm 2.2; Tt 2.2-6; Hb 3.12-13),11 devocionais pessoais e da atitude de discipular a si mesmo (veja Si 1; 1Co 9.24-27; 1Tm 4.16). E possível afirmar que 98 por cento do ministério da Palavra se dá nesses contextos gerais e informativos de discipulado. Ao enfatizar o modo como a prática dos meios comuns e gerais de discipulado é a própria disciplina da igreja em ação, você estará fazendo muito para mudar a percepção das pessoas de que a disciplina é um evento ou incidente isolado que, de forma abrupta, encerra a vida de alguém em uma comunidade cristã, através da medida extrema da expulsão. Uma forma comum pela qual em nossa igreja procuramos ensinar essas coisas é encorajando a confissão pública e informal de pecados. Como líderes, encorajamos esse tipo de confissão e nos esforçamos para dar o exemplo quando temos uma oportunidade. Eu mesmo já me desculpei publicamente por meus pecados várias vezes. Por meio desse exemplo, destacamos para as pessoas da igreja que nós, líderes detentores de autoridade, também vivemos sob autoridade. Jesus Cristo é nosso Senhor. Além disso, quando alguém da igreja peca, particularmente se esse pecado tem caráter público, e os pastores e presbíteros estão envolvidos em ministrar e aconselhar essa pessoa, nós a encorajamos a fazer uma confissão pública do pecado cometido como forma de expressar seu arrependimento. O momento para esse tipo de confissão é o culto dominical, quando nos reunimos para adorar, orar e confessar. Percebemos que quando alguém de fato se levanta e confessa seu pecado, quase sempre ele é normalmente seguido por um espírito de jubilosa santidade que contagia a igreja. E um espírito de jubilosa santidade pelo fato de que outras pessoas são levadas a sondar seus próprios pecados. Como pastor, já percebi que minha agenda de aconselhamento geralmente fica lotada após uma confissão pública desse tipo. E uma santidade jubilosa no sentido de que a confissão pública sempre implica uma declaração pública de perdão. Consequentemente, as pessoas da igreja expressam gratidão maior e mais frequente pela graça de Deus em perdoar. A confissão pública de pecados também ajuda a combater a visão deturpada de que a disciplina só se aplica a pecados mais hediondos. Muitos já conhecem o ditado: "Disciplinamos no quarto, não na sala reuniões", o que simplesmente significa que somos mais propensos a disciplinar por causa de pecados flagrantes, como imoralidade sexual, do que por pecados mais sutis, como a falta de ética nos negócios. Este ditado se tornou um provérbio popular por termos deixado de ver a disciplina como parte do discipulado — como algo que ajuda as pessoas a submeter todos os aspectos de suas vidas ao senhorio de Cristo.

l'No caso de Tito, Paulo parece sugerir pequenos grupos formados por algo em comum. Ou seja, o ensino apropriado para senhoras idosas, mulheres jovens, homens mais velhos, e homens jovens. Ao direcionar a Palavra, com sabedoria, a determinadas pessoas com interesses específicos, a espada do Espírito se parecerá mais com um bisturi cirúrgico.

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O PASTOR mel ric/moR

Uma vez que a disciplina seja de fato vista como disciplina, então todos os tipos de pecados podem justificar o processo disciplinar detalhado em Mateus 18.15-17. Um exame das Escrituras revela que não há pecados específicos que justifiquem a disciplina mais do que outros. Assim, por exemplo, em 2Tessalonicenses 3.6, Paulo diz que devemos aplicar disciplina aos que são indolentes e não trabalham. Em 1Timóteo 5.20 ele nos manda disciplinar e até mesmo repreender publicamente aqueles em funções de autoridade (os presbíteros!). Em Tito 3.10, nos é dito que devemos aplicar a disciplina sobre os que se envolvem em contendas e provocam divisões. E em Gálatas 6.1, somos chamados a disciplinar qualquer irmão que seja surpreendido em pecado. A questão é que a disciplina não se destina apenas a fornicadores, beberrões ou a quem abandona o cônjuge, mas sim a todos que procuram seguir a Cristo. Em síntese, a disciplina não é uma palavra ou uma prática a se temer. Ao contrário, é um ministério que nutre, cuida, preocupa-se e é também uma oportunidade. E no contexto do discipulado que devemos começar a ensinar as pessoas acerca da disciplina, pois discipulado significa simplesmente aprender a se tornar disciplinado nas graças de nosso Senhor Jesus Cristo.

As chaves do reino Anteriormente vimos como Paulo conclui seu conselho a Tito instruindo-o a falar essas coisas, exortar e repreender "com toda autoridade" (Tt 2.15). Paulo reconhece aqui e reafirma a autoridade investida em Tito como um líder da igreja. E ao fazê-lo Paulo está dizendo que a igreja é uma hierarquia, não uma democracia. O corpo de Cristo, a família de Deus é uma estrutura hierarquizada de autoridade. Não somos apenas membros uns dos outros, mas alguns são chamados a ser pastores, outros a serem diáconos e outros, presbíteros. Todos esses são cargos de autoridade. Essa estrutura de autoridade não foi estabelecida pela própria igreja, mas é um expressão visível da autoridade presente de Cristo da qual ele investiu a igreja. Como está escrito na Confissão de Westminster, no capítulo 30.1: "O Senhor Jesus, como rei e cabeça da sua igreja, por esse aspecto estabeleceu um governo, nas mãos dos oficiais da igreja [...] sob o cuidado desses oficiais ele entregou as chaves do reino."12 Assim como o princípio fundacional da disciplina na igreja é o próprio senhorio de Jesus, também o principal princípio de apoio é que Cristo exerce seu senhorio na igreja e sobre ela por meio de representantes, os presbíteros que cuidam do ensino e da liderança da sua igreja. Como pastores, presbíteros e diáconos, precisamos resgatar essas palavras, essa verdade, de que Cristo nos entregou as chaves do reino. Para irmos nessa

12

Confissão de Fé de Westminster, 30.1 em Westminster Confession of Faith, p. 94.

PRINCÍPIOS D1 DISCIPLIN,\ NA 1C,RI-1:):\

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direção precisamos primeiro perguntar: o que precisamente são as "chaves do reino" e de onde elas vêm? Nos parágrafos a seguir, vamos investigar mais de perto essas questões. Então, veremos como essas chaves devem moldar a forma como exercemos a disciplina na igreja, tanto no sentido mais amplo de disciplina quanto no sentido mais restrito de formalmente censurar um membro — até mesmo ao ponto da expulsão. A origem no Antigo Testamento A expressão "as chaves do reino" é metafórica por natureza. A fim de entender o sentido dessa metáfora, faremos bem em entender o que as chaves originalmente eram. Na época do Antigo Testamento, o oficial mais importante era o administrador ou mordomo de um rei. Em Isaías 22.22 lemos sobre Eliaquim, que foi o mordomo do rei Ezequias. Veja o que o Senhor disse a respeito de Eliaquim: "Eu lhe porei sobre os ombros a chave da casa de Davi; ele abrirá, e ninguém fechará; fechará, e ninguém abrirá." Devemos tomar esse versículo literalmente." Naquele tempo as chaves eram feitas de madeira e eram bem pesadas. De acordo com o costume da época, o mordomo carregaria as chaves da casa de Davi, as chaves do reino, não em uma corrente presa ao corpo, mas sobre os ombros. Lá, elas serviriam como um sinal de seu privilégio e de suas responsabilidades. Como mordomo-chefe, a Eliaquim cabia a autoridade exclusiva de fechar e abrir as portas do palácio, controlando dessa forma o acesso ao tesouro real. Seria deixado a seu critério a quem ele deveria admitir e a quem recusar acesso à presença do rei. E digno de nota, no entanto, que embora essa grande autoridade lhe fora atribuída, para que a exercitasse com sabedoria e responsabilidade, ela não pertencia a Eliaquim. Ele exercia esse privilégio sob a autoridade do rei. As chaves não eram da casa de Eliaquim, elas eram as chaves da casa de Davi. A origem da expressão no Antigo Testamento, assim, traz consigo um forte sentido de mordomia. Carregar as chaves do reino, portanto, é agir como um mordomo na casa de seu senhor.

A aplicação no Novo Testamento Ao nos familiarizarmos com uso da expressão "chaves do reino" no Antigo Testamento, poderemos entender melhor o que ela significa para nós hoje. Em Apocalipse 3.7, o apóstolo João registra as palavras do Cristo ressuscitado, que

13Ver Geoffrey W. GROGAN, "Isaiah," em Isaiah-Ezekiel, vol. 6, The Expositor's Bible Commentary, ed. Frank E. Gaebelein. Grand Rapids: Zondervan, 1986, p. 143.

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O PASTOR PNCIFICAD(..n.

aplica Isaías 22.22 a si mesmo, declarando: "Assim diz aquele que é santo, verdadeiro, o que tem a chave de Davi; o que abre e ninguém pode fechar, e o que fecha e ninguém pode abrir". Nesse texto, Eliaquim é identificado como um tipo de Cristo. Isto é, a posição e as responsabidades atribuídas a Eliaquim eram semelhantes e correspondentes à posição e às responsabidades de Cristo. Jesus é aquele que, agindo em nome do Pai, recebera toda a autoridade no céu e na terra. Somente ele carrega as chaves do céu e do inferno. Somente ele nos permite o acesso aos tesouros da graça. E somente ele é responsável por quem entra ou não no reino de Deus (Mt 11.27). Portanto, as chaves representam a autoridade de Cristo sobre sua igreja (Ap 3.7) Ministros, presbíteros e diáconos, entretanto, não têm autoridade absoluta como pastores. Então, qual é a natureza da autoridade que eles possuem? Certamente a metáfora das chaves significa para nós que não agimos por autoridade própria. Nossa autoridade tem relação e é derivada da autoridade de Cristo. Ele é o dono da casa. Nós somos meros administrados. Devemos exercer essa autoridade em relação e de acordo com a palavra e a verdade de Cristo. A natureza da autoridade eclesiástica como serva da autoridade de Cristo encontra apoio em Mateus 16.19 e 18.18. Em Mateus 16.18-19, depois de Pedro ter confessado que Jesus é o Cristo, o filho do Deus vivo, Jesus atribui a ele o direito e a responsabilidade de governar sua igreja: "E digo-te ainda que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino do céu; o que ligares na terra terá sido ligado no céu, e o que desligares na terra terá sido desligado no céu" (Mt 16.18-19). Cristo promete construir sua igreja. E sobre ela, ele estabelece líderes, no caso em questão, Pedro e, por implicação, os demais apóstolos. Jesus então sintetiza a natureza da autoridade de Pedro, ao descrevê-la de forma metafórica como as chaves dadas a um administrador, ou melhor, "as chaves do reino". Jesus prossegue descrevendo a natureza dessa autoridade de modo mais específico, em termos de ligar e desligar. Exercer a autoridade de quem tem as chaves do reino é "ligar e desligar". Essa expressão é algo relativamente pouco conhecido para nós, mas pelo fato de nem Pedro nem qualquer outro dos discípulos ter perguntado a Jesus o que ela significa, podemos presumir que eles a conheciam. "Ligar e desligar" é uma expressão quase jurídica que faz referência à autoridade judicial dos presbíteros na sinagoga?' Ligar significa declarar algo como ilegal ou proibido. Desligar significa declarar algo como legal e permitido. Tais declarações eram feitas com respeito à interpretação da Torá.

l'Herman RIDDERBOS, The Coming of the Kingdom, trad. H. de Jongste. Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1962, p. 360; Craig S. KEENER, The IVP Bible Background Commentary: New Testament. Downers Grove: InterVarsity, 1993, p. 90, 94.

PRINCÍPIOS DE :DISCIPLINA NA IGREJA

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Por extensão, quando os presbíteros ligavam alguém, eles retiravam ou excluíam essa pessoa da comunhão da sinagoga. De modo contrário, quando eles desligavam alguém, eles incluíam essa pessoa no rol de membros da sinagoga. Cristo, portanto, ao entregar as chaves do reino a Pedro, estava dando a ele autoridade para incluir ou excluir pessoas do seu reino. Essa autoridade reside em Pedro, e particularmente na confissão que ele faz do evangelho (Mt 16.16). E o evangelho pregado que liga ou desliga. O evangelho é a autoridade que Pedro desempenha. Aqueles que têm fé em Cristo são admitidos no reino, os que o rejeitam são condenados e excluídos do reino. O que é conferido a Pedro, em Mateus 16, também é conferido à igreja, em Mateus 18, de modo especial para aqueles que estão na liderança da igreja local. O contexto de Mateus 18.15-20 fala da busca de restaurar um irmão a Cristo e sua igreja. Contudo, Cristo antecipa a possibilidade de que alguns na igreja, em algum momento, possam se recusar a ouvir o conselho de indivíduos (negociação, v. 15), de várias pessoas (mediação, v. 16) e mesmo de líderes da igreja (arbitragem na igreja, v. 17). Caso o pecador não arrependido se recuse a ouvir até mesmo à igreja, esta deve tratá-lo como se fosse um pagão — expulsando-o e descredenciando-o do rol de membros. Imediatamente depois de ter descrito como a igreja pode decidir expulsar um irmão, Jesus expressamente declara que ele estará por trás dos oficiais de sua igreja no exercício de suas responsabilidades. Ele assegura-lhes do direito e da responsabilidade de exercer disciplina na igreja ao outorgá-la a eles. O que eles ligarem ou desligarem na terra terá sido ligado ou desligado no céu (Mt 18.18). Essa autoridade é real, executável. Então, Jesus reitera, se não até mesmo esclarece Mateus 18.18, quando diz: "Ainda vos digo mais: Se dois de vós na terra concordarem em pedir acerca de qualquer questão, isso lhes será feito por meu Pai, que está no céu" (Mt 18.19). Mais uma vez, se isolado de seu contexto bíblico e teológico, esse versículo representa um problema, pois parece ser um cheque em branco para que os discípulos façam o que bem entenderem (bem como João 15.7: "Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e vos será concedido"). Mas Jesus claramente não está oferecendo nenhum cheque em branco. Ao contrário, ele está prometendo a sua igreja, e especialmente aos oficiais da igreja, que apoiará suas censuras e a disciplina aplicada em seu exercício das chaves do reino. Essa promessa deve nos inspirar um santo temor. Ele nos relembra que a nossa modesta igreja local é, a despeito de tudo, a igreja de Cristo. Além disso, ele assegura a nós, pastores, presbíteros e diáconos que, quando julgamos alguém segundo as Escrituras, em fé, e para a glória de Deus, estamos aplicando, na prática, o julgamento de Cristo àquela pessoa impenitente. As palavras da promessa de Jesus são palavras de encorajamento para que façamos aquilo que nos é difícil fazer.

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O pÀ . sToR PACIFICADOR

O versículo 20 de Mateus 18 encerra essa seção. Novamente Jesus faz outra promessa: "Pois onde dois ou três se reúnem em meu nome, ali estou no meio deles". Ele promete à igreja que estará presente quando ela estiver no exercício das chaves do reino, termo que é concebido tanto de forma mais ampla (como pregação e discipulado) quanto de forma mais estrita (como julgamento). Essa promessa é algo ao mesmo tempo sério mas que nos enche de confiança. Eu me lembro perfeitamente da primeira vez em que participei da forma mais extrema de disciplina: a expulsão de um membro. Um de nossos diáconos tinha abandonado a esposa que, na época, estava grávida do quarto filho. Embora tivesse permanecido na mesma cidade, ele não só deixou sua casa e mudou-se para uma nova residência, como também cortou todo o sustento financeiro da ex-esposa. Após repetidas embora mal-sucedidas tentativas de fazê-lo voltar atrás, chegou o domingo em que os presbíteros proferiram o julgamento contra ele e o expulsaram do convívio do corpo de Cristo. Como pastor, era minha responsabilidade pronunciar publicamente essa censura contra ele. Naquele dia calhou de termos muitos visitantes, pessoas da universidade local, muitos eram estudantes da graduação e até mesmo um professor. Eles eram incrédulos, questionadores. Eu estaria mentindo se dissesse que subi ao púlpito naquele dia como se fosse qualquer outro. Meu coração estava pesado de tristeza, assim como estavam os corações do restante da congregação. E na fraqueza da minha carne, eu ainda procurava um jeito de contornar a situação, de modo que eu não precisasse chegar àquela medida tão extrema. E havia parte de mim que ficava me dizendo: ""QUEM eu sou para dizer quem é e quem não é membro da igreja de Cristo?" E ainda assim, pela graça de Deus, foi essa passagem que me sustentou, especialmente o versículo 19. Ele me assegurou de que o que estava fazendo não só era o certo a fazer, mas era também uma responsabilidade que Deus me havia conferido. Por outro lado, perceber que aquilo era uma responsabilidade dada por Deus me lembrava de que, se eu deixasse de cumpri-la, poderia até ganhar a aprovação dos presentes, mas teria que encarar a ira de Deus. E Deus era fiel e verdadeiro para com sua Palavra. Embora minha mensagem naquele dia tenha sido pregada com temor e tremor, através de lágrimas e tristeza, Deus me sustentou e me dirigiu. Pensei que havia certamente desapontado os incrédulos ali presentes, que eles nunca mais pisariam em uma igreja. Que iriam difamar a igreja, acusando-nos de comportamento abusivo. Mas Deus abençoou as palavras da minha boca, e só o tempo mostraria isso. Durante as semanas seguintes, ouvimos falar de novo daqueles estudantes e do professor. O professor me disse: "Esta é a única igreja que já conheci que realmente pratica o que prega". Ele ficou intrigado com isso e passou a frequentar a igreja, ouvindo com toda atenção o evangelho e, um ano mais tarde, fez a sua profissão de fé.

PRINCÍPIOS DE DISCIPLINA. NA IGREJA

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Nas palavras da Confissão de Westminster, Cristo deu aos oficiais da igreja "poder respectivamente para reter e perdoar pecados; para fechar a porta do reino para os impenitentes, tanto pela Palavra quanto por censuras, e de abri-las para os pecadores arrependidos, pelo ministério do evangelho e pela absolvição das censuras"." Nisso encontramos grande encorajamento e grande responsabilidade. O poder e a autoridade de que somos investidos nos encorajam a fazer o trabalho difícil da disciplina. Contudo, ao mesmo tempo, a Confissão de Westminster indiretamente nos exorta que negligenciar tal responsabilidade e privilégio — ou seja, as "chaves" que Cristo nos deu — é nada menos que desprezar os dons que Cristo deu a nós, líderes de sua igreja. Nessas últimas páginas pudemos compreender melhor o que significa ser detentor de autoridade eclesiástica. Nossa autoridade é como a de administradores dos mistérios de Deus, como a de mordomos na casa de Cristo. Ela é real, conferida por Cristo e sustentada por ele. No entanto, ela é derivada e relacionada à autoridade dele. Portanto, devemos exercer a disciplina, tanto geral quanto específica, tanto informal quanto formal, com grande cuidado. E devemos exercê-la de acordo com o propósito para o qual Cristo a criou, como veremos a seguir.

Propósito das chaves da disciplina Tradicionalmente a igreja tem buscado cumprir três propósitos primários ao exercer as chaves do reino: honrar a Deus, purificar a igreja e restaurar o pecador. A Confissão de Westminster resume esses três propósitos da seguinte forma: As censuras na igreja são necessárias para a recuperação e ganho do irmão ofensor, para impedir que outros cometam as mesmas ofensas, para purgar o fermento que pode vir a contaminar toda a massa, para vingar a honra de Cristo e a santa profissão do evangelho, e para impedir a ira de Deus, que pode vir a recair com justiça sobre a igreja, se arcarmos com a sua aliança e as consequências de sua profanação por ofensores notórios e obstinados."

Em primeiro lugar, a igreja exerce disciplina para honrar a Deus e a sua glória. Como nosso fim máximo é glorificar a Deus, e o fim máximo de Deus é a sua própria glória, assim, o propósito maior de exercermos as chaves do reino é glorificar a Deus (Ez 36.20-23; Rm 2.24; Tt 2.5,8). Paulo, ao citar Isaías, repreende os judeus que se consideravam irrepreensíveis por seu comportamento, o qual colocava o nome de Deus em descrédito: "Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? Pois, como está escrito,

de fé de Westminster, 30.2 em Westminster Confession of Faith, p. 94. "Confissão de fé de Westminster, 30.3 em Westminster Confession of Faith, p. 94-95.

15Confissão

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o :PAsTe-Nz PAc1 licAlx--.).R

por vossa causa o nome de Deus é blasfemado entre as nações" (Rm 2.23-24). Paulo está dolorosamente consciente de que a falha no exercício da disciplina dá oportunidade ao mundo de negar a Cristo. No entanto, quando a igreja demonstra, aos olhos do mundo, um compromisso em disciplinar a si mesma — chamando pessoas ao arrependimento, a virar as costas para o pecado e voltarem para Deus — nós glorificamos o nome de Deus. E fazemos com que o mundo seja tardio para blasfemar e pronto a se admirar acerca da esperança que nos move. Glorificar o nome de Deus é também o fim último daquele que se arrepende. Quando as pessoas são disciplinadas e restauradas a Cristo, elas têm a oportunidade de agradecer a Deus por resgatá-las dos seus vãos e maus caminhos. Uma das maneiras pelas quais a nossa igreja procura incentivar esse espírito de dar graças é destacando, para aqueles que erram e são pegos em suas faltas, que o fato de terem sido pegos é evidência da bondade e do amor de Deus por eles. Eu pergunto àqueles que estou aconselhando: "Sabe por que seu pecado foi descoberto?". Então, eu mesmo respondo a eles: "Porque você é um filho do grande Rei. E ele te ama demais para permitir que você continue a trilhar esse caminho de destruição". Ao reconhecer o coração amoroso de Deus, esse coração de pastor, a pessoa arrependida consegue verdadeiramente dar graças a Deus e glorificar seu nome. Em segundo lugar, a igreja exerce as chaves do reino em prol da pureza, ou da sagrada saúde da igreja. Paulo repreende os coríntios por deixar de disciplinar um membro que cometia incesto, lembrando-os de que "um pouco de fermento faz com que toda a massa fique fermentada" (1Co 5.6),17 o que não passa de um outro jeito de dizer que o pecado se espalha. Há poucos anos, havia uma igreja na Califórnia em que um dos líderes se envolveu sexualmente com a secretária. Lamentavelmente, os demais líderes falharam em discipliná-lo e permitiram que ele permanecesse na liderança. No ano seguinte, dezessete casamentos de pessoas integrantes da liderança acabaram. Essa cifra não deveria nos causar espanto. Quando não se toma providências, o pecado cresce como um câncer, espalhando-se pelo corpo de Cristo. Portanto, devemos exercer a responsabilidade que nos é confiada de forma vigilante, a fim de proteger a pureza da igreja. Se você se lembra, o próprio Calvino dizia: "a segurança da igreja é fundamentada e sustentada" sobre a doutrina, a disciplina e os sacramentos." Como vimos, a palavra-chave é segurança. O propósito da disciplina é salvaguardar a doutrina da igreja, seus sacramentos e nossa vida no corpo de Cristo. Ainda me recordo de uma vez que tive de expulsar da igreja o filho mais velho de um casal, um filho da aliança. Ted tinha cerca de dezenove anos na época. Embora quisesse

17Ver, por exemplo, Gálatas 5.9 acerca da doutrina dos judaizantes; ver 2Tm 2.17 acerca dos ensinos de Himeneu e Fileto. "CouN, John Calvin and Jacopo Sadoleto, p. 63.

1)RINCÍP1CS DE DISCIPL1N,1 NA lç-dZiaJA

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morar com os pais, ele se recusava a obedecer às regras da casa. Além disso, também se recusava a se submeter aos padrões morais cristãos. No dia em que ele foi expulso, seu pai se colocou diante de toda a assembleia e agradeceu aos presbíteros por terem ligado para ele e chamado a sua atenção, pois o comportamento de Ted estava tendo um efeito prejudicial sobre os outros jovens da igreja. O pai de Ted entendeu que a censura da igreja era uma forma de manter o resto da família a salvo do comportamento abusivo e moralmente degenerado que era característico do Ted. Por fim, a igreja exerce as chaves do reino com a intenção de restaurar o irmão pecador. Restaurar à comunhão é o propósito intencional que Cristo estabelece em Mateus 18.15, quando ele diz: "Se teu irmão pecar contra ti, vai a sós com ele e repreende-o; se te ouvir, ganhaste teu irmão". A combinação dos temas da disciplina e restauração fica evidente também em muitas outras passagens bíblicas. Nós disciplinamos porque queremos restaurar inteiramente um irmão à comunhão dos demais (veja Pv 11.30; Tg 5.19-20). A disciplina requer a coragem de libertar um cativo (G1 6.1) e a compaixão para restaurar um irmão. Disciplinar é amar um irmão o bastante para não deixá-lo no pecado nem entregá-lo à miséria de sua escravidão. Nas palavras de Dietrich Bonhoeffer: "Nada pode ser mais cruel do que a ternura que deixa o outro em seu pecado. Nada pode demonstrar mais compaixão do que a severa repreensão que chama de volta um irmão perdido em pecado. Esse é um ministério de misericórdia."19 Como Bonhoeffer, devemos aprender a pensar na disciplina como uma espécie de misericórdia.

Pensamentos à guisa de conclusão Como vimos, as Escrituras retratam a disciplina de uma forma muito mais abrangente do que a igreja hoje tipicamente a vê. E uma marca da igreja e um meio de graça, e constitui a autoridade da igreja. Consequentemente, a disciplina na igreja é abrangente em seu alcance, pois é parte fundamental das práticas mais conhecidas de nossas igrejas — o batismo, a Santa Ceia e o ministério da Palavra — e afeta todos os membros da igreja. A igreja de Cristo é o corpo formado pelos discípulos de Cristo. Discípulos são pessoas que vivem sob disciplina. Em termos formais e devidamente falando, essa disciplina é o exercício das chaves do reino. E uma questão de mordomia. Como líderes, Cristo nos deu grande encorajamento e nos confiou grande responsabilidade de cuidar de sua igreja. Ele nos chama a ligar e desligar as coisas, a expulsar e a trazer pessoas para

19 Dietrich BONHOEFFER, Life Together, trad. John W. Doberstein. New York: Harper & Row, 1954, p. 106.

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O PASTOR PACTICADOR

o nosso convívio. E nos chama a fazer tudo isso para a sua glória, pela pureza da igreja e pela restauração do pecador. Esse nunca foi um chamado fácil para a igreja. Nosso temor dos homens muitas vezes redundou em uma grande relutância em disciplinar. Nós nos deixamos enganar pela mentira de que "o que funciona" é algo que se mede pela quantidade de pessoas que frequentam a igreja e que gostam de nós. Felizmente, temos nos pais da Reforma um rico legado. Eles também viveram tempos conturbados. Também enfrentaram a necessidade de mudar o caráter e as práticas da igreja. Contudo, foi justamente seu compromisso e obediência às Escrituras que os levaram a perseverar na época deles. E essa mesma atitude que nos dará vitória nos dias de hoje.

12 PRÁTICAS DE DISCIPLINA NA IGREJA

o capítulo anterior procuramos expandir nosso entendimento dos princípios que constituem a base da disciplina na igreja. Vimos que a disciplina é o discipulado, e discipular é uma disciplina. Disciplina é simplesmente a habitual e esperada forma de viver sob o senhorio de Jesus Cristo. E o senhorio de Jesus que fornece a base para exercer a disciplina da igreja. E é da autoridade de Cristo como Senhor que a igreja deriva sua autoridade para disciplinar — para agir como despenseira das "chaves do reino" — com o intuito de exaltar a honra de Deus, proteger a pureza da igreja e restaurar os pecadores. Agora voltamos nossa atenção para as práticas de disciplina da igreja. Saber que temos autoridade para exercer a disciplina e por que a exercemos não é o bastante. Precisamos saber como exercer a disciplina na família de Deus. O MODO DE EXERCER AS CHAVES DO REINO Com bastante frequência o modo de exercer a disciplina é concebido de forma demasiadamente restrita como os quatro passos da disciplina fornecidos em Mateus 18.15-20. No entanto, o restante de Mateus 18 é igualmente instrutivo com relação a esse tópico. Nos versículos que vêm antes do trecho que vai do versículo 15 ao 20, há três passagens cujo foco está voltado para o modo como os discípulos de Jesus devem cuidar do povo de Deus e praticar a disciplina. Primeiro, nos versículos de 1 a 4, Jesus fala de nossa atitude, fazendo uma exortação à humildade. Segundo, nos versículos de 5 a 9, Jesus diz como devemos nos relacionar uns com os outros no que diz respeito à gravidade do pecado. Finalmente, nos versículos de 10 a 14, Jesus compartilha a parábola do bom pastor que vai atrás da ovelha perdida, nos mostrando o coração de um verdadeiro pastor. Os versículos de 15 a 20 trazem uma perspectiva nitidamente familiar que deve incidir sobre o exercício da disciplina e destacar particularmente como os líderes da igreja devem disciplinar seus membros como pais disciplinam sua família.

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O PASTOR PACIFICADOR

Embora provavelmente devamos presumir que Jesus fosse acompanhado por mais pessoas do que apenas os doze apóstolos, não devemos esquecer, contudo, que as palavras de Jesus são endereçadas diretamente aos doze em sua sublime capacidade de líderes da igreja que nascia. Assim, Mateus 18 é um relato das instruções que Jesus deu aos seus discípulos e particularmente aos líderes da igreja. Uma breve análise desse material é necessária, portanto, se devemos exercer a disciplina do modo como Jesus nos ordena. Vamos ver uma questão por vez e considerar como isso deve moldar nossa prática da disciplina.

Com humildade Mateus 18.1-5 se inicia com uma pergunta feita a Jesus sobre status, posição e poder no reino: "Quem é o maior no reino do céu?" (v. 1). Jesus responde chamando uma criança para perto dele e dizendo aos discípulos que eles não iriam entrar no reino do céu, a menos que se tornassem como crianças. Jesus aponta não a inocência da criança, mas sua humildade, expressada pela falta de preocupação da criança com o seu status. As preocupações com o status fazem parte do conjunto de preocupações relacionadas ao medo de outras pessoas. Quando fazemos perguntas sobre status ("Como minhas ações poderão afetar minha reputação diante das pessoas?"), estamos na prática confessando que o homem é Senhor. Os líderes que são como crianças exercem a disciplina com humildade, não com os olhos voltados para sua própria reputação ("As pessoas vão aprovar ou desaprovar minhas ações?"), mas sim com os olhos voltados para o senhorio de Cristo ("Como devemos administrar com sabedoria as chaves do reino que Cristo nos entregou?"). Se você se recordar, foi esse medo das pessoas que levou aquele professor de teologia sistemática a descartar a "praticidade" da disciplina na igreja.1 A humildade de coração é a atitude fundamental que devemos demonstrar em todas as nossas interações com os membros da igreja e especialmente nos muitos e diversos modos como disciplinamos as pessoas. Um modo bem evidente de expressarmos, como líderes, nossa humildade é confessando nossos próprios pecados publicamente, quando necessário. Permita-me compartilhar alguns exemplos da minha própria igreja. Há alguns anos, meu relacionamento com a secretária da igreja estava começando a se deteriorar. Eu não a estava tratando como deveria, e ela estava achando cada vez mais difícil trabalhar para mim. Em vez de sair, ela pediu ao administrador da nossa igreja que a ajudasse a fazer um apelo respeitoso a mim. Ela não

'Veja no capítulo 11, "Princípios de disciplina na igreja", a seção "Um breve esboço histórico" sobre o período moderno.

PRÁTICAS DE DISCIPLINA

IGREJA

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fugiu da situação nem me atacou, mas procurou agir como uma pacificadora. Passamos por uma breve mediação, esclarecemos diversos mal entendidos, confessamos nossos pecados e concedemos o perdão. Embora eu certamente não precisasse compartilhar esse problema com toda a congregação, achei que seria sábio, com a devida permissão de minha secretária, mostrar a eles a atitude prudente, amável, pacífica e humilde com a qual ela lidou com o problema. Além do mais, eu queria que eles vissem que mesmo nós, pastores, queremos e precisamos ser abordados e criticados cara a cara — evidentemente em espírito de respeito e graça — em vez de sermos criticados e difamados pelas costas. Essa confissão me deu oportunidade de compartilhar com a igreja o fato de que eu de algum modo poderia ofendê-los e que, como pastor, eu não estava acima da disciplina dos outros — inclusive daqueles em posições hierarquicamente subordinadas a mim. Também foi uma oportunidade de conclamá-los a orar por mim, pois eu, como ser humano que sou, necessito de oração. Ao fazer essa confissão pública fui capaz de aconselhar indiretamente as pessoas sobre como devem reagir ao conflito com humildade — sem chamar atenção excessiva para mim mesmo nem bajular minha secretária. E o que é mais importante, tive uma oportunidade de chamar a atenção para a bondade e a glória de Deus, nosso Pacificador. O efeito salutar que minha confissão teve sobre a congregação confirmou que eu tinha razão em fazer o que fiz. Algumas pessoas que me viam como alguém inatingível vieram me agradecer por ter mostrado a elas um novo modo de pastorear. Pessoas que frequentavam a igreja disseram que minhas ações tiveram um papel importante em sua decisão de se tornarem membros. Segundo as próprias palavras deles: "Este é um lugar seguro para estar." Outros me agradeceram por ter dado um bom exemplo e reconheceram que minha confissão expôs sua própria falta de humildade, renovando neles o desejo de caminhar humildemente com Deus. O que eu fiz como indivíduo, o conselho de presbíteros também havia feito alguns anos antes como grupo. Nós fizemos uma confissão pública do pecado que havíamos cometido para com um membro específico e sua família, por coisas que deveríamos ter feito e não fizemos e por coisas que não deveríamos ter feito. Nós começamos nossa confissão dizendo à congregação porque estávamos fazendo uma confissão pública, e então os convidamos a orar para que Deus mudasse nossos próprios corações pecadores. O caso em questão envolvia a situação de um homem que estava "sob os cuidados" de nossa igreja e presbitério. Estar "sob os cuidados" é um status eclesiástico segundo o qual um homem notifica sua igreja local e presbitério de que quer seguir a carreira ministerial, e está disposto a se submeter a aconselhamento e orientação da igreja local e do presbitério para se preparar para isso. Por causa

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de diversas questões e preocupações que nós, como grupo, levantamos, ele no final desistiu desse status e decidiu não fazer o seminário. Embora nós estivéssemos convencidos de que as questões não eram simples de resolver (da nossa perspectiva existia culpa de ambos os lados e assuntos sérios que precisavam ser tratados), o modo como disciplinamos esse irmão fora precipitado e insensível. Depois que havíamos confessado nossos pecados à congregação, esse jovem e sua família nos perdoaram. Muitas lágrimas foram derramadas e, surpreendentemente, foram lágrimas de alegria. Ao verem os líderes da igreja se humilharem e confessarem suas falhas publicamente, muitos na igreja — tanto membros quanto visitantes — nos procuraram e expressaram gratidão por nosso exemplo como líderes e por viver aquilo que confessamos como igreja pacificadora e guiada pelo evangelho. O chamado de Jesus para que sejamos humildes como crianças é um chamado para que nós, líderes, sejamos humildes. O abuso de autoridade não acontece em um momento; ele vem ao fim de uma longa caminhada, durante a qual nós gradualmente renunciamos às primeiras coisas — ao primeiro amor. Ele começa com a omissão gradual da atitude diária de nos confessar e glorificar a santidade e a misericórdia de Deus em Cristo — com a atitude de fazer do evangelho algo pequeno. Resgatar o uso devido e apropriado da autoridade, no entanto, é algo que está apenas à distância de um joelho dobrado. Uma das primeiras coisas que encorajo pastores e líderes a fazer, quando querem crescer como pacificadores e ver sua igreja florescer em uma cultura de paz, é começar pela confissão e oração, algo que nada mais é do que a humildade em ação.

Com uma visão séria da natureza destrutiva do pecado Seguindo seu chamado à humildade, Jesus passa a instruir seus discípulos sobre como eles deveriam tratar seus "pequeninos" (Mt 18.5-9). Um tema recorrente atravessa toda esta seção — o "fazer tropeçar".2 Jesus adverte tanto o mundo (v. 7) quanto os cristãos (v. 8, "tua", "teu") para que não levem outros a pecar. Para Jesus, a disciplina se baseia em uma visão profunda acerca da santidade de Deus e do pecado. A disciplina na igreja não gira em torno de ter uma atitude de censura ou exageradamente crítica para com os menos piedosos. E algo que diz respeito a levar o pecado a sério. O pecado é contrário a Deus, ao próximo e a si mesmo. O pecado é ilicitude, é a semente da destruição. E o pecado, e não os pecadilhos culturais, que manda pessoas para o inferno, e todo o pecado está sujeito ao perigo do inferno. Irar-se, amaldiçoar, cobiçar, quebrar promessas feitas e fazer

2

No espaço de quatro versículos, o verbo skandaliz e a forma substantiva skandalon são usados.

pRÁTtcxs DE DISCIPLINA NA IGREJA

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juramentos repletos de lacunas são todos pecados que pedem por disciplina, pois todos sujeitam a pessoa ao perigo do inferno.' Portanto, fica patente que as consequências de deixar de disciplinar têm ramificações eternas. A disciplina não trata simplesmente de manter o rebanho ligado à igreja local, mas de mantê-lo ligado a Deus em aliança. Não é de admirar, portanto, que Jesus reserve algumas de suas mais duras palavras e mais severas advertências para aqueles que causam ou dão ocasião para que outros pequem: "Mas a quem fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim seria melhor se lhe pendurassem no pescoço uma pedra de moinho e afundasse nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos! Pois é inevitável que eles venham; mas ai do homem por meio de quem o escândalo vier!"(Mt 18.6-7). Se o pecado não reprimido zomba de Deus, transforma a igreja em um celeiro para mais pecados e manda o pecador para o inferno, então não devemos deixar de levar a sério o pecado nem tampouco negligenciar o exercício da disciplina. Cristo é manso e humilde de coração, no entanto, ele também se põe em pé, com um chicote nas mãos, para expulsar todos aqueles que queriam transformar o templo de seu Pai em um antro de ladrões. A limpeza que Cristo faz no templo é, por si só, um ato de disciplina divina, demonstrando que ser gentil e levar o pecado a sério não são coisas opostas. Ao contrário, uma aversão verdadeira ao pecado leva a um amor maior pelos perdidos.

Co. o coração de um pastor Para que não pensemos que odiar o pecado é algo que necessariamente leva a uma atitude rigorosa e repleta de censura na hora de aplicar a disciplina no contexto da igreja, Jesus, após condenar o pecado, conta a parábola do bom pastor que deixa as noventa e nove ovelhas para ir atrás da ovelha que se perdeu (Mt 18.10-14). Nessa passagem Jesus nos mostra que tipo de coração e atitude os pastores devem ter ao exercer a disciplina na igreja. Ela deve ser aplicada com o coração de um pastor. Como todas as parábolas de Jesus, esta também vem com uma ferroada. Justo quando estamos prestes a nos parabenizar pelo bom pastoreio, Jesus nos mostra o quão distante nosso coração está do coração de um verdadeiro pastor. Ele está ciente de como nós facilmente deixamos os casos de disciplina passarem em branco. Muitos de nós olhamos para uma ovelha que está se desviando e, resolvendo mostrar uma "aceitação incondicional", convenientemente viramos nossas cabeças para o outro lado de modo a evitar o "sofrimento emocional". Outros de nós, cansados de seguir e cuidar da mesma ovelha fraca, frequentemente pensamos com

3Para raiva e maldição, veja Mateus 5.22; para cobiça, veja Mateus 5.28-30; para quebra de juramentos ou para o fato de fazê-los com lacunas, veja Mateus 5.33-37.

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PAS"fOR PACEFICA.1)OR

nossos botões: Bons ventos a levem! Além do mais, tendemos a gravitar em direção às ovelhas saudáveis e não às fracas, em direção às piedosas e não às injustas; em outras palavras, temos a tendência de ir atrás das noventa e nove e não daquela que se perdeu. E ainda racionalizamos, dizendo a nós mesmos que em termos de empenho humano, noventa e nove por cento merece a nota máxima. Jesus também está ciente de que somos indolentes, de que inventamos desculpas e de que podemos usar nossa posição como pastor para engrandecer a nós mesmos. Ou simplesmente somos paralisados por mensagens conflitantes que nos chamam a ser qualquer coisa, menos um pastor, ou seja, por mensagens que nos chamam: a ser um pastor do tipo professor de um seminário próprio, cativo; a ser um pastor do tipo CEO que administra uma organização lucrativa, voltada para o mercado; a ser um pastor engraçado e um cara geralmente boa praça; a ser um pastor ditador, um fascista que enfrenta o mundo todo em favor de suas pequenas causas próprias; a ser um pastor do tipo cão de guarda da igreja, que está sempre apontando os erros das outras igrejas de sua denominação ou da comunidade evangélica mais ampla; a ser um pastor do tipo místico artífice da palavra e performista de rituais, que só aparece no domingo de manhã e na quarta-feira à noite para trazer a Palavra do dia. Não devemos perder de vista o fato de que a parábola de Jesus sobre o bom pastor traz fortes alusões a uma passagem complementar do Antigo Testamento, Ezequiel 34. Jesus está defendendo um ponto e é como se tivesse dito: "Não sejam como esses pastores." E ele está redefinindo o pastorado: "E isto o que significa ser pastor do meu povo." Portanto, seria bom que nós atentássemos novamente para o terrível aviso do profeta contra os pastores de Israel daqueles dias. Ezequiel 34 prega julgamento e promessa: o julgamento dos falsos pastores e a promessa do Bom Pastor. Pastor é uma metáfora de poder bem como de ternura. O Senhor diz a respeito de Davi: "Serás o pastor do meu povo Israel e chefe sobre ele"(2Sm 5.2).4 Pastorear significa não apenas cuidar e nutrir, mas também liderar (direcionar o rebanho ao pasto), proteger (proteger de lobos), e disciplinar ("tua vara e teu cajado me tranquilizam"; Si 23.4). Na verdade, a vara do pastor tem o significado tanto de proteção quanto de correção — afasta os lobos e traz de volta as ovelhas desgarradas.

4A forma verbal para "pastorear" (poimainõ) é utilizada no Novo Testamento como um sinônimo próximo para "comandar" (veja Ap 2.27; 12.5; 19.15).

PRÁTICAS DE DISCIPIJNA NA IGREJA

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No entanto, em Ezequiel 34 nós encontramos pastores que não estão fazendo nenhuma dessas duas coisas. Portanto, o profeta profere infortúnios contra os profetas de Israel. Ele os condena por não cuidarem do rebanho, não fortalecerem as ovelhas fracas, não curarem os doentes nem atarem as feridas, e não trazerem de volta as extraviadas ou buscar pelas perdidas (Ez 34.2-4). As perdidas neste caso, como em Mateus 18, não são os incrédulos, mas as ovelhas de Israel (Ez 34.2), membros da comunidade da aliança que se perderam. Interessantemente, a acusação de Ezequiel contra os pastores é composta por uma lista de seus fracassos ou omissões em cuidar dessas ovelhas. Em outras palavras, eles cometeram um abuso de sua autoridade ao negligenciar sua autoridade. Além do mais, estas falhas são sumariamente descritas da seguinte forma: "mas dominais sobre elas [as ovelhas] com rigor e dureza".5 Quantos de nós ficamos aflitos pela reprovação de ter falhado em evangelizar, no entanto, em Ezequiel 34 e em Mateus 18 a verdadeira reprovação direcionada aos pastores refere-se à nossa negligência em buscar as ovelhas perdidas e as desgarradas. E o cuidado que devemos ter com o crente, e não com o incrédulo, o que está em vista. Deus irá nos julgar pelo modo como pastoreamos seu povo da aliança. O profeta ridiculariza os pastores que usam sua posição de autoridade e confiança para benefício e ganho pessoais, negligenciando durante todo o tempo seu chamado para cuidar do rebanho de Deus. Ao contrário desses falsos pastores de Israel, Jesus, o verdadeiro Pastor do povo de Deus, agora ensina seus discípulos como pastorear — ele ensina o que significa prover, proteger, cuidar, nutrir e disciplinar seu povo. Significa ir atrás dos perdidos. Significa regozijar no difícil trabalho de restauração do pecador. Embora omitido por Mateus, o relato paralelo de Lucas acrescenta que o pastor não apenas encontra a ovelha perdida, mas também a leva de volta para o rebanho em seus ombros (Lc 15.3-7). Kenneth Bailey, notório estudioso da Bíblia que traz à leitura da Escritura a rica compreensão que adquiriu dos costumes do Oriente Médio, nos encoraja a não negligenciar esse ponto aparentemente casual. Citando Ibrahim Sa'id, Bailey comenta: "Sa'id observa que o pastor coloca a

'A expressão com rigor é usada apenas outras duas vezes no Antigo Testamento. A própria expressão "dominar com rigor" é encontrada apenas duas outras vezes — nos versículos 43 e 46 de Levítico 25. Lá ela é uma proibição cuja finalidade é instruir os israelitas sobre como não devem tratar seus irmãos israelitas. Eles não devem dominá-los com rigor. Êxodo 1.13-14 apresenta uma ideia semelhante, quando retrata os egípcios fazendo com que os israelitas os servissem com rigor e brutalidade. Fica evidente que o uso que Ezequiel faz dessa expressão demonstra como o pastoreio

tinha se degenerado naqueles dias em que os governantes de Israel tratavam seu próprio povo como os egípcios os haviam tratado na terra da escravidão. Veja A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, baseado no léxico de William Gesenius, trad. Edward Robinson, ed. Francis Brown, S. R. Drivers e C. A. Briggs, reimpr. Oxford: Clarendon Press, 1979, p. 827.

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ovelha sobre seus ombros, 'sabendo o trabalho difícil que ainda tem pela frente'. E importante que notemos esse tema do fardo da restauração. A história não acaba quando o pastor encontra a ovelha. Depois de ser encontrada a ovelha deve ser restaurada. E essa restauração, com seus fardos implícitos e suas alegrias explícitas, que é o centro da segunda parte da parábola e, portanto, seu clímax".6 A audiência original não interpretou a parábola de Jesus como um doce sentimentalismo. Eles entenderam que seu ensinamento implicava que a restauração é custosa. Encontrar os perdidos é uma coisa. Restaurá-los é algo totalmente diferente. Trabalho duro, um fardo pesado, um longo caminho de volta a casa e perseverança — essas são as coisas que esperam aquele que busca restaurar uma ovelha desgarrada. No entanto, com esse trabalho duro vem um grande contentamento: a ovelha perdida é restaurada ao rebanho. Jesus, portanto, volta nossos olhos para o prêmio duramente conquistado, para a restauração. Como qualquer pastor pode atestar, há mais alegria pela restauração daquela ovelha que se perdeu do que pelas noventa e nove que ficaram a salvo no pasto.

Como uma disciplina familiar Até aqui discutimos o modo de exercer as chaves do reino. Nós devemos fazê-lo com humildade, com uma visão séria do pecado e com o coração de um pastor. No entanto, de acordo com Mateus 18.15-20, existe outro modo pelo qual devemos nos conduzir — com o entendimento de que exercer as chaves do reino é uma disciplina familiar. Nos versículos 14 e 15 de Mateus 18, Jesus muda as metáforas e passa de rebanho a família, do pastor ao Pai, dizendo-nos: "Do mesmo modo, não é da vontade de vosso Pai, que está no céu, que um só destes pequeninos pereça" (v. 14). A história do pastor é uma história sobre nosso Pai do céu. Do mesmo modo, pastorear não é apenas vigiar o rebanho, mas é também cuidar da família, da família de Deus. Vemos o mesmo tema na passagem anterior, onde Cristo se refere aos membros de nossa congregação como os "pequeninos" de Deus, e a Deus como o "Pai, que está no céu" (Mt 18.10-11). Essas metáforas relacionadas à família são recorrentes e sugerem que a disciplina eclesiástica é disciplina familiar. Mateus 18.15 reforça essa ideia. Quando Jesus nos diz para ir até o pecador e mostrar a ele sua culpa, não está falando simplesmente de um pecador qualquer, mas de nosso irmão: "Se teu irmão pecar contra ti". A busca do pecador que pecou contra nós é a busca de um irmão por um irmão. E uma questão de

'Kenneth E. BAILEY, Poet & Peasant and Through Peasant Eyes: A Literary-Cultural Approach to the Parables in Luke. Grand Rapids: Eerdmans, 1983, p. 148.

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natureza familiar. E, como tal, deve servir como um lembrete poderoso da maravilhosa igualdade que temos diante do Pai. Deve abrir nossos olhos para a verdade de que aquele que nos ofendeu é mais parecido conosco do que pensamos. Ele é alguém da família. Ele é um irmão para mim e eu sou um irmão para ele. Como a disciplina eclesiástica é disciplina familiar, nós devemos gravar nas mentes e corações de nosso povo que a disciplina é responsabilidade de cada membro da família de Deus. Quando Jesus diz "se o seu irmão pecar", ele está falando de todos nós: adultos e crianças, homens e mulheres, oficiais da igreja e leigos. O amor de Cristo deve compelir todos nós a procurarmos, buscarmos, e trabalharmos para restaurar nosso irmão ou irmã que pecou. No entanto, não devemos ficar cegos para a realidade de que aqueles a quem amamos e buscamos restaurar nem sempre nos receberão como irmãos. E lamentável, mas o pecador frequentemente interpreta nossos esforços para restaurá-lo do pecado como uma intromissão indevida. Ele nos diz para cuidar de nossa própria vida e nos acusa de sermos rigorosos, hipócritas, de não agirmos com amor. Aqueles que erram costumam até mesmo questionar nossa autoridade, perguntando: você pensa que é para dizer que estou errado?". Em resumo, ele utilizam a mesma defesa de Caim, argumentando: "Você não é guarda do seu irmão. O que eu faço não é da sua conta." No entanto, devemos responder: "Sim, eu sou seu guarda, sim. Você é meu irmão e eu venho como irmão que conhece o poder da tentação, a escravidão do pecado, e o poder maior do Salvador. E a isto que dedico minha vida; dedico minha vida ao amor, ao reino de Deus". Mateus 18.15-20 nos ensina que como líderes, nós vamos às pessoas não apenas como irmãos, mas também como pais. Se a disciplina é algo que se dá dentro da família de Deus e a pessoa sob disciplina é nosso irmão ou irmã, então os líderes exercem essa disciplina não apenas como irmãos, mas também como pais, pais da igreja. De acordo com Cristo, se buscamos servir como líderes devemos imitar o exemplo do nosso Pai do céu que procura os perdidos em busca paternal (Mt 18.14). Além do mais, aprendemos em 1Timóteo 3 que devemos provar primeiramente que somos bons esposos e pais em nossa casa, pois não podemos administrar a casa de Deus até que tenhamos aprendido a administrar nossas próprias casas. Um modo pelo qual administramos nossas casas é discipulando nossos filhos. Como vimos no último capítulo, discipulado é disciplina. Disciplinar nossos filhos é parte do discipulado. Se tivermos aprendido a discipular e a disciplinar nossos próprios filhos, então estaremos bem mais preparados para servir em cargos oficiais na igreja, agindo como "pais" de nosso povo. Não há imagem mais vívida sobre a forma como um pai disciplina seus filhos do que no livro de Provérbios. Provérbios é um livro sobre um pai que aconselha, encoraja, instrui, repreende, corrige e treina seu filho para que ande no caminho "Quem

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da justiça, e o ensina como pensar e agir com sabedoria. É um livro inteiramente sobre disciplina. Assim, como líderes da igreja, nós somente lucramos com uma boa leitura e estudo de Provérbios.'

Disciplina paternal de acordo com Provérbios O livro de Provérbios nos orienta, como pastores, de dois modos. Primeiro, ele enfatiza como é necessário que nós, como líderes, disciplinemos nossos "filhos". Provérbios nos ensina que um pai demonstra amor genuíno por seu filho quando o disciplina: "mas quem ama [seu filho] o castiga no tempo certo" (Pv 13.24; veja também S1 94.12; Pv 6.23; Hb 12.1-14; Ap 3.19). Amor e disciplina parecem coisas opostas para muitos. Em geral, a maioria de nós pensa em Deus como Pai e associa essa imagem imediatamente ao amor. Mas poucos de nós associam isso à disciplina e, mesmo quando a disciplina nos vem à mente, nós raramente pensamos nela como algo bom. No entanto, ela é algo bom, pois exercer a disciplina é justamente o que Deus diz que caracteriza os pais, e especialmente o próprio Deus. O autor de Hebreus aconselha seu rebanho desgarrado dizendo-lhes que deixaram de atender à palavra de encorajamento dirigida a eles como filhos. E se esqueceram que a dificuldade que eles estão atravessando — a disciplina do Senhor — é o próprio sinal do amor de Deus por eles: No combate contra o pecado, ainda não haveis resistido a ponto de derramar sangue. Já vos esquecestes do ânimo de que ele vos fala como a filhos: Filho meu, não desprezes a disciplina do Senhor, nem fiques desanimado quando por ele és repreendido. Pois o Senhor disciplina a quem ama e pune a todo que recebe como filho (Hb 12.4-6, citando Pv 3.11-12).

O autor de Hebreus cita diretamente de Provérbios essa palavra de encorajamento dirigida aos "filhos". Ele supõe que a atitude e as ações do pai retratado em Provérbios refletem a atitude e as ações de nosso Pai celestial, que disciplina aqueles a quem ele ama. Por isso nós, que somos apontados como pais de nossas próprias igrejas, também devemos buscar imitar nosso Pai, disciplinando aqueles a quem amamos. O amor que um pai tem por seu filho, e que se expressa no ato de disciplina, em parte alguma é mais evidente do que na "disciplina" do Pai celestial para com seu próprio filho. O autor de Hebreus nos diz que Jesus aprendeu a obediência

'Veja George M. SCHWAB Sr., "The Proverbs and the Art of Persuasion,"Journal of Biblical Counseling 14, n° 1 (Outono/1995): p. 6-17.

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(Hb 5.8). Em outras palavras, ele aprendeu a disciplina a partir da disciplina de seu Pai — embora, no caso de Cristo, essa disciplina não tenha sido corretiva, mas instrutiva, educativa e voltada para o amadurecimento. Contudo, Jesus Cristo, mesmo sendo o Filho de Deus, não escapou da disciplina. Na verdade, embora fosse o Filho de Deus, como Deus-homem Jesus partilhou plenamente de nossa humanidade, suportando todas as coisas sem pecar, inclusive a disciplina do Pai, exatamente da mesma forma que nós, como filhos adotivos de Deus, devemos tolerar (Hb 2.14,17; 4.15; 5.8; 12.4-7). O Pai expressou seu amor pelo Filho permitindo que ele suportasse o sofrimento da disciplina. Se o amor se expressa na disciplina, então podemos ver que, quando deixamos de disciplinar os membros da igreja deixamos de amá-los, ou como diz a própria Escritura de forma mais ousada, isso é um sinal de ódio. Pois a própria Escritura adverte: "Não odiarás o teu irmão no coração. Não deixarás de repreender o teu próximo, para que não sofras por causa do pecado dele" (Lv 19.17). E também diz: "Odeia seu filho quem o poupa da vara" (Pv 13.24; veja também Pv 5.23). Então nossa pergunta como líderes não deve ser: "Devemos ou não disciplinar?". Em vez disso, devemos perguntar: "Amamos nossas ovelhas o bastante para discipliná-las?". E quando as pessoas argumentarem que a disciplina não é um ato de amor, devemos contradizê-las, afirmando que é justamente o contrário: deixar de disciplinar é sinal de ódio. Provérbios também nos orienta como pais-pastores mostrando-nos como disciplinar nossos "filhos". Por mais que Provérbios recomende o uso da autoridade, ele não o apresenta como uma panaceia. Em vez disso, o livro de Provérbios indiretamente ensina aos pais diversas maneiras convincentes de motivar seus filhos a optarem pela sabedoria e a fugirem da insensatez.' Primeiro, o autor de Provérbios presume ao longo de todo o livro o deleite, o contentamento e o orgulho que pais e filhos sentem um pelo outro. Esse pressuposto velado se expressa de maneira explícita em Provérbios 17.6: "Os filhos dos filhos são coroa para os idosos, e os pais são o orgulho dos filhos." Deus criou os filhos para estimar e abençoar seus pais, e os pais para estimar e abençoar seus filhos.9 Incentivar e valorizar a afeição de nossos filhos por nós e seu desejo de nos agradar é um ótimo modo pelo qual nós, pais, podemos motivar nossos filhos a viver com sabedoria. Como líderes da igreja, Deus nos designou da mesma forma

80 artigo de George Schwab (veja a nota 7, acima) colaborou muito para estimular meu pensamento nessa área. 9Um dos mais perspicazes apologistas de hoje é J. Budziszewski e seu trabalho sobre nosso "design moral e social" defende que Deus fez os seres humanos de uma maneira específica. Veja J. Budziszewski, "The Third and Fourth Witnesses,"em What We Can't Not Know. Danas: Spence, 2003, p. 86-106.

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a amar e abençoar os membros de nossa congregação, e eles por sua vez a nos amarem e abençoarem. Se conseguirmos nutrir essa dinâmica na família de Deus, teremos muito mais facilidade em persuadir os membros da congregação a buscar uma vida piedosa. Segundo, o pai apresentado em Provérbios de forma sincera e carinhosa apela a seu filho para que o escute (veja Pv 1.8; 4.1,10,20; 5.1,7). O pai não diz "Você aí, ouve", mas, "Meu filho, ouve". Ele não adverte friamente para que ele ouça aquela "instrução", mas gentilmente implora: "ouve a instrução de seu pai". Sua linguagem é pessoal ("meu", "teu"). Ela se repete. E é uma afirmação do relacionamento "teu pai—meu filho".10 E o que é mais importante, ela poderosamente motiva o filho a responder a seu apelo. Esse tipo de apelo é uma parte importante da disciplina na igreja, pois a disciplina traz tensão para os relacionamentos. Quando nós, como pastores, temos que disciplinar um de nossos membros, raiva e ressentimento podem deixar nosso relacionamento com aquela pessoa um tanto estranho. O irmão pecador geralmente se sente afastado de nós, seus líderes. Lamentavelmente, em vez de gentilmente implorar a eles com base em nosso relacionamento, como amigos, irmãos e pastores em Cristo, deixamos nosso irmão imobilizado pelas frias exigências da lei. Nós somos negligentes no que se refere a entender, aconselhar e orar com eles, deixando-os pouco motivados a atentarem para a nossa disciplina ou a buscarem ser restaurados a Cristo e a família de Deus. Terceiro, Provérbios nos ensina como disciplinar de forma apropriada e eficaz. O pai não aborda o filho de uma maneira fria, padronizada, pois nem todos os pecadores são escarnecedores, tolos ou maldosos. Alguns são apenas simples e ingênuos. Então o pai disciplina o filho de maneira apropriada a quem ele é e ao que ele fez. Do mesmo modo, nem todo irmão a quem devemos procurar, para tratar de alguma falha cometida, erra da mesma maneira ou pela mesma razão. Pastores sábios manejam a Palavra de Deus com sabedoria e de forma apropriada. Eles utilizam-na para ensinar aqueles que precisam de instrução, para repreender aqueles que estão presos nas cadeias do pecado, para corrigir aqueles que se equivocam facilmente e para treinar os imaturos." Além do mais, esse pai em Provérbios não coloca diante de seu filho uma lista de ordens sem sentido, pois entende que a disciplina que gera uma simples e 1°"Meu filho" é usado vinte e três vezes em Provérbios. "Teu pai" é usado três vezes. Mais frequentemente o pai destaca seu relacionamento ensinando ao filho o efeito que suas ações terão sobre o pai. 11A passagem de 2Timóteo 3.16-17 ensina não apenas os tipos de uso vantajosos para a Escritura mas também, por implicação, os diferentes tipos de pessoas às quais a Escritura é direcionada. Os ignorantes precisam de ensinamentos, os indisciplinados precisam de repreensão, os errados precisam de correção e os imaturos de treinamento. E claro, qualquer pessoa por si só pode precisar de todos estes alguma vez (cf. lTs 5.14).

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aparente conformidade a um conjunto de regras não é verdadeiramente eficaz. Em vez disso, ele procura ganhar o coração do filho: "Meu filho, dá-me teu coração" (Pv 23.26). Ele quer que a verdade mude seu filho por dentro. Ele deseja ensinar ao filho a sabedoria que age no mais íntimo dos lugares,12 pois sabe que a verdadeira mudança vem de dentro para fora. Mas não é apenas a mudança do coração que esse pai deseja ver em seu filho. Nós frequentemente o vemos associando as atitudes do coração a ações ligadas aos olhos, dedos ou ao pescoço (Pv 3.3; 6.21; 7.3; 23.26), pois ele anseia por uma mudança completa de vida. Ele chama o filho não apenas a dar um passo diferente, mas a seguir um curso de vida totalmente novo. Hábitos sagrados para o corpo e para a alma: isso é o que ele busca. Ajudar os membros da igreja a fazer mudanças de vida que estejam em harmonia com as mudanças do coração é um objetivo importante para nós, pastores, pois não podemos pensar que cumprimos nossa obrigação simplesmente dizendo às pessoas: "Apenas pare de pecar!". As pessoas estão presas ao pecado. Quando elas se arrependem, devemos ajudá-las a se libertarem do pecado que as prende, ajudando-as a se livrarem de hábitos pecaminosos e a desenvolverem um estilo de mudança de vida. Como quando disciplinamos uma criança, uma tapa nas mãos pode ser suficiente para o ato de desobediência em si, mas um pai sábio irá complementá-lo com palavras de instrução e orientação para que a criança não repita o mesmo erro. A construção de novos hábitos deve vir em seguida da correção. Quarto, o pai pastor de Provérbios motiva seu filho a buscar uma vida sábia e disciplinada, ao relembrá-lo do modo como as promessas de Deus atuam em sua vida. Por exemplo, ele chama o filho a confiar no Senhor, combinando a esse imperativo a promessa tranquilizadora de que Deus endireitará suas veredas: "Confia no SENHOR de todo o coração, e não no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará tuas veredas" (Pv 3.5-6). De maneira similar, esse pai tece uma bela tapeçaria na qual as palavras do evangelho se entrelaçam a conselhos da lei ao longo de todo o livro de Provérbios. Ele aponta promessas apropriadas para enfrentar as tentações da vida que nos levam ao pecado, tais como a tentação de temer o homem (Pv 29.25), de ser ganancioso e mesquinho (Pv 19.17; 28.25), e de se vingar (Pv 20.22; 25.22). Como enfatizei anteriormente neste livro, é fácil para nós, pastores, motivarmos pessoas a agir mais por meio do medo e da ameaça do que por meio da promessa. No entanto, essa abordagem é míope, pois embora a lei possa orientar, ela também condena. Apenas o evangelho e as promessas de Deus têm o poder 12 Davi sabe que Deus deseja o mesmo para ele, e pede a Deus que trabalhe esta mudança nele em sua grande confissão de pecado no Salmo 51.6.

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de nos libertar do cativeiro dos nossos medos, da raiva, miséria, aflição, cobiça e preguiça. Assim com o pai de Provérbios, nós também, como pastores-pais, devemos tecer para nosso rebanho vestes multicoloridas, nas quais se entrelaçam lei e evangelho, exortação e promessa. Nós também devemos aprender como mudar habilmente o tom de acordo com a necessidade do momento — proferindo uma inflamada repreensão para aqueles que não escutam e sussurrando doces palavras de correção para aqueles que já começaram a sentir o peso da culpa e da vergonha. Um último modo pelo qual o pai de Provérbios sabiamente inspira seu filho é ajudando-o a ver sua vida a partir de uma perspectiva eterna. Mais especificamente ele fala das consequências não apenas em termos dos benefícios imediatos da sabedoria ou das misérias imediatas da insensatez, mas em termos de vida e morte (Pv 14.12; 18.21). Ele assim o faz pois reconhece que as questões em jogo na disciplina não são questões triviais. Elas são extremamente importantes. O destino eterno de seu filho depende disso. Como C. S. Lewis nos lembra: "Não existem pessoas comuns. Você jamais falou com um mero mortal. Nações, culturas, artes, civilizações — tudo isso é mortal, e sua vida está para a nossa como a vida de um mosquito. Mas são imortais aqueles com quem brincamos, trabalhamos, casamos, censuramos e exploramos — horrores imortais ou esplendores eternos".13 Assim são as pessoas que nós, como pastores, buscamos restaurar. Se buscamos fielmente disciplinar as almas imortais que Deus colocou sob nossos cuidados, Tiago tem palavras de grande encorajamento e promessa para nós: "Meus irmãos, se algum de vós se desviar da verdade e alguém o reconduzir a ela, sabei que aquele que fizer um pecador retornar do erro do seu caminho salvará da morte uma vida e cobrirá uma multidão de pecados" (Tg 5.19-20). Redirecionar o destino eterno de uma pessoa resume a alegria, o drama e a total imensidade do dever pastoral. Ninguém mais foi especificamente nomeado para essa tarefa de trazer à luz vidas para o céu! E ninguém deve saber melhor do que nós quais são as consequências eternas para aqueles que se recusam a ouvir a Deus, aos líderes e à sua igreja. Por isso, é com grande alegria e com grande tristeza e lágrimas que um pastor exerce seu ofício de cuidar das almas. Como vimos, pastores são pais e pais disciplinam seus filhos com sabedoria. Agora permita-me concluir minhas observações sobre a "disciplina paternal" chamando brevemente a atenção para um problema bem real, o problema do abuso.

"C. S. LEWIS, "The Weight of Glory," em The Weight of Glory and Other Addresses, Revised and Expanded Edition, ed. Walter Hooper. New York: Macmillan, 1980, p. 19 [Também publicado no Brasil por Editora Vida, sob o título O peso de glória].

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Abuso paternal

No papel de pastores, pais e homens em posição de autoridade, nós, como líderes da igreja, devemos nos precaver contra os muitos modos pelos quais podemos abusar de nossa autoridade e tratar as pessoas com excessivo rigor, tudo em nome do "exercício da disciplina". Uma das razões pela qual a disciplina é negligenciada ou, quando praticada, vista como algo frio e impessoal é pelo fato de nós, que exercemos a disciplina, agirmos com frieza e impessoalidade. Não vemos a pessoa que pecou como um irmão ou um filho, mas como um inimigo. Em vez de apelarmos para a afeição, chegamos armados, já desconfiando de seus motivos, palavras e ações. A razão para esse tipo de atitude encontra-se, em grande parte, no fato de deixarmos de cultivar relacionamentos com as pessoas da igreja. Quando fracassamos na construção de relacionamentos, as pessoas ficam mais propensas a reagir mal quando precisamos exercer a disciplina. Com isso, nós nos aproximamos delas de maneira defensiva, já esperando pelo pior. Como dizem estas sábias palavras: regras sem relacionamento levam à rebelião. Esse princípio simples serve para nós como mais um lembrete da história da redenção que encontramos no Evangelho. Primeiro, o Senhor estabelece um relacionamento de aliança conosco. Então, e somente então, ele nos coloca sob seu governo (suas regras) e exerce disciplina sobre nós. Da mesma forma, nós, que exercemos as chaves do reino, estaremos abusando de nossa autoridade se não estabelecermos e mantivermos relacionamentos guiados pela graça com aqueles a quem lideramos. Outra maneira de abusar de nossa autoridade é quando interpretamos as palavras de Cristo em Mateus 18.15-17 de forma mecânica — ou seja, de modo que a eficiência passe a ser medida pelo quão rápido conseguimos fazer com que o ofensor saia da igreja. A restauração de um irmão em Cristo é um processo, e um processo lento por sinal. Como líderes, seremos tentados a usar nossa autoridade de maneiras abusivas enquanto esse processo se arrasta no tempo. Pecadores obstinados podem provocar em nós um grande ressentimento. Sua própria conduta marcada pela raiva, amargura e desonestidade pode nos tentar a reagir da mesma forma. Então, em vez de buscar pacientemente a restauração, nossas mentes se concentram na retaliação, e nós, de forma pouco sábia, buscamos apressar questões delicadas. Uma maneira de nos livrarmos dessa tentação é relembrando o que vimos em nossa discussão de Tiago 4 (veja o capítulo 3). Até mesmo a boa intenção de "restaurar um pecador" pode ganhar contornos de uma demanda divina, levandonos a exercer a autoridade da disciplina eclesiástica formal, uma medida de caráter extraordinário, quando a questão pede simplesmente que sejamos sábios, gentis e persistentes no aconselhamento e no ensino. A disciplina eclesiástica formal — medida pela qual os líderes agem como um tribunal, julgando uma demanda

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apresentada contra um irmão — deve ser reconhecida pelo que é: uma medida extraordinária. E como tal, não deve ser aplicada precipitadamente. Tal medida deve vir apenas ao final de um longo processo, somente depois de termos exaurido e provado serem ineficientes todas as medidas para restaurar o pecador, apenas depois que o indivíduo impenitente tiver dado fartas provas de que não está disposto a se arrepender. Em termos práticos, esse processo envolve encarar o irmão impenitente frente a frente, e não por meio de cartas formais enviadas pela igreja. E pode envolver também a busca de ajuda de outros que tenham maior ligação com a pessoa que está precisando ser disciplinada. Durante todo esse processo, devemos ser pacientes e perseverantes, visto que buscamos abrir os olhos de um cego. E devemos sempre lembrar de tratar nosso irmão pecador como gostaríamos de ser tratados.

CONTAR PARA A IGREJA O que estou tentando mostrar durante todo o tempo é que nós tendemos a deixar o ministério de fora do ato de "exercer disciplina". Quando se trata de exercer disciplina na igreja, nós colocamos o carro na frente dos bois. O processo se torna mais importante do que o propósito da disciplina. Nas reuniões da liderança, regras técnicas, livros sobre procedimentos e coisas do gênero se tornam a mais fina arte de se preocupar com o insignificante e tolerar o intolerável. Justamente por isso optei por falar das questões técnicas do processo mais para frente. Ao colocá-las como questões secundárias, não quero sugerir com isso que as questões processuais apropriadas para o caso devam ser ignoradas. A maioria das denominações fornece a seus líderes manuais que detalham as políticas e os procedimentos adotados pela denominação. Esses manuais devem orientá-lo no processo disciplinar, explicando os tipos de censura que você pode aplicar a alguém e como conduzir um tribunal de julgamento com equidade. Portanto, eu o encorajo a consultar esses recursos para obter orientação. No entanto, minha preocupação específica nesta seção é explicar como se dá esse processo de "contar para a igreja" o que está acontecendo. Primeiro precisamos entender quem exatamente é "a igreja". Então devemos ponderar sobre como buscar a ovelha desgarrada e como e quando envolver toda a igreja nesse processo. Quem é "a igreja"? A partir de nossa análise sobre as chaves do reino, deve ter ficado claro que "igreja" em Mateus 18.17 se refere primeiramente à igreja concebida em termos dos líderes que a representam. As únicas pessoas que devem exercer disciplina são aquelas às quais foi dada autoridade legítima para agir dessa forma. Estamos

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falando dos presbíteros da igreja (At 20.17,28; lTs 5.12-13; 1Tm 3.1-8; 5.17; Tt 1.5-9; Hb 13.17), também chamados de bispos ou líderes.14 Existem, no entanto, casos disciplinares em que as circunstâncias fazem com que seja apropriado "contar à igreja" o que está acontecendo, isto é, contar o caso a todo o corpo de membros da igreja local. A doutrina bíblica da igreja como corpo de Cristo nos relembra que o que acontece a um membro necessariamente afeta todo o corpo. Como Paulo ensina: "Se um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; e, se um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele" (1Co 12.26; veja também 1Co 12.12-27). Devemos nos alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram (Rm 12.15). Além disso, Paulo também ensina que um pouco de fermento faz fermentar toda a massa (1Co 5.6). O pecado de um afeta a todos. E por isso que em 2Tessalonicenses, quando trata de como a igreja deve censurar uma pessoa, Paulo fala não apenas com os presbíteros, mas também com todo o corpo de Cristo em Tessalônica, exortando-os para que observem atentamente quem não está obedecendo às instruções dos apóstolos. Ele diz a toda a igreja para que se afaste e não tenha contato com tais membros, para que eles possam sentir-se envergonhados e se arrependam (2Ts 3.6,14-15). Em 1Coríntios Paulo convoca toda a assembleia a se reunir e expulsar o homem que estava cometendo incesto (1Co 5.4-5,13). E em Mateus 18.17 Jesus diz a toda a igreja de tratar o que foi expulso como um gentio e publicano.

Buscar a ovelha perdida? Tendo definido quem é "a igreja" em Mateus 18.17, resta uma pergunta: Como ir atrás da ovelha desgarrada? Em outras palavras, o que envolve o processo de "contar para a igreja" o que aconteceu, quando a pessoa a ser disciplinada se afasta da igreja? (Eu me refiro aqui a um afastamento como maneira de escapar da disciplina, e não a um afastamento legítimo por algo que leve uma pessoa a desejar frequentar outra igreja por razões justificáveis.) O que devemos fazer nesse caso? E se a pessoa sair da igreja por um pecado sério — como ser uma pessoa dada a discórdias e a causar divisão — antes que a disciplina seja concluída? Não temos como obrigá-la a permanecer em nossa igreja. Mas tampouco podemos simplesmente deixá-la sair. O que podemos e devemos fazer em casos assim é dar continuidade aos procedimentos disciplinares. Em outras palavras, levar o processo disciplinar adiante, até onde conseguirmos chegar.

14Para ver quão intercambiáveis são esses títulos, referindo-se todos ao mesmo grupo de homens, compare Tito 1.5 (presbíteros) com o versículo 7 (bispo), e Atos 20.17 (presbíteros) com o versículo 28 (bispos).

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Nós devemos dar continuidade ao processo por dois motivos. Primeiro, queremos fazer todos os esforços para restaurar o pecador impenitente. Por exemplo, se uma pessoa sob disciplina se desliga como membro e começa a frequentar outra igreja local, é nosso dever informar a outra igreja que essa pessoa deixou nossa igreja enquanto estava sendo submetida a processo disciplinar (nenhum outro detalhe precisa ser mencionado) e que nós estamos buscando restaurar essa pessoa e reconciliá-la conosco. Também devemos encorajar a igreja a questionar a pessoa em particular sobre o problema e transmitir a ela nosso desejo de restauração. Seguir essa linha de ação faz com que a pessoa que está sendo disciplinada compreenda que não adianta simplesmente fugir. Ao mesmo tempo, alerta a outra igreja para ficar atenta. Como alguém uma vez disse: "Nunca ajuda levar a bordo alguém como Jonas" (veja Rm 16.17; 1Co 5.6; 2Tm 1.15; 2.16-18; 4.10, 14-15; 3Jo 9-10). Devemos estar preparados, no entanto, para a possibilidade de que essa outra igreja possa bater a porta em nossa cara. Infelizmente, muitas igrejas hoje em dia adotam uma postura superficial em relação a pecados graves e se recusam a lidar com eles. Por exemplo, tivemos uma mulher que foi disciplinada por cometer o adultério, conduta que ela não apenas admitiu, mas continuou a praticar durante nosso procedimento disciplinar. Buscando escapar da disciplina, ela começou a frequentar outra igreja que, até mesmo depois de ter sido notificada de nossa decisão de expulsá-la, permitiu que ela cantasse no coral! Se, pela graça de Deus, a outra igreja concordar com nosso pedido, e se a pessoa sob disciplina admitir o problema, então devemos buscar uma mediação (que, no caso, deve incluir a pessoa em questão e os representantes de ambas as igrejas) e orar pela restauração. Se a pessoa se recusar a cooperar com os esforços da outra igreja, esperamos que a outra igreja imponha limites à sua participação até que essa pessoa venha a se arrepender. A segunda razão pela qual damos continuidade ao processo disciplinar é para levar a questão até o fim. Ao fazer isso, asseguramos aos membros da igreja que, em vez de negligenciar nossas responsabilidades, nós exercemos nossa autoridade de forma diligente. Também asseguramos a todos que nos preocupamos e amamos cada um a ponto de ir em busca das ovelhas desgarradas, pois demonstramos que não deixamos a pessoa que se desvia escapar e se afundar no pecado. Ao contrário, nós buscamos diligentemente a sua restauração. Parte dessa decisão de levar a questão até o fim envolve informar oficialmente a igreja sobre o status da pessoa sob disciplina. Se alguém rejeitar a disciplina de nossa igreja, temos o direito de alterar seu status (excluindo-o da membresia), de comunicar esse fato à congregação e de oficialmente excluí-lo de nosso cuidado e supervisão.

PRÁTICAS 1-YE :DISCIPLINA NA IGRIT.i.JA

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Envolve todo o corpo de Cristo? Quando a igreja está buscando restaurar um pecador impenitente, como no exemplo acima, em que ponto os outros membros da igreja devem ser informados? A regra de ouro é que, durante todo o processo disciplinar e em todos os níveis de disciplina, apenas aqueles com direito legítimo de saber devem ser informados. Como nós aprendemos, a disciplina começa de maneira informal e privada. Um irmão procura o outro irmão (Mt 18.15; Gl 6.1). E se necessário, os irmãos em conflito podem buscar o aconselhamento de um líder da igreja ou de outra pessoa que possa verdadeiramente ajudar (Mt 18.16). O mesmo nível de discrição deve ser mantido durante todos os estágios do processo de disciplina, até que haja necessidade de comunicar à igreja. Na maioria dos casos de disciplina, a primeira vez que toda a congregação precisa ser informada é no caso de uma excomunhão. Eu encorajaria o mesmo procedimento no caso da censura que suspende a participação na Santa Ceia. Por outro lado, a censura para depor alguém de um cargo na igreja requer que toda a congregação seja avisada (2Ts 3.6-14; 1Tm 5.19-20). Quando se torna necessário informar toda a congregação, os líderes devem refletir e orar sobre o modo mais sábio e discreto de falar da questão disciplinar. Tradicionalmente as igrejas têm anunciado em público as censuras aplicadas, aos domingos de manhã, durante o culto. Algumas igrejas, inclusive a minha, começaram a repensar essa política. Nós descobrimos que nosso culto principal de adoração no domingo é frequentado por um grupo misto de crentes e incrédulos, membros e não membros. Se devemos levar a disciplina familiar a sério, parece mais bíblico (assim como mais prudente juridicamente falando) fazer tal anúncio em uma reunião da congregação de convocação especial, à qual apenas membros da igreja possam comparecer. Em outras palavras, porque a questão em discussão é uma questão de família, o que será compartilhado deve ser apenas em família. Portanto, enviamos cartas apenas a membros da igreja, convocando para uma reunião especial de toda congregação. Uma vez reunidos os membros, nós nos certificamos de informá-los sobre quatro questões-chave. Primeiro, nós os informamos acerca da natureza e das bases da censura que estamos aplicando à pessoa impenitente. (Não entramos em detalhes, mas compartilhamos apenas o suficiente para provar que aquela pessoa de fato cometeu um pecado.) Segundo, nós os instruímos quanto à natureza do novo relacionamento que essa pessoa sob censura agora tem em relação à sua participação no corpo de Cristo (tal como suspensão da Santa Ceia, destituição de cargo na igreja ou mesmo expulsão). Neste ponto, advertimos os membros a não incentivarem fofocas e os lembramos de que essa questão é uma "questão de família", que deve ser mantida dentro do contexto da igreja local. Terceiro, convidamos cada membro a examinar a si mesmo com respeito

O PASTOR - PACIFICADOR

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a seus próprios pecados e hábitos pecaminosos e os encorajamos a se livrarem dos delitos de sua natureza pecaminosa (Cl 3.5-10). Finalmente, oramos pela restauração da pessoa a Deus e à igreja. E evidente que essas reuniões especiais podem se tornar grandes ocasiões para ensino e cuidado de todos os membros. Percebemos que elas geralmente resultam no que eu anteriormente chamei de "jubilosa santidade". Depois de lidar publicamente com um caso de disciplina nesse tipo de cenário, não é incomum nossos líderes notarem um aumento no número de aconselhamentos assim como um aumento do interesse pelo discipulado e envolvimento em pequenos grupos, pois a disciplina incentiva o discipulado. CONCLUSÃO A disciplina na igreja está em tudo que fazemos. Cada palavra que nós, como pastores, falamos no púlpito, tudo o que ensinamos, os aconselhamentos que fazemos e o que dizemos na casas dos membros que visitamos, todas são palavras de disciplina. Esses exemplos citados são geralmente de palavras fáceis de dizer. As palavras difíceis acontecem quando uma pessoa se recusa a nos ouvir e precisamos tomar passos para pressionar a pessoa a se arrepender. Ninguém gosta disso. No entanto, o exercício da instrução paternal e da disciplina para manter e promover a pacificação na casa de Deus é algo bom e de vital importância. Deixo a você esta citação de um grande pastor escocês do século xix, Robert Murray McCheyne, que confessa sua própria mudança de mentalidade sobre a disciplina na igreja: Quando pela primeira vez me dediquei ao ministério entre vocês, eu era extremamente ignorante sobre a vasta importância da disciplina na igreja. Eu pensava que meu maior e quase único trabalho era orar e pregar. Eu via suas almas como algo tão precioso, e o tempo como algo tão escasso, que devotei todo meu tempo, cuidado e força para trabalhar a Palavra e a doutrina. Quando casos de disciplina eram trazidos a mim e aos presbíteros, eu os tratava com um aborrecimento. Era um dever do qual eu me esquivava; e posso verdadeiramente dizer que ele quase me afastou totalmente do ministério entre vocês. Mas foi da vontade de Deus, que ensina seus servos de maneira diferente da que o homem ensina, abençoar alguns dos casos de disciplina com a manifesta e inegável conversão das almas daqueles que estavam sob nosso cuidado, e daquele momento em diante uma nova luz iluminou minha mente e eu vi que se a pregação era um decreto de Cristo, então a disciplina na igreja também era. Hoje me sinto profundamente convicto de que ambas são de Deus — as duas chaves entregues a nós por Cristo: a chave da doutrina, com a qual destrancamos os tesouros da Bíblia; e a chave da disciplina, com a qual abrimos ou fechamos o

pRATtcAs

D[scipLENA NA IGREJA

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caminho para as ordenanças seladas da fé. Ambas são dons de Cristo e a nenhuma devemos renunciar sem pecar.15 Você crê que as chaves do reino são dons de Cristo? Ensinamentos bíblicos claros sobre a disciplina na igreja e a prática pastoral gentil da disciplina não afastam os crentes; pelo contrário, isso atrai pessoas para as igrejas. As pessoas se sentem seguras como membros da família de Deus. Na verdade, elas anseiam por ser membros dessa família. Portanto, as chaves que Cristo nos deu são para o nosso bem e para sua glória. Use-as! E que assim seja.

"S. Maxwell CODER, "Biographical Introduction," em Memoirs and Remains of R. M McCheyne, ed. A. A. Bonar, 1947; reimpr. Chicago: Moody, 1978, p. xxii-xxiii.

13 EM DIREÇÃO A TORNAR-SE UNA IGREJA PACIFICADORA

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os capítulos anteriores exploramos um pouco da teologia e das práticas que estão por trás da pacificação. Começamos olhando bem de perto quem somos como pessoas em conflito. Vimos que temos inclinações naturais de partir para o ataque ou tomar a rota de fuga mais próxima, em vez de buscar a reconciliação. Além disso, segundo o apóstolo Tiago, somos um povo enredado no conflito por causa dos desejos pecaminosos que governam nossos corações. A seguir, desenvolvemos uma teologia da reconciliação baseada no próprio caráter reconciliador de Deus e na natureza da igreja como família de Deus. Partindo disso, falamos de confissão e perdão — o arroz com feijão da reconciliação — e da negociação, todos elementos cruciais do processo de pacificação pessoal. A seguir, voltamos nossa atenção para diversos processos de pacificação assistida: mediação, arbitragem e disciplina eclesiástica. No entanto, você ainda deve estar se perguntando: Por onde começo? Por onde começo para ser um pastor pacificador e como preparo minha igreja para ser uma igreja pacificadora? Neste último capítulo, quero delinear de forma simples e breve como você pode começar a aplicar em sua igreja local os princípios e práticas de que nós falamos.

CAMINHANDO EM DIREÇÃO A UMA CULTURA DE PAZ A primeira coisa a reconhecer é que este livro é um chamado à mudança. Devemos mudar o modo como vemos nosso chamado e o modo como pastoreamos. Devemos mudar o modo como alimentamos nosso rebanho, o modo como administramos e supervisionamos os ministérios dentro de nossas próprias igrejas, como disciplinamos aqueles que se perdem e como aconselhamos aqueles em conflito. Dizendo de maneira simples, devemos mudar o modo como "fazemos a igreja" e "somos igreja". A questão é: Como começar?

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O PASTOR. PACIFICADOR

Cativado pelo evangelho de um Deus ressuscitador Se desejamos nos tornar pastores pacificadores, devemos começar nos lembrando de quem somos. Somos chamados em primeiro lugar e principalmente não como pastores, mas como filhos — filhos adotados por Deus. Essa boa-nova, a boa-nova do evangelho, deve e pode ser a única fonte da qual fluem todas as nossas ações. Vim a perceber que eu, assim como Marta, tenho frequentemente escolhido servir às causas de Deus em vez e acima de amá-lo como Pai e de ser amado por ele como filho (veja Lc 10.38-42). E me descobri na companhia de muitos pastores que, por natureza, são mais como Marta do que como Maria. Nós somos cristãos de cozinha, que escolhem passar seu tempo na cozinha em vez de sentados aos pés de Jesus. Preferimos trabalhar a adorar, ajudar a ouvir, cozinhar do que ter comunhão. Pastores de cozinha conquistam a atenção e o louvor das pessoas, pois fazem as coisas acontecer. Frequentemente sentimos uma autossatisfação imensa quando completamos nossa lista diária de "coisas a fazer", pois ganhamos mais pontosfazendo do que sendo. Nós encontramos justiça em ações benfeitas por nós mesmos, e não na ação feita e perfeita do Outro. Todas essas coisas se tornaram aparentes para mim durante a leitura do livro My Utmost for His Highest de Oswald Chambers. Essa obra devocional foi escrita por um pastor escocês do século xix, que se converteu por meio do ministério de Charles Spurgeon. Chambers era um homem comprometido em viver o seu máximo para a máxima glória de Deus. Por isso, nessa obra, ele faz um alerta: "Esteja atento a tudo que possa competir com sua lealdade a Jesus Cristo".1 Achei essa declaração bastante desafiadora, pois ela nos alerta a estarmos atentos para que nosso próprio coração não nos traia. Ela me lembrou de que até mesmo pastores como eu tendem a substituir a devoção a Jesus por outra coisa. Chambers continua: "O que mais concorre com a devoção a Jesus é...". Como você acha que ele acaba essa frase? Como você acabaria essa frase? Que concorrentes de Jesus nós deveríamos ser encorajados a evitar? O lazer? Velhos hábitos pecaminosos? Chambers responde: "O que mais concorre com a devoção a Jesus é o serviço a Jesus".2 Chocado pela conclusão de Chamber, rapidamente retruquei: "Ora, mas o Senhor precisa de pessoas que o sirvam. Jesus não nos pediu para que orássemos por trabalhadores? O fracasso em sermos pacificadores não é um fracasso em

10swald CHAMBERS, "It Is the Lord!" My Utmost for His Highest: An Updated Edition in Today's Language, ed. James Reimann. Grand Rapids: Discovery House Publishers, 1992, 18 de janeiro, disponível em http://www.rbc.org/utmost/index.php?month=01&day=18 (acessado em 08/03/2006). 2lbid., (itálico acrescentado).

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fazer o trabalho que deveríamos fazer para esse ministério? Como, então, posso dizer a outros, especialmente a pastores, que o maior ídolo a que devemos ficar atentos é o serviço a Jesus?". No entanto, uma reflexão mais profunda me mostrou que Chambers está certo. Nosso serviço, nosso ministério, nosso "ofício pastoral" muitas vezes se coloca no caminho da nossa devoção a Cristo. Para nos tornarmos igrejas pacificadoras precisamos de pastores pacificadores. E para nos tornarmos pastores pacificadores, primeiro precisamos aprender a sentar como Maria aos pés daquele que é o Príncipe da Paz. Não é ele que precisa de nós, mas sim nós que precisamos desesperadamente dele. Então, desafio você a ouvir novamente o glorioso evangelho como se o ouvisse pela primeira vez. Se a pacificação está levando as pessoas à presença de Cristo, então os próprios pacificadores precisam saber onde Cristo pode ser encontrado. E Cristo somente é encontrado no momento em que ele se revela para nós no evangelho da paz. O apóstolo Pedro nos ensina que quando não estamos amadurecendo na fé, quando não estamos acrescentando a ela conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade, fraternidade e amor, é porque nos esquecemos de que fomos libertos de nossos pecados passados (2Pe 1.5-9). Nós nos esquecemos do evangelho! Como então podemos recuperar o evangelho outra vez para que possamos servir a Cristo com base em sua justiça, e não em nossa própria? Há um sentido em que não podemos. Não podemos nos levar a Deus. Deus deve vir a nós. Ele deve fazer novas todas as coisas. Ele deve trazer à vida. A boa-nova é que o Senhor nos chama no próprio evangelho. Mais importante, porém, é reconhecer em que contexto Deus faz esse chamado. Deus nos chama à renovação principalmente por meio do conflito e do sofrimento. A chama do conflito é a fornalha da renovação. O conflito do qual agora estamos fugindo é o próprio lugar e o próprio santuário ao qual Deus convida: "Venha. Venha e seja transformado". Pois na morte existe a vida; na fraqueza, força; no arrependimento, renovação. Também é importante reconhecer que tipo de Deus nos chama ao evangelho. Nosso Deus não é meramente um Deus que nos ajuda. Ele é o Deus da ressurreição. Abraão não cria apenas em um Deus que controla as crises da vida; ele também cria em um Deus que dá vida aos mortos (Rm 4.17). O apóstolo Paulo nos conta que na Asia ele sofreu muito — que ele foi pressionado além de suas forças. Ele chegou a desesperar até mesmo da própria vida e sentiu sobre si a sentença de morte (2Co 1.8-9). No entanto, como conta Paulo, todo esse sofrimento aconteceu para que ele aprendesse a confiar não apenas "em Deus", mas "em Deus, que ressuscita os mortos" (v. 9). Tornar-se um pastor pacificador é resgatar essa verdade singular de que Deus é um Deus ressuscitador. Nosso Deus triúno não está construindo um império

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O PA SI-0 R PA C 1 1:21 C A DOR

nem mesmo uma igreja. Ele está ressuscitando para si mesmo um povo — um povo que irá ouvir seu nome, refletir sua imagem e compartilhar sua glória. Deus não quer programas nem projetos; ele quer pessoas, e esse é o motivo pelo qual ele tão frequentemente rasga em mil pedaços nossos tão estimados projetos. Ele nos quer como um povo, e ele quer nossos corações. E claro que Deus usa para isso programas e projetos e nos chama a planejar e construir. Mas ele usa todas essas coisas para erguer para si mesmo um povo que possa glorificar seu nome — o grande nome do Deus ressuscitador, o nome de Jesus Cristo, o Senhor ressuscitado — em toda a terra. Nós, pastores, como guias desse povo, glorificamos seu nome em nossa vida quando paramos de confiar em nós mesmos e depender de nossas próprias habilidades e, em vez disso, começamos a reconhecer nossa incredulidade e nossa necessidade desesperada de um Salvador. Embora bem oculta sob nossos padrões sutis de justiça própria, nossa incredulidade rapidamente vem à tona de vários modos, em meio ao sofrimento e ao conflito, na forma de desespero, raiva, ódio, descontentamento, murmuração, inveja (especialmente de outros pastores), espírito crítico, transferência de culpa, nas desculpas que arrumamos para nós mesmos, na defesa que fazemos de nós mesmos, no fato de negligenciarmos nossos deveres, deixarmos de servir aos outros, no medo do fracasso, na ostentação, no fato de não escutarmos as pessoas, de negligenciarmos os outros, e por aí vai essa imensa lista. Nós nunca conseguiremos ir a Cristo, ao Deus da ressurreição, até colocarmos abaixo a alta estima que temos, reconhecendo esses frutos da incredulidade. Só então conseguiremos ir a Jesus, pedindo: "Senhor, eu preciso de uma ressurreição. Senhor, tu és a ressurreição e a vida". Apenas quando clamarmos em nossa fraqueza, em nossa fragilidade como pacificadores, iremos ver de uma nova maneira o poder de Deus para nos moldar outra vez à semelhança de seu Filho — o Pacificador. Portanto, para que uma igreja se torne uma verdadeira igreja pacificadora, a renovação deve começar no coração de líderes que escutem de uma nova maneira a boa-nova de que nosso Deus é um Deus que ressuscita os mortos — até mesmo pastores mortos. Uma vez que nós, como líderes, formos tomados por esse evangelho de paz, poderemos chamar nossas igrejas de volta à pacificação bíblica, liderando-as a partir da fraqueza, e não da força — ou, ainda melhor, liderando-as pela força de Deus que se revela em nossa fraqueza (2Co 12.9). Não subestimemos, portanto, o poder presente no evangelho da paz, da ressurreição e da renovação. A noiva de Cristo, sua igreja, continua a ser um corpo fragmentado por causa do pecado, da ignorância, da falta de arrependimento e da imaturidade. Ouvir o evangelho de uma nova maneira é a única coisa que irá nos renovar e nos levar a ser embaixadores da reconciliação. O próprio apóstolo Paulo defende esse mesmo ponto em sua segunda carta aos Coríntios:

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Pois o que nos motiva é o amor de Cristo, porque concluímos que, se um morreu por todos, logo, todos morreram. E ele morreu por todos para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. Assim, daqui por diante não reconhecemos ninguém segundo os padrões humanos. E ainda que tenhamos conhecido Cristo segundo os padrões humanos, agora não o conhecemos mais desse modo. Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação; as coisas velhas já passaram, e surgiram coisas novas. Mas todas essas coisas procedem de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação. Pois Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões dos homens; e nos encarregou da mensagem da reconciliação. Portanto, somos embaixadores de Cristo, como se Deus vos exortasse por nosso intermédio. Assim, suplicamo-vos por Cristo que vos reconcilieis com Deus (2Co 5.14-20).

Amém! O Senhor, cative-nos pelo evangelho de seu poder ressuscitador.

Utilizando os meios comuns de graça O próximo passo para se tornar uma igreja pacificadora é o mais comum e óbvio. Devemos utilizar os meios comuns de graça que Deus nos deu para promover a pacificação na família de Deus. Como pastores, você e os outros oficiais nomeados pela igreja são chamados a pregar e a ensinar a Palavra, a ministrar os sacramentos e a exercer disciplina como um pai sobre seu rebanho. Enquanto você cumpre com essas responsabilidades, considere como os meios de graça a seguir podem servir comumente como plataformas para deixar em evidência o evangelho da paz e para chamar sua igreja a viver uma vida de pacificação. Adoração. Primeiro, planeje sua adoração. A adoração comunitária da igreja no domingo é uma ocasião nobre para promover a pacificação. Os pastores tipicamente podem planejar o culto de adoração ou trabalhar com outros em uma equipe de adoração com este propósito em mente. Aproveite a oportunidade para melhor direcionar a atenção das pessoas para o caráter de Deus como um Deus pacificador. Uma maneira muito direta de adorar a Deus como Pacificador é planejando cultos de adoração especiais ao longo do ano que promovam ou evidenciem verdades bíblicas sobre a pacificação. Assim como muitas igrejas têm um "domingo dedicado a missões" (ou uma semana ou um mês), você pode também separar um domingo do ano como o "domingo da pacificação". E provavelmente mais eficaz, no entanto, dar uma palavra sobre a paz a cada domingo. No momento em que você e a equipe de adoração estiverem planejando a adoração do próximo ano, pensem sobre quais mudanças vocês poderiam fazer

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RNSTO R pICIFICIF)OR

para, de forma mais deliberada, exaltar a Cristo como pacificador e promover seu evangelho da paz. Façam a vocês mesmos algumas das questões a seguir: • Como podemos exaltar o grande nome de Deus no modo como ele se revela a Moisés em Êxodo 33-34? • Como podemos chamar nosso povo a constantemente confessar seus pecados, perdoar um ao outro e tratar uns aos outros como irmãos e irmãs da família de Deus? • Como podemos regularmente exortar nosso povo a submeter cada pensamento e atividade da vida ao senhorio de Cristo, que é nossa paz, buscando a paz em todos os seus relacionamentos? • Ao mesmo tempo, como aplicar essas exortações aos corações das pessoas, encorajando-as a crer que Deus, como o grande Reconciliador, está disposto e deseja nos ajudar em nossos conflitos diários? Segundo, pense em novas maneiras de se dirigir às pessoas de sua igreja, ou de explicar a elas que as formas comuns como você fala com elas não são expressões vazias. Pense no jeito como o apóstolo João frequentemente usa termos repletos de ternura quando carinhosamente fala com sua congregação. Ele os chama de "filhinhos", "amados" e "irmãos.' João não é o único. Paulo, Pedro, Tiago, Judas e o autor de Hebreus todos usam diversos termos de afeto quando falam com seu povo. Além do mais, Paulo aproveita cada oportunidade para fazer as pessoas saberem de sua afeição sincera por elas. Por exemplo, em sua carta aos Filipenses, ele começa expressando seu amor por eles: "E justo que eu me sinta assim a respeito de todos vós, pois estais em meu coração, já que todos sois participantes comigo da graça, tanto nas minhas prisões quanto na defesa e na confirmação do evangelho. Deus é testemunha de que tenho saudades de todos vós, com a terna misericórdia de Cristo Jesus (Fp 1.7-8). Aqui Paulo se derrama em sentimentos de afeto por seu rebanho. Ele não apenas pensa nesses sentimentos, ele os torna públicos (veja também Gl 4.19; Cl 2.1; 1Ts 2.6-8). Paulo ama de verdade aquela congregação. Seu modo de pastorear é certamente um exemplo para nós. Em terceiro lugar, pense em formas como você possa introduzir cada música de modo a destacar sua mensagem de reparação e perdão, seu chamado ao arrependimento e a lembrar da bondade de Deus para com pecadores desobedientes

3João usa paidia (1Jo 2.18) e tekna (1Jo 2.12,28; 3.7,18; 4.4; 5.21), termos que são traduzidos como "filhinhos". Ele também usa agapeti (1Jo 3.2,21; 4.1,7,11), termo que é traduzido como "amados". João usa irmãos apenas uma vez como forma de se dirigir à congregação (1Jo 3.13).

EM DIREÇíko A -11ORNAR-5E UMA

CIFICADORA

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como nós, a quem ele se agradou em chamar de seus filhos! Mesmo que você não seja o líder da adoração, pode ser que queira dedicar algum tempo para passar a esse líder uma rica e robusta teologia da pacificação. Em quarto lugar, pense em novos modos de utilizar a leitura das Escrituras ou a leitura responsiva durante a adoração, em modos cujo foco esteja voltado para temas ligados à pacificação, como a confissão de pecados, o perdão, a atitude de julgar um ao outro, o uso da língua, as coisas que causam conflito, e assim por diante. Você pode também utilizar o Juramento do Pacificador como uma promessa.4 Nós usamos o Juramento uma vez por ano em nosso domingo da pacificação. Ele serve como um modo da congregação inteira renovar seu compromisso com a pacificação. Então, quando o conflito surgir, como sempre surge, podemos retomar o Juramento do Pacificador para relembrar as partes em conflito do compromisso que fizeram com Deus e uma com a outra. Quinto, pense em como e pelo que você ora. A oração pastoral deve ser moldada pelo evangelho da paz, assim como o salmista nos encoraja a orar pela paz da igreja: "Orai pela paz de Jerusalém, prosperem os que te amam! Haja paz dentro de teus muros e prosperidade em teus palácios. Por amor aos meus irmãos e amigos, direi: Haja paz em ti"(S1122.6-8). Nós devemos orar regularmente pela paz em nossos cultos — paz em nossa igreja, entre nossos oficiais e líderes, entre nossa equipe pastoral. Devemos orar pela paz em nossos casamentos, famílias, bairros, ambientes de trabalho, escolas e universidades, cidades, estados e país. E não devemos nos esquecer de orar pela paz de nossos missionários. O conflito importunou e mais tarde dividiu o primeiro grupo de missionários no Novo Testamento, quando Paulo e Barnabé discordaram nitidamente sobre a escolha de Marcos como colega missionário (At 15.36-41). E o conflito continua a enfraquecer e dividir muitos de nossos missionários ainda hoje. Eles precisam desesperadamente de nossas orações pela paz. Finalmente, se você já não faz isso, encerre seus cultos de adoração com a grande bênção sacerdotal de Números 6.24-26: O SENHOR te abençoe e te guarde; O SENHOR faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; O SENHOR levante sobre ti o seu rosto e te dê a paz.

Se você já usa essa bênção com frequência, de tempos em tempos relembre a congregação de seu significado. O Senhor nosso Deus quer que vivamos em paz com ele e uns com os outros.

4 SANDE,

pacificador].

The Peacemaker, p. 259-261 [Também publicado no Brasil por CPAD sob o título O

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O PASTOR pAcpncADc.,„R

Pregando o evangelho da paz. Um dos elementos centrais da adoração é a leitura e pregação da Palavra de Deus (1Tm 4.13).5 Pregar o evangelho é a melhor maneira de incutir nos membros da igreja a paixão do próprio Deus pela paz, assim como sua soberania em tempos de conflito. E é a maneira mais eficiente de lembrá-los sobre como Deus anseia em ver seus filhos encarnando sua misericórdia, verdade, bondade, amor, justiça e santidade, amando uns aos outros, buscando os interesses dos outros, confessando seus pecados uns aos outros e perdoando uns aos outros. De acordo com as Escrituras, o conteúdo e o propósito da pregação é declarar o evangelho da paz. Pedro diz a todos que estão reunidos na casa de Cornélio, um gentio, que Deus "enviou a palavra aos israelitas, anunciando o evangelho da paz por meio de Jesus Cristo" (At 10.36). Semelhantemente, Paulo, ao escrever para os efésios, descreve Cristo como aquele que "pregou a paz" a gentios e judeus (Ef 2.17). E mais adiante na mesma carta ele descreve a armadura de Deus como algo que consiste em calçar os pés "na preparação do evangelho da paz" (Ef 6.15, RA).6 Nessas passagens fica claro que Paulo está fazendo alusão às profecias de Isaías que apontam para o grande dia da redenção que será anunciado pela proclamação das boas-novas. Ele está se referindo particularmente a Isaías 52.7: "Como são belos sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que proclama a paz, que anuncia coisas boas, que proclama a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina!". Eis aqui o retrato do Antigo Testamento de um pastor que prega o evangelho da paz. Seus pés são ligeiros e seus lábios proclamam em alta voz palavras da jubilosa vitória e redenção: paz, boas-novas, salvação, seu Deus reina. Este pregador é primeiramente e antes de tudo o próprio Cristo, como Paulo argumenta em seu grande tributo ao Príncipe da Paz: Pois ele [mesmo] é a nossa paz. De ambos os povos fez um só e, derrubando a parede de separação, em seu corpo desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos contidos em ordenanças, para em si mesmo criar dos dois um novo homem, fazendo assim a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um só corpo, tendo por ela destruído a inimizade. E vindo ele, proclamou a paz para vós que estáveis longe e

'A pergunta 155 do Catecismo Maior de Westminster diz: "Como se torna a Palavra eficaz para a salvação?" A resposta é: "O Espírito de Deus faz da leitura, mas especialmente da pregação da Palavra, um modo eficaz para iluminar, convencer e humilhar os pecadores; para lhes tirar toda confiança em si mesmos e os atrair para Cristo; para conformá-los à sua imagem e sujeitá-los à sua vontade; para fortalecê-los contra as tentações e corrupções; para edificá-los na graça e estabelecer os seus corações em santidade e conforto mediante a fé para a salvação" (itálico acrescentado). Em Westminster Confession of Faith, p. 117-118. 'É difícil determinar se devemos considerar "na preparação do evangelho da paz" como um genitivo subjetivo ou um genitivo objetivo. Em outras palavras, está Paulo descrevendo uma preparação que o evangelho confere (genitivo subjetivo) ou uma preparação qué é conferida pelo pregador (genitivo objetivo)? De qualquer forma, o que nos importa é que o evangelho aqui é o evangelho da paz.

NI INRI-X.1i° A TORNAR-SE t N1À IGREJA PACIFICAI)ORA

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também para os que estavam perto; pois por meio dele ambos temos acesso ao Pai no mesmo Espírito (Ef 2.14-18).

Essa passagem inteira exalta a pessoa e obra de Cristo como Pacificador. A palavra paz se repete três vezes. E Paulo usa outras expressões para transmitir essa obra multifacetada de paz: fez de ambos os povos um só (v. 14), criou dos dois um novo homem (v. 15), pela cruz reconciliou ambos com Deus (v. 16), proclamou a paz (v. 17), e foi o Mediador pelo qual ambos, judeus e gentios, têm acesso ao Pai no mesmo Espírito (v. 18). Além do mais, Paulo declara no início não apenas que Cristo é o Pacificador, mas também que °próprio Cristo é nossa paz (v. 14).7 A paz é uma pessoa, antes de ser um estado. A paz é uma pessoa, antes de ser tema de um sermão. Por Cristo ser a personificação da paz de Deus é que ele pode fazer paz assim como proclamá-la.8 A luz desse grande retrato do pregador supremo da paz, Jesus Cristo, tornase evidente que toda a pregação bíblica está voltada à pregação de Cristo, nossa paz. E essa pregação implica não apenas em proclamar as verdades bíblicas, mas em declarar essas verdades no poder do Espírito — e, portanto, na presença do próprio Cristo.' Quando oramos, Cristo está entre nós, falando conosco na proclamação do evangelho, direcionando suas palavras não meramente ao indivíduo em seu relacionamento vertical com Deus, mas também à comunidade da aliança em seus relacionamentos horizontais uns com os outros. Essas sublimes e sagradas realidades — ou seja, que Cristo prega a paz, que ele é a nossa paz, e que ele está presente entre nós para trazer a paz — devem nos encorajar a pregar Cristo de maneira mais clara como o Príncipe da Paz. Pois é somente por meio de Cristo e de seu evangelho que iremos encontrar a paz com Deus e uns com os outros. Talvez a maneira mais eficaz de pregar o evangelho da paz seja separar um tempo para pregar sermões tópicos expositivos sobre temas relacionados à paz.1° Evidentemente essa estratégia funciona melhor quando pregamos esses sermões em ocasiões que tenham uma ligação mais óbvia com o tema. Por exemplo, quando

'Note bem o foco enfático em Cristo por meio da palavra autos (mesmo). Em outros lugares das cartas de Paulo nós encontramos o mesmo tipo de foco (veja Ef 4.10-11; 5.23,27). 'Existe um debate em relação à situação precisa que Paulo tem em mente quando fala do Cristo que veio e "pregou a paz". Foi durante sua permanência temporária na terra? Sua morte na cruz? Durante suas aparições após a ressurreição? Ou Cristo pregava a paz por meio da ação de seus apóstolos? Eu acredito que seja melhor dizer que Paulo não está buscando especificar quando, e sim mostrar que toda a obra de Cristo, mediada pelo Espírito, é uma obra de pregação da paz. 'Veja o artigo de J. Mark Beach, "The Real Presence of Christ in the Preaching of the Gospel: Luther and Calvin on the Nature of Preaching,"Mid-AmericaJournal ofTheology 10 (1999): p. 77-134. 1°Temas de paz são aquelas verdades que ressaltam o evangelho da paz: reparação, justificação, confissão do pecado, perdão, vida corporal, e assim por diante.

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escolho um domingo para fazer uma reunião especial de censura a um membro, geralmente prego um sermão tópico relacionado ao fato de exercer as chaves do reino ou que tenha a ver com a ofensa cometida — mas sem citar nomes. Recentemente nós excluímos da igreja uma mulher solteira que queria casar com um incrédulo mais do que queria estar unida a Cristo. Ela negou sua fé, renunciando aos quatro juramentos que fizera. Então, preguei sobre não se colocar em jugo desigual com os incrédulos, e fiz uma aplicação específica ao casamento. Esse ato de disciplina me deu a oportunidade de pregar sobre o evangelho da paz de maneira particularmente edificante para os solteiros em nossa igreja. Outros sermões tópicos ou séries de sermões sobre temas relacionados à paz que já preguei se concentraram nas próprias questões que estudamos neste livro: "Chegando ao coração do conflito" (Tiago 4) "Confissão, perdão e disciplina na igreja" (Mateus 18) "Levar um irmão aos tribunais" (1Coríntios 6) "A disciplina do Senhor" (Hebreus 12) "A importância da membresia" (Hebreus 13.17) Em cada um desses sermões eu apresentei o tópico em questão dentro do contexto de Cristo como nossa paz, de sua igreja como nossa família, de sua graça como nosso poder e de sua verdade como nosso guia. Sacramentos. Se os sacramentos são sinais visíveis e símbolos do evangelho da paz, então nós deveríamos encarar os sacramentos e as ocasiões em que os ministramos como grandes oportunidades para mostrar visivelmente a Cristo, que é a nossa paz. Por exemplo, o batismo é um sinal e um símbolo de que fomos enxertados em Cristo, de que somos participantes dos benefícios da aliança da paz e de que nos comprometemos em ser do Senhor. Ser batizado é ser admitido na família da aliança de Deus e se unir a um corpo. Portanto, é significativo quando Paulo, ao lidar com o conflito da igreja em Corinto, os aconselha a se lembrar de seu batismo e do que ele significa: Porque, assim como o corpo é uma só unidade e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, ainda que muitos, formam um só corpo, assim também acontece com relação a Cristo. Pois todos fomos batizados por um só Espírito para ser um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres; e a todos nós foi dado beber de um só Espírito (1Co 12.12-13).

O batismo é batismo em um corpo por um Espírito. O batismo nos une a Cristo, e é como corpo de Cristo que participamos da comunidade da aliança diante de Deus. Portanto, em função de seu batismo e do que ele significa (isto é, sua união com Cristo), Paulo mostra aos coríntios que eles devem deixar de lado as coisas que os dividem em facções (judeus e gentios, escravos e livres).

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A união com Cristo é união na paz de Cristo. A união com Cristo é união com seu corpo. Consequentemente, em Colossenses Paulo fundamenta a ordem para que "a paz de Cristo [...] domine em vossos corações" no fato de que essa é a paz "para a qual também fostes chamados em um só corpo" (Cl 3.15). E o fato de que somos membros de um só corpo, por sua vez, necessita do chamado à paz. À luz da nossa união com Cristo e do que ela implica, podemos ver que o batismo no corpo de Cristo carrega consigo esse chamado à paz. E aqui, no corpo de Cristo, por meio de seu Espírito, que somos ligados pelos juramentos da aliança de cuidar e proteger uns aos outros. E aqui, na comunidade da aliança, que confessamos nossos pecados uns aos outros e perdoamos uns aos outros como o Senhor nos perdoou. Devemos reforçar esse chamado à paz sempre que batizamos novos membros. Em nossa igreja, depois que a pessoa faz seus juramentos em público e é batizada, pedimos a toda a congregação que jure manter a unidade do corpo de maneiras práticas: "Vocês, irmãos e irmãs, aceitam estas pessoas como membros deste corpo, assim como Cristo as aceitou? E vocês prometem orar por elas, encorajá-las, repreendê-las, amá-las e buscar seus interesses com humildade, compreendendo que Deus as colocou em nosso corpo para nossa edificação e sua glória?". O batismo, então, assim como o evangelho que ele revela, é um rito que proclama Cristo como nossa paz e é também uma proclamação que declara que o governo da paz de Cristo rege nossas relações. A Santa Ceia é outro momento oportuno na vida da igreja para lembrar a congregação da reconciliação que temos com Deus e uns com os outros, por meio do sangue pacificador de Cristo. Os coríntios não apenas tinham se esquecido dessa reconciliação comprada pelo sangue de Cristo e representada pelo vinho, mas também estavam contaminando a Santa Ceia ao romper com essa paz! Portanto, Paulo os repreende por tão flagrante má conduta, e os adverte sobre a maneira que eles deveriam tomar a Santa Ceia. Paulo especificamente adverte os coríntios a se examinarem e a "ter consciência do corpo do Senhor" (1Co 11.29). O comentarista bíblico Anthony Thiselton defende o entendimento de que a expressão "ter consciência do corpo do Senhor" é uma referência para que nós, cristãos, possamos discernir nossa vida singular como um só corpo e "não como indivíduos". Para ele, essa vida singular implica reconhecer que somos o povo "que morreu e foi ressuscitado como o corpo de Cristo".11 Em outras palavras, nossa identidade como comunidade depende e surge de nossa união com Cristo em sua morte e ressurreição. E o sacramento, como

"Anthony C. TH1SELTON, The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids: Eerdmans, 2000, p. 897. Veja as páginas 891-899 para uma discussão sobre 1Corintios 11.29 e versículos subsequentes.

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expressão visível de sua morte e ressurreição, marca nossa vida como vida conformada ao Cristo crucificado e ressuscitado. Portanto, como pastores, devemos usar a comunhão para lembrar a congregação de que, se nós estamos unidos a Cristo em sua morte e ressurreição, não podemos nos comportar em sociedade como o mundo faz. Não podemos nos preocupar apenas com nossos próprios interesses. Não podemos ser convencidos e ao mesmo tempo desprezar os outros. E não podemos nos negar a confessar nossos erros nem a perdoar. Um modo pelo qual mantenho viva essa lembrança é respeitando a ceia. Eu encorajo as pessoas a não participarem da ceia quando não estiverem com o coração bem disposto para isso ou quando estiverem enfrentando algum conflito com um irmão e ainda não tiverem tomado medidas para se reconciliar com ele. Eu faço com que se lembrem das próprias palavras do nosso Senhor, em Mateus 5.23-24: "Portanto, quando apresentares tua oferta no altar, se ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa diante do altar a oferta e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; depois vem apresentar a oferta." O interessante nessa passagem é que as palavras que Jesus usa para nos retratar nos relembram dos conflitos em nossa vida durante a adoração, a verdadeira adoração. A adoração em Espírito e em verdade deve nos levar a lembrar daqueles com os quais ainda não estamos reconciliados. Pois não podemos adorar o Deus da paz e odiar nosso irmão ou irmã, tampouco podemos participar da Ceia do Senhor quando nosso coração e nossa boca estão repletos de amargura. A verdadeira adoração deve nos encorajar no sentido de que o Deus da paz estará conosco se precisarmos ir até alguém e nos reconciliar. Como pode ver, o chamado à reconciliação e à paz nunca se mostrará desnecessário. O conflito tem uma habilidade misteriosa de fazer com que os melhores teólogos e santos ajam como bestas embrutecidas (S1 73.21-22). Portanto, devemos ser vigilantes e incorporar a pacificação nas suas mais diversas formas — incluindo misericórdia e justiça, verdade e bondade, confissão e perdão — à nossa adoração, à pregação da Palavra e à ministração dos sacramentos. Ao fazer isso, utilize os ricos meios de graça que Deus nos deu. A melhor forma de ensinar pacificação não é em uma única sessão ou em um domingo específico, mas por meio do ensino frequente, ministrado pouco a pouco. Se quisermos ter igrejas pacificadoras, devemos edificá-las tijolo por tijolo, treinando-as nas disciplinas da paz.

Avaliando a si mesmo, a seus líderes e a sua igreja Uma vez que o evangelho tenha sido colocado no centro de nossas afeições e os meios comuns de graça trabalham regularmente para colocar em destaque o

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evangelho, o próximo passo para se tornar uma igreja pacificadora é nos avaliarmos como líderes da igreja. Davi, o filho de Jessé, nos dá um grande exemplo no Salmo 139. Ele pede que um conselho independente sonde sua vida, seu coração, seus pensamentos, suas práticas e seu ministério. Ele clama pelo Consultor sagrado, que faz mais do que aconselhar. Ele pede: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno (S1 139.23-24)". E por essa oração que você e seus líderes podem começar. Peçam que o Senhor examine seus corações e seus caminhos para revelar aqueles pecados que os impedem de cumprir seu chamado de forma eficaz. Façam essa oração não somente como indivíduos, mas também como o corpo responsável por governar sua igreja. Nossas igrejas não mudarão até que nós, seus líderes, mudemos. No momento em que o Espírito responder sua oração e começar a revelar aqueles pecados que estão criando obstáculos aos seus ministérios, você e seus líderes deverão exercer liderança por meio da confissão de seus próprios pecados. Vocês podem começar fazendo algumas perguntas difíceis. A seguir estão exemplos de perguntas que podem fazer a si mesmos que dizem respeito à pacificação: • Como nós, líderes, tipicamente reagimos ao conflito? • Quão bem praticamos a pacificação bíblica? • Nós vemos o conflito como uma oportunidade (Tg 1.2-5)? • Temos consciência da ordem bíblica de fazer qualquer esforço como pacificadores (Rm 14.19; Ef 4.3; Hb 12.14; veja também Sl 34.14; Rm 12.18; 1Co 1.10; Tg 3.17-18)? • Que tipo de orientação ou treinamento é oferecido em sua igreja para informar novos líderes sobre sua autoridade e sobre os princípios e práticas de pacificação (por exemplo, estruturas de autoridade e responsabilidade, o processo de apelação e as práticas de pacificação)? Essas formas de autoavaliação geram uma cultura de paz. Há alguns anos nossos diáconos deram um grande exemplo de uma autoavaliação feita pelos líderes. Tudo começou quando nós, presbíteros, reconhecemos que ao longo dos anos os presbíteros e diáconos haviam se distanciado uns dos outros. Como presbíteros estávamos cegos para o modo como havíamos contribuído para aquele distanciamento de nossos irmãos. Então convocamos uma reunião — na verdade, muitas reuniões. Mas a primeira delas surpreendeu a todos nós. Os diáconos fizeram a confissão de um pecado. O presidente dos diáconos começou a detalhar o modo como os diáconos haviam enfraquecido os presbíteros. Essa confissão coletiva

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levou diversos outros diáconos a confessarem individualmente como cada um deles havia pecado contra nós, presbíteros. Em vez de usar essa primeira reunião como um fórum para trazer todas as suas reclamações contra nós, os diáconos a utilizaram como uma oportunidade para avaliar todas as fraquezas que haviam cometido como líderes e para confessar seus pecados. Dessa forma eles contribuíram muito para unir nossos corações aos deles. Embora reuniões posteriores tenham sido necessárias e importantes para tratar de questões específicas e encontrar soluções, foi essa primeira reunião que radicalmente deu forma e renovou nosso movimento no sentido de procurar com empenho manter a unidade do Espírito no vínculo da paz. Uma vez que você e seus líderes tenham passado pelo intenso, porém recompensador processo de orar para que Deus revele seus pecados, feito as perguntas difíceis e confessado os pecados que desvirtuam o ministério, vocês devem iniciar um estudo sobre a pacificação. O livro The Peacemaker,12 de Ken Sande, seria um ótimo livro para você estudar com seus líderes. Vocês poderiam terminar de estudá-lo em cerca de um ano. Se a pacificação é a marca de um filho de Deus, como podemos não fazer desse estudo o item mais importante em nossa agenda pastoral?

Treinando seus líderes Uma vez que tenha avaliado seus líderes e sua igreja, o próximo passo a tomar é treinar esses líderes na pacificação." Eu o encorajaria a começar ensinando-lhes o conteúdo deste livro. Instrua seus líderes sobre as questões relacionadas ao coração e sobre como aplicar sabiamente a Palavra de Deus às mais comuns dessas questões (por exemplo, depressão, raiva, desejos e medo). Para essas questões minha própria igreja utiliza os ricos recursos oferecidos pela Fundação Educacional e de Aconselhamento Cristão (cuja sigla em inglês é CCEF).14 Eu particularmente recomendo seus panfletos sobre a raiva, os desejos e o relacionamento conjugal. Explore com seus líderes uma teologia de Deus como Pacificador e da igreja como família de Deus, e entenda as implicações disso para a pacificação. Ensine-os a fazerem uma boa confissão, a discernir falsos modos de ver o perdão e a praticar o perdão à luz de sua natureza como promessa. Finalmente, treine-os sobre como

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SANDE, The Peacemaker.

"Para materiais adequados para treinar líderes que possam levar a igreja a se tornar uma igreja pacificadra, visite o website dos Peacemaker Ministries, onde encontrará um grande número de recursos que foram especificamente desenvolvidos tendo em mente a igreja local. Além disso, materiais sobre pacificação para toda a congregação também estão disponíveis — livros, brochuras, estudos bíblicos para pequenos grupos e materiais para ministério infantil, assim como um curso abrangente de treinamento para aqueles que desejam se tornar conciliadores. Acesse o website www. hispeace.org. 14Veja o website deles: http://www.ccef.org/home.htm.

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atuar em uma negociação, e ensine a eles os princípios fundamentais e os processos básicos para mediação, arbitragem e disciplina na igreja. Em nossa própria igreja, uma vez que os líderes assumiram o compromisso de se tornar uma igreja pacificadora, começamos a separar recursos financeiros a cada ano para que certos membros-chave fossem treinados pelo Peacemaker Ministries.15 Com o tempo construímos uma estrutura pequena, mas poderosa de reconciliadores. Ela não é composta somente por líderes da igreja, mas também pelos demais membros, mulheres e homens — várias pessoas que foram treinadas e às quais nossos membros podem procurar para ajudá-los a reagir biblicamente quando um conflito ocorre. Eu encorajaria a sua igreja a também aproveitar essa oportunidade para fornecer um treinamento prático em mediação a membroschave da congregação.

Avaliando sua igreja Se a sua igreja deve se tornar uma igreja pacificadora, você não pode deixar que o processo de transformação pare depois que você e seus líderes se autoavaliaram. Você deve dar um passo adiante e avaliar a igreja toda. Recentemente nossa igreja passou por uma avaliação desse tipo utilizando uma ferramenta elaborada pelo Peacemaker Ministries desenvolvida especificamente para igrejas. Ela avaliou tanto líderes quanto membros não apenas em relação ao nível de habilidade para pacificação, mas também em relação à sua teologia e às atitudes que promovem ou atrapalham as práticas da pacificação.16 Eu recomendo enfaticamente essa ferramenta de avaliação a você. Enquanto estiverem fazendo suas próprias avaliações e identificando as mudanças que sua igreja precisa fazer, tentem antecipar as objeções e obstáculos que vão encontrar pela frente enquanto buscam implementar as mudanças necessárias. Nem preciso dizer que tal previsão é necessária antes que vocês façam qualquer mudança concreta. E friso mais uma vez, quaisquer mudanças que vocês façam devem começar por vocês, líderes. Adotar a pacificação como um novo estilo de vida não pode ser algo imposto de cima para baixo; é algo que deve ser ensinado e exemplificado primeiramente pelos pastores e líderes da igreja.

Pacificação e participação como membro da aliança Finalmente, se você deseja ver sua igreja transformada em uma igreja pacificadora, deve tratar com cuidado da questão da membresia, ou seja, ter membros responsáveis 15Para maiores informações veja o Programa de Treinamento de Conciliadores do Peacemaker Ministries, http://www.hispeace.org/html/tra.htm. 16 Para muitas outras ferramentas e auxílios práticos para transformar sua igreja em uma igreja pacificadora, inclusive ferramentas de avaliação, acesse o website www.hispeace.org.

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que formalmente e voluntariamente se submeteram ao corpo de Cristo. A membresia fornece a pastores uma outra plataforma a partir da qual podem promover o evangelho da paz e extrair suas implicações para a vida no corpo de Cristo. Paige Patterson, notável político ligado à Southern Baptist, ao lamentar o declínio da disciplina na igreja e defender sua recuperação, insiste que a primeira coisa que a igreja deve restaurar é uma visão bíblica de membresia: A disciplina na igreja deve ser resgatada como prática da igreja local. Esta é uma proposta especialmente arriscada em uma era tão marcada por conflitos. Além do mais, os abusos associados à disciplina na igreja em épocas anteriores deixam poucos precedentes saudáveis em nosso passado recente. Um pluralismo radical e a tolerância da heresia ou de comportamentos aberrantes de praticamente qualquer tipo são admitidos, ao mesmo tempo em que as igrejas geralmente se esquivam da responsabilidade de amar enquanto se escondem atrás de um sentimentalismo inapropriado e mascarado como "amor" [...] A restauração de uma membresia significativa por meio da disciplina na igreja cercearia o evangelismo superficial e também restauraria uma certa integridade à membresia."

O que Patterson diz aqui sobre a disciplina na igreja pode e deve ser expandido para incluir todas as disciplinas da pacificação, as quais este livro tem defendido. Em outras palavras, a fim de recuperar e praticar com mais presteza as disciplinas da pacificação, a igreja deve primeiramente ter uma sólida visão de membresia — da vida como corpo na comunidade da aliança —, pois a pacificação não trata da transformação de indivíduos em pacificadores. Antes a pacificação trata de como nós, como membros de um só corpo, do corpo de Cristo — e que compartilhamos de um só Espírito, um só Senhor, uma só fé, um só batismo e um só Deus e Pai — mantemos a unidade do Espírito no vínculo da paz (Ef 4.3-6). Cristo já nos fez para que fossemos um. A pacificação diz respeito a como nós, como um só corpo por seu Espírito, buscamos manter essa unidade. Nosso fracasso em ver a pacificação a partir da perspectiva da aliança resulta fundamentalmente de acreditarmos na mentira criada pelo Iluminismo de que a fé é meramente uma questão privada, algo que se passa apenas entre nosso coração e Deus. Nós compreendemos pouco a dimensão comunitária de nossa fé, nossas responsabilidades diante de nossos irmãos e irmãs, nosso respeito pelas autoridades da igreja, ou o cuidado sincero que devemos ter com os cristãos desobedientes. O que quer que a igreja nos pareça quando nos reunimos no domingo para adorar

"Paige PATTERSON, "My Vision of the Twenty-First Century SBC," Review and Expositor 88, n° 1 (inverno/1991): p. 43-44; citado em David W. HALL, The Arrogance of the Modern: Historical Theology Held in Contempt. Oak Ridge: Covenant Foundation, 1997, p. 33 (itálico acrescentado).

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em nossos ajuntamentos solenes, somos essencialmente seres solitários, cada um voltado para si mesmo e trilhando caminhos diferentes. Em resumo, somos um povo que não dá nenhuma importância ou valor à vida como corpo, muito menos ao fato de sermos membro da aliança, se é que pensamos nela alguma vez. Uma vez que esse tipo de individualismo radical define a cultura em que vivemos, juntamente com a religião privatizada, as sociedades em constante mutação e seus respectivos relacionamentos tênues, não podemos presumir que aqueles que estão entrando em nossa igreja entendam a essência do que é ser um membro da aliança — a essência do verdadeiro compromisso de prestarmos contas uns aos outros no corpo de Cristo. Mesmo que tenham sido membros de outras igrejas, ainda é provável que tenham uma visão deficiente de membresia. Pois para muitas igrejas a membresia é algo opcional e corriqueiro, que requer pouco mais do que uma aula de duas horas com informações a respeito e que promete pouco privilégio adicional à vida de uma pessoa na igreja. Portanto, é nossa incumbência ensinar e dar o exemplo para nossos membros (especialmente para aqueles que são novos em nossa congregação) acerca das bases bíblicas da membresia e de suas implicações para a vida na igreja — especialmente se quisermos resgatar a prática da pacificação na igreja. Em minha própria igreja, a primeira classe ministrada aos novos membros é exclusivamente voltada para isto: para uma defesa da membresia. A base bíblica para ser membro da aliança A justificação para alguém ser um membro da aliança baseia-se firmemente no que a própria Bíblia declara sobre a natureza da igreja. Nas Escrituras está implícito que a igreja local tem uma membresia claramente identificável e responsável por prestar contas. A Bíblia sugere essa membresia de diversas maneiras. Primeiro, Cristo chama a igreja a ministrar o batismo, o rito de admissão (Mt 28.18-20; 1Co 12.12-13). Como vimos anteriormente, o batismo é batismo em um corpo. Esse corpo não é apenas um corpo universal, mas também um corpo específico e local — como a igreja em Corinto. Segundo, os autores do Novo Testamento identificam as igrejas por seu número de membros e localização. Em Atos, Lucas nos diz que uma igreja específica consistia a certa altura de três mil pessoas e mais adiante de cinco mil pessoas (At 2.41,47; 4.4; 5.14). A questão é que os santos de uma igreja podem ser contados. Membros são passíveis de ser contados e, portanto, de ser identificados e de assumir responsabilidades. O apóstolo Paulo identifica os membros pelo local em que se encontram. Ele endereça suas cartas não apenas para a igreja em Roma ou em Corinto ou em Filipos, mas também para as muitas igrejas nas casas e que ficavam fora dessas cidades (Rm 16.5; 1Co 16.19; Cl 4.15; Fm 1.2). Se fosse membro de uma igreja naquela época, você poderia dizer: "Eu pertenço à igreja

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que se reúne na casa de Priscila e Áquila". Em outras palavras, membros também podem ser localizados. Terceiro, Cristo prescreve o processo de disciplina para restaurar um irmão desobediente até o ponto extremo, que significa excluir a pessoa da membresia por um ato formal e judicial de excomunhão (Mt 18.15-20). Só se pode excluir de um grupo quem antes fez parte dele! Ser expulso da igreja implica que aquela pessoa necessariamente um dia fez parte dela. Quarto, os autores do Novo Testameto presumem que os cristãos possam reconhecer os líderes como alguém a quem voluntariamente se submeteram (1Ts 5.12-13; Hb 13.17). E a recíproca é verdadeira, ou seja, eles esperam que os líderes de uma igreja sejam capazes de identificar aqueles membros perante os quais são responsáveis (At 20.28-30; lTs 5.12-13; Hb 13.17; 1Pe 5.1-4). Se as ovelhas devem conhecer seu pastor, então o pastor também deve conhecer suas ovelhas. No entanto, Deus não considerará um pastor responsável por fracassar em cumprir com suas obrigações pastorais em relação a ovelhas que ele não pode identificar como suas. Assim, essa aliança — em cujo contexto os cristãos agem como um só corpo, o corpo de Cristo, ao se ligarem por um voto a outros cristãos e ao se colocar em posição de submissão às suas respectivas autoridades — está implícita em uma série de diferentes passagens ao longo de toda a Escritura. Para simplificar, podemos afirmar que a membresia, ou seja, o fato de entrar para uma igreja, é a norma bíblica. As Escrituras nunca têm em mente cristãos "solitários".

O processo formal de membresia As Escrituras não deixam explícito, no entanto, o modo exato pelo qual líderes da igreja devem intencionalmente receber e identificar uma pessoa como membro. Nosso Senhor claramente concedeu aos oficiais da igreja liberdade nesse ponto. Podemos, entretanto, justificar três passos básicos do processo de membresia como passos garantidos pela natureza do pacto coletivo da aliança, algo tão evidente na própria Escritura. Primeiro, aqueles que entram em uma aliança não podem consentir com os termos dela a menos que estejam informados sobre suas promessas, estipulações e sanções." Assim como o Senhor informou a seu povo, quando entrou em aliança com eles, a igreja local deve também informar seus futuros membros sobre as doutrinas de fé e as práticas da igreja local, para que eles possam dar um consentimento

"Veja as diversas alianças em Êxodos 20-23; Deuteronômio e Josué 24. Para aprofundar o assunto, veja K. A. KITCHEN, The Bible in Its World: The Bible & Archaeology Today. Downers Grove: InterVarsity, 1977, p. 79-85.

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informado ao se ligarem à igreja. Por esse motivo, a igreja deve oferecer a eles alguma forma de instrução. Portanto, o primeiro passo que pedimos aos futuros membros é que participem da classe para novos membros que nossa igreja oferece." O verdadeiro amor é aquele que informa e requer um consentimento esclarecido. Portanto, as lições ministradas na classe para novos membros devem informá-los adequadamente sobre coisas que possam ser características para eles, como a doutrina e a vida na igreja. Não queremos que, depois de terem se tornado membros, eles venham a se surpreender com nossa doutrina ou vida. Queremos tratá-los como nós mesmos gostaríamos de ser tratados. Então, desde a primeira vez que uma pessoa é apresentada à nossa igreja, não há apenas uma ênfase na questão da pacificação, mas também na atitude de dizer a verdade em amor, pois essas duas questões são apenas maneiras diferentes de falar e pregar o evangelho. Segundo, assim como aqueles que entram em aliança devem se vincular à aliança, também os futuros membros devem se vincular à igreja. Um dos modos pelos quais eles se vinculam é dando seu consentimento esclarecido aos devidos líderes da igreja — os líderes que foram nomeados para exercer as chaves do reino para a igreja. Ao dar seu consentimento, os futuros membros reconhecem que seu fracasso em manter as promessas da aliança pode levar a um julgamento por parte da liderança da igreja com a finalidade de discipliná-los ou até mesmo de excluí-los da membresia. Portanto, o caráter desse consenso impõe que ele seja testemunhado (como uma ação de natureza pública e legal),formal (de modo a que o compromisso assumido não seja feito de forma despreocupada, mas com toda a sobriedade), padronizado (de modo a que não seja aplicado de maneira diferente a membros diferentes, em bases arbitrárias) e registrado (visando a uma melhor preservação e estabelecimento do acordo). Por esse motivo, a igreja deve definir um procedimento de inclusão para novos membros. Portanto, o segundo passo que pedimos aos futuros membros é que expressem verbalmente e assinem por

escrito seu reconhecimento dos termos da aliança, durante uma entrevista conduzida por nossos presbíteros. Outro modo pelo qual os futuros membros se vinculam em aliança é dando seu consentimento perante o grupo maior da igreja. Por esse motivo a igreja deve proporcionar uma cerimônia pública para aceitação de novos membros. Portanto, o terceiro passo que estabelecemos para futuros membros é a participação nessa cerimônia de aceitação de novos membros, na qual eles fazem um juramento diante da igreja e a igreja, por sua vez, os recebe como novos membros.

19A classe de associação dura doze semanas. Cada aula dura uma hora e meia. Nosso currículo gira em torno dos seis juramentos que os novos membros fazem para se unirem à igreja. Elas cobrem nossas visões da Escritura, de Deus, da salvação, de Cristo, da igreja, dos sacramentos, da adoração, de pequenos grupos, da pacificação e da disciplina.

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Em resumo, a pacificação pressupõe o fato de a pessoa ser membro de uma igreja. A pacificação não pode abrir mão da membresia, pois não podemos aprender a viver em união vivendo cada um por si. Ao contrário, devemos voluntariamente entrar em comunhão e nos submetermos ao corpo de Cristo. Além do mais, a membresia está implícita nas Escrituras, pois nos mostram que os membros são identificados por diversos fatores tangíveis e definidos. Finalmente, a natureza do pacto da aliança direciona o processo de membresia a uma igreja, exigindo que a igreja informe os futuros membros de sua vida e doutrina e solicitando que tais membros, por sua vez, deem seu consentimento informado para se unirem ao corpo de Cristo.

PACIFICAÇÃO NA PRÁTICA: UM ESTUDO DE CASO Muitos já se perguntaram se a pacificação realmente funciona. Ela realmente beneficiará minha igreja? Posso garantir que sim. Peço permissão para responder a essa pergunta com um caso extraído da minha própria experiência pastoral. A lâmina afiada do conflito poderia ter destruído nossa igreja tão facilmente nesse episódio, quando nos vimos confrontados com a decisão de receber ou não como membro um homem condenado por pedofilia. Eu irei chamá-lo de João. Em 1992, fui designado pastor da Rocky Mountain Community Church (RMCC). Depois de ter assumido a igreja, fui informado sobre tudo o que João havia feito durante o período de cinco anos em que ele ficou preso, por meio dos relatos e histórias que meus presbíteros compartilharam. Eles me contaram que João tinha sido convidado para frequentar a RMCC por um membro de nossa igreja, Karen. Ela sabia que João era um homem aflito e perturbado. Ele havia recentemente sido traído pela esposa que o havia deixado por outro homem. Então, Karen o convidou para vir ao culto e a ouvir as boas-novas de Jesus Cristo. João veio, e logo depois disso, aceitou a Cristo como seu Senhor e Salvador. Então a igreja ficou sabendo que João havia se apresentado à polícia por ter molestado sexualmente a filha de um vizinho. Nessa ocasião a igreja estava certa da sinceridade da conversão de João. Além do mais, ele convencera a todos de que estava bêbado quando cometera o crime, que fora um fato isolado, e que aquela criança fora sua única vítima. (Todas as afirmações acima eram verdadeiras, exceto a última. João havia abusado de outra criança, mas não havia contado para a igreja.) De posse dessa informação, muitos dos presbíteros e membros da igreja mostraram-se firmes diante do juiz local, atestando que o caráter de João havia mudado. O juiz se convenceu e não registrou queixa contra João. Porém, logo depois desse julgamento, um conselheiro de uma escola local ouviu da filha de João que ele a havia molestado também. Com base nessa informação, João foi preso e sentenciado a cinco anos de prisão e cinco anos de liberdade vigiada.

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Enquanto João estava na prisão, diversos presbíteros da igreja escreveram para ele e o aconselharam para que ele se arrependesse e cresse no Senhor. Somente depois de passar um ano e meio na prisão, Deus usou essas cartas para ajudar João a confessar integralmente seu crime e se arrepender de seu pecado. Até então, ele culpava outras pessoas por sua prisão. Todos esses fatos aconteceram antes de eu ser chamado para servir como pastor da RMCC. Quando vim para a RMCC, começamos a enviar ao João meus sermãos gravados em fitas-cassete, e as coisas pareciam estar caminhando bem para ele. As vezes a igreja orava durante os cultos para que João suportasse com paciência as dificuldades da vida na prisão, que aprendesse as lições que Deus estava ensinando a ele e que esperasse pacientemente pelo dia de sua libertação. Esse dia se aproximava com rapidez. Quando olho para trás, vejo agora que eu em parte me negava a ver e em parte ignorava o que sua libertação iria significar para a igreja. Foi cerca de quatro meses antes de sua libertação, em janeiro de 1997, que as coisas começaram a entrar em erupção. Durante o culto em uma manhã de domingo, em setembro de 1996, os líderes da igreja oraram pela iminente libertação de João, mencionaram a possibilidade de ele voltar para a cidade e falaram de seu desejo expresso de entrar para nossa igreja. A igreja virou de pernas para o ar naquele domingo. O telefone começou a tocar logo após o culto, e as pessoas me ligavam para um "aconselhamento" — não para recebê-lo, mas para dá-lo. Era a mim que elas queriam aconselhar. Pouco depois, dois tipos de reações diferentes surgiram na igreja. De um lado estavam aqueles que ameaçavam deixá-la. Você pode calcular o motivo deles: "Não estamos interessados em uma igreja que não está preocupada em proteger nossas crianças". Eu tampouco estava. Até aqui, nossos presbíteros haviam dado à congregação poucos detalhes a respeito de como receberíamos João, então as pessoas tinham motivos para ter medo. Eu tinha medo também. Minhas próprias filhas ainda eram novas naquele tempo, e eu mesmo estava me questionando sobre a sensatez de deixar um pedófilo condenado pela justiça entrar em nossa igreja e em nossas vidas. Mas o medo não foi a única reação. De outro lado, estavam aqueles que argumentavam que como o evangelho é um evangelho de perdão e paz, deveríamos abrir nossos braços para o João e aceitá-lo como Deus nos havia aceitado — sem restrições. Eu apreciava seus motivos, e sofria por dor na consciência quando eu mesmo pensava em não aceitar João na igreja. O que diríamos sobre o poder e sabedoria do evangelho de Jesus Cristo, se deixássemos de receber esse pedófilo como um "irmão em Cristo"? Será que poderíamos realmente dizer a ele: "O evangelho não é para você. E apenas para o tipo de pessoa que 'não é má como você'?". O próprio nome e o propósito de Cristo estariam em jogo se nós não o recebêssemos. Mas, ao mesmo tempo, parecia que estaríamos expondo nossas crianças ao risco de serem molestadas se o recebêssemos.

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Nenhuma dessas posições convencia totalmente a nós, presbíteros, no entanto ambas deveriam ser tratadas se não queríamos que a igreja se dividisse. Para abrir caminho em meio a esse labirinto de desejos conflitantes, estudamos a Palavra de Deus e usamos o princípio PAUSE de negociação.2° Primeiro, queríamos nos preparar. Eu me lembro de ter ido ao departamento de execuções penais e pedir a eles que nos ajudassem. O oficial da condicional de João nos informou sobre aspectos relativos à natureza de sua liberdade e os requisitos necessários para a libertação dele. Curiosamente, descobrimos mais tarde por acaso que nunca antes uma igreja havia pedido ajuda ao departamento de execuções penais. João nos informou o dia exato de sua libertação. Também passamos um tempo trabalhando nos princípios bíblicos que iríamos tomar como base para nossa decisão. Quando começamos a reavaliar a questão à luz desses princípios, acabamos vendo com mais clareza que se tratava de uma questão já bem antiga: Como a santificação se relaciona com a justificação na vida da igreja e na aceitação e governança de seus membros? Segundo, queríamos afirmar relacionamentos e enfatizar nosso amor e objetivo comum (Fp 2.1-4). Nossos presbíteros convocaram duas reuniões especiais com toda a congregação. Nelas procuramos ajudar as pessoas a trabalharem juntas (e não umas contra as outras) para resolver esse problema, enfatizando nosso relacionamento em Cristo. Nós lembramos a elas várias vezes de que somos irmãos, não inimigos. Além disso, nós as convidamos a expressarem suas opiniões, medos, preocupações e perguntas, discutindo de forma fraternal. Queríamos que todos tivessem oportunidade de falar e que todos soubessem que estavam sendo ouvidos. Essas reuniões também nos deram a oportunidade de apresentar a toda congregação as bases teológicas para recebermos João de volta em nossa igreja e, no futuro, como membro. Explicamos a ambos os lados o relacionamento bíblico entre justificação e santificação e como isso se aplicava a essa questão. Assim, nós primeiramente afirmamos aqueles que queriam receber João de volta com base na graça de Deus, mostrando que nos recusarmos a aceitá-lo era o mesmo que negar a ele o evangelho da justificação — o perdão do pecado e a justiça de Cristo que vem pela fé de todos os que creem. No entanto, também afirmamos aqueles que temiam as consequências de aceitar um pedófilo de volta na igreja, reconhecendo que o amor do evangelho não elimina a sabedoria do evangelho. Explicamos a eles que se João era de fato um verdadeiro crente, então ele estava não apenas justificado, mas também sendo santificado. Como crente santificado, João estaria sob o senhorio de Cristo através da supervisão atenta e da disciplina dos presbíteros, e estaria disposto a se submeter aos nossos conselhos e a acatar nossa correção.

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Veja o capítulo 8, "Buscando o interesse dos outros."

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Terceiro, nós procuramos entender os interesses os de Deus e os nossos próprios. Nesse aspecto a questão era a seguinte: Devemos receber como membro um pedófilo condenado pela justiça? As posições eram, sim, devemos, e, não, não devemos. Evidentemente se tivéssemos olhado apenas para as questões discutidas e as posições de cada grupo não teríamos chegado a lugar algum. Mas como procuramos entender os interesses de todos os envolvidos, começamos a observar as questões do coração, inclusive nossos próprios desejos, expectativas, medos e objetivos. Também identificamos interesses comuns, bem como divergentes, que nos deram a oportunidade de encorajar as pessoas a buscarem os interesses um do outro. Um dos interesses compartilhado por muitos era que João fosse responsabilizado por ter mentido para a igreja e quebrado nossa confiança, antes de ir para a prisão. Então, determinamos que trataríamos esse incidente como parte de seu plano de responsabilização. Durante o processo maior em que buscamos entender todos os interesses envolvidos, chegamos a um acordo sobre o direcionamento bíblico que deveria nos guiar, assim como sobre o plano que deveríamos seguir. Por fim, nós tentamos buscar soluções criativas e avaliar nossas opções de maneira objetiva e sensata. Havia diversos problemas que tínhamos de resolver. Embora estivéssemos de acordo quanto à questão teológica acerca de como a justificação e a santificação se aplicavam a esse caso, ainda tínhamos que tratar da questão da sabedoria, de qual seria o melhor modo de agir com João. Depois de buscar avaliar nossas opções e escolher as melhores soluções, concordamos em aceitar João como um membro submetido às seguintes condições, às quais se destinavam a incentivar sua santidade, promover a segurança de nossas crianças e estimular nosso crescimento conjunto como corpo de Cristo. Confissão pública Primeiro, se João retornasse a nossa igreja, ele precisaria confessar publicamente à congregação seu pecado de nos enganar antes de ser preso. Muitos na congregação ainda se sentiam traídos pelo modo como ele nos enganara e, para que a verdadeira reconciliação acontecesse, João tinha que confessar seu pecado para a congregação. Nós entendíamos a necessidade de que essa confissão fosse mais "genérica" para não despertar o medo nos corações das crianças que estavam presentes. No entanto, por outro lado, ela tinha que ser específica o bastante para que os adultos soubessem o que ele estava confessando. Supervisão Segundo, dissemos à congregação que os presbíteros, os diáconos e eu faríamos uma supervisão espiritual do João. Concordei em me encontrar com ele uma vez por semana para aconselhamento durante todo o seu período de liberdade

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condicional (cinco anos).21 Pedi que João permitisse a plena revelação de todas as questões ligadas ao seu pecado. Eu, o conselheiro que tratava com João sobre a questão do abuso sexual e seu oficial de liberdade condicional fizemos um acordo com o intuito de revelarmos uns aos outros todas as informações pertinentes, visando ajudá-lo a quebrar um ciclo de mentiras e de dissimulações. Um dos fatores-chave dessa nossa supervisão era a revelação completa de seu pecado sexual para toda a liderança e para todos os membros. Um dos documentos fundamentais que nos tornava responsáveis por tudo isso era o Compromisso da Aliança.

O Compromisso da Aliança Terceiro, nós prometemos à congregação que pediríamos imediatamente que João assinasse um "pacto de aliança" conosco, estipulando a natureza de nosso relacionamento com ele e nossas expectativas em relação a ele. Redigimos esse pacto com a ajuda de seu oficial de liberdade condicional (especialmente no que dizia respeito aos termos de sua liberdade condicional) e seu conselheiro. Mais, acima de tudo, nós baseamos esse pacto na sabedoria bíblica. O pacto ajudou João, como um agressor sexual condenado, a saber o que esperávamos dele e o que ele poderia esperar de nós. Também serviu para assegurar a congregação de que ele deveria prestar contas a nós constantemente. Em síntese, além de João ter que se submeter à nossa supervisão e frequentar regularmente os cultos, o compromisso assumido consistia dos seguintes pontos: 1 Para honrar os termos da sua condicional e protegê-lo de falsas acusações, João iria escrupulosamente evitar qualquer contato com uma criança sem a imediata presença de outro adulto. Ele estaria na presença contínua de adultos durante todas as atividades da igreja e sempre que crianças estivessem presentes. Ele não iria se envolver diretamente em nenhum ministério que envolvesse menores. 2. Além disso, de acordo com a ordem judicial datada de 1° de Janeiro de 2002, segundo os termos emitidos pelo Juiz Smith [esse não é o nome verdadeiro do juiz]: a. João não iria ter contato com pornografia, coisas eróticas, materiais pornográficos, vídeos e livros adultos que promossem a imoralidade sexual de qualquer tipo, particularmente relacionada ao incesto. Tampouco iria frequentar qualquer estabelecimento onde tais materiais 21Veja Patrick CARNES, Out of the Shadows, 2a ed. Center City Hazelden, 1994. Veja também Edward T. WELCH, Addictions: A Banquet in the Grave—Finding Hope in the Power of the Gospel. Phillipsburg: Presbyterian and Reformed, 2001.

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fossem vendidos, ou entrar em qualquer livraria para adultos, bares de topless ou salas de massagem. b. Ele tampouco iria ter qualquer contato que fosse com suas vítimas e/ ou com suas famílias, por nenhum meio ou de qualquer modo: fosse pessoalmente, por telefone, por escrito, por e-mail, por carta ou por meio de um terceiro. João também deveria manter uma distância de pelo menos 500 metros de suas vítimas e de suas famílas durante o cumprimento de sua sentença. c. João iria concordar com todas as outras condições22 impostas pelo tribunal ou pelo programa de tratamento administrado sob os cuidados do conselheiro Jones [esse não é o verdadeiro nome do conselheiro], pessoa ligada ao programa de tratamento para agressores sexuais do Centro de Aconselhamento Cristão. 3. João poderia, se assim quisesse, desfrutar da companhia de famílias da igreja que não tivessem crianças. Ele não aceitaria convites de famílias com crianças até que tivesse atendido às seguintes exigências: a. Primeiro, ele precisaria ter certeza de que um presbítero havia conversado com os pais para informá-los das limitações de João e sobre como ministrar adequadamente a ele. b. Segundo, ele deveria notificar seu conselheiro sobre suas intenções de fazer amizade com essa família e sobre onde estaria durante esse período. Isso poderia ser feito simplesmente deixando uma mensagem na caixa postal telefônica de seu conselheiro. 4. João autorizaria os presbíteros a informar atuais e futuros amigos e membros da igreja sobre seu passado e a descrever seu caminho atual com o Senhor. 5. João autorizaria o oficial de liberdade condicional, o conselheiro profissional, a equipe pastoral e os presbíteros da igreja a falarem de maneira aberta e franca uns com os outros e a revelar uns aos outros quaisquer informações, dados ou preocupações que tivessem em relação a João. Eu me lembro de um dia ter conversado com um casal que, após ter sabido tudo sobre João, começou a considerar a hipótese de deixar nossa igreja. Eu

22 Entre outras condições impostas pelo tribunal estavam estas: manter o emprego, não portar armas de fogo, não frequentar bares; pedir permissão para viajar para fora da zona delimitada para ele etc. Veja uma cópia das condições impostas no caso de liberdade condicional.

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pergunteia eles: "para onde vocês pretendem ir?". Eles mencionaram uma igreja bem conhecida na cidade. Então eu perguntei: "Vocês sabem quem são os pedófilos dessa congregação?". Eles pareceram um pouco confusos com a minha pergunta e perceberam que não sabiam. Então fiz um apelo, explicando a eles por que a nossa igreja era mais segura. Eles confiavam que nós, como igreja, éramos comprometidos com a pacificação e a questão da disciplina. Além do mais, eles sabiam que nossos presbíteros não tinham escondido da congregação nenhuma informação sobre o João. E, o mais importante, ao ouvirem os termos do pacto da aliança, sabiam exatamente quais medidas iríamos tomar para vigiar João, a fim de que ele não retornasse a seus pecados sexuais. Depois dessa conversa mais profunda, eles se olharam e o marido me disse: "Bem, creio que vamos continuar aqui mesmo. Afinal, esta é uma igreja segura. Sabemos que vocês, presbíteros, cuidam de nós e estamos dispostos a tomar as medidas que forem necessárias". Além de ajudar nossa própria igreja, o pacto da aliança se mostrou útil para outras pessoas em nossa comunidade. A pessoa responsável pela liderança de um ministério desenvolvido na prisão local pediu para modificá-lo e utilizá-lo com seus ex-prisioneiros. Deus também usou o pacto na vida do oficial de liberdade condicional e do conselheiro para tratamento de agressores sexuais, demonstrando a eles o poder de sua graça e a sabedoria de sua Palavra. Eles ficaram surpresos que uma igreja se envolvesse assim na vida de um agressor sexual.

Explicação ao público Quarto, nós redigimos uma carta para enviar aos membros e amigos da igreja intitulada "Porque convidaríamos um criminoso condenado a frequentar nossa igreja? Uma carta aberta dos presbíteros aos membros e amigos da Rocky Mountain Community Church". Tratava-se de uma explicação simples voltada para o público em geral. Por isso, não citamos diversos textos das Escrituras nem tampouco explicamos a base teológica para nossas atitudes e ações. Esse documento se mostrou muito útil para convencer aqueles que estavam relutantes em aceitar o João em nosso meio. A carta diz o seguinte: Porque convidaríamos um criminoso condenado afrequentar nossa igreja? Uma carta aberta dos presbíteros aos membros e amigos da Rocky Mountain Community Church. A maioria dos pedófilos tem dificuldade em superar seus hábitos nocivos. Se alguém não ajudá-los a mudar, eles provavelmente acabarão vitimizando outras crianças. Em outras palavras, se nós, da igreja, nos esquivarmos de tais pessoas, estaremos na verdade aumentando as chances de que outras crianças venham a ser vítimas deles.

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Assim, vemos essa situação como uma oportunidade de quebrar o ciclo destrutivo na vida desse homem e de aumentar a probabilidade de que ele nunca mais prejudique outra criança. Acreditamos que a melhor maneira de fazer isso é oferecendo a ele uma amizade sincera, dando a ele uma responsabilidade significativa e ajudando-o a mudar as atitudes e hábitos que levaram a seus crimes anteriores. Entramos neste relacionamento de olhos bem abertos. Reconhecemos e sofremos com a gravidade de seus crimes anteriores e sabemos que ainda existe um risco de que ele venha a cometê-los novamente. No entanto, temos esperança. Nós testemunhamos o poder que Jesus Cristo tem de salvar pessoas de seus pecados e de transformar suas vidas de forma irreconhecível. Experimentamos esse perdão e essa mudança em nossas próprias vidas e oramos a fim de que Jesus nos use para ajudar esse homem a encontrar essa mesma liberdade. Como vocês podem ver, nossa ênfase é: "Preferimos ajudar esse homem, para que ele não cometa outro crime, do que não fazer nada e ver outras crianças serem suas vítimas".23

Desafiando a congregação a ser a igreja de Cristo Por fim, desafiamos a congregação a ver que nosso Senhor estava nos dando uma oportunidade preciosa de dar testemunho de sua bondade, sabedoria, graça e poder para transformar vidas. Muitos na igreja responderam com entusiasmo ao nosso desafio. Alguns convidaram João para jantar (após os devidos avisos e tomando as devidas precauções). Outros o convidaram para passeios em família. E muitos o encorajaram a participar de nosso acampamento anual de famílias. Todas essas experiências incorporaram João à vida no corpo de Cristo e o ajudaram a ver o que significam os relacionamentos entre marido e mulher e entre pais e filhas. Além disso, um empresário cristão local ofereceu trabalho a ele quando foi libertado da prisão. Dois anos depois um dos presbíteros da igreja contratou João, por ele ser qualificado para o trabalho em questão. Como empregador, esse presbítero voluntariamente concordou em deixar o oficial de liberdade condicional e o conselheiro para abusos sexuais inspecionarem seu local de trabalho para se assegurarem de que era um local seguro para jovens funcionárias trabalharem ao lado de João. Uma evidência da imensa graça de Deus aconteceu quando um casal de idosos cristãos, cujos filhos adultos frequentavam a nossa igreja, ficou sabendo sobre a necessidade de arrumar um lugar para João morar. Eles graciosamente aceitaram João como inquilino de seu apartamento térreo e se mostraram muito mais do que meros locatários. Eles eram como pai e mãe para João — faziam doces para ele, encorajavam-no e pediam sua ajuda para cuidar de seu cachorro e da casa. Meu propósito em compartilhar todos esses exemplos é demonstrar que para a reconciliação é preciso uma igreja, no caso, a igreja universal.

Ken Sande, presbítero de nossa própria igreja, redigiu esta carta ao público.

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O coração do conflito e a grandeza de Deus A maior prova para mim ainda estava por vir. Uma vez que João havia sido admitido em nossa igreja, havia publicamente confessado seu pecado a nós e assinado seu pacto de aliança conosco, eu procurei seu oficial de liberdade condicional para pedir conselhos. Ele me disse que seria necessário que nós informássemos todos os nossos novos membros a respeito do crime que ele cometera, durante todo seu período de liberdade condicional — isto é, pelos próximos cinco anos! Você pode imaginar a expressão em meu rosto quando percebi que, pelos próximo cinco anos, durante a classe para novos membros, eu teria que contar a todos os futuros membros que tínhamos em nossa congregação um pedófilo condenado pela justiça. Imagino que isso realmente faria com que eles quisessem entrar para nossa igreja! Eu me lembro de reclamar com Deus: "Como posso fazer a igreja crescer se tenho que contar aos novos membros sobre o nosso membro especial?". Meu medo era ver meu ministério secar e murchar diante de meus olhos. Embora intelectualmente falando eu creia que o conflito oferece oportunidades para glorificar a Deus, servir aos outros e crescer para ser como Cristo, naquele momento, no fundo do coração, eu não acreditava em nenhuma dessas verdades. Em vez disso, comecei a ver esse conflito como uma maldição, com um obstáculo ao meu ministério, como um incidente muito ruim. Verdade seja dita, eu me comportava como um ímpio. Certo dia, enquanto lia a epístola de Tiago, o Espírito começou a mudar meu coração, ajudando-me a consagrar esse conflito em vez de amaldiçoá-lo (Tg 1.2-5). Comecei a ver como Deus o havia soberanamente colocado em minha vida para me dar a oportunidade de enaltecer a grandeza de sua sabedoria, de seu poder e de sua misericórdia. E ele o havia soberanamente colocado na vida de minha igreja para que passássemos do medo para a fé, para nos fazer crescer em sabedoria e para nos mostrar que, quando somos fracos, ele é forte (Tg 3.18-4.12). Como Deus é bom! O que primeiro parecia ser um grande mal acabou sendo em todos aqueles cinco anos o ponto alto da nossa classe para novos membros. Depois de apresentar o ensinamento bíblico sobre o evangelho, a pacificação e a disciplina na igreja, eu apresentava a história de João, compartilhando com eles o modo como Deus nos havia misericordiosamente guiado ao longo do processo de receber um pedófilo como um irmão em Cristo. Quando eu acabava de falar, muitos olhos brilhavam com lágrimas do evangelho. Era então que eu pedia que João deixasse o grupo e viessse se apresentar pessoalmente. Nessa hora, as lágrimas corriam pelo rosto das pessoas. Ele não era uma mensagem abstrata de pacificação, mas uma prova viva do evangelho da paz, do evangelho de Deus.

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De forma maravilhosa e graciosa, João os convidava a fazer qualquer pergunta que quisessem. Tipicamente as pessoas ficavam emudecidas. Não havia muito que dizer. Algumas vezes, todavia, alguns perguntavam como ele se sentia. E ele contava a eles sobre as refeições nas casas dos irmãos, sobre os jogos aos quais ia com algumas de nossas famílias e sobre o acampamento de famílias da igreja. Sua vida era o retrato de uma pessoa que crescia a cada dia na graça, e seu rosto era o rosto de uma pessoa finalmente em paz com Deus e com os outros.

Introduzindo mudanças para atender à necessidade Uma lição que aprendemos de maneira difícil foi que nosso plano de supervisão não havia sido cuidadoso o bastante. Nós havíamos deixado passar o óbvio e percebemos a necessidade de fazer fiscalizações improvisadas na casa de João quando, cerca de um ano e meio do período de liberdade condicional, nós recebemos uma ligação do chefe dele. Ele me informou que o oficial de liberdade condicional o havia buscado em seu local de trabalho e exigido fazer uma busca em sua casa. A busca resultou em diversos livros sobre incesto assim como revistas pornográficas. Por essa violação de uma exigência da condicional, João foi preso e levado a julgamento. Eu fiz diversas visitas a ele na prisão local e usei esse tempo para ajudá-lo a traçar os passos que o levaram a cair de novo na pornografia. Em seu julgamento, o tribunal fez mais exigências a ele, inclusive a exigência de que ele entrasse em um programa de tratamento para pedófilos. Depois de libertado, João se apresentou diante do tribunal da igreja (que é formado pelos nossos presbíteros) e confessou seu pecado utilizando os Sete A's da Confissão. A confissão de João fez com que nós, presbíteros, nos perguntassemos como poderíamos cuidar melhor dele. Sabendo que a vida de vício é uma vida de engano e fantasia, queríamos estar certos de que João não estava lendo ou utilizando material pornográfico. Então, redigimos um acordo de fiscalização que nos permitiria de forma periódica e espontânea entrar na casa dele e procurar por qualquer material ali escondido. O acordo diz o seguinte: João concorda de livre e espontânea vontade em permitir que qualquer membro da equipe pastoral, presbítero e diácono faça fiscalizações em sua casa, a fim de manter seu compromisso com os termos desse acordo. Essas fiscalizações buscarão determinar se João está mantendo sua casa limpa e em ordem e se ele possui ou não os materiais proibidos que foram especificados anteriormente neste acordo.

Após essa revisão do plano inicial, nós o colocamos em ação, e a mudança de João em relação ao seu hábito de pecado sexual se tornava evidente dia a dia, mês

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a mês. Uma das alterações mais evidentes de sua mudança foi que ele parou de tentar transferir sua culpa e começou cada vez mais a assumir a responsabilidade por suas próprias escolhas, pecados e por seu crime. No momento apropriado, e sob a supervisão e o direcionamento de seu conselheiro, do oficial da condicional e do meu, ele se reconciliou com sua filha, que vivia fora do estado. Uma tentativa semelhante de se reconciliar com sua vizinha e a filha dela também foi feita, embora sem resultados.

Celebração e ação de graças No dia 2 de janeiro de 2002, nossa igreja fez uma reunião especial com toda a congregação para homenagear João por ter completado com sucesso seu período de liberdade condicional e seu tratamento por agressão sexual, assim como para homenagear algumas das pessoas que mais se destacaram em sua vida por tê-lo ajudado: seu conselheiro, o casal que alugava o apartamento para ele e seus empregadores. Foi um grande dia e um grande momento de celebração e agradecimento. Ele me fez lembrar da passagem em 1Coríntios 6.9-11: Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem os que se submetem a práticas homossexuais, nem os que as procuram, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem caluniadores, nem os que cometem fraudes herdarão o reino de Deus. Alguns de vós éreis assim. Mas fostes lavados, santificados e justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus.

Finalmente, gostaria de dizer que, embora minha história tenha feito João parecer um pouco passivo, ele não era nem um pouco assim. Nenhuma das exigências que fizemos a ele funcionariam bem se o Senhor não o houvesse convertido poderosamente. João se mostrou humilde várias vezes, removendo a venda de seus olhos, confessando seus erros e trabalhando diligentemente para cumprir uma imensa quantidade de trabalho prático relacionado à sua santificação. Ele memorizou Filipenses comigo, e então, por iniciativa própria, memorizou também Tiago. Ele lidou com sua raiva, solidão, frustrações no trabalho e questões pessoais e voluntariamente compartilhou os detalhes mais íntimos de sua vida. A boa vontade de João em se submeter aos nossos pactos, aos conselhos do oficial da condicional e do conselheiro, bem como de pessoas da igreja e de se apresentar a cada ano aos futuros membros são, em grande parte, a razão pela qual ele obteve sucesso. Ele primeiro se voltou para Deus, humilhando-se aos olhos de Deus, e recebeu muita graça. Não é surpresa o fato de nós o amarmos. Ele é nosso irmão em Cristo!

DIREçÃO À TORNAR-SE UMA IGREJA PACIIICA DORA

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CONCLUSÃO

A pacificação funciona? Ela realmente beneficia uma igreja? A história de João é a minha resposta. A pacificação funciona porque Cristo está vivo e ele é a nossa paz. Ele nos faz estarmos em paz; ele perdoa todo o nosso pecado; ele restaura nossas almas; purifica nossos corações; ele substitui hábitos pecaminosos por hábitos sagrados e ele faz de nós um povo, o seu povo, seus filhos e filhas. O que é preciso para fazer a pacificação funcionar? São necessárias a doutrina e a disciplina da pacificação. Essas duas coisas devem nos direcionar quando buscamos liderar nossas igrejas a se tornarem igrejas pacificadoras. Especificamente, devemos nos empenhar na constante pregação, no ensino e ministério da Palavra, na prática da humildade, na busca contínua do evangelho e na frequente confissão de pecado que deve ser recebida com a resposta igualmente frequente do perdão. E, como líderes da igreja, devemos buscar exercitar a paciência, a bondade, o domínio próprio e a disciplina diante daqueles que se opuserem a nós. São essas doutrinas e disciplinas da graça que fazem surgir discípulos da paz. Vivemos em uma época que rejeita a doutrina e a disciplina. Hoje busca-se alcançar a paz por outros meios — meios que se mostraram os mais evidentes fracassos. Vivemos em uma época em que as pessoas não gostam de limites. Mas não é de qualquer limite que precisamos — não precisamos dos limites impostos pelos fariseus, mas sim dos limites da lei e do evangelho de Deus. Em seu livro Ortodoxia, G. K. Chesterton nos relembra do valor de tais limites: A doutrina e a disciplina podem ser como muros; mas elas são os muros de um playground. [...] Nós podemos imaginar crianças brincando na parte mais alta,

plana e gramada de uma ilha em alto mar. Desde que haja um muro em torno do precipício, elas podem se atirar em jogos frenéticos, transformando o lugar no mais barulhento dos playgrounds. Mas o muro foi derrubado, deixando-as expostas ao perigo do precipício. Elas não caíram nele; mas quando seus amigos voltaram, estavam todas encolhidas, com medo, no centro da ilha, e sua canção havia cessado."

Da mesma forma, o uso habitual dos meios comuns de graça, juntamente com políticas específicas e práticas de pacificação são os ingredientes que fazem uma igreja pacificadora. Assim como as regras de um jogo e as linhas traçadas no campo, a doutrina e disciplina da pacificação também resultam em um grande jogo! A mudança de fato duradoura geralmente acontece pouco a pouco. Deus transforma nossas vidas um passo de cada vez. O mesmo acontece com o processo

"G. K. CHESTERTON, Orthodoxy. Garden City: Image Books, 1959, p. 145 [Tradução livre. Também publicado no Brasil pela Editora Mundo Cristão sob o título Ortodoxia].

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O pAsToR pAcincADoR

de se transformar em uma igreja pacificadora. Implementar os princípios e práticas da pacificação é algo que tem menos a ver com a instituição de seminários e programas específicos e mais com a pregação e o aconselhamento contínuos e com viver o evangelho da paz constantemente. Não existe nada mágico em relação à pacificação que não seja a "mágica" do próprio evangelho. Deus já nos deu os meios comuns de graça que funcionam de modo extraordinário para criar, formar e transformar pecadores em filhos de Deus.