Dominique Poulot - Uma História Do Patrimônio No Ocidente [PDF]

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Zitiervorschau

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DOMINIQUE POULOT

Um história do patrimônio no Ocidente

11:40

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Título original: Une histoire du patrimoine en Occident, XVIIIe-XXIe' siècle. Du monument aux valeurs C) Presses Universitaires de France, 2006 C) Editora Estação Liberdade, 2009, para esta tradução Preparação Revisão Assistência editorial Composição Imagem de capa Editores

Huendel Viana Jonathan Busato Leandro Rodrigues Johannes C. Bergmann/Estação Liberdade Musée d'Orsay. O Daniel Thierry/Photononstop. Angel Bojadsen e Edilberto Fernando Vem

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ P894h Poulot, Dominique, 1956Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do monumento aos valores / Dominique Poulot ; tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. — São Paulo : Estação Liberdade, 2009. Tradução de: Une histoire du patrimoine en Occident ISBN 978-85-7448-170-8 1. Património cultural — Europa — História. 2. Patrimônio cultural —Avaliação — Europa. 3. Europa — Civilização. 4. Europa Política cultural. 1. Título. 09-4801.

SUMÁRIO

CDD: 363.69 CDU: 351-852

Esta obra, publicada no âmbito do Ano da França no Brasil e do programa de participação à publicação Carlos. Drummond de Andrade, contou com o apoio do Ministério francês das Relaçóes Exteriores. "França.Br 2009" Ano da França no Brasil/2009 é organizada no Brasil pelo Comissariado geral brasileiro, pelo Ministério da Cultura c pelo Ministério das Relações Exteriores; na França, pelo Comissariado geral francês, pelo Ministério das Relações exteriores e européias, pelo Ministério da Cultura e da Comunicação e por Culturesfrance. Cet ouvragc, publié dans le cadre de l'Année de la France au Brésil et du Programme d'Aide à la Publication Carlos Drummond de Andrade, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères. França.Br 2009 l'Année de la France au Brésil est organisée : En France : par le Commissariat général français, le Ministère des Affaires étrangères et européennes, le Ministère de la Culture et de la Communication et Culturesfrance. Au Brésil : par le Commissariat général brésilien, le Ministère de la Culture et le Ministère des Relations Extérieures.

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 1 01155-030 | São Paulo-SP Tel.: (11) 3661 2881 |Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br

Introdução HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações Uma partilha das obras de cultura Uma encarnação da construção nacional Um recurso comum A caminho de uma antropologia histórica da patrimonialização francesa

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1 UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA A invenção identitária A transferência da sacralidade A construção do valor O monumento e a história O território da Cidade O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica As provas da história

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2 UMA NOVA AUTENTICIDADE Uma nova história O triunfo da alegoria Distribuir o patrimônio em novos lugares O museu regenerador O combate pela autenticidade

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3 A MEMÓRIA INSPIRADORA O culto dos homens ilustres A funcionalização dos mortos A busca de um santuário do Estado A encarnação dos antepassados

INTRODUÇÃO

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HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO Os monumentos constituem uma parte essencial da glória de qualquer sociedade humana: eles carregam a memória de um povo para além de sua própria existência e acabam por torná-lo contemporâneo das geraçóes que vêm se estabelecer em seus campos abandonados. Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe.

4 O TRABALHO DO LUTO Uma consciência literária Os desafios a enfrentar por uma geração Uma teoria do patrimônio A administração do luto e da ressurreição Uma história do ponto de vista da civilização Uma arqueologia dos Modernos A conservação para o futuro

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5 A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE A nova urgência da transmissão A formação de um cânon As civilidades do patrimônio O ponto de vista da recepção O caso do território-patrimônio Os valores da apropriação Um patrimônio da significação

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Conclusão Uma definição orientada pelo futuro Um conjunto de releituras

231 236

Na nossa vida cultural, raros são os termos que possuem um poder de evocação tão grande quanto "patrimônio". Ele parece acompanhar a multiplicação dos aniversários e das comemorações, característica de nossa atual modernidade. O acúmulo de vestígios e restos revelados, conservados e aclimatados segundo práticas diversas, parece responder ao fluxo da produção contemporânea de artefatos. Deste modo, o patrimônio sanciona, a todo instante, a passagem acelerada que atribui uma posição "de destaque" a objetos ou práticas, de acordo com a análise de James Clifford sobre a evolução dos paradigmas da conservação.' No decorrer do século XX, o patrimônio assume, cada vez mais explicitamente, sua implementação positiva, segundo juízos de valor que afirmam uma verdadeira escolha. Os desafios ideológicos, econômicos e sociais extrapolam amplamente as fronteiras disciplinares (entre história, estética ou história da arte, folclore ou antropologia) —, como pode ser notado, no decorrer das décadas de 1970-1980, pelo reconhecimento de "novos patrimônios", que abrange uma profusão de esforços públicos e privados em favor de múltiplas comunidades. Progressivamente, o entusiasmo pela promoção e valorização do patrimônio passa por uma verdadeira "cruzada" no âmago do mundo ocidental 1. James Clifford, Malaise dans la culture: L'Ethnographie, la littérature et l'art au XX' siècle, Paris: Ensba, 1998. 2. David Lowenthal, The Heritage Crusade and the Spoils of History, Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

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Por conseguinte, não cansamos de evocar "patrimônios" a serem conservados e transmitidos, relacionados com universos absolutamente heterogêneos: a apreciação estética do cotidiano, mesmo que apenas de outrora; a indispensável manutenção do legado arquitetural; a preservação de habilidades artesanais, até mesmo de personnes ressources [especialistas em determinada área], segundo a expressão quebequense; a proteção de costumes locais, no mesmo plano de certos gêneros de vida ameaçados de extinção... Fala-se de um patrimônio não só histórico, artístico ou arqueológico, mas ainda etnológico, biológico ou natural; não só material, mas imaterial; não só local, regional ou nacional, mas mundial. Às vezes, o ecletismo de tais considerações redunda em contradições ou leva à incoerência. Se o conceito de "patrimônio" conhece, atualmente, uma popularidade espetacular, associada aos investimentos de toda a ordem (política, financeira) suscitados por ele, a investigação a seu respeito oscila entre a evocação de algo inefável — os valores da civilização — e a atenção exclusiva prestada às instituições e aos profissionais do setor. Uma dificuldade particular refere-se ao fato de que o próprio patrimônio determina as condições concretas de sua abordagem, comunicação e controle; de fato, por seu intermédio, o pesquisador é conduzido ao âmago de um quadro de valores que se afirma incontestável. No caso concreto, os pontos de vista reenviam aos sistemas de partilha observados em outros campos quando se trata de "discutir o indiscutível", segundo a fórmula do sociólogo Alain Desrosières.3 A oposição verificase, de um lado, entre a descrição e a prescrição, e, de outro, na própria ciência, entre "posição realista" que exprime "fiabilidade do cálculo" e sociologia construtivista do conhecimento. A história da proteção e da transmissão do patrimônio — atinente às leis, a suas modalidades de aplicação e aos critérios das intervenções — tem sido empreendida, frequentemente, no âmbito de tarefas profissionais e por ocasião de aniversários e de retrospectivas. Essa história-memória do patrimônio nacional, constituída progressivamente 3. Alain Desrosières, La Politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique, Paris: La Découverte, 1993, p. 395-413. 10

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no decorrer dos últimos dois séculos, limita-se comumente ao elogio de seus arautos mais notáveis, bons servidores e grandes estadistas; servindo-se da pátria como ilustração, ela enaltece o labor da ciência e os avanços da instrução pública. O historiador torna-se, então, um expert em matéria de normas patrimoniais; neste caso, a tomada de consciência, de modo progressivo, em relação à herança passa por um imperativo moral universalmente compartilhado. Outra história do patrimônio, porém, pode acompanhar o combate militante travado por associações ou movimentos envolvidos com a conservação. Oriunda de um compromisso contra o vandalismo, ela é então, muitas vezes, prisioneira das polêmicas próprias ao gênero, denunciando, naturalmente, as lacunas do patrimônio oficial e suas eventuais falências, bem longe de celebrar a memória das instituições. Essas duas historiografias, construídas simetricamente, elaboram a posteriori uma coerência ilusória — ao reunirem, sob o termo "patrimônio", elementos que outrora não lhe diziam respeito; por conseguinte, esboçam uma continuidade de doutrina e perdem-se, mais ou menos, na ilusão teleológica. A defesa, desenvolvida frequentemente nos dias de hoje, em favor de um patrimônio cada vez mais completo, contra o elitismo ou em nome da exaustividade científica, deixa escapar o fato de que o objetivo do patrimônio não consiste, de modo algum, em duplicar a realidade à maneira do "mapa dilatado" de Borges, coincidente• com o território que, supostamente, ele representa.4 "Os colégios de cartógrafos", escreve o autor argentino, "lavraram um mapa do Império com seu formato e que coincidia com ele, ponto por ponto. Menos apaixonadas pelo estudo da cartografia, as gerações seguintes decidiram que este mapa dilatado era inútil e, de forma impiedosa, abandonaram-no à inclemência do sol e dos invernos. Nos desertos do Oeste, subsistem vestígios bastante estragados do mapa; eles são habitados por animais e mendigos." Esse mapa em pedaços é uma excelente imagem de uma crise radical da mimesis, que culmina no desaparecimento das representações e no impasse da ciência. 4. J. L. Borges, "De Ia Rigueur de Ia science", in Histoire universelle de l'infamie / Histoire de l'éternité, Paris: UGE, 1994, p. 107. 11

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

De fato, é evidente que fracassaria o patrimônio que fosse um controle utópico do tempo, tentando reproduzi-lo de uma forma idêntica. O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica. Nesse aspecto é que a história parece, com tamanha frequência, "morta", no sentido corrente. Mas, ao contrário, o patrimônio é "vivo", graças às profissões de fé e aos usos comemorativos que o acompanham.' Nos últimos anos, as ciências humanas e sociais têm multiplicado os estudos sobre o patrimônio, desenvolvidos mais amplamente, sem dúvida, na área da história e da antropologia, a partir de um domínio que, na origem, é muito bem circunscrito, ou seja, o da história das artes — e do livro, se considerarmos o patrimônio escrito como parcela, bem cedo reconhecida, do conjunto patrimonial. No começo, tratava-se de abordar o corpus mais ou menos canônico, tal como havia sido concebido por diferentes épocas — assim, Bernard Teyssèdre e seu projeto de dispor as histórias dos patrimônios artísticos em diversos círculos e em diferentes momentos da história; ou Francis Haskell e seu desígnio de uma história das (re)descobertas do gosto.6 Nesse sentido, a história do patrimônio não designa verdadeiramente um conteúdo de pesquisas específicas, nem alega uma instância explicativa particular para pensar a articulação entre cultural, social e político. Logo em seguida, o campo da história do patrimônio se fragmentou em outros tantos objetos de diferentes investigações, desde os museus até os monumentos, passando pelo novo patrimônio imaterial. Esse rápido desenvolvimento foi acompanhado por uma profusão semântica que, finalmente, tornou bastante incerta, ao longo do tempo, a unidade de semelhantes estudos. Tal como é praticada há uma geração, com êxito incontestável, a história do patrimônio é amplamente a história da maneira como uma sociedade constrói seu patrimônio. Em particular no caso francês, 5. David Lowenthal, op. cit., p. 121-122; Hervé Glavarec e Guy Saez, Le Patrimoine saisi par les associations, Paris: La Documentation française, 2002. 6. Bernard Teyssèdre, L'Histoire de l'art vue du Grand Siècle, Paris: Julliard, 1964; Francis Haskell, La Norme et le caprice, Paris: Flammarion, 1986. 12

ela confunde-se com uma história administrativa ou, melhor ainda, socioadministrativa. Uma definição "restrita" do patrimônio marca, muitas vezes, as perspectivas na matéria, orientadas pelos laudos de experts. Tal é o caso da teleologia, que é manifesta, por exemplo, nas compilações retrospectivas de episódios considerados como "patrimoniais", tendo, supostamente, inspirado a legislação contemporânea/ Em outras investigações, trata-se sobretudo de analisar o modo de vida no patrimônio e como são utilizados os monumentos ou os museus. Semelhante história está em condições de saber como os príncipes fizeram uso dos valores patrimoniais para desenvolver, ou não, estratégias, ganhar prestígio e até mesmo consolidar alianças políticas. A história do colecionismo é, particularmente, tributária desse tipo de interesse. Para além dele, o desafio consiste em considerar a posição do patrimônio no desenvolvimento de uma coletividade: a aparição ou o fracasso de um patrimônio comum assinala, sem dúvida, seu êxito ou sua falência. O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de seus objetos, pelo valor estético — e, na maioria das vezes, documental, além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental — que lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto específico, legal ou administrativo. Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade política, ambos os aspectos sancionados pela opinião pública; essa dupla relação é que lhe serve de suporte para uma representação da civilização, no cerne da interação complexa das sensibilidades relatiidentas.Pr vamente ao passado, de suas diversas apropriações e da construção das se impor, de acordo com a espécie de evidência que é a sua atualmente, a noção teve de passar por um processo complexo, de longa duração e profundamente cultural; ela é o resultado de uma dialética da conservação e da destruição no âmago da sucessão das formas ou dos estilos de heranças históricas que haviam sido adotados 7. Assim, Andrea Emiliani (org.), Leggi, bandi e provvedimenti per la tutela dei beni artistici e culturali negli antichi stati italiani, 1571-1860, Bolonha: Nuova Alfa, 1996. Sobre os usos do anacronismo, cf. Nicole Loraux, "Éloge de l'anachronisme en histoire", in Le Genre humain, n. 27, 1993; e G. Didi-Huberman, Devant le Temps: Histoire de l'art et anachronisme des images, Paris: Minuit, 2000. 13

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pelas sociedades ocidentais. Ela estabeleceu-se a partir do modelo do nquadramento" de algumas obras em determinado momento da respectiva história — enquadramento utilizado, deformado, transmitido, esquecido, de geração em geração. Nesse caso, cada um abrangia mais ou menos o outro, absorvendo-o e modificando-o enquanto, paralelamente, alterava-se a definição e a significação do "vandalismo", suscitando, às vezes, acirrados conflitos a propósito dos respectivos contornos. Com efeito, a escolha de um patrimônio, como aponta Judith Schlanger no livro La Mémoire des wuvres, "além de um efeito e de um desafio de instituição, é uma instituição".8 A atitude patrimonial compreende dois aspectos essenciais: a assimilação do passado, que é sempre transformação, metamorfose dos vestígios e dos restos, recreação anacrônica; e a relação de fundamental estranheza estabelecida, simultaneamente, por qualquer presença de testemunhas do tempo remoto na atualidade. O primeiro aspecto sustenta o esforço de pedagogia (de ordem cívica), enquanto o segundo leva a um reconhecimento do tesouro, "reconhecimento que constitui a própria virtude do tesouro" (Alphonse Dupront). A época clássica foi marcada pela busca da excelência da informação: nesse caso, a publicidade dos acervos é sempre cerimônia a serviço do fausto da pessoa do príncipe. Por sua vez, a época das revoluções liberais assiste ao triunfo do projeto de formar os cidadãos pela instrução e pelo culto do Estado-Nação: o senso do patrimônio é dominado, assim, pela pedagogia de sua divulgação. Por último, na virada do século XX para o XXI, o patrimônio deve contribuir para revelar a identidade de cada um, graças ao espelho que ele fornece de si mesmo e ao contato que ele permite com o outro: o outro de um passado perdido e como que tornado selvagem; o outro, se for o caso, do alhures etnográfico. Lugar da pessoa pública, em particular da figura do rei, lugar da história edificante, lugar da identidade cultural: assim poderiam ser enunciados, de maneira bastante sumária, os imaginários do patrimônio ocidental. "e

8. Judith Schlanger, "Le Passé pertinent", in La Mémoire des oeuvres, Paris: Nathan, 1992, p. 110 ss.

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A "modelagem humana do histórico", segundo Alphonse Dupront, ocupa uma posição eminente na invenção patrimonial, "quanto às latências laboriosas da memória coletiva, quanto à confissão de modelos ou à proclamação de 'fontes' e, sobretudo, quanto às necessidades profundas de viver a duração, contínua ou descontínua, e de acordo com 9 a amplitude de sua influência". As diferenças no plano da recepção (de seleção) dependem amplamente dessas condicionantes, quando determinados tipos de objetos ou de edifícios se tornam patrimoniais, por oposição a um grande número de outros que são negligenciados ou destruídos. O detalhe das práticas eruditas — ou, em outras palavras, a maneira como foi concebido o "quadro" da coleta, classificação, exposição e interpretação — determina o processo de ocorrência do patrimonial.'° No entanto, a apropriação por um público — a maneira como o patrimônio é visitado, interpretado, e exerce influência — está associada também às formas de sua apresentação, ao olhar, bem acolhido ou importunado, aos catálogos ou aos itinerários. As diversas definições do patrimônio, através de testemunhos convergentes ou contraditórios, e os efeitos de expectativa ou de saber que ele pode provocar ou mobilizar nos espectadores alimentam identidades e entretecem sociabilidades em diferentes escalas — locais, nacionais, globalizadas —, ou, às vezes, sem qualquer atribuição territorial. O patrimônio elabora-se, em cada instante, com base na soma de seus objetos, na configuração de suas afinidades e na definição de seus horizontes.

Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações O patrimônio contribui, tradicionalmente, para a legitimidade do poder, que, muitas vezes, participa de uma mitologia das origens. Ele 9. Alphonse Dupront, "L'Histoire après Freud", in Revue de l'Enseignement Supérieur, 1968, p. 27-63 (aqui, p. 46). 10. Para Jacques Derrida ( Mal d'archive, Paris: Galilée, 1995), os arquivos implicam um lugar e uma técnica que determinam a estrutura do arquivável, em sua ocorrência e em sua relação com o futuro: "O arquivo foi sempre uma garantia e, como qualquer penhor, uma garantia de futuro" (p. 37).

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encarna o que, de acordo com Pierre Legendre, será designado por "g enealogia", entendida como "ato de transmitir, ou seja, afinal de contas, as montagens de ficção que tornam possível que tal ato seja realizado e repetido através das gerações"." Para o direito romano, o patrimônio era o conjunto dos bens familiares, vislumbrados não segundo seu valor pecuniário, mas em sua condição de bens-a-transmitir. Tal característica acabava por distingui-los absolutamente dos outros bens que "não estão inscritos em um estatuto [...], mas são considerados separadamente em um mundo de objetos dotados de um valor próprio que lhes é atribuído, exclusivamente, pela troca e pela moeda". De fato, na cultura do patrimonium, "a norma social exigia que os bens de alguém fossem oriundos da herança paterna, que, por sua vez, deveria ser transmitida. [...] Era malvisto interromper a cadeia de transmissão, da qual a instituição familiar havia sido publicamente incumb ida". Desse modo, o termo "patrimônio" refere-se aos "bens de herança" que, de acordo com o dicionarista Littré, por exemplo, "passam, segundo as leis, dos pais e das mães para sua filiação". Ele não evoca a priori o tesouro ou a obra-prima. — nem que ele tenha a ver stricto sensu com a categoria, reivindicada pelas ciências, do verdadeiro e do falso, mesmo que deva alegar a autenticidade. Assim, na retórica das lutas identitárias, as evocações do passado não coincidem, conforme tem sido observado frequentemente, com as análises do historiador, do etnólogo ou do arqueólogo. No entanto, apesar de desprovidas de realidade, até mesmo de verossimilhança, elas revelam-se regularmente eficazes: David Lowenthal conseguiu repertoriar inumeráveis avatares de algo verossímil que, nesse aspecto, se tornou realmente verdadeiro. 11. Pierre Legendre, L'Inestimable objet de la transmission: Étude sur le principe généalogique en Occident, Paris: Fayard, 1985, p. 50. 12. Yann Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit romain", in Archives de la philosophie du droit, 1980, Sirey, p. 425; e "Pères, citoyens et cité des pères", in Histoire de la famille,I , Paris: Le Seuil, I986, p. 206. Cf. ainda, de outro ponto de vista, Claudia Moatti, "La Construction du patrimoine culturel à Rome au Ier siècle avant et au Ier siècle après J.-C.", in Mario Citroni (org.), Memoria e identità: La cultura romana costruisce la sua immagine, Florença: Giorgio Pasquali, 2003, p. 81-98. 16

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Assim, o patrimônio ilustra o quanto cultura e política, para citar Hannah Arendt, "imbricam-se mutuamente porque não é o saber ou a verdade que está em jogo, mas sobretudo o julgamento e a decisão, a troca criteriosa de opiniões incidindo sobre a esfera da vida pública e sobre o mundo comum A recusa de "origens" — relativamente ao aspecto religioso ou mítico, em benefício de "começos" seculares que evocam a atividade humana e não cessam de ser questionados — configura daqui em diante o compromisso contemporâneo, tanto crítico quanto político. A meditação de Edward Said14 sobre a ideia de começos prefere referir-se, assim, a Mallarmé, a propósito do "demônio da analogia", para enfatizar uma contemporaneidade marcada pelo impossível vínculo à origem e à inspiração, e para afirmar o peso da intencionalidade em um trabalho, daqui em diante, privado das musas /No sentido banal, atualmente o patrimônio confunde-se com a herança, cuja presença pode ser verificada à nossa volta e que reivindicamos como nossa, tanto mais que estamos prontos a tomar providências para assegurar sua preservação e inteligibilidade. Esses bens recebem, portanto, uma afetação particular; e estão submetidos a um modo específico de gestão. O respeito a tais condições é garantido por leis ou regulamentos, até mesmo por uma militância empenhada, em que, nos fatos, seja inscrito o princípio de transmissão ao futuro. De acordo com o resumo proposto, de maneira bastante pragmática, por André Chastel, "O patrimônio reconhece-se pelo fato de que sua perda constitui um sacrifício e que sua conservação pressupõe sacrifícios". Na relação entre manifestação e princípio, superfície e fundamentos, o patrimônio participa de uma metáfora central de nossa modernidade, a dos modelos de "profundidade" — de acordo com a palavra forjada por Frederic Jameson — ou ainda a do paradigma indiciário, em conformidade com o qualificativo adotado por Carlo

13. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972. 14. Edward W. Said, Beginnings: Intention and Method (I975), Londres: Granta, I995, novo prefácio, p. XIX, 67-68. 17

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Ginzburg.1

A amplitude do patrimônio é sua característica mais evidente. O essencial da literatura patrimonial, no sentido corrente, empenha-se em descrever sua geografia — para gerenciá-la em melhores condições. Esta se confunde com uma oferta de documentos ou com proposições turísticas, em poucas palavras, com um corpus, repertoriado segundo modalidades mais ou menos sofisticadas. Em compensação, a profundidade do patrimônio evoca o que, em primeira análise, poderia ser designado por memória da qual ele depende e é a manifestação. A literatura prescritiva ou documental não dá, de modo algum, testemunho dessa profundidade patrimonial, ao contrário de determinada meditação sobre a usura do tempo e sobre o lugar do passado no presente — nem que fosse para negá-lo ou esnobar a seu respeito — ou desses diversos paratextos, tais como prefácios, anotações, apologias e dedicatórias, que acompanham a literatura artística. A relação geral com essa profundidade parece, de qualquer modo, ter sofrido um deslocamento, do início da modernidade ao século XVIII, ao invocar a Posteridade em vez do Tempo. Mas, tal posteridade é cada vez menos garantida: assim, Swift chega a imaginar, na profusão de elementos que envolvem A Tale of a Tub, um jovem Príncipe Posteridade que carece de sabedoria e de discernimento; além disso, sua imaturidade ameaça a fé antiga na perpetuidade da transmissão.16 De maneira ainda mais explícita, alguns autores e artistas inscrevem-se no momento presente, sem se comprometerem seja na reivindicação de um passado, seja na expectativa de um futuro: esse pensamento do instante é, particularmente, representado nas Luzes, na França Mas, desde o início do século, Swift, para citá-lo de novo, observava que "é agradável observar a facilidade com que a época presente aventa hipóteses sobre aquela 15. Frederic Jameson, Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism, Durham: Duke UP, 1991, p. I2; Carlo Ginzburg, "Traces: racines d'un paradigme indiciaire", in Mythes, emblèmes, traces: Morphologie et histoire, Paris: Flammarion , I989. 16. Jonathan Swift, "The Epistle Dedicatory to his Royal Highness Prince Posterity", in A Tale of a Tub; Aleida Assmann, "Texts, Traces, Trash: The Changing Media of Cultural Memory", in Representations, vol. 56, 1996, p. 123-134. 17. Thomas M. Kavanagh, Esthetics of the Moment: Literature and Art in the French Enlightenment, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, I996. 18

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que há de suceder-lhe: as eras futuras hão de mencionar tal aspecto, evento que será célebre no mais longínquo futuro. Ao passo que o os tempo e os pensamentos de nossos sucessores estarão voltados para "18 acontecimentos do momento, como ocorre agora com os nossos [...I. Pelo contrário, o momento revolucionário abordará o tema da posteridade com um voluntarismo assumido: longe das figuras de estilo da sobrevivência literária, a palavra define então um ato político, o de instaurar uma memória duradoura e eficaz a partir das lições extraídas de um passado infamante. Mais tarde, a relação do patrimônio com uma profundidade soterrada — a da autenticidade e até mesmo do inconsciente no século XX — passou por uma considerável mudança, sob a influência de um sentido inédito das rupturas e, talvez, do modelo da arqueologia no âmago das "grandes narrativas"sucesivas.19

Uma partilha das obras de cultura Para Jean-Claude Passeron, a definição antropológica da cultura, tal como ela foi apresentada por Tylor em Primitive Culture (1871) — ou seja, o conjunto da vida simbólica de um grupo ou de uma sociedade —, supõe "a existência de uma entidade homogênea capaz de operar homogeneamente em tudo o que ela manda fazer ou sentir a seus integrantes: ela equivale a confundir uma estrutura com um cafarnaum"." Pelo contrário, esse autor propõe identificar três significações distintas da cultura: a cultura-estilo, a cultura declarativa e a cultura corpus. A primeira designa o conjunto dos modelos de representação e das práticas que orientam a organização das formas da vida social. A segunda, a de uma cultura como comportamento 18. Jonathan Swift, Pensées sur divers sujets moraux et divertissants: (Euvres , Paris, Pléiade, 1965, p. 572. "It is pleasant to observe how free the present age is in laying taxes on the next. FUTURE AGES SHALL TALK OF THIS; THIS SHALL BE FAMOUS TO ALL POSTERITY. Whereas their time and thoughts will be taken up about present things, as ours are now." 19. Julian Thomas, Archaeology and Modernity, Londres: Routledge, 2004. 20. J.-C. Passeron, Le Raisonnement sociologique (l'espace non poppérien du raisonnnement naturel), Paris: Nathan, 1991, p. 323. 19

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declarativo, corresponde à reivindicação de uma identidade de grupo: é a "formulação autocentrada da cultura que uma cultura mostra de si mesma em sua definição falada ou escrita das relações entre os valores, o homem e o mundo". Por último, a cultura como corpus de obras valorizadas define o universo simbólico de um grupo social, ao privilegiar um reduzido número de objetos culturais como outros tantos de seus símbolos favoritos. É, evidentemente esta última configuração que tradicionalmente coincide com a definição canônica do patrimônio. O patrimônio institucionalizado não passa, em vários aspectos, de uma câmera de gravação dos movimentos aleatórios brownianos, cujo contorno é desenhado a partir de manifestações de admiração e reconhecimento, de compras e revendas, além de acúmulo de bens e de rejeições. Pintado por Modigliani como Novo pilota [Novo piloto], o grande retrato de Paul Guillaume — figura de marchand, colecionador e mecenas a quem se deve o essencial do museu parisiense de Orangerie — pode passar por emblemático dos atores contemporâneos da constituição de patrimônios reunidos em diferentes locais; aliás, às vezes, são apenas coleções de marchands. Os mecanismos de aquisição, conservação e transmissão das obras, tratando-se da formação e da evolução do corpus de monumentos protegidos ou das coleções de museus, envolvem um horizonte de expectativa associado às representações de um grupo social, à sua sensibilidade e a suas experiências, próximas ou longínquas. Para essa problemática, Hans Robert Jauss forneceu a definição clássica: "O sistema de referências objetivamente formulável, para cada obra, no momento da história em que ela aparece, resulta de três fatores principais: a experiência prévia do público relativamente ao gênero de que ela faz parte; a forma e a temática de obras anteriores cujo conhecimento se pressupõe; e a oposição entre mundo imaginário e realidade cotidiana."21 De acordo com a socióloga norte-americana Wendy Griswold, é possível compilar no mínimo cinco configurações relativamente à recepção de objetos culturais. A primeira é a interpretação (concebida como elaboração da significação). A segunda identifica-se com o sucesso (a popularidade, avaliada pelo número de adeptos ou 21. Hans-Robert Jauss, Pour une Esthétique de la réception, Paris: Gallimard, 1978. 20

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convertidos, ou por qualquer índice da estima manifestada). A terceira configuração entende-se em termos de impacto sobre o campo de referência cultural (a influência de um objeto cultural sobre a fisionomia de objetos do mesmo gênero). A quarta equivale à canonização (a aceitação desse objeto pelo grupo de especialistas, capacitados para conferir-lhe legitimidade). Enfim, o último elemento de recepção tem a ver com a duração (a persistência de um objeto cultural no tempo, graças a um conhecimento ampliado ou não). Apesar de corresponder a algumas dessas configurações, a definição patrimonial não se coaduna forçosamente, de maneira positiva, com todos os critérios, pelo fato de depender de uma história da mediação considerada "sob a óptica 22 dos conflitos de poderes e de personalidades". Em particular, ela ilustra o que Ernest Gombrich designa por "clima social" de excelência e de admiração artísticas. "Seria possível estudá-lo", escreve ele, "ao esboçar um verdadeiro programa, com base nos arquivos dos preços alcançados nos leilões, na difusão das reproduções e na organização de peregrinações preparadas pelas agências de turismo [...], ao anotar o desenvolvimento de seitas exclusivas, até mesmo de heresias [...], ao identificar os heróis da cultura que continuam suscitando, como é costume dizer, o 'culto de uma minoria' e ao colocar a emergência e o desaparecimento de tais reputações em correlação com outros movimentos sociais. Seria possível, também, fazer um grande número de comentários interessantes a propósito das condições sociais que facilitam o respeito pelos velhos mestres e pelo clima que incentiva a considerar, com orgulho, as realizações da arte contemporânea."23 Essa configuração inscreve-se em uma longa tradição, a da literatura artística. Além disso, seu saber consiste sempre em conhecer os lugares, sobretudo "lugares de passagem" das obras, como lugares de propriedade e de transmissão. Com o desenvolvimento de uma circulação associada ao mercado, tem aumentado a importância do connoisseurship e do atribuicionismo: o crítico de arte e arqueólogo 22. Wendy Griswold, Cultures and Societies in a Changing World, Thousand Oaks: Pine Forge, 1994. Cf. ainda Francis Haskell, op. cit., p. 33-34. 23. Ernst Hans Gombrich, L'Écologie des images, Paris: Flammarion, 1982. 2I

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Quatremè

de Quincy (1755-1849) já constatara o peso do que ele designava, com desdém, como uma "espécie de saber". Por conseguinte, a patrimonialização coincide amplamente com a tradição da cultura erudita. Como foi observado por Jacques Thuillier, em relação à finalidade da criação artística, "o texto escrito tem desempenhado, até aqui, um papel determinante, e pode-se dizer que, por seu intermédio, foi implantado o panorama [...] ao fixar as hierarquias: por consequência, ele estabelece, durante um prazo mais ou menos longo, a própria sobrevida da obra". Em poucas palavras, "considerando os períodos antigos, a distribuição das pinturas e das esculturas conservadas acabou por corresponder praticamente ao esquema dos artistas e das obras, constantes nas citações dos historiadores antigos — sem grande relação com a própria produção, tal como esta pode ser confirmada por documentos de arquivo. Salvo algumas exceções, a resistência das escolas e das obras dependeu da presença dos livros, assim como da data de sua publicação; a realidade acabou por acomodar-se ao texto escrito". 24 Os séculos XVIII e XIX constituem, nesse aspecto, momentos estratégicos que assistem à elaboração de cânones, repertórios e catálogos — seja do teatro à música, ou da pintura à literatura — e, especificamente, à instalação de museus, primeiros lugares da objetivação de "culturas". A gênese do patrimônio evoca, assim, as leituras eruditas empenhadas em interpretar as obras como outros tantos documentos sobre o passado, transformando, particularmente, a compreensão das antiguidades clássicas e, em seguida, nacionais em um desafio intelectual e político.25 A era da erudição, no século XVII, apoiava-se na preocupação com as fontes: "O método moderno de pesquisa histórica está inteiramente baseado na distinção entre fontes originais e fontes de segunda mão."26 O desenvolvimento da reflexão, no século XVIII, 24. J. Thuillier, Leçon inaugurale, Collège de France, Paris, I3 jan. 1978, p. 15. 25. Francis Haskell, L'Historien et les images, Paris: Gallimard, I996. 26. Arnaldo Momigliano, "Ancient History and the Antiquarian", in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, n. 13, 1950, p. 285-3I5; retomado em Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983; e em Joseph M. Levine, "The Antiquarian Enterprise, I500-1800", Humanism and History: Origins ofModern English Historiography, Ithaca: Cornell University Press, I987, p. 73-106. 22

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baseava-se na busca de um diálogo entre fontes literárias e fontes figuradas, assim como no surgimento de uma história cultural; para ser possível construir a definição do patrimônio, impunha-se estabelecer, previamente, a autenticidade e o valor dos monumentos de qualquer espécie. A disputa, nesse caso entre partidários e adversários da patrimonialização, mobiliza incansavelmente discursos contraditórios sobre o destino a ser dado às obras, ou seja, sobre as relações que elas podem estabelecer no espaço público. Tal discussão é, em particular, acirrada no que diz respeito à originalidade — democrática e cultural — do museu relativamente à coleção tradicional. As relações com a publicidade das coleções — enaltecida ou considerada como ilusória — e com a destinação da obra exposta — reconhecida como autêntica, desvalorizada ou negada — orientaram, assim, o essencial dos discursos ulteriores ao esboçarem quatro figuras principais. A ortodoxia museal descreve os efeitos positivos dos museus no espírito das reivindicações de abertura da segunda metade do século XVIII. Esses estabelecimentos permitiram, ao que tudo indica, a iniciação dos visitantes à alta cultura, até então reservada ao privilégio ou à riqueza. Em poucas palavras, eles divulgavam a cultura em condições semelhantes às que usufruíam seus proprietários ou detentores, legitimados pela tradição. A crítica, de inspiração ou de herança contrarrevolucionária — pelo menos no caso francês —, sustentava por seu turno a existência de uma desculturação: o museu alterava a cultura em nome da utilidade social e modificava as condutas legítimas sem deixar de permanecer estranho ao povo convidado a frequentá-lo. Seu encerramento, em última instância, a fim de restaurar o antigo vínculo ou, melhor ainda, sua reapropriação pelos usuários legítimos, colecionadores e amadores, seria o único meio de suprimir essa perversão ideológica, possibilitando um renascimento cultural. A escola progressista, ao contrário, denunciava a confiscação da cultura legítima operada pelo museu em benefício dos privilegiados da sociedade, aliás os únicos que tinham condições de tirar um real proveito da instituição: uma educação verdadeiramente democrática deveria estender uma relação com a cultura, que havia permanecido 23

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como o apanágio de um número reduzido de pessoas. Por fim, uma crítica radical negava este último projeto e qualquer esperança de futuro radioso para o estabelecimento. O museu seria destinado ao uso de uma clientela de filisteus, no sentido de Hannah Arendt: por meio dessas obras-primas, eles procuram "engrandecer-se". Bem longe de autorizar uma apropriação qualquer, coletiva ou elitista, ele era, por excelência, o lugar de um desapossamento generalizado. Não causará espanto que os partidários de uma virtualidade democrática desse estabelecimento se tornem os defensores convencidos da autenticidade da cultura conservada e exposta; ora, essa postura é colocada em dúvida por seus adversários que privilegiam a hipótese de uma solução de continuidade, no caso concreto, uma perda do sentido. Contrariamente a uma legitimidade baseada na utilidade de um equipamento coletivo, a crítica tradicional invocava uma gratuidade implícita da verdadeira cultura. Defender, por exemplo, que as condutas individuais dos colecionadores seriam as únicas capazes de manter o nível de civilização descartava a questão do museu, que passava por um dispositivo marginal, para não dizer parasita. Na melhor das hipóteses, a relação suscitada por seu intermédio com o patrimônio limitava-se a uma utilidade secundária; e, na pior, dava testemunho do fracasso de uma transmissão legítima. De fato, a democratização da civilização só seria viável mediante sua alteração: essa é a dialética do pão e circo; as vicissitudes de sua longa evolução podem ser encontradas no discurso intelectual contemporâneo.27 O espetáculo do museu alimentava então uma postura sobre a decadência ou o' exílio da cultura, além de nutrir a ampla literatura da melancolia pós-revolucionária, a propósito de um mundo fragmentado ou perdido.

Uma encarnação da construção nacional O caso francês ilustra o que o sociólogo Luigi Bobbio designa por concepção nacional-patrimonial, baseada na metáfora da herança, no 27. Patrick Brantlinger, Bread Circuses: Theories ofMass Culture as Social Decay, Ithaca: Cornell University Press, 1983. 24

atributo da soberania e na constituição de um Estado-Nação moderno." Essa concepção é hierárquica e baseia-se em uma administração complexa. Nesta perspectiva, qualquer implementação de um patrimônio serve-se de saberes eruditos, especializados, suscetíveis de legitimar tal intervenção, tal restauração, tal inventário, ou de combatê-los — capazes também de acompanhar uma mobilização cívica ou ideológica. O patrimônio, em outros termos, é um trabalho (por exemplo, o de repertoriar e de fazer a revisão de corpus de monumentos); aliás, seu estatuto e sua ambição dependeram concretamente da posição ocupada, em cada período, por antiquários, arqueólogos, historiadores da arte... no âmago da comunidade intelectual nacional — em particular diante de seus pares linguistas, folcloristas ou arquivistas. O mesmo é dizer quanto o patrimônio está ligado, mais amplamente, aos valores atribuídos a algumas atividades — da mão e da vista — na representação de si de uma sociedade. As primeiras medidas conservadoras, iniciadas pelo papado e por outros estados da Itália, culminaram no reconhecimento de um cânon dos mestres e no princípio de um corpus de objetos a definir e a proteger. Uma das principais datas refere-se ao "decreto de 1601, pelo qual o grande duque Ferdinando de Médicis enumerava dezoito célebres pintores do passado cujas obras não deviam ser vendidas para o exterior".29 Essa declaração solene visava afirmar e perpetuar a excelência do príncipe e do país. Tal é também um dos desígnios das coleções régias que deram origem, por intermédio da Europa, aos museus nacionais. No decorrer do século XVIII, prestava-se uma atenção inédita à eficácia que orienta a ideia de herança: tal medida era considerada como o meio de dissipar a ignorância, aperfeiçoar as artes, além de despertar o espírito público e o amor pela pátria. A preocupação de utilidade relacionava, daí em diante, a conservação de um patrimônio com os efeitos pretendidos tanto para a formação do público como para a prosperidade do país. O processo de legitimação patriótica — iniciado dessa forma — 28. Luigi Bobbio, Le politiche dei beni culturali in Europa, Bolonha: Il Mulino, I992. 29. Ernst Hans Gombrich, Réflexions sur l'histoire de l'art (1987), Nimes: Jacqueline Chambon, 1992, p. 296. 25

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assumiu aos poucos uma fisionomia contemporânea com as confiscações e as transferências sucessivas da Revolução Francesa. Nesse momento-li miar — para retomar a fórmula do antropólogo Victor Turner — em que ocorreu a desintegração da antiga comunidade e a emergência da nova é que se tornou mais evidente a reivindicação de um patrimônio ad hoc, baseado em novas justificativas, acompanhado eventualmente pela proscrição dos antigos signos.30 O patrimônio inscreveu-se desde então em uma vontade geral de criar conexões, vontade que marcou os séculos XIX e XX, em relação com as representações hierárquicas e regulamentares do período precedente. O patrimônio no sentido "legal" surgiu com as legislações nacionais do século XIX, legislações que lhe garantiram um destino específico no meio de todas as manifestações sociais dos objetos. Aliás, tal postura foi assumida em nome do povo, como destinatário eminente e, ao mesmo tempo, o derradeiro responsável por essa herança. A França da primeira metade do século XIX foi, por excelência, o lugar da elaboração progressiva e muitas vezes conflitante dos valores patrimoniais — em oposição, especificamente, ao direito de propriedade?' Em toda parte da Europa, os liberais descobriram e, em seguida, celebraram a preservação das antiguidades nacionais como um dever patriótico — forma moderna de uma cultura declarativa, para falar como JeanClaude Passeron. As destruições de toda espécie foram paralelamente qualificadas, de maneira genérica, como vandalismo. Na França, o célebre colecionador de estampas Michel Hennin foi o primeiro a promover uma história ponderada das destruições e das conservações: ele demonstrou, por um lado, o recuo universal do vandalismo diante da tomada de consciência da herança (mesmo que os interesses pecuniários e determinados delírios ideológicos ou patrióticos tivessem alterado, regularmente, o curso de seu progresso); por outro, a democratização contínua das fruições A patrimonialização confundia-se, mais ou 30. Victor Turner, Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society, Ithaca: Cornell University Press, 1974. 31. Cf. a apresentação clássica do tema, resumida por Joseph L. Sax, "Heritage Preservation as a Public Duty: The Abbé Grégoire and the Origins of an Idea", in Michigan Law Review, vol. 88, n. 5, I990, p. 1I42-1169. 26

menos, com a narrativa de uma socialização progressiva e generosa de coleções e de títulos de propriedade: ao servir-se da pátria como ilustra32 ção, ela enaltecia o labor da ciência e os avanços da instrução pública. Esta construção efetuou-se, de acordo com cada país, em datas bastante diversas: mas, no final do século XIX, por toda a Europa a literatura do patrimônio confundia-se mais ou menos com a denúncia das perdas constatadas e com uma tipologia histórica das destruições, ou seja, pavor e denúncia. Essa mobilização forneceu-lhe seu princípio íntimo de engendramento, ao ritmo das perdas denunciadas na "caixa de poupança" do progresso da humanidade (a imagem encontra-se na 33 obra de Charles Péguy). Convém, aliás, observar que essa literatura patrimonial deu lugar, em breve, não tanto a uma história no sentido estrito do termo, mas à evocação de um movimento de criação e de acúmulo espontâneo, infelizmente interrompido em diferentes lugares. Ao presente "congelado", resultado de uma percepção intelectualizada, historicizada, Péguy opunha os valores da liberdade do verdadeiro presente. Com Bergson, a relação da vida com a história tornou-se uma genuína construção filosófica que enfatiza o fluxo e a emergência, contrariamente a tudo o que tende a fixar-se, oprimir e tiranizar. Desde então, o patrimônio podia inscrever-se em uma relação com o tempo que não era o da história e que, às vezes, o rejeitava"; não se pode desenvolver aqui este aspecto, mas é quase certo que determinado anti-intelectualismo da defesa e da ilustração do patrimônio alimentou-se com essa tradição da relação com o tempo e com esse pensamento da atualidade "viva". Neste ponto, pode esclarecer-nos o que Roland Barthes havia vislum35 brado sob a denominação de "teatralidade" ; assim, sugere-se o termo 32. Michel Hennin, Les Monuments de l'histoire de France: Catalogue des production de la sculpture, de la peinture et de la gravure relatives à l'histoire de France et eles Français, 10 vols., Paris: J.-F. Delion, 1856-1863. Charles Péguy, "Clio: Dialogue de l'histoire et de l'âme païenne", in Robert Burac 33. (org.), Oeuvres en prose complètes, Paris: Gallimard, III, 1992, p. 1028 ss. 34. Cf., a este propósito, os comentários de Georges Poulet, Études sur le temps humain, Paris: Plon, 1950. "O que é a teatralidade? É o teatro sem o texto, é uma espessura de signos e sensações 35. que se edifica no palco a partir do argumento escrito; é essa espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que

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"patrimonialidade" para designar a modalidade sensível de uma experiência do passado, articulada com uma organização do saber identificação, atribuição — capaz de autentificá-lo. Uma primeira patrimonialidade encontra-se na relação íntima ou secreta de um proprietário ou de usufrutuários em diferentes níveis, de especialistas ou de iniciados, em nome de afinidades e convicções, assim como de racionalizações eruditas e de condutas políticas, com determinados objetos, lugares ou monumentos. Mais tarde, na sequência de um longo processo de patrimonialização, a nação é que se tornou o objeto por excelência da patrimonialidade, fornecendo, por assim dizer, o quadro de interpretação de qualquer objeto do passado. No caso francês, a patrimonialização oficial elaborou-se a partir da Revolução, segundo o modelo de uma negociação entre os valores da nação definida em novos termos pela forma contratual e os valores, desta vez, "culturais", que vão aparecendo aos poucos, além de estabilizarem no espaço e no tempo essa construção abstrata — de fato, com o desaparecimento da Igreja e das corporações, a patrimonialidade tradicional tinha ficado fora de circuito. Esse compromisso laborioso entre nacionalidade do contrato e nacionalidade de cultura é que permitiu o triunfo de uma nação-patrimônio a que Camille Jullian, por exemplo, se referia em sua lição inaugural do Cours d'Histoire et d'Antiquités Nationales, no Collège de France, em 7 de dezembro de 1906: "As ruínas dos monumentos dão testemunho não apenas da mão de um operário ou da planta de um arquiteto, mas também dos sentimentos de um povo; elas refletem, para uma pátria, o espírito de uma geração de homens."36 Daí um historicismo mais ou menos explícito, até mesmo uma verdadeira teleologia das heranças sucessivas, assim como a convicção de que o patrimônio, pela necessidade de sua preservação, deve receber o apoio do Estado. submergem o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior." (Roland Barthes, "Le Théâtre de Baudelaire", in Essais critiques, 1954, p. 41.) 36. Primeira lição proferida no Collège de France, em forma de exposição de método, "La vie et l'étude des monuments (rançais" foi publicada em Revue Bleue, Paris, vol. 1, p. 3-4. Na sequência, os nove cursos de 1905 a 19I3 foram editados em Camille Jullian, Au Seuil de notre histoire, Paris: Boivin, 1930. 28

A este modelo opõem-se outras construções que implicam mais precisamente a sociedade civil pelo viés de intelectuais e de associações. Miroslav Hroch, através de uma comparação dos grupos patrióticos em diferentes nações, na Europa Central, identificou três fases: .à primeira situa-se entre 1789 e 1815, quando uma intelligentsia restrita, a única envolvida pela emergência das ideias nacionais associadas à Revolução Francesa, foi bem-sucedida na tentativa de conservar o patrimônio cultural (coletânea de canções e contos populares, codificação e divulgação da língua). Durante uma segunda época (1815-1848), essa ideia difundiu-se entre a burguesia, levando a uma transcrição política desse empreendimento cultural. Enfim, o ano de 1848 inaugurava o último período, quando o nacionalismo recebeu um amplo apoio popular, ilustrado pela Primeira Guerra Mundial e pela queda do Império dos Habsburgos.37 No caso concreto, é no mínimo delicado separar, no decorrer do processo, cultura e nacionalismo."

Um recurso comum Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, os beligerantes mobilizaram amplamente a cultura no esforço de guerra, exacerbando os 39 julgamentos mais xenófobos em relação aos patrimônios estrangeiros. No período entre as duas guerras, o surgimento de ideologias totalitárias, decididas a transformar a exaltação da herança em um instrumento de propaganda, teve consideráveis consequências sobre a própria imagem da cultura, que se tornou objeto de críticas radicais ou de diagnósticos 37. Miroslav Hroch, "De l'Ethnicité à la nation: Un Chemin oublié vers la modernité", in Anthropologie et Sociétés, vol. 19-3, I995, p. 71-86; e Social Preconditions ofNational Revival in Europe: A Comparative Analysis ofthe Social Composition ofPatriotic Groups Among the Smaller European Nations, Nova York: Columbia University Press, 2000. opposition entre nationa38. Alain Dieckoff, "La Déconstruction d'une illusion: L'Introuvable vol. 46, n. 1, 1996. L'Année Sociologique, lisme politique et nationalisme culturel", in d'art 39. Christina Kott, Protéger, confisquer, de'placer: Le Service de préservation des oeuvres tese, Guerre mondiale, 1914-1924, en Belgique et en France occupées pendant la Première EHESS, 2002; Yann Harlaut, La Cathédrale de Reims du 4 septembre Ie914 au 10 juillet Ie938: Idéologies, controverses et pragmatisme, tese, Universidade de Reims, 2006.

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catastróficos. Em 1936, Élie Halévy escrevia que essa época das tiranias caracteriza-se "do ponto de vista intelectual (pela) estatização do pensamento, que por sua vez assume duas formas: uma negativa, pela supressão de qualquer opinião julgada desfavorável ao interesse nacional; e a outra positiva, por aquilo que designamos como a organização d.o entusiasmo"40. Entretanto, as destruições da Segunda Guerra Mundial (bairros e cidades inteiras) é que, sem dúvida, tiveram as mais relevantes consequências sobre a consciência patrimonial europeia, assim como sobre suas modalidades de restauração e de uso. A conservação dos monumentos visava, daí em diante, algo que superava o horizonte do antiquário ou histórico: o que Louis Grodecki designava por busca do "valor do efeito produzido"; a reforma do centro antigo de Varsóvia é um notável exemplo dessas novas representações. Para o professor Zachwatowicz, artesão da reconstrução fidedigna do século XVIII e, às vezes, do século XVI, a justificativa do empreendimento tem a ver com "a vontade de fornecer ao país a consciência de um passado cultural que havia sido ameaçado de negação e de aniquilamento".41 Nem o valor de monumentalidade intencional, nem o de monumento histórico, nem o do monumento antigo — para retomar a tipologia do historiador da arte Alois Riegl —, constituem aqui a referência obrigatória. O mesmo se passa com as discussões a propósito da reconstrução do castelo na área central de Berlim, desencadeadas em meados da década de 1990, em nome da reconquista da cidade perdida. Pode-se reconhecer aí uma das figuras características do patrimônio contemporâneo, tornado lugar-comum dos discursos sobre a identidade. O termo "patrimônio" conheceu desse modo um notável sucesso no mundo inteiro: o caso da França, país em que o rápido desenvolvimento da fórmula apoiou-se na comemoração do Ano do Patrimônio, no limiar da década de 1980, é uma de suas mais notáveis ilustrações. A representação de uma herança a ser conservada, tomando as

providências para sua manutenção e transmissão, parece satisfazer uma das aspirações profundas das sociedades contemporâneas. Encarnação consensual dos valores cívicos, além de pretexto para articular atitudes culturais e práticas de consumo, essa verdadeira explosão de iniciativas patrimoniais corresponde certamente à nova condição — pelo menos nesse plano — de obras ou de lugares que se encontravam sem uso no espaço público. Mas, sobretudo, ela fornece recursos apropriados para alimentar um ideal de participação ativa no âmago de coletividades inéditas (no museu ou in situ, .diante do monumento ou sobre um território). Sob o signo de uma "provocação da memória", o patrimônio instala-se assim no centro da instituição da cultura e é acompanhado por uma ética, ao mesmo tempo, da precaução e da fruição. Desse modo, esboça-se, em arqueologia ou em arquivística, uma exigência de respeito pelo objeto, ao definir regras de tratamento de sua diferença» O conjunto dessas iniciativas revela a generalização de uma sensibilidade em relação a uma herança "cultural" cujo interesse parece, com ou sem razão, ter sido negado ou ignorado durante um período demasiado longo. Esse postulado alimenta, hoje em dia, uma consciência aguda de que a definição e os contornos dos patrimônios estão profundamente associados à atualidade de uma sociedade, a seus interesses do momento e até mesmo a suas modas. De fato, tal restauração de monumentos históricos, tal museografia, tais conclusões dos folcloristas do século passado são tão reveladoras de um momento da metamorfose patrimonial quanto da autenticidade dos objetos ou das práticas que, supostamente, elas deveriam conservar e valorizar; assim, sob a óptica moderna, o patrimônio revelaria leituras em vários planos. Essa nova consciência da patrimonialização acompanha a promoção de novas relíquias, em uma perspectiva relativamente restritiva. Com efeito, em numerosos países, o patrimônio tornou-se um dos desafios do desenvolvimento cultural. Na França, segundo parece, tal ambição data do decreto de nomeação de André Malraux como ministro de

40. Élie Halévy, L'Ère des tyrannies, Paris: Gallimard, 1938 [2. ed., 1990]. 41. Apud Louis Grodecki, "Tendances actuelles dans la restauration des monuments historiques", in Les Monuments historiques de la France, 1965, retomado in Le Moyen Age retrouvé, II, Paris: Flammarion, 1991, p. 398.

42. Cf., entre as numerosas referências, Michael Shanks e Christopher Tilley, Re-constructing Archaeology — Theory and Practice, Londres: Routledge, 1922, p. 138. Nesse aspecto, a literatura sobre o arquivo é considerável: cf. Helen Freshwater, "The allure of the archive", in Poetics Today, vol. 24, n. 4, 2003, p. 729-758.

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Estado dos Assuntos Culturais (3 de fevereiro de 1959), que o incumbia "de garantir a mais ampla audiência a nosso patrimônio cultural". Mais tarde, em 1975, o termo foi estendido à Comunidade Europeia, enquanto os discursos oficiais davam testemunho, progressivamente, de um desígnio militante. O vocabulário administrativo carregou sua marca, desde a promoção dos "novos patrimônios", em 1981, até o colóquio Les Monuments Historiques Demain (1984), os Encontros Nacionais dos Ecomuseus (En Avant la Mémoire!, 1986) ou o Fórum do Patrimônio, realizado, de maneira aparentemente paradoxal, na Cité des Sciences et de l'Industrie de la Villette (Paris, 1987). Na esteira de todos esses eventos, uma abundante literatura profissional tem mostrado empenho em inventariar os patrimônios inéditos ou em adaptar os patrimônios já identificados que exigem ser renovados e atualizados. Tais mutações passaram por ritmos diversificados, segundo as tradições culturais dos diferentes países; no entanto, o movimento de conjunto não deixa de ser impressionante. A partir do decênio 19801990, políticos e cidadãos compartilharam a "evidência" segundo a qual tudo deveria ser considerado a priori como elemento do patrimônio (a fórmula é utilizada, nos últimos quinze anos, por diferentes ministros ou responsáveis europeus). Trata-se de encontrar, de novo, a figura já evocada da cultura-estilo: com a atribuição de estatuto de museu para o jardin ouvrier43, assim como para o galpão de ensaios de um grupo de rock pesado, as culturas de todos os grupos sociais são suscetíveis de passar por patrimônios, em um caleidoscópio de identidades. Enfim, a antecipação dos riscos de desaparecimento contribui para que o desafio econômico se torne patente. Ao exigir uma redefinição científica e, ao mesmo tempo, um novo estatuto para os objetos visados, cada reivindicação de um novo registro no patrimônio suscita também mercados especializados — o da restauração e o do tratamento. A ideia de um reservatório de empregos e de habilidades amplamente disponíveis 43. Criados no final do século XIX, os jardins ouvriers — e, após a Segunda Guerra Mundial, designados por jardins familiaux ou hortas comunitárias — são parcelas de terreno disponibilizadas pelas municipalidades, visando melhorar as condições de vida dos operários ao proporcionar-lhes, além de uma autossubsistência alimentar, o contato com a natureza, afastando-os dos botequins. [N.T.] 32

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em torno da temática do patrimônio, e, se for o caso, exportáveis na área de influência de cada nação, esteve assim particularmente presente na Europa nos últimos anos. Hoje em dia, a patrimonialização parece confundir-se com a patrimonialidade — no sentido em que a atribuição do qualificativo "patrimônio" a objetos no seio de determinada sociedade e sua preservação legal identifica-se, aparentemente, com o lugar sensível e íntimo que eles ocupam no âmago das consciências individuais ou dos grupos sociais, em decorrência do esforço despendido para viver em harmonia com a cultura material do passado. Entretanto, o patrimônio não está indene, muito pelo contrário, de vontades predadoras: tanto os monumentos celebrados pela "tradição do novo" quanto os objetos da família que, cotidianamente, entram no museu têm a ver com modalidades de apropriação que, sem qualquer embasamento, são consideradas óbvias, para não dizer "naturais". Esperamos que o retorno aos alicerces do patrimônio nacional — de acordo com nossa proposta neste livro permita uma abordagem renovada do fenômeno.

A caminho de uma antropologia histórica da patrimonialização francesa As inscrições da patrimonialidade e as formas de patrimonialização passam, entre o final do século XVIII e a década de 1830, de uma representação "monumental" do saber e da memória para uma configuração que compreende todos os elementos da cultura material do passado, tal como ela era compreendida, na época, pela nova história." A partir da Revolução, diferentes processos — da invenção do museu à invenção do monumento histórico, desde a reconfiguração da arqueologia aos sucessos do romance histórico — inventaram uma tradição patrimonial que remete à nova coletividade nacional e, durante muito tempo, irá permanecer como a base das atitudes francesas diante da herança. 44. Cf. Patrick H. Hutton, "The Role of Memory in the Historiography of the French Revolution", in History and Theory, vol. 30, n. 1, 199I, p. 56-69. 33

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

A Revolução não é somente uma vontade de desligar-se do Antigo Regime que serve de suporte ao que François Furet designava por "uma espécie de hipertrofia da consciência histórica" — entenda-se, a consciência exacerbada da ruptura, conjugada a uma atrofia do sentido da profundidade da história" —, mas constitui também uma inflexão importante da inscrição memorial. Na sequência desses decênios, a memória cultural convoca de maneira privilegiada os vestígios materiais do passado, por intermédio dos textos." O presente estudo gostaria de delinear, em primeiro lugar, a reviravolta desse modo de inscrição da memória cultural que tem a ver, amplamente, com a emergência de uma representação da história, cuja função, de acordo com a afirmação de Alphonse Dupront, consiste em "desdobrar o que foi endurecido elo tempo" em uma variedade cada vez mais considerável de objetos. A consciência de viver em uma temporalidade comum, de pertencer a uma contemporaneidade afastada do passado e distinta de um futuro ilimitado e incerto, é provavelmente um dos resultados mais evidentes dos decênios revolucionário e imperial, transformando-os em uma experiência amplamente compartilhada.47 O Antigo Regime havia desaparecido mediante a destruição de seus signos, vestígios e símbolos; mais tarde, porém, sua nostalgia mobilizou suas relíquias — assim como as lembranças orais consignadas com um maior ou menor grau de devoção. Mas esse conjunto de ruínas já não oferece perspectiva contínua, nem permite uma leitura convincente: sua fragmentação sugere um trabalho de esquecimento e supressão que deverá ser integrado, daí em diante, às representações do passado. Nesse domínio, os textos limitaram-se a desempenhar um papel bastante precário, diferentemente dos períodos precedentes, em que a transmissão à posteridade reivindicava, acima de tudo, o documento escrito. Os múltiplos episódios de descobertas, no decorrer do século XIX, 45. François Furet, Penser Ia Révolution Française, Paris: Gallimard, 1978, p. 15, 31-32, 46-49. Jan Assmann, "Collective Memory and Cultural Identity", in New German Critique, 46. vol. 65, 1995, p. 125-133. 47. Nesse aspecto, concordo com Peter Fritzsche, "Specters of History: On Nostalgia, Exile and Modernity", in American Historical Review, vol. 106, n. 5, 2005.

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de arquivos e de monumentos entre imundícies ou depósitos negligenciados indicam o advento da modernidade. Ao longo do século XIX, uma infinidade de diversos monumentos, de tapeçarias a túmulos, são "inventados" por diferentes patrimonializadores, de acordo com o espírito de um salvamento: eles passam por elementos privilegiados da memória cultural — ao lado das práticas costumeiras e das tradições orais, ou seja, as "vozes que vêm do passado", coletadas e estudadas simultaneamente, assim como à procura das últimas testemunhas de um passado desaparecido." Na sequência, a manutenção de antiguidades no seio dos lares burgueses e a proliferação dos arquivos familiares participaram do mesmo movimento pelo qual a transmissão à posteridade, muito apreciada pelas Luzes e pela Revolução, reconfigurou-se em um tratamento de objetos materiais, sempre incompletos e ameaçados." O primeiro capítulo deste livro é dedicado ao regime da curiosidade histórica, tal como é concebido pelas Luzes. Ele havia estabelecido com os monumentos, as coleções históricas e as antiguidades uma relação ambígua; de fato, aos testemunhos materiais autênticos são acrescentados monumentos imaginários, organizados e apresentados ao público em espaços abertos, de diferentes status, desde os "países das ilusões" até os jardins públicos. Semelhantes dispositivos forneceram aos espectadores não só elementos de conhecimento, mas também de fruição e de emoção; os supostos benefícios da paisagem constituída por monumentos antigos alimentaram, paralelamente, utopias arquiteturais e políticas. Aos poucos, a comparação entre objetos dos antiquários e textos dos historiadores esboçava a fisionomia inédita de uma autenticidade passada — figura de ruptura com o presente, o familiar e o convencional. Dois episódios particularmente cruciais forneceram, em seguida, matéria para os três capítulos centrais deste livro. O primeiro é o do " vandalismo" revolucionário. A nacionalização de bens patrimoniais, o 48. Philippe Joutard, Ces Voix qui nous viennent du passé, Paris: Hachette, 1983. 49. Para sua versão contemporânea, cf. Janet Hoskins, Biographical Objects, How Things Tell the Stones of People's Live:, Londres: Routledge, 1998.

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inventário das riquezas da França, as medidas iconoclastas acabaram por suscitar uma consciência inédita dos vestígios do passado na paisagem presente, sem deixar de enfatizar uma opacidade sem precedentes, ao mesmo tempo ameaçadora e crepuscular. Uma busca histérica de utilidade marcou, em seguida, sua recensão e conservação. Entre os vencidos da história, a preocupação em proteger determinado monumento do passado, sinal de uma diferença quase ontológica, incrementou um sentido do passado que, pelo contrário, se tornou valor de resistência. Nesse aspecto, a questão dos mortos é fundamental, já que remete à partilha entre comunidade e coletividade: a funcionalização dos mortos, reconhecida por Reinhart Koselleck como origem do novo regime, traduz-se por uma nova economia relativa aos monumentos. Outrora, os defuntos pertenciam à comunidade cristã ou a uma comunidade da lembrança. Daí em diante, o processo de patrimonialização das personalidades importantes exige uma utilidade material e documental para a coletividade. Trata-se, nesse caso, de uma dessacralização dos monumentos, acompanhada por processos de desencarnação do Estado, pela obsessão da idolatria e, de maneira geral, pelo temor do sensualismo em relação às imagens. Até hoje, tal clivagem percorre a literatura patrimonial, produzida na França, entre a nostalgia de uma herança comunitária (e religiosa) e o funcionalismo de um patrimônio que ilustra o universal (laico). Por um lado, a patrimonialização justifica-se por preocupações práticas e pela eficácia dos valores modernos; por outro, a exigência de vínculos e o protesto em prol de uma identidade em partilha têm valor de reivindicação de uma patrimonialidade ameaçada. A geração de 1830 realizou um trabalho de luto, em relação tanto ao Antigo Regime, ao qual já não pode retornar, quanto à ilusão do futuro proposto em 1789. Diante do que parece ser uma insegurança moral inédita — a responsabilidade de destruir ou perpetuar determinados edifícios, símbolos da beleza universal, é deixada a seus proprietários ocasionais —, Victor Hugo (1802-1885) defende uma garantia irrevogável da transmissão, delineando um horizonte de expectativa desligado, daí em diante, do apelo às lembranças, integrado a uma reflexão sobre a 36

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instituição da educação." O esforço ulterior do político e historiador François Guizot (1787-1874) é exemplar de uma vontade de superar, por uma colocação em perspectiva histórica, visões partidárias condenadas à falência, além de ter fundado, em uma imparcialidade sem precedentes, a conservação da civilização e de sua herança. Finalmente, o primado dos vestígios materiais sobre as outras fontes torna-se banal nos escritos dos arqueólogos: "O menor vestígio que tenha escapado das ruínas da Antiguidade fornece-nos a seu respeito mais ensinamentos", afirma Raoul-Rochette, "que todos os livros." Daí resulta uma nova poética do saber histórico, da qual Napoleão Bonaparte é testemunha ao garantir que foi "levado à Síria", segundo a afirmação de Alexandre Lenoir 51 , depois de ter visitado o Museu dos Monumentos Franceses. Contrariamente ao modelo clássico da coleta de monumentos ou da compilação dos antiquários, o romance histórico, assim como a viagem pitoresca, serve-se de monumentos e de lugares como se tratasse de outros tantos cronotopos (M. Bakhtin, cf. cap. 4) propícios a instigar o leitor. Na sequência, a prosa de Walter Scott, assim como o colecionismo de Alexandre du Sommerard no Hôtel de Cluny52, circunscrevem o espaço da vida privada como o verdadeiro lugar de inscrição da diferença histórica." Daí em diante, o passado torna-se o pretexto para investimentos subjetivos e, ao mesmo tempo, para um uso crítico, capazes de constituir um acervo a partir de uma diversidade inédita das referências — em vez dos estereótipos precedentes, o Antiquado ou Antigo Regime.

50. Cf. Frédérique Diodati-Remandet, "La Réflexion éducative de Hugo sous la monarchie de Juillet", relatório da comunicação ao Groupe Hugo (Universidade de Paris VII), em 20 de maio de 1995. 51. Arqueólogo francês (1761-1839) que, durante a Revolução Francesa, coletou e preservou um grande número de esculturas e monumentos funerários, tendo criado o Musée des Monuments Français no antigo convento dos Petits-Augustins, em Paris; atualmente, École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (ENSBA). [N.T.] 52. Edifício do século XV, localizado perto da Sorbonne, que serviu de residência ao arqueólogo Alexandre Du Sommerard (1779-1842), colecionador de objetos de arte da Idade Média e do Renascimento. Atualmente, museu que abriga a "Seção Medieval" do Departamento dos Objetos de Arte do Louvre. [N.T.] 53. Stephen Bann, The Clothing of Clio, Cambridge: Cambridge University Press, 1984. 37

1 UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA Um idioma comum seria o único recurso para estabelecer uma correspondência que se estendesse a todas as partes do gênero humano e as ligasse contra a Natureza que tem sido maltratada incessantemente por nós, do ponto de vista físico e moral. No pressuposto da aceitação e regulamentação deste idioma, as noções tornam-se, imediatamente, permanentes; desaparece a distância entre os tempos; os lugares tocam-se; formam-se vínculos entre todos os pontos habitados do espaço e da duração; além disso, todos os seres vivos & pensantes estabelecem intercâmbio entre si. Diderot e D'Alembert, "Encyclopédie", in Encyclopédie, Paris, 1751-1772, vol. 5.

A famosa Voyage en Italie de Goethe ilustra, de maneira clássica, o percurso de um viajante que conhece, como é designado pelo autor, um segundo nascimento"'; trata-se, também, por excelência, de uma viagem patrimonializadora, oportunidade para uma série de aquisições, que redundou na criação de uma casa-museu em Weimar, na qual os viajantes do século XIX puderam, por sua vez, usufruir dos múltiplos tesouros e lembranças do mundo antigo, coletados no decorrer dos périplos goethianos de 1786-1788. De resto, as notas de Goethe contêm numerosos resumos para o historiador do patrimônio e dos museus desde as observações sobre a iluminação noturna das estátuas nos museus romanos, a partir da década de 1780, até a intuição de um vínculo entre o progresso dos recursos de reprodução, a comercialização de novos produtos de "populuxo"2 e a multiplicação dos elementos de um patrimônio. Como prova, ele apresenta "o arriscado empreendimento que consistiu 1. Cf. Goethe, Voyage en Italie, edição estabelecida por Jean Lacoste, Paris: Bartillat, 2003. 2. Cf., por exemplo, Maxine Berg, "From Imitation to Invention: Creating Commodities in Eighteenth-Century Britain", in The Economic History Review, vol. 55, n. 1, 2002. ["Populuxo": consumismo acelerado pelo desejo de modernidade. (N.T.)] 39

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em realizar uma cópia das Logge [no Vaticano] de Rafael para a imperatriz Catarina", de que nosso viajante tem um conhecimento parcial em setembro de 1787, equiparando-o às diversões para turistas, como são, na época, a encáustica e a fabricação de pedras artificiais. 3 Mas, no livro citado, vamos chamar a atenção sobretudo para três episódios, cuja natureza é bastante diferente — duas gargalhadas e um início de motim —, que dão testemunho do que poderia ser designado como uma antropologia histórica do patrimônio.

A invenção identitária Qualquer tipo de patrimônio, tal como o entendemos atualmente, tem a vocação de encarnar uma identidade em certo número de obras ou de lugares. Neste aspecto, conhece-se o sucesso obtido pelas páginas de Goethe dedicadas à catedral de Estrasburgo.4 Em Malcesine, perto de Verona, ele enfrentou o que, de acordo com suas palavras, é "uma perigosa aventura", mas "cuja lembrança (lhe) parece divertida", sem deixar de ser significativa. O viajante estava desenhando, no próprio local, um velho castelo quando, aos poucos, juntou-se uma multidão à sua volta, perguntando-lhe o motivo de seu trabalho; os espectadores acabaram por rasgar seu desenho e mandaram chamar o podestade. Diante dessa autoridade, Goethe afirmou que se limitava a reproduzir restos e não propriamente uma fortaleza, enquanto seus adversários opinaram que ele estava fazendo espionagem por conta do território vizinho. O debate acabou por fazer referência à definição do que é digno de ser relevado: a evocação das ruínas de Roma, ou do anfiteatro de Verona, para defender a causa das "belezas pitorescas" da Idade Média foi contestada pelos habitantes. Com efeito, os edifícios romanos eram célebres "em todo o mundo", contrariamente a "estas torres que nada têm de notável a não ser o fato de indicarem a divisa entre o território de 3. Goethe, op. cit., p. 458. 4. Cf.,France-Almg para a interpretação de conjunto, Louis Dumont, L'Idéologie allemande: et retour, Paris: Gallimard, 1991; Celia Applegate, A Nation of Provinciais: The German Idea of Heimat, Berkeley: University of California Press, 1990. 40

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Veneza e o Império da Áustria"5. O viajante encontrou-se realmente em apuros e só conseguiu escapar dessa situação crítica graças ao testemunho em seu favor de um italiano que conhecia bem Frankfurt. Esse episódio mostra, de maneira exemplar, o que seríamos tentados a designar como uma pedagogia política do patrimônio: o intelectual alienígena propôs, por assim dizer, uma identidade (memorial e estética) a uma comunidade que desejava ignorar semelhante atribuição. "Eu não poderia criticar os habitantes de Malcesine, acostumados desde a infância a este edifício, por não o terem considerado — a exemplo de minha percepção — como uma beleza pitoresca. Com seus resplandecentes raios, o sol veio, providencialmente, iluminar a torre, as rochas e as muralhas; então, comecei a descrever-lhes esse cenário com entusiasmo. Mas, como meu público estava de costas para os objetos elogiados e se recusava afastar-se de mim, todas as cabeças giraram de repente [...] para o objeto descrito. [...] Nada lhes poupei, nem sequer a hera que, há séculos, tinha tido tempo para cobrir o rochedo e os muros com a mais deslumbrante decoração." Nesse episódio, verifica-se o confronto entre duas representações: a primeira, familiar aos súditos do Antigo Regime, era a de um território, cujos limites são materializados por diversos monumentos e cujo controle dependia de um saber estratégico, objeto eventual de espionagem. A representação estetizada de uma paisagem a ser desenhada ou pintada — que ilustra, aqui, a categoria do sublime ou a do pitoresco medieval — caracterizava, em compensação, o mundo das elites, 6 em particular o microcosmo dos amadores de desenho. O homem de gosto, estranho à comunidade tradicional, transformava-se aqui no mentor de um orgulho local, propondo-lhe inscrever-se em uma i magem que ele havia inventado — e que há de tornar-se rapidamente um lugar-comum romântico. Para além da viagem pitoresca, da qual ela participava com essa figura de desenhador de temas, a postura de Goethe anunciava uma posição que, mais tarde, será ocupada pelo 5. Goethe, op. cit., p. 37 (14 set. 1786). 6. Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Nova York/Londres: Verso, 1991. 41

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Inspetor dos Monumentos Históricos, na configuração imaginada, em 1830, pelo político influente e historiador François Guizot: trata-se da capacidade de dirigir as consciências e os modos de apropriação dos habitantes, graças a uma pedagogia política e cultural.' Entretempo, o viajante tornar-se-á um expert, empossado de uma legitimidade que, evidentemente, não existia nesse caso, já que ela é amplamente a herança do momento revolucionário. Para a geração de 1820-1830, a definição patrimonial das paisagens da França Antiga elaborou-se a partir da tábula rasa dos velhos territórios políticos das províncias, depois de ter sido aceita a nova divisão administrativa em departamentos: na perspectiva, acalentada por Emmanuel Sieyès, de uma adunação territorial, adaptada a uma nova arte política.8

A transferência da sacralidade O segundo episódio remete à necessária articulação de um patrimônio com práticas, em face de um sensualismo que, por sua vez, receia tanto mais os efeitos perversos de afinidades imprevistas que ele está pronto a elogiar as consequências benéficas de identificações legítimas, educativas ou patrióticas. A propósito de uma estátua de Minerva do palácio Giustiniani, Goethe descreveu os comentários da mulher do porteiro: impressionada com a admiração suscitada nos ingleses por esse objeto, ela havia concluído que se tratava de uma imagem sagrada de outrora; assim, 7. Para o Relatório referente à criação deste cargo, cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3a ed., São Paulo: Unesp/Estação Liberdade, 2006, "Anexo", p. 259. [N.T.) 8. De acordo com Sieyès, o projeto de constituição da nação passa por um trabalho de adunação — tendo em vista a unidade de cidadãos iguais pelo sacrifício dos indivíduos — que implica o novo corte departamental, a supressão das comunidades e das distinções geográficas, em poucas palavras, uma divisão instrumental. Alain Desrosières, La Politique des grands nombres, Paris: La Découverte, 1993, p. 43-48; Pierre Rosanvallon, Le Peuple introuvable: Histoire de la représentation démocratique en France, Paris: Gallimard, 1998. Para a fisionomia dessa ciência social, cf. Keith M. Baker, "Closing the French Revolution: Saint-Simon and Comte", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), The Transformation of Political Culture, Ie789-Ie848, Oxford: Pergamon, 1989, p. 337 ss. 42

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essas pessoas "professavam tal religião e ainda tinham o costume de prestar-lhe adoração". "Ela acrescentou que, ultimamente, uma senhora dessa religião tinha ficado de joelhos diante da estátua para adorá-la. Como boa cristã, não pôde deixar de rir diante de um ato tão bizarro e teve de sair da sala para não dar uma gargalhada." "Como eu próprio não conseguia afastar-me da Minerva", prosseguiu Goethe, "a mulher perguntou-me se, porventura, eu tinha uma amante parecida com esse mármore por exercer tamanho atrativo sobre mim. Essa senhora li mitava-se a conhecer a devoção e o amor; assim, não podia ter qualquer ideia, seja da pura admiração por uma obra nobre, ou do respeito 9 fraterno pelo gênio do artista." O tema tornou-se recorrente em numerosos relatos de viajantes ou de visitantes de museus. Semelhantes estereótipos suscitam a questão da cristalização, para retomar a célebre análise stendhaliana do amor, em face da ignorância. Nesse aspecto, Goethe não defendeu qualquer proposição — quando, afinal, a retórica revolucionária e, em seguida, suas versões progressistas ulteriores hão de conformar-se a um ideal de educação. Em particular, o valor superior das obras de arte da Antiguidade culminará, na versão revolucionária, em um panegírico da apropriação nacional, na perspectiva de uma regeneração: "A maior parte dos monumentos da Antiguidade limita-se a oferecer aos súditos dos déspotas um espetáculo penoso, lembranças amargas e lições inúteis, já que raramente eles tiveram coragem de tirar proveito desses objetos. Pelo contrário, os povos livres apreciam ver em tais obras o gênio das artes apoiado pelo gênio da Liberdade; elas servem-lhes de modelos. Além disso, o gênero de estudo pelo qual a Grécia e a Itália republicanas são associadas à França regenerada é uma das disciplinas cujo gosto deve ser divulgado o mais amplamente possível e cujo ensino deve ser facilitado."

9. Goethe, op. cit., p. 184 (Roma, 13 jan. 1787).

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A construção do valor No final de fevereiro de 1787, Goethe dirigiu-se, pela Via Appia, de Roma para Velletri, sítio em que ele descobriu lugares "de uma beleza inexprimível" e, sobretudo, o museu do cavaleiro Borgia, espaço ocupado por antiguidades e raridades de toda a espécie: "Seria imperdoável não visitar, com maior frequência, este tesouro situado tão perto de Roma; mas, o vínculo mágico que nos prende a esta cidade pode servir de desculpa." A fórmula indicava a especificidade da Urbs e, por extensão, de qualquer capital cultural: a distinção entre patrimônio universal e patrimônios locais remetia a uma escala de excelência ou de abundância, sem ser exclusiva de diferentes partilhas. No entanto, o episódio é válido, sobretudo por enfatizar contestações imprevistas relativamente ao valor dos objetos. Ao deixar o gabinete Borgia 1°, Goethe foi, de fato, vítima de uma brincadeira detestada por ele: "Ao nos dirigirmos para a estalagem, algumas mulheres, sentadas diante da porta das casas, propuseram-nos o seguinte: 'Os senhores não gostariam, também, de comprar antiguidades?' E como demonstrássemos nosso interesse, elas trouxeram velhas caldeiras, atiçadores e outros utensílios em mau estado, dando gargalhadas por nos terem pregado tal peça. Ficamos furiosos, mas nosso guia tranquilizou-nos ao garantir que se tratava de uma brincadeira habitual e era um tributo a ser pago por todos os estrangeiros." Essa espécie de vexame imposto aos incautos estrangeiros constituía uma inversão carnavalesca da arte antiga à contemporânea, de um gabinete de elite às baterias de cozinha com utensílios desgastados, o que evocava forçosamente o deboche dos filósofos e dos historiadores em relação aos antiquários que estariam interessados exclusivamente pelas caçarolas e colheres dos Antigos — ver Diderot e seu desdém pelo erudito Fougeroux.12 De qualquer modo, tais manifestações femininas 10. Cf. Marco Nocca (org.), Le quattro voci del mondo: Arte, cultura e saperi nella collezione di Stefano Borgia Ie731-1804, Nápoles: Electa, 2001. 11. Goethe, op. cit., p. 208-209 (22 de fevereiro de 1787). 12. Em seu comentário a respeito de Recherches sur les mines d'Herculanum, por M. Fougeroux de Bondaroi, 1769. 44

parecem negar, de antemão, qualquer tentativa de ordem pedagógica ao zombarem do interesse que os estrangeiros ricos nutrem por "lembranças" antigas. Se, nos dois primeiros episódios, permanece indene o amor próprio do viajante, já que a ingenuidade encontra-se na origem de reações ridículas ou incongruentes, neste último caso ele é achincalhado por uma subversão do saber e do gosto. Após a Revolução Francesa, Quatremère de Quincy defenderá a antiga afeição às obras, mesmo quando ela está baseada em ilusões e erros, por dar testemunho de uma verdadeira admiração ou, pelo menos, de um sentido de sua destinação e de seu contexto. Mas as experiências de Goethe não têm relação com o mundo pós-revolucionário — desse novo tradicionalismo que corresponde à reviravolta anterior. Sua viagem dava testemunho de um mundo do patrimônio amplamente incoativo, exposto a inúmeras contestações, e que devia lutar para conseguir a legitimidade exclusiva na abordagem das paisagens, lugares e objetos do passado. y

O monumento e a história O dicionário de D'Aviler ( Cours d'architecture avec une ample explication par ordre alphabétique de tous les termes, 1761) definia o monumento nestes termos: "qualquer construção que serve para conservar a memória do tempo e de seu fabricante ou daquele para quem havia sido erguido, tal como um arco de triunfo, um mausoléu ou uma pirâmide". O deputado Armand-Guy Kersaint, em seu Discours sur les monuments publics, pronunciado em 15 de dezembro de 1791, declarava igualmente que "os monumentos são as testemunhas irrepreensíveis da história; sem suas augustas ruínas, tudo o que ela nos transmitiu dos gregos e romanos teria deixado a impressão de uma simples fábula" (p. VI).13 13. Sobre a teoria da arquitetura no século XVIII, cf. Françoise Fichet, La Théorie architecturale à l'âge classique, anthologie, Bruxelas: Mardaga, 1979; John Summerson, Le Langage de l'architecture classique, Paris: Thames & Hudson, 1992; Werner Szambien, Symétrie, goût , caractère: Théorie et terminologie de l'architecture à l'âge classique, 1550Ie800, Paris: Picard, 1986.

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Por sua vez, o Dictionnaire des beaux-arts (1806) de Aubin-Louis Millin continuava definindo o monumento como uma "obra de arte erguida em uma praça pública para conservar e transmitir à posteridade a memória das personagens ilustres ou dos acontecimentos notáveis [...], uma obra de arquitetura em que as artes do desenho foram utilizadas para falar à posteridade". Além disso, em sua acepção banal, o termo é sinônimo de "túmulo". Nas publicações neoclássicas, o monumento situava-se no topo de uma escala implícita dos valores, como único digno de transmitir à posteridade os sinais de uma civilização importante. Seu estudo harmonizava-se com um credo estético, assim como ético-político. Desse modo, a pirâmide representava para Étienne-Louis Boullée o monumento por excelência, pelo fato de ter conseguido atravessar os séculos, dando testemunho de um povo famoso pelo interesse manifestado por seus mortos: "É óbvio que, ao erguer essa espécie de monumento, o objetivo é perpetuar a memória daqueles a quem eles são dedicados. Convém, portanto, que tais monumentos sejam concebidos de maneira a desafiar os danos provocados pelo tempo; os egípcios deixaram-nos exemplos famosos."14 No entanto, a passagem do monumento para o santuário, nas versões negativas da história, ilustrava a transformação da estátua em ídolo. Autor de Origine, progrès et décadence de l'idolâtrie (1757), Guillaume-Alexandre de Méhégan assegurava que as estátuas — inicialmente associadas aos túmulos — acabaram por se transformar em altares de divindades: "Esses túmulos foram convertidos aos poucos em uma espécie de templos... Um primeiro movimento faz quase sempre imaginar — sobretudo a homens rudimentares — que as almas associadas às cinzas permanecem, de algum modo, com elas e continuam habitando nos mesmos lugares."15 A convicção de que existe uma linguagem simbólica dos monumentos era acompanhada e alimentada pela tarefa de inventário do mundo antigo. Além disso, tratava-se de defender o princípio de uma 14. Étienne-Louis Boullée, Architecture: Essai sur l'art, apresentação de Jean-Marie Pérouse de Montclos, Paris: Hermann, 1968. 15. ApudAnne Betty Weinshenker, "Idolatry and Sculpture in Ancien Regime France", in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, 2005, p. 495-507.

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linguagem compartilhada da arquitetura que refletisse os gostos e os conhecimentos de diversas civilizações, ao serem contestados seus fundamentos "naturais". O tratado do padre De Lubersac é um bom resumo de tal campo de investigação (seu Discours sur les monuments publics de tous les âges et de tous les peuples connus, de 1775, compreendia igualmente uma análise crítica das fabriques — veja definição mais abaixo — construídas nos jardins contemporâneos, tal como o parque Monceau, em Paris), assim como o de Nicolas Le Camus de Mézières (Le Génie de l'architecture ou l'analogie de cet art avec nos sensations, 1780), ele próprio autor de uma descrição do jardim pitoresco, sua ambição final. Em seu livro Lettres sur l'architecture des anciens (1787), Viel de Saint-Maux explicava a inspiração "simbólica" e "alegórica" da arquitetura antiga: os templos da Antiguidade eram celebrações da astronomia em todos os seus detalhes; cada forma e cada número eram escolhidos por sua lição ou embelezados com alguma mensagem significativa. A impossível decifração dos monumentos antigos não era seu menor atrativo, no momento em que o hieróglifo passava por ser um paradigma. Para Dominique-Vivant Denon, os monumentos egípcios "eram os livros abertos em que a ciência era desenvolvida, a moral era ditada e as artes úteis eram professadas; tudo falava, tudo era animado 6 e sempre com o mesmo espírito".1 Em um círculo interminável da interpretação simbólica, o relatório de Lenoir, Antiquités mexicaines, reconhecia, por sua vez, hieróglifos nos monumentos americanos. De maneira geral, a arquitetura, "associada ao brusco desenvolvimento do urbanismo, à criação de novas cidades e à exumação das cidades soterradas, é sem dúvida o mais amplo e mais bem caracterizado 17 domínio de aplicação — ou de projeção utópica — da arte neoclássica". Os projetos de embelezamento urbano do século XVIII, as cidades 16. D.-V. Denon, Voyage dans la Basse et Haute-Égypte en 1798 et Ie799, Paris: Didot l'Ainé, 1802, p. 180. 17. Jean Leymarie, prefácio de David e Roma, Roma: De Lucca, 1980, p. 10. Cf. sobre esses temas: Allan Braham, L'Architecture des Lumières de Soufflot à Ledoux, Paris: Berger-Levrault, 1982 (1. ed. em inglês, 1980); Helen Rosenau, "The Functional and the Ideal in Late Eighteenth Century French Architecture", in Architectural Review, t. 140, 1966; Antony Vidler, Claude-Nicolas Ledoux: Architecture and Social Reforme at the End of the Ancien Régime, Cambridge: MIT, 1990.

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i maginárias das utopias iluministas, enfim, as festas da Revolução Francesa acalentavam a ideia de um monumento público ideal que, "pelas imagens oferecidas a nossos sentidos", deveria, de acordo com Boullée, "estimular em nós sentimentos análogos ao uso a que ele é destinado".18 Em seu livro Architecture (1847), Claude-Nicolas Ledoux — precursor da arquitetura funcional — resumia o empreendimento visado e seus desafios: "Se os artistas aceitassem adotar o sistema simbólico que caracteriza cada produção, eles haveriam de adquirir uma glória semelhante à que é atribuída aos poetas; dariam forma às ideias de quem lhes solicita seu conselho e não haveria sequer uma pedra que, em suas obras, não fosse significativa para os passantes" (I, p. 115); à semelhança de um La Font de Saint-Yenne, que criticava a cena de gênero ("o pintor historiador é o único que pinta a alma, enquanto os outros limitam-se a pintar para seus olhos"), ele atacava os "arquitetos do retrato" em nome do gênero monumental — dos valores do memorial e da comemoração. Desse modo, o arquiteto assemelha-se ao detentor da história e da memória das civilizações. Kersaint abria seu Discours sur les monuments publics, pronunciado no Conselho do Departamento de Paris, com esta fórmula: "É realmente honrosa a ocupação — além de seu desígnio ser inteiramente digno de glória — cujo objetivo consiste em transmitir, aos séculos vindouros, monumentos que hão de suscitar sua admiração" (p. 3). Em tais condições, compreende-se que a solidez dos monumentos presentes possa garantir o novo regime da posteridade: "A confiança que deve ser inspirada em relação à estabilidade de nossas novas leis irá apoiarse, por uma espécie de instinto, na solidez dos edifícios destinados a conservá-las e a perpetuar sua duração".19 Essa era também a opinião de Pierre Vignon, arquiteto da igreja da Madeleine (construída em Paris de 1764 a 1842), evocando o restabelecimento das Academias das Belas-Artes em 1814: "Os arquitetos são depositários da glória das nações; muitas vezes, os monumentos erguidos por eles, e não tanto 18. É.-L. Boullée, op. cit., f. 70.

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a história, é que servem de referência para julgar o poder dos reis e a civilização dos povos do passado"." O verbete "Monumento" do Dictionnaire (1806), de Millin, sublinhava que, em cada monumento, deviam ser levados em consideração estes dois pontos: "Em primeiro lugar, o corpo, volume isolado que, por uma forma agradável e particular, deve chamar a atenção; e, em segundo lugar, o espírito, ou a alma, que deve produzir a impressão principal que se pretende obter... Se a forma e o conjunto de um monumento tiverem conseguido atrair o olhar do espectador, convirá então que, ao aproximar-se, ele venha a encontrar todos os detalhes em conformidade com sua destinação. Convém que, nos ornamentos, nada haja que desvie a atenção do objeto principal, mas que sejam análogos ao caráter do monumento. O que designamos por alma de um monumento é sempre sua parte principal. Ela consiste seja em inscrições, seja em figuras pintadas ou esculpidas que podem ser históricas ou alegóricas. A expressividade dessas obras deve superar a simples escrita porque, sem isso, dar-se-ia preferência a este (sic)." Em 1813, Saint-Valery-Seheult, "arquiteto da história", revelava "a engenhosidade e os grandes segredos da arquitetura histórica" em termos exemplares: "Como será possível considerar a arquitetura? Como uma linguagem, uma arte ou uma ciência? Tais são as questões que terá de se formular aquele que se dedica a estudá-la. Ao considerar um monumento, ele descobrirá que essa arte tem uma linguagem já que o edifício deve conversar com o espectador e indicar-lhe o objetivo pelo qual havia sido erguido. Uma linguagem é a totalidade das palavras utilizadas por uma nação para exprimir suas necessidades e seus pensamentos por meio de sons ou caracteres que falam aos olhos. Ao exprimir diferentes sentimentos e pensamentos por caracteres 21 significativos, a arquitetura é, portanto, uma linguagem" ; eis o que a distingue de uma construção [bâtiment] qualquer, "obra do mecanismo". Com efeito, a construção "é o resultado de uma necessidade;

19. Mark K. Deming e Claudine de Vaulchier, "La Loi et ses monuments en 1791", in Dix-Huitième Siècle, vol. 14, 1982, p. 117-130.

20. Pierre Vignon, Sur le Rétablissement des Académies des Beaux-Arts, Paris, 1814. 21. A. Saint-Valery-Seheult, Le Génie et les grands secrets de l'architecture historique, Paris, 1813, p. 7-9.

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seu objetivo consiste em preservar os homens das doenças, livrando-os das intempéries sazonais. Ela está baseada nas proporções e na mecânica do corpo humano. Por sua vez, o monumento tem ambições mais nobres e elevadas: sua origem foi ocasionada pelo desejo da glória; seu objetivo consiste em conservar, para a posteridade, a lembrança de algo importante. Trata-se de um templo da imortalidade, um poema sublime, cuja poesia divina faz lembrar ao espírito, pelo órgão da visão, as ações dos homens ilustres. Assim, uma construção tem a ver com a arte de construir, enquanto o monumento refere-se à arquitetura". Em suma, a arquitetura "não consiste, de modo algum, em juntar pedra sobre pedra, mas [...] seu engenho reside na arte tão difícil de levá-las a se exprimir ao espírito pelo órgão da visão". Um paralelo entre os monumentos do México, do Egito e dos Incas — testemunho, entre outros, dos múltiplos exercícios contemporâneos sobre o mesmo tema — permitiu que o autor tirasse a conclusão relativamente a uma linguagem primitiva, extraída da natureza, que havia sido mantida na arquitetura e devia ser utilizada, de preferência a qualquer outra, na composição dos monumentos, mesmo que seja admitido acrescentar-lhe inscrições. "As linguagens vulgares confundem-se e perdem-se nas mudanças ocorridas na superfície do globo; por sua vez, a linguagem da arquitetura é imutável e seus poemas brilham sempre com o mesmo resplendor [...]. O aspecto do monumento deve indicar o motivo que esteve na origem de sua construção; os caracteres da linguagem da arquitetura devem, também, indicá-lo; deve ser evitado tudo o que seja estranho a seu tema... Os caracteres ou ornamentos devem lembrar esse pensamento e, em geral, tudo deve ser circunscrito ao tema escolhido pela arquitetura... [...]. Ao formar o paralelo entre os monumentos repletos de inscrições em linguagens vulgares e aqueles em que os caracteres da linguagem primitiva indicam ao espírito o motivo que esteve na origem de sua construção, ficamos convencidos da superioridade dos últimos, já que eles se referem, ao mesmo tempo, ao coração e à imaginação. Nem por isso deixa de ser verdade que é possível tolerar os caracteres dessas linguagens nos edifícios... pode-se formar inscrições que repetem o pensamento já traçado pelos caracteres da linguagem primitiva; mas, nesse uso, deve haver parcimônia. 50

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Convém que a linguagem utilizada para formar tais inscrições seja a 22 da nação que ergue o edifício." A aplicação desses princípios de "distinção" entre a arte e o útil culminou em uma tipologia dos monumentos, mais ou menos explícita, segundo os autores ou os arquitetos. Para Kersaint, os monumentos comemorativos simples, sob a forma de estrelas ou pirâmides, distinguiam-se dos monumentos públicos mistos — tais como museus, templos e bibliotecas —, que, além de cumprirem uma função bem definida, desempenhavam um papel comemorativo. A propósito do concurso promovido pelo administrador da Região do Ródano, visando a construção de um monumento em homenagem a Bonaparte, na place Bellecour, em Lyon, o arquiteto Goulet estabelecia uma distinção semelhante: "Parece-me que há uma grande diferença entre um monumento público, propriamente dito, e um monumento triunfal. Por monumentos públicos, deve-se entender um chafariz, uma ponte, um mercado coberto, uma bolsa de valores, assim como todos os prédios destinados ao uso e às necessidades da vida pública; no entanto, entre eles, não podem ser incluídos os edifícios dedicados à glória dos homens importantes ou à memória de um acontecimento notável. Os primeiros devem exibir a marca da simplicidade e da severidade, enquanto os outros devem ser luxuosos, elegantes e magnificentes; portanto, é impossível confundi-los. [...] Com efeito, a utilidade do objeto é que irá impressionar sempre o comum mortal, enquanto o herói estará presente apenas como decoração acessória ou somente para fornecer seu nome ao monumento."" A preeminência atribuída pelos dois textos ao monumento "comemorativo" ou "triunfal" é bastante característica. Ocorre que o imperativo de utilidade pública leva, muitas vezes, a uma fusão dos gêneros — correndo o risco de ameaçar a legibilidade do monumento sob a quantidade de informações a serem transmitidas. 22. Ibidem, p. 17-18. 23. "Réflexions sur un monument à élever à Bonaparte par le citoyen Goulet, architecte et adjoint-maire du VF arrondissement de Paris", in Journal des Bâtiments, n. 137, 6 de nivôse do ano X, p. 20-22. De forma mais geral, consultaremos Bruno Klein, "Napoleons Triumphbogen in Paris und der Wandel der offiziellen Kunstanschauungen im Premier Empire", in Zeitschrift für Kunstgeschichte, vol. 59, n. 2, 1996, p. 224-269. 51

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O cúmulo do monumento "escrito" foi atingido, sem qualquer dúvida, com a proposição do arquiteto Goulet no sentido de erguer um monumento destinado a conter todas as leis francesas, chamado Templo das Leis: uma rotunda rodeada por quatro galerias ofereceria uma superfície de 4.800 m2 em que seriam inscritas, em mesas salientes e amovíveis, com caracteres bastante legíveis, todas as leis ou códigos da República. Essa proposta inscrevia-se em uma série de projetos de monumentos enciclopédicos a serviço da comemoração e da história nacional francesa.24 Em 16 de vendémiaire e em 16 de nivôse do ano X, o Journal des Bâtiments publicava um projeto de "coluna nacional no centro de uma porção de mapa-múndi formando a planta geral da França, no meio do Carroussel, desimpedido das casas". No pátio do Louvre seria erguida, em um pedestal octogonal, uma coluna de 10 metros de raio por 135 metros de altura: "Que a torre seja decorada, por dentro e por fora, em toda a sua altura, por quinze andares de relevos circulares; em torno de cada um, serão abertas, perpendicularmente às oito faces do pedestal, oito janelas — portanto, um total de 120 — para fornecer o máximo de luminosidade ao interior do edifício, formando o compartimento das molduras dos quadros de todos os departamentos da República. Em cada um desses grandes quadros, ver-se-á não só a carta geográfica de um departamento, suas produções territoriais e industriais, suas cidades, aldeias e lugarejos, mas também o quadro de seu mérito à vitória." Uma dupla escadaria interna levará a cada patamar que "será rodeado por uma galeria ou por um simples balcão interior, com assentos à sua volta a fim de que cada visitante, calmamente, de patamar em patamar, possa observar cada parcela da França. Os departamentos mais próximos da capital estarão no primeiro andar e os mais afastados encontrar-se-ão na parte mais alta da torre". No topo, uma plataforma octogonal receberá uma coluna que, em cima de um capitel de mármore negro, carrega uma estátua colossal da República 24. Cf. Goulet, Observations sur les embellissements de Paris et sur les monuments qui sy construisent; projet d'architecture et d'amélioration; suivis d'une nouvelle distribution des arrondissements municipaux de Paris et d'un essai sur les contributions, 1808, p. 13-14.

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Francesa. No interior da coluna, será colocada uma cúpula com um chafariz de água e de fogo: por ocasião das festas, ele servirá de facho luminoso para os parisienses. "Finalmente, o detalhe mais belo desta coluna nacional — aliás, o recinto do Louvre dará a impressão de formar sua estilóbata — será seu andar térreo, erguido cerca de um metro acima do chão. Aí, será possível ver, entre os quatro pórticos, 25 os amplos quadros das principais vitórias do imortal Bonaparte." Esse programa pretendia monumentalizar, de certa maneira, o território nacional, graças à representação cartográfica. O século XIX forjará, pelo contrário, diversos museus imaginários do solo francês, graças ao livro de Taylor e Nodier, Voyages romantiques et pittoresques dans l'Ancienne France — narrativas destinadas, desta vez, não para celebrar as vitórias da nação moderna, mas sobretudo para esboçar a 26 falência de suas tradições e de seus monumentos antigos.

O território da Cidade Entre as imagens constantes do território humano, perfila-se a de uma organização espacial da Cidade que deve ser mantida e remanejada, 27 bem cuidada e protegida. A lição da semântica revela, aliás, como a palavra "território" evoca ideias de apropriação, de apossamento ou, no mínimo, de uso.28 Esse imaginário do território manteve regularmente uma relação estreita com a estética, enunciando diferentes figuras mediante as quais a paisagem adquire sentido. No Renascimento, a redescoberta da Antiguidade clássica foi acompanhada por uma série de dispositivos e de figuras que visavam elaborar um território25. B*** amador e Campmas (engenheiro hidráulico), in Journal des Bâtiments, n. 115; e, depois, n. 140, p. 69. 26. Para a vertente alemã do fenômeno relacionado com a nova representação das ruínas do passado, cf. Peter Fritzsche, Stranded in the Present: Modern Time and the Melancholy of History, Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 98-127. 27. David Storey, Territory: The Claiming of Space, Harlow: Prentice Hall, 2001. 28. Nesse sentido, cf. Leo Spitzer, " Milieu et Ambiance: An Essay in Historical Semantics", in Philosophical and Phenomenological Research, vol. III, 1942-1943, p. 1-42, 169-218.

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-patrimônio — na França, reinventou-se a Gália —, promover a criação de gabinetes de curiosidades, além de refletir sobre a engenhosidade mecânica." O exemplo mais célebre foi a proteção das antiguidades, iniciada pelo Papado. O território do príncipe, no século XVI, tornouse objeto de uma "captura" no âmago de uma reflexão sobre os lugares que pretendia ser ciência da classificação universal", entrando, assim, com tudo o que ele continha e evocava, nos programas do gabinete das curiosidades: como programa ideal de compendium principesco, as Inscriptions ou titres du théâtre magnifique de Samuel Quiccheberg repertoriam, na primeira classe, tudo o que se referia à "regio" do fundador do Théâtre. Essa seção do gabinete das curiosidades reunia plantas geográficas, figuras de antepassados, genealogias, referenciais de sua cidade, exemplos de plantas e de animais.31 No decorrer do século XVIII, a política em relação à herança material do passado deu lugar a um imaginário do santuário tanto nos diferentes dispositivos utópicos, quanto na literatura dos antiquários ou nos escritos "esclarecidos". 32 O essencial da literatura sobre as cidades, do século XVI ao XVIII, compunha-se por "Antiguidades" e outros guias dos monumentos urbanos. Daniel Roche procedeu à análise minuciosa do inventário lavrado, em 1719, por P. Lelong em sua Bibliothèque historique de la France 29. Roberto Weiss, The Renaissance Discovery of Classical Antiquity, Oxford: Blackwell, 1969; Horst Bredekamp, La Nostalgia de l'antique: Statues, machines et cabinets de curiosités, Paris: Diderot, 1996; Frédérique Lemerle, La Renaissance et les antiquités de la Gaule, Bruxelas: Brepols, 2005. 30. Frances Yates, L'Art de la mémoire, Paris: Gallimard, 1975; Oliver Impey e Arthur MacGregor, The Origins of Museums, Oxford: Clarendon, 1985; e Antonella Lugli, Naturalia et Mirabilia: Les Cabinets de curiosités en Europe, Paris: A. Biro, 1983. 31. Cf. sua tradução definitiva e seu estudo por Nicolette Brout, "Le Traité muséologique de Quiccheberg", in L'Extraordinaire jardin de la mémoire, Gilly: Musée royal de PansemiotcMariemont, 2004, p. 69-135. Jan C. Westerhoff, "A World of Signs: Baroque , the Polyhistor and the Early Modern Wunderkammer", in journal of the History of Ideas, vol. 62, n. 4, 2001, p. 633-650, fornece o estado das pesquisas, cm particular, sobre Camilo e Quiccheberg. 32. Nesse aspecto, inspiramo-nos em Louis Martin e em seu comentário por Stephen Bann, "Shrines, Curiosities, and the Rhetoric of Display", in Lynne Cooke e Peter Wollen (orgs.), Visual Display: Culture beyond Appearances, Dia Center for the Arts, Seattle: Bay, 1995, 15-29; "Shrines, Gardens, Utopias", in New Literary History, vol. 25, n. 4, 1994, p. 825-837.

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contenant le catalogue de tous les ouvrages tant imprimés que manuscrits qui traitent de l'histoire du Royaume ou qui y ont rapport: em 17.487 obras repertoriadas, 2.506 referiam-se diretamente ao passado das cidades (ou seja, cerca de 15%). Ao lado dos escritos sobre a história eclesiástica e sobre a pesquisa da origem da cidade (no desfilar dos títulos, verifica-se o crescimento do número das antiguidades ou das obras de arte antigas), um terceiro gênero descrevia os monumentos ao lembrar constantemente o passado do qual esses lugares haviam sido as testemunhas. Assim este título de 1600: Les Antiquités, les fondations et singularités des plus célèbres villes, châteaux et places remarquables du royaume de France, avec les choses les plus remarquables advenues en icelui. Na segunda metade do século XVIII, todavia, "aparecem as imagens funcionais da cidade, focalizadas na beleza e utilidade dos centros urbanos"". O gênero passava do monumental para o funcional: desde o final do século XVII, "o guia dos monumentos amplia-se para incluir as instituições e atividades próprias de cada cidade"34. Nos séculos XVI e XVII, o interesse pelas Antiguidades orientava seus esforços para o religioso, para a evolução das ordens, para a fundação dos edifícios do culto e para os vestígios da história, tais como epitáfios ou decretos de fundação. No decorrer do século XVIII, a categoria dos objetos notáveis indicava o que merecia ser visto, o que era digno de satisfazer a curiosidade dos estrangeiros e dos habitantes. A própria estrutura dos guias coincidia, aos poucos, com a dos catálogos: tratava-se de repertoriar o conjunto das riquezas artísticas. Para L'Almanach Parisien, era motivo de vanglória o fato de indicar, "por ordem alfabética, todos os monumentos das belas-artes disseminados na cidade de Paris e arredores, assim como os lugares relevantes pela grandeza do desenho ou por seus painéis de pintura e de escultura: edifícios sagrados, castelos e mansões régias, palácios, palacetes, prédios públicos e casas de lazer". Sua ambição era sublinhada nestes termos: "Por esta palavra, entendemos todos os Edifícios, tanto sagrados como 33. Jean-Claude Perrot, Genèse d'une ville moderne: Caen au XVIIIe siècle, Paris/La Haye: Mouton, 1975, 2 vols., I, 1, p. 17-27. 34. Roger Chartier, Histoire de la France urbaine, Paris: Le Seuil, 1981, 3, p. 174.

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profanos, que são o resultado não só da devoção de nossos Reis e de sua magnificência, mas também do zelo e do amor de seus Súditos por sua Pessoa sagrada. Uns são destinados a lembrar a memória de algum evento; outros estão a serviço dos Cidadãos. Em uma palavra, trata-se de todos os lugares em que as Artes desenvolveram sua engenhosidade para erguer seja um Templo augusto, seja a representação de um grande Rei, cujo bronze exprime seus traços no centro de uma Praça pública; seja dos Troféus sob o símbolo de uma Porta."" Brice, Dezallier d'Argenville e Thiéry contribuíram, através de seus guias, para criar uma cultura parisiense. Semelhante abundância de obras correspondia a uma importante demanda, de acordo com a observação de Hébert e Alletz, autores de L'Almanach Parisien, no prefácio da la edição, em 1761: "O gosto pelas artes ganhou todos os estados porque, atualmente, pretende-se saber um pouco de tudo e ser capaz de proferir uma opinião; além disso, convém acomodar-se ao gosto de seu século." No momento em que o conhecimento da cidade, lugar de expressão privilegiada do engenho humano, se tornou indispensável, o Guide des amateurs (1787) de Thiéry repertoriava, em seu prefácio, "todos os monumentos antigos e modernos, estabelecimentos úteis, manufaturas, gabinetes de curiosidades, enfim, todos os outros objetos interessantes". Entre os visitantes estrangeiros, os ingleses do grand tour 36 mostravam uma particular avidez por itinerários que levassem à descoberta das cidades do continente europeu. Em seu guia prático — The Grand Tour... (Londres, 1749), em quatro volumes —, Thomas Nugent empenhava-se em organizar minuciosamente a visita da capital francesa: o viajante deve começar pelo Palais-Royal, ao qual pode dedicar três dias para contemplar sua coleção de quadros. Em seguida, ele vai contemplar Saint-Sulpice e os Invalides antes de visitar as academias, o Jardin des Plantes e as manufaturas (Gobelins, Savonnerie...). No ano seguinte, o guia de William Lucas recomendava em primeiro lugar o Louvre e, em seguida, as Tuileries 35. Cf.XXe Gales Chabaud, Évelyne Cohen et al. (orgs.), Les Guides imprimés du XVI' au siècle: Villes, paysages, voyages, Paris: Belin, 2000. 36. Expressão para designar uma tradicional viagem de aprendizagem pela Europa, empreendida principalmente por jovens aristocratas ingleses no século XVIII. [N.T.] 56

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37 e o Palais-Royal. Em 1787, na 9á edição de Gentlemen's Guide in this Tour through France, Thomas Martyn apresentava um percurso bastante completo, característico dos gostos e interesses do final do século: academias, gabinetes de curiosidades, galerias, palácios, bibliotecas e monumentos figuram nessa descrição como outras tantas visitas obrigatórias. Todas essas obras fornecem uma "leitura" da cidade que legitima a afirmação de Roland Barthes segundo a qual "falamos de nossa cidade simplesmente ao habitá-la, ao percorrê-la e ao observá-la". A vinda dos viajantes, extremamente lisonjeira para estimular o orgulho local, tinha um interesse econômico; portanto, cada cidade empenhava-se em preservar e valorizar seus monumentos, em particular seNîmes ela tinha o privilégio de dispor de algumas obras de arte antigas. Em , a deliberação municipal de 13 de julho de 1643 lembrava que "as Antiguidades — servindo de decoração à cidade — são tão consideráveis e possuem uma tão elevada reputação que as populações mais estranhas vêm dos lugares mais recuados para visitá-las e admirá-las, o que deve emocionar, em igual proporção, o coração dos habitantes da dita cidade de Nîmes no sentido de conservá-las religiosamente e i mpedir que fiquem em ruínas, sejam demolidas e soterradas". Desde sua criação, em 1683, a Académie Royale de Nomes apresentava-se como a garantia do respeito que a cidade deve manifestar por suas obras de arte antigas. No século XVIII, a municipalidade explicitava as vantagens a auferir da manutenção dos monumentos nestes termos: "Os monumentos antigos que dão prestígio à cidade por sua beleza inimitável seriam, então, mostrados ao visitante estrangeiro, sempre ávido e curioso em observá-los e admirá-los; tais monumentos, menosprezados atualmente, seriam indubitavelmente bem cuidados se o habitante pudesse orgulhar-se de usufruir livremente de sua contemplação, 38 além de constatar que o estrangeiro se beneficia da mesma fruição." '

Shewing the Different 37. William Lucas, A Five Weeks Tour to Paris, Versailles, Marli,&c.: Pleasurb Attending one, two, or four Persons through This Tour, and the Most Reasonable and Charge Method of Performing it: with an Accurate Description of Paris and the Neighbouring Palaces , Gardens, Water-Works, Paintings, etc..., 2. ed. London: T. Waller, 1752. 38. Line Teisseyre-Sallmann, "Urbanisme et société: 1:Exemple de Nimes aux XVII' et XVIII' siècles", in Annales ESC, 1980, p. 982. 57

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Esse exemplo provincial remetia, em um movimento patrimonial clássico que vai das pequenas às grandes pátrias, a um fenômeno de escala europeia, focalizado na maior coleção de monumentos antigos da Cidade por excelência, ou seja, Roma. A partir dos editos — Albari de 1733, e Valenti de 1750 —, o interesse "turístico" inscrevia-se, de fato, cada vez mais entre as preocupações oficiais. No âmago da estética neoclássica, verificou-se o aparecimento de uma cultura e de uma política da conservação, no exato momento em que um grande número de obras de arte era espalhado através da Europa. Entre 1784 e 1789, Giuseppe Antonio Guattani publicou o primeiro periódico dedicado, em grande parte, à arqueologia: os Monumenti Antichi Inediti Ovvero Notizie Sulle Antichità e Belle Arti di Roma. Certamente, os museus pontificais participaram da busca exasperada das obras-primas, mas sua pretensão limitou-se a reunir exempla suscetíveis de ilustrar a história da arte nascente, em detrimento dos objetos boni ma non singolari, que, aliás, poderiam ser exportados sem prejuízo. De qualquer modo, o tecido conjuntivo das obras-primas, as obras menos acabadas ou as minores, foram adquirindo uma importância cada vez maior. Desde o final desse século, os principais estados italianos dispunham de uma legislação destinada a evitar a dispersão de suas riquezas artísticas: o caso romano é particularmente revelador." Finalmente, Arnaldo Momigliano mostrou que o novo interesse pelas sociedades antigas pré-romanas, em particular pelos etruscos, povo desprovido de tradição literária, correspondia a um culto inédito pelas identidades locais e regionais, como é comprovado pela emergência de histórias de diferentes "pátrias" italianas, ao mesmo tempo que dava satisfação à importância crescente das antiguidades na escrita da história.40 39. Cf. o balanço apresentado, recentemente, por Valter Curzi, Bene culturale e pubblica utilità: Politiche di tutela a Roma tra Ancien Regime e Restaurazione, Bolonha: Minerva, 2004. 40. Cf. Melissa Calaresu, "Images of Ancient Rome in Late Eighteenth-Century Neapolitan Historiography", in Journal of the History of Ideas, vol. 58, n. 4, 1997, p. 641-661. Sir William Hamilton identifica-se com o registro napolitano, relacionado com a paisagem e com os objetos arqueológicos; cf. Volcanoes and Vases, Londres: Bristish Museum, 2000. Os monumentos do território nacional podem ser, também, objeto de representações em série, segundo um projeto de coleção de lugares de prestígio à glória do artista: Julius Bryant, Turner Painting the Nation, Londres: English Heritage, 1996.

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Neste aspecto, verificava-se a ligação íntima entre a nova representação da inscrição da memória cultural e o programa de histórias patrióticas inéditas: primeiro exemplo, sem dúvida, de uma reconfiguração, cujo testemunho será dado, na sequência, pela França revolucionária, de acordo com outras modalidades. O caso de Herculano e de Pompeia ilustra outra importante mutação: o surgimento de preocupações éticas e políticas na sensibilidade à arqueologia que, ulteriormente, assumiram uma importância considerável, em particular sob a ocupação francesa.'" O gosto, tão relevante no século XVIII, pelo material da arte culminou aqui na paixão de argumentar a propósito da técnica das escavações: assim, cada viajante ou visitante arrogava-se o direito de saber o que deveria ter sido feito 42 — em geral, condenando a gestão dos sítios arqueológicos. A famosa carta aberta do historiador da arte e arqueólogo alemão J. J. Winckelmann, em 1762, marcou uma data nesse aspecto (Lettre de M. l'abbé Winckelmann à M le comte de Brühl sur les découvertes d'Herculanum, 1764): o antiquário manifestava seu apoio — sobretudo contra Alcubierre — à atividade desenvolvida, entre 1750 e 1765, pelo engenheiro militar suíço Karl Jakob Weber, que tinha intenção de publicar o resultado de seu trabalho, de maneira sistemática, relacionando as antiguidades com seus sítios arqueológicos e mobilizando o maior número possível de fontes. Depois de seu óbito — por esgotamento —, seus documentos serviram a Francesco La Vega para extrair a planta geral de Pompeia e para fazer a proposta no sentido de elaborar uma história das escavações; apesar disso, a curiosidade erudita internacional continuava sendo alimentada por publicações respaldadas a partir de informações clandestinas, fora da corte dos Bourbons e do círculo oficial da arqueologia "vesuviana"43. Paralelamente, assistia-se à proliferação dos "guias do estrangeiro", consequência do fluxo dos viajantes: para cada coleção, 41. Ronald T. Ridley, The Eagle and the Spade: Archaeology in Rome during the Napoleonic Era, Cambridge: Cambridge University, 1992. 42. Nancy H. Ramage, "Goods, Graves and Scholars: 18th-Century Archaeologists in Britain and Italy", in American Journal ofArchaeology, vol. 96, n. 4, 1992, p. 653-661. 43. Christopher Charles Parslow, RediscoveringAntiquity: Karl Weber and the Excavation of Herculaneum, Pompeii and Stabiae, Cambridge: Cambridge University, 1995.

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eles enumeravam as etapas de sua formação e descreviam, sala por sala, os objetos expostos. A obra Le Antichità di Ercolano esposte con qualche spiegazione, publicada em Nápoles de 1755 a 1792, correspondia a uma dessas tentativas — desta vez oficial — de colocar em ordem, em um enquadramento histórico e tipológico, o enorme material descoberto, além das descrições parciais dos múltiplos relatos de viagem. Assim, generalizava-se a convicção de uma responsabilidade coletiva em relação às obras-primas universais, para não falar das antiguidades de menor importância44; ao mesmo tempo, eram apresentados projetos para museus de cópias. Com certeza, desde a origem do cânon das Antiguidades, as tentativas de moldar as mais belas estátuas correspondiam ao desígnio de cada país no sentido de se apropriar dos cânones do Belo para fornecer seus modelos aos artistas jovens." Entretanto, sob a influência das viagens à Itália e da constituição da estética como concepção geral da arte em detrimento dos discursos especializados anteriores, o século XVIII forjou a ideia de que a arte deve servir para divulgar a educação e, por conseguinte, prossegue o desígnio de colocar à disposição, de forma cômoda e sistemática, seus exemplos mais belos. Os projetos de cópia, em mosaico, das Stanze do Vaticano definiam implicitamente a noção de "r esponsabilidade coletiva na conservação"46. Em seu livro Réflexions critiques sur les différentes écoles de peinture (1752), Boyer d'Argens sugeria tal iniciativa e acrescentava: "Os custos seriam consideráveis: mas todas as nações que se vangloriam de seu apreço pelas artes deveriam contribuir para essa operação". O presidente do parlamento da Borgonha, Ch. de Brosses — autor de Lettres écrites"-alie, que relatam uma viagem à Itália (1739-1740) —, chegou a imaginar o estabelecimento em Versalhes de um museu de cópias, julgando que "seria uma despesa digna do Rei se ele contratasse operários para executar, em uma das amplas galerias, em Versalhes, os grandes afrescos de Rafael". 44. Jacques Guillerme, "La Naissance du sentiment de responsabilité collective dans la conservation", in Gazette des Beaux-Arts, vol. 65, 1965. 45. Francis Haskell e Nicholas Penny, Pour l'Amour de l'antique, Paris: Hachette, 1988. 46. Jacques Guillerme, "Monument/monumentalité: De la Plénitude des symboles à la fascination du vide", preâmbulo de Marilu Cantelli, L'Illusion monumentale, Liège: Mardaga, 1991, p. 7-13. 60

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A expressão mais nítida dessas exigências foi apresentada por J. J. de Lalande, que, em um livro sobre sua estada na Itália, escreveu o seguinte: "A manutenção desses monumentos, assim como o respeito que lhes é devido, nada tem a ver com algum preconceito, convenção ou interesse. A Filosofia e a Política devem levar-nos a conservar os monumentos dos homens ilustres, como um germe para produzir outros: aliás, deve-se perpetuar a lembrança dos Impérios que ocuparam a terra; seus progressos e sua queda são uma lição para nós. [...] Seria uma magnificência bem digna de um grande Rei e de um Estado poderoso se eles mandassem construir propositalmente uma vasta galeria para reunir as cópias, em mosaico, dos afrescos mais famosos que se encontram na Itália [...], distribuindo-os em boa ordem e de forma atraente no meio de uma esplendorosa arquitetura."47 O expediente da cópia correspondia a um sonho de ubiquidade das obras-primas, assim como a um ideal de seriação de monumentos paradigmáticos para o uso não só dos estudantes das academias, mas também dos connaisseurs.

O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica Do triplo ponto de vista — construção de monumentos "históricos"; forma de organizar sua reunião; e, por último, seu comentário por um guia —, o jardim das ilusões era um dispositivo essencial do patrimônio imaginado pelo século XVIII. Perambulando por seus atalhos tortuosos, passa-se de continente em continente, ou de século em século. Um dos mais belos jardins ingleses é o de Milord Stowe, que contém o número expressivo de 38 monumentos: Templo de Vênus e de Baco, pirâmides, igrejas góticas, etc. Ele é célebre na Europa inteira e, em um de seus livros, Rousseau serviu-se de M. de Wolmar, ao acompanhar Saint-Preux em seu pomar, para afirmar o seguinte: "O mestre e o criador desta sublime solidão mandou construir neste local até mesmo ruínas, templos, edifícios antigos; assim, os tempos Lefrançois de Lalande, Voyage d'un français en Italie, fait dans les années 1765 47. J. J.&tc , 1769, p. 546, 571. 61

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e também os lugares são reunidos neste espaço com uma magnificência bem superior à da natureza humana."48 O passeio entre as fabriques, disseminadas no meio desses "territórios" [pays], convidava o espectador a uma exploração dos lugares e dos tempos. Essa moda — criticada, em parte, no final do século — pretendeu "elaborar a maior variedade possível de construções à força de amontoar, em um espaço reduzido, as produções de todos os climas e os monumentos de todos os séculos, ou concentrar em um recinto fechado, por assim dizer, o universo inteiro".49 Assim, o jardim do século XVIII inscrevia-se em uma longa tradição do espaço da coleção e da exposição, entre Éden e Jerusalém Celestial ou Utopia." "Fabrique" significava, ainda em 1756, na definição de Watelet para a Encyclopédie: "Qualquer construção que se identifica por sua representação." No entanto, rapidamente o termo acabou por designar uma pequena construção erguida em um jardim, evolução de sentido que esclarece a concepção dos parques em que a Natureza era configurada de acordo com Le Lorrain, Ruysdaël e Vernet.51 Para Dora Wiebenson, as origens do Bosque dos Túmulos [Bois des Tombeaux], cujas imagens são numerosas, mesmo antes de 1780 (Île des Tombeaux, nos jardins de Bagatelle, em Paris; Vallée des Tombeaux, em Betz, perto de Ermenonville, no norte da Bacia Parisiense), encontravam-se nas publicações de ornamentos arquiteturais de Delafosse, Le Geay e Cuvilliès, editadas no final da década de 1760. "A vulgarização de uma noção de estudo relativa a estilos históricos de ornamento para a ampliação do número dos modelos à disposição dos artistas poderia ter começado com a obra Recueil d'antiquités, do conde de Caylus, 48. Rousseau, Julie ou La Nouvelle Héloïse, 1761, 4' parte, carta XI, Paris: Garnier/ Flammarion, p. 363. 49. René-Louis de Girardin, De la Composition des paysages, ou des moyens d'embellir la nature autour des habitations, en joignant l'agréable à l'utile (Genebra, 1777), Paris: Champ Urbain, 1980, p. 20. 50. Cf., em uma abundante literatura, a síntese recente de Maria Clara Ruggieri Tricoli, Il Richiamo dell'Eden: Dal collezionismo naturalistico all'esposizione museale, Florença: Vallecchi, 2004.

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coletânea publicada a partir de 1752 com essa intenção. A origem derradeira desse interesse pelos estilos históricos e exóticos é, certamente, o Entwurff einer historischen Architectur, do arquiteto e escultor austríaco J. B. Fischer von Erlach, publicado em 1721." A porta chinesa, a tenda turca e até mesmo as ruínas góticas no parque Monceau, em Paris, foram concebidas de acordo com essa tradição baseada em uma apresentação compreensiva da arquitetura do passado e de países longínquos, mesmo que, "a partir da década de 1770, essas estruturas exóticas sejam mostradas não tanto como a exposição engenhosa de conhecimentos acumulados, mas com um espírito de deleite que inclui, em parte, o desejo ardente por aventuras 52 e por viagens em países fantásticos, em tempos e lugares longínquos". O acúmulo de monumentos expostos no jardim mostrava, de qualquer modo, uma "imagem mundial" que, segundo os casos, trazia a marca dos conhecimentos geográficos ou limitava-se aos grandes impérios, cuja existência era reconhecida pela historiografia tradicional, particularmente maçônica. Os jardins organizavam uma encenação de acordo com as recomendações dos guias: o do duque D'Harcourt, por exemplo, prescrevia "a ordenação dos diferentes elementos de forma apropriada". Devia-se dispor, de acordo com o resumo do historiador da arte Jurgis Baltrusaitis, "pinheiros e carvalhos druídicos em torno dos edifícios góticos; palmeiras à volta de quiosques muçulmanos; salgueiros, espelhos de água e rochedos em torno dos pavilhões chineses"." Em suma, o jardim fornecia uma moldura bem definida para cada tipo de monumento, à maneira de uma museografia do contexto. A disposição geral dos jardins, a situação das fabriques, a localização dos cursos de água e a orientação espacial correspondiam às preocupações dos grandes tratados de pintura, em particular o de Roger de Piles, e incluindo a obra de A. de Laborde, Description des nouveaux jardins de France et de ses anciens châteaux, publicada em 1808 (conhecida por "Laborde", por descrever admiravelmente os jardins de seu tempo). Por sua vez, René-Louis de Girardin organizou o passeio como se tratasse

51. Monique Mosser, Jardins en France Ie760-1820, Paris: CNMHS, 1977, p. 21-24; "Des jardins", in Revue de l'Art, n. 129, 2000.

52. "Le parc Monceau et ses fabriques", in Monuments Historiques, n. 5, 1976, p. 18. 53. Jurgis Baltrusaitis, "Jardins et pays d'illusions", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 94-119.

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do percurso de uma galeria, passando dos quadros pequenos de cavalete para o quadro principal do ateliê. Ele delineou um "atalho dos pintores", evocado pelo livro Itinéraire des jardins d'Ermenonville, nestes termos: "Ao ter o ardente anseio de seguir as pegadas dos grandes mestres, o jovem estudante encontrará, em cada etapa desse atalho, matéria para aprofundar seus estudos e ficar cada vez mais próximo de seu objetivo; e o artista já consagrado poderá estudar as formas mais bem-sucedidas, variadas e pitorescas dos zimbros — aliás, os mais belos, e em maior quantidade, são encontrados apenas nesse atalho."" Em várias oportunidades, ele insistia sobre a noção — pictural — da unidade do conjunto e a ligação das relações sobre os símbolos, as associações de ideias, as lembranças, as imagens, que, balizando o passeio, "se destacam sucessivamente". Ele chegou até mesmo a escrever em maiúsculas: "QUE TUDO ESTEJA JUNTO E QUE TUDO ESTEJA LIGADO." O jardim exigia, por conseguinte, um mirante do qual fosse possível abranger, uma após a outra, as diferentes perspectivas. Em sua obra sobre o jardim de Monceau (1779), o arquiteto-paisagista L. de Carmontelle representava, na planta, todas as cenas — tenda tártara, leiteria, tendas turcas, moinho de vento holandês, pavilhão chinês, castelo gótico em ruínas, minarete, rochedo — com a indicação do respectivo mirante para cada uma." Assim, a história oferecida pelo jardim a seus visitantes estava orientada pelas leis da encenação. O projeto (1780) de Francesco Bettini para o jardim de Dolfino, embaixador de Veneza na França, continha uma semiologia rigorosa do monumento funerário. Assim, a Ilha dos Túmulos devia inspirar três tipos de sentimentos fúnebres: a lembrança agradável, a dor e a memória de uma ação heroica, graças a uma disposição perfeita das fabriques. "Tratando-se de perpetuar uma lembrança agradável, esse monumento deve ser colocado sobre uma linda coluna decorada com ramalhetes de rosas, jasmins, sarmentos de vinha, em posição ascendente e que virão fazer-lhe sombra em guirlanda. Os ramalhetes da dor hão de esconder-se 54. René-Louis de Girardin, op. cit. 55. David Hays, "Carmontelle's Design for the Jardin de Monceau", in Eighteenth-Century Studies, vol. 32, ri. 4, Verão 1999, p. 447-462.

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modestamente em uma ranhura no meio da sombra de um espesso ramalhete de teixos, ciprestes, salgueiros chorões, oliveiras... Quando se trata de celebrar uma ação heroica, deve-se colocá-los no meio de um ramalhete de ciprestes ou de carvalhos verdes, além de plantar loureiros em torno do monumento, localizado na convergência de todos os caminhos."" O jardim era um acúmulo de monumentos repletos de significações demonstrativas, à imagem das vinhetas da Encyclopédie.57 Em 1820, em seu livro L'Abeille des Jardins, J.-P. Brès propunha um jardim "fantástico" em que diversos terrenos, no meio de um lago, apresentariam um resumo dos quatro cantos do planeta. Um "jardim cronológico" permitia remontar o tempo, através de pirâmides, restos de obeliscos, urnas funerárias, múmias e esfinges, colunas gregas e ruínas de templos, monumentos romanos e judaicos, no centro, chineses — "porque os chineses estão convencidos de serem o centro do mundo" — e, por último, dolmens e outras pedras oscilantes. O jardim de Tourves (no departamento de Var, litoral da Provence), criado entre 1767 e 1777, ilustrava um curso de filosofia inscrito na geografia simbólica das implantações de fabriques, na toponímia e nos epitáfios imaginários." A leiteria, situada no início do circuito, apresentava várias características do "gabinete de reflexão" iniciático, muito apreciado nos cenáculos maçônicos." O jardim é, também, exemplar da relação ambígua, para não dizer equivocada, das fabriques com as ruínas autênticas, já que a cópia de um cibório gótico, executada pela fábrica de Vacherie, é considerada como um original e gravada como tal no livro de Millin, Voyage dans les de'partements du Midi de la France (5 vols., Paris, 1807-1811). 56. Jurgis Baltrusaitis, op. cit. 57. Madeleine Pinault, "Diderot et les illustrateurs de l'Encyclopédie", in Revue de l'Art, vol. 66, 1984, p. 17-38. 58. Serge Conard, "Tourves, fabrique et géometrie", in Monuments Historiques, vol. 5, 1976, p. 46-48. 59. Sobre este tema, cf. Magnus Olausson, "Freemasonry, Occultism, and the Picturesque Garden towards the End of the Eighteenth Century", in Art History, vol. 8, dez. 1985, p. 413-433.

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Tal confusão é tanto mais notável visto que a arte da Idade Média, de maneira geral sinônimo de ridículo e de mau gosto, foi reconhecida apenas na decoração dos jardins.60 Nesse espaço, as fabriques góticas podem estar misturadas aos edifícios "clóricos" (principalmente a partir do modelo dos templos gregos de Pesto, antiga cidade da Itália) ou chineses a fim de diversificar o pitoresco da paisagem ou contribuir para uma estética das ruínas.61 Se, em meados do século, Pierre Patte deplorava "o ridículo e o grotesco das proporções" da ordem gótica (Discours sur l'architecture, 1754), Louis Sébastien Mercier, no final do século, descrevia a catedral Notre-Dame de Paris como um monumento "amplo e melancólico", dotado de uma "iluminação tenebrosa" e de uma "engenhosidade ousada", lamentando que ele tenha perdido, no decorrer de um recente branqueamento, a "aparência venerável da Antiguidade"62. Os canteiros de obras de Sainte-Croix de Orléans e da Sainte-Chapelle de Paris manifestavam, por outro lado, a continuidade na indústria da construção [bâtiment]. No entanto, esse gosto do 60. Esmond De Beer, "Gothic: Origin and Diffusion of the Term, the Idea of Style Architecture", in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XI, 1948. Para uma antologia do desdém em relação ao gótico, cf. P. Frankl, The Gothic: Literary Sources and Interpretations through Eigth Centuries, Princeton: Princeton University, 1960, p. 370-414; W. Herrmann, Laugier and Eighteenth Century French Theory, Londres: Zwemmer, 1962, p. 235-236. 61. O texto Mémoires sur l'ancienne chevalerie, do historiador e filólogo J.-B. de Lacurne Sainte-Palaye — lido na Academia entre 1744 e 1746, publicado em Mémoires de l'Académie des Inscriptions, em 1753, e reeditado, separadamente, a partir de 1756 serve de fundamento à crença favorável a respeito de uma Idade Média, cavalheiresca e sentimental, contrariamente à imagem pessimista dos filósofos. A moda chega ao teatro sobretudo com a revolução do cenário e figurinos "verdadeiros", lançada por Diderot e Marmontel, em torno de 1755; por sua vez, a propósito de Tancredo, Grimm fala dos "costumes patéticos" da cavalaria, em 1760. Tal moda é adotada pelos gravadores, no período compreendido entre 1775-1780, que começam a tratar a Idade Média à maneira romântica; os pintores da história acabaram por imitá-los, a partir do Salon de 1773 ( Mort de Saint Louis por Doyen). Em seu livro Génie du christianisme, Chateaubriand retomou esses lugares-comuns sentimentais ao citar, em particular, Sainte-Palaye, que escrevia: "O senhor Amanieu des Escas — ao deixar a mesa, no inverno ao lado de uma lareira bem quente, no salão totalmente coberto de esteiras —, tendo à sua volta os escudeiros, conversava com eles sobre armas e amor porque, em sua casa, todos, até mesmo os criados do mais baixo escalão, se interessavam pelo amor."

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século XVIII crepuscular pela Idade Média — será que se pode falar de pré-romântico? — não chegou a estabelecer verdadeiras relações com o estudo erudito das antiguidades nacionais.° O classicismo tinha considerado os monumentos góticos como uma arquitetura de bárbaros, inspirada ora no desenho das florestas, ora em modelos islâmicos, mouriscos ou árabes; essa estranheza fundamental permitiria explicar tal "ridículo das proporções". Na segunda metade do século XVIII — e, em primeiro lugar, na Inglaterra —, a nova benevolência pela Idade Média vai basear-se no estranhamento que lhe é reconhecido em relação à "recusa de aceitar a arquitetura gótica na esferade uma civilização familiar" (J. Baltrusaitis). Aliás, os termos utilizados por Mona Ozouf para descrever a atitude das Luzes perante a festa popular poderiam ser aplicados, também, às reações diante do gótico: "Parece que, então, as pessoas dispõem apenas de duas linguagens: a da extravagância ou a da barbárie."" Em um caso, o gótico ofuscava a razão, enquanto no outro ele solicitava o interesse dos curiosos; mas, nas duas hipóteses, "sem enternecimento nem nostalgia". Nessa óptica, devemos entender que ele não alimentava a nostalgia modernista que conhecemos — a "tristeza sem objeto", a "repetição que deplora a inautenticidade de qualquer repetição" —, na busca utópica 65 de um lugar original e autêntico, voltada "para um passado futuro" ; li mitava-se a ser uma das culturas longínquas, "primitivas", pelas quais o século nutria certa curiosidade. Em seu livro Génie du christianisme, Chateaubriand é um bom vulgarizador das teses precedentes: "A ordem gótica, no meio de suas proporções grosseiras, tem uma beleza, todavia, que lhe é particular. Julga-se que ela nos vem dos árabes, assim como a escultura do mesmo estilo. Sua afinidade com os monumentos do Egito nos levaria a acreditar, sobretudo, que ela nos teria sido transmitida pelos primeiros cristãos do Oriente; mas, ainda assim, preferimos relacionar 63. Cf. o balanço apresentado por Jean Nayrolles, L'Invention de l'art roman à l'époque moderne (XVIII' XIXe siècles), Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2005, p. 56-71. 64. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976, p. 9.

62. L.-S. Mercier, Tableau de Paris, 1782, t. VII, cap. DLIV, "Notre-Dame", p. 71-73.

65. Susan Stewart, On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection, Durham: Duke University Press, 1993; Jean Starobinski, "Le concept de nostalgie", in Diogène, vol. 54, 1966, p. 93.

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sua origem com a natureza. Além de terem sido os primeiros templos da Divindade, as florestas suscitaram nos homens a primeira ideia da arquitetura."66 Em seu livro Recueil d'architecture (1829), Jean-Charles Krafft explicava, por sua vez, que o gótico podia ser utilizado em "construções pouco importantes em que a severidade dos princípios pode ser modificada e, sem consequências nefastas, prestar-se ao elã da imaginação". Entretempo, impôs-se a ideia de um valor da arte primitiva, mais apreciada que a dos civilizados; aliás, ela já havia sido defendida por Diderot. O gótico continuava parecendo realmente monstruoso, mas agora elogiava-se seu "caráter". No jardim com suas construções, o templo dos druidas, a torre feudal, a fachada gótica, o pavilhão chinês configuram outras tantas alegorias que, relativamente a qualquer monumento autêntico, representavam melhor os diversos períodos da história. Um monumento real é, de fato, um edifício particular que havia correspondido a uma encomenda ou a uma necessidade específica, segundo critérios bem definidos; por isso mesmo, limitado em suas ambições e em seu sucesso. Inversamente, as elites de então acalentavam o sonho de um monumento que viesse a esboçar, seja uma época ou um mundo longínquo, de modo integral, para o futuro. Elas tinham, portanto, o projeto de edificá-lo: mais ou menos em ruínas, tais construções definiriam perfeitamente o patrimônio que, em seu entender, seria passível de ser reconhecido pela sociedade. Em sua obra Nouvelle Description des environs de Paris (1787), J.-A. Dulaure justificava os jardins do conde de Albon, perto de Paris, que constituíam uma espécie de panteão: aliás, na esteira de John Mac Manners, é possível se questionar se ele era dedicado à Liberdade ou à Ciência.67 Além de um obelisco em homenagem à esposa e um templo para o Cristo moribundo, ele incluía estátuas de Haller, Mirabeau, o velho, Court de Gébelin, Franklin e Guilherme Tell. Em Ermenonville, o Templo da Filosofia Moderna, 66. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris: Garnier-Flammarion, 1993, T. I, p. 400. 67. John Mac Manners, Death and Enlightenment: Changing Attitudes to Death among Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University Press, 1981. 68

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fabrique desenhada por volta de 1780, compunha-se de seis colunas de pé dedicadas a Newton, Descartes, Voltaire, Penn, Montesquieu e Rousseau, além de outras três ainda no chão, destinadas de antemão aos filósofos dos séculos vindouros. Em última instância, tratava-se realmente de enfatizar o valor da humanidade em geral. Tal foi o caso relativo a Newton, cujo cenotáfio elaborado por Gay — 1º prêmio do concurso de emulação de 21 de novembro de 1800 —, compreendia a reprodução das obras completas desse gênio em placas de mármore: "Trata-se de um cenotáfio em homenagem a Newton e ao mesmo tempo de um Templo da Natureza, de um memorial pessoal e de um 68 museu de astronomia". O projeto do museu-memorial dedicado a Nicolas Poussin — cuja obra havia influenciado a pintura clássica dos 69 séculos XVII e XVIII — baseou-se nos mesmos princípios. A abundância das inscrições fictícias nos jardins não chegou a contradizer esse projeto: longe de ser entendido como um conjunto de indícios particulares, ela operou em favor da generalidade das correspondências. Ao descrever o discurso das fabriques no espaço do jardim, Jean Starobinski constatava que, "neste território, cuja intenção consistiria em reunir tudo, tudo é menos presente que representado; ainda melhor, tudo é menos representado que rememorado [...]. A arquitetura das fabriques [...] eterniza figuras queridas ou nomes gloriosos. Não seria mais verdadeiro afirmar que ela instaura ausências a fim de suscitar em melhores condições, a seu respeito, a memória fervorosa, a saudade e a aux plans 68. Mémoire sur le remplacement de la Bastille et divers projets pour l'Arsenal joint natio le et élévations d'une place nationale à la gloire de la liberté présentés à lAssemblée . Sobre o tema geral, cf. Alfred Neumeyer, "Monuments to 'genius' in German Classicism", in Journal of the Warburg Institute, II, 2, 1938, p. 159-163. 69. Projeto pelo arquiteto Harou de um sacellum [capela) perto de Les Andelys — cidade natal de N. Poussin —, publicado em Journal des Bâtiments Civils..., n. 188, 29 de prairial do ano X, p. 466-467. Cf. ainda J.-G. Legrand, "Monument à consacrer au Poussin", in Journal des Arts, des Sciences et de Littérature, n. 77, 25 de thermidor do ano VIII (13 de agosto de 1800), p. 78. "Ele desejava e merecia viver entre os pastores, na feliz Arcádia, e quando ele gravava estas palavras sensíveis, quem pode duvidar que sua alma emocionada não tenha formulado este desejo: Que eu possa, um dia, em campos tão tranquilos, obter um túmulo semelhante!" Sobre o assunto, cf. Margaret Fields Denton, "Death in Frendi Arcady: Nicolas Poussin's the Arcadian Shepherds and Burial Reform in France c. 1800", in Eighteenth-Century Studies, vol. 36, n. 2, 2003, p. 195-216.

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suave melancolia? Ausência ou, por trás dos túmulos fictícios, simulacro de ausência; assim, trata-se de uma dupla ausência."" Esses Elísios — "distância entre Éden e Paraíso, entre terra e sombras pagãs"71 encarnavam uma reflexão do século sobre a lembrança e o monumento, a história de um país e a leitura dos epitáfios." Essa representação de um território prolixo reencontrava o sonho de cidades antigas em que as ruas e as praças seriam outras tantas mensagens dirigidas ao cidadão"; ela alimentava também o desejo de "hieróglifos", como se dizia frequentemente na época, do gosto e do saber. A Revolução — do cidadão Verhelst74 ao barão de Norvins, passando pelo Élysée, segundo o projeto de Alexandre Lenoir — deu lugar a um grande número de jardins históricos, ao mesmo tempo Panteão, Museu, Campo Santo e escola de civismo. Deste ponto de vista, o pitoresco didático orientou-se por uma "melancolia cívica", tanto mais que o século XVIII havia insistido grandemente sobre as relações entre a alma melancólica e a virtude cívica; nesse caso, a Inglaterra representou — e, de maneira geral, os países nórdicos da Europa — a terra da liberdade e do spleen. Na sequência, sob a Revolução, a aliança entre a desconfiança e o republicanismo passou a ser uma evidência; e, em 1800, em sua reflexão sobre a literatura considerada em suas relações com as instituições sociais, a escritora Madame de Staël tornou-se a intérprete da opinião comum segundo a qual a liberdade e a virtude exigiam a meditação que leva à melancolia."

70. Jean Starobinski, Ie789: Les Emblèmes de la raison, Paris: Flammarion, 1973, p. 196. 71. Louis Marin, "L'effet Sharawadgi ou le jardin de Julie", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 116. 72. Lionello Sozzi, "I Sepolcri e le discussioni sulle tombe negli anni dei Direttorio e dei Consolato", in Giornale Storico della Letteratura Italiana, vol. 44, n. 8, 1967, p. 567-588. 73. Sobre o termo "cidadão", cf. Raymonde Monnier, Républicanisme, patriotisme et Révolution Française, Paris: L'Harmattan, 2005, p. 93-122 ("Être citoyen sous la Révolution") e p. 233-258 ("Le patriotisme des Lumières à la Révolution"). 74. Plan allégorique d'un jardin de la Révolution Française et des vertus républicaines pelo cidadão Verhelst, em 13 de agosto de 1793.

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As provas da história Na época clássica, o Dictionnaire de A. Furetière define a "História" como uma "narrativa feita com arte; descrição, narração consistente, ininterrupta e verdadeira dos fatos mais memoráveis e das ações mais célebres". Essa tradição prolongou-se amplamente pelo século XVIII, em que a erudição aparecia ainda como uma prática discreta, sem teoria, enquanto o discurso era o monopólio do historiador, que podia escrever a história de uma nação ou de um reinado a partir de um pequeno corpus de textos publicados e das histórias de seus predecessores. O "gênero" da história da França parecia, assim, desprovido grandemente daquilo que, em nosso entender, faz a especificidade do ofício de historiador." Certamente, as querelas jansenistas atribuíram uma i mportância sem precedentes ao debate sobre os direitos históricos da monarquia." Mas, fato significativo, Jacob-Nicolas Moreau — conservador do Dêpot des Chartes [Arquivo de documentos, especialmente da Idade Média] — não levou em consideração os documentos inéditos em seu Discours sur l'histoire de France (21 vols., 1777-1779): ele não fez qualquer menção ao trabalho de coleta das legislações para a reflexão do cargo, de acordo com a tradição dos antigos legistas." Como foi mostrado por Arnaldo Momigliano, a verdadeira preocupação do historiador, tal como ela é vislumbrada desde o século XIX, era então apanágio dos antiquários e dos colecionadores de gabinetes históricos." 76. François Furet, "L'ensemble histoire", in Livre et société dans la France du XVIII siècle, Paris/La Haye: Mouton, 1965-1970, II, p. 97-110; Philippe Ariès, Le Temps de l'histoire (Ie954), Paris: Le Seuil, 1986, p. 158-160; Suzanne Gearhart, The Open Boundary of History and Fiction: A Criticai Approach to the French Enlightenment, Princeton: Princeton University Press, 1984, cap. 2. 77. Catherine Maire, De la Cause de Dieu à la cause de la nation: Le Jansénisme au XVIII' siècle, Paris: Gallimard, 1998; Dale van Kley, Les Origens religieuses de la Révolution Française 1560-Ie791, Paris: Le Seuil, 2002.

75. Cf. a demonstração de Eric Gidal, "Civic Melancholy: English Gloom and French Enlightenment", in Eighteenth-Century Studies, vol. 37, n. 1, 2003, p. 23-45.

78. Dieter Gembicki, Histoire et politique à la fin de l'Ancien Régime: Jacob-Nicolas Moreau, Paris: Nizet, 1979; Blandine Barret-Kriegel, Les historiem et la monarchie, I: Jean Mabillon, Paris: PUF, 1988, p. 215-267. 79. Arnaldo Momigliano, Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983.

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O primeiro "curioso" com a pretensão de reunir as antiguidades francesas foi, sem dúvida, Fabri de Peiresc (1580-1637); o segundo nome mais importante é o de Roger de Gaignières — uma célebre descrição de seu gabinete foi elaborada por Germain Brice.80 Além disso, foi a partir de coleções que o século XVII criou a diplomática, ou seja, a ciência da história e das diversas formas dos documentos legais e administrativos, com a redação de catálogos descritivos (o do beneditino J. Mabillon e o de Ch. du Fresne, senhor Du Cange); ou a numismática, com Ezechiel Spanheim, Jacob Spon e Patin; finalmente, a "leitura dos velhos romances" com Jean Chatelain. Em grande parte, o século XVIII desenvolveu e aprofundou, de um ponto de vista científico, os métodos e as investigações do século XVII: esse foi o caso, em particular, da erudição beneditina.81 80. "Além dos desenhos dos túmulos mais notáveis, o mesmo gabinete fornece os vitrais das mais belas igrejas da França, cujas cores foram copiadas com toda a fidelidade [...] ninguém, até aqui, tinha dado conta disso; aliás, ao prestar mais atenção, tal procura tem grande utilidade para as genealogias e para as fundações E...] Mas um dos aspectos mais singulares e mais raros, de acordo com um grande número de pessoas, é a coletânea de todas as modalidades de vestir, na corte e na cidade, utilizadas na França, desde o reino de São Luís até o presente, para toda a espécie de pessoas, até os serviçais, extraídas de diversas pinturas antigas com o maior esmero." (Germain Brice, Description de la ville de Paris, Paris, 1713, t. III, p. 116.) 81. É difícil avaliar a repercussão real do estudo das antiguidades nacionais na elite culta do século XVII. Alguns indícios levam a pensar que os eruditos operavam, para não dizer na indiferença, pelo menos em um desinteresse bastante generalizado: essa é a tese do fracasso da erudição que Blandine Kriegel defende em Les Historiens et la monarchie, II: La Défaite de l'érudition, Paris: PUF, 1988. Por ocasião do óbito de R. de Gaignières, em 1715, suas coleções — legadas por ele ao rei — foram desfeitas; em um milhar de pinturas, Luís XIV conservou apenas o retrato de João, o Bom. Os outros quadros foram leiloados: o Charles VII, de Jean Fouquet, que formava um lote com um retrato de Maria d'Anjou, foi adquirido por apenas 3 libras e 14 cêntimos. Os desenhos dos túmulos do acervo de Gaignières foram publicados por Jean Adhémar em Gazette des Beaux-Arts; do mesmo modo, as grandes publicações de documentos, lançadas pelos beneditinos ou com sua colaboração, soçobraram, quase sempre, antes de atingirem seu termo, até mesmo antes do 1º volume. Esse foi o caso de L'Histoire littéraire de Dom Rivet; de Monasticon Gallinacum (1694) de Dom Michel Germain, que permaneceu, até 1871 (org. L. Delisle), manuscrito com suas 150 gravuras; ou as compilações do gabinete dos documentos de Jacob-Nicolas Moreau. Para as aparições e os usos do termo "antiguidade", assim como para a história da expressão "Idade Média", cf. Jurgen Voss, Das Mittelalter im historischen Denken Frankreichs: Untersuchungen zur Geschichte des Mittelalterbegriffs und der Mittelalterbewertung von der zweiten Hãle des 16 bis zur Mitte des 19. Jhs, Munique: W. Fink, 1972, p. 73 ss. 72

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Por sua vez, o rei fundou, em 1663, a Petite Academie, destinada a compor divisas, fabricar medalhas e proceder ao registro dos eventos mais importantes do reino. Reorganizada em 1701, ela passou a Bels-Ltrdenominar-se, em 1716, Académie des Inscriptions et des . A evolução de suas práticas culminou em dedicá-la à história, vocação homologada pelo novo regulamento de 1786; desde o final de 1724, um de seus integrantes — o oratoriano e escritor É.-L. de Foncemagne — anunciava sua intenção de despender todos os esforços da instituição na história da monarquia. Mas foi Camille Falconet quem lançou verdadeiramente um programa de trabalho, em um discurso lido em 28 de janeiro de 1727, "Sur nos Premiers Traducteurs français avec un essai de Bibliothèque française": "Limitem-se a levar em consideração o campo que é a Pátria, e hão de verificar que ela é ainda mais ampla para exercer os talentos dos senhores e desenvolver em tal trabalho seus conhecimentos [...1. Por que sentir desdém por nós mesmos em vez de adotarmos o exemplo dos gregos e romanos em relação ao que fizeram por eles mesmos? Cientistas de outras Nações que se reconhecem inferiores à Nação Francesa consideraram de forma mais nobre seus próprios países." Após a longa enumeração dos trabalhos a empreender, sua conclusão fazia um apelo para o estudo de tudo o que se presta a "lisonjear a curiosidade de um francês que faz algum caso ao que diz respeito à nação e à sua pátria. Como isso é útil para a Pátria! Que penhor de glória para os senhores". Mas, no decorrer do século XVIII, as antiguidades nacionais suscitaram o interesse apenas de um reduzido círculo de grandes trabalhadores, no essencial magistrados, amigos ou ex-alunos de Falconet — por exemplo, Sainte-Palaye" 82. O próprio Falconet empreendeu a elaboração do Dictionnaire géographique, em colaboração com Sainte-Palaye: este redigiu o glossário, a história dos trovadores e o Dictionnaire des antiquités françoises, que, por sua vez, repertoriava as obras publicadas sobre os usos e costumes, além das leis. Rigoley de Juvigny, com a colaboração de Foncemagne, Sainte-Palaye e Bréquigny, editou a Bibliothèque françoise (1772-1773). Por último, a Academia instituiu prêmios sobre o tema do estabelecimento da religião na Gália e sobre o progresso das artes e das ciências, depois de Carlos Magno; as dissertações produzidas foram utilizadas pelo historiador L.-P. Anquetil, em 1797, para esboçar um panorama das artes e das ciências na Idade Média, que foi apresentado à nova "Academia das Ciências Morais e Políticas" do Institut de France (cf. Lionel Gossman, Medievalism and the Ideology of the Enlightenment, Baltimore, 1968). 73

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considerando que as pessoas de gosto haviam conservado uma imagem negativa a respeito dos integrantes desse grupo. Em relação às fontes, o saber da época estabelecia a distinção entre antiguidades e monumentos.83 No início do século XIX, dois verbetes do Dictionnaire de Millin esclareciam retrospectivamente tal distinção fundamental, no momento em que ela estava periclitante. Eis como foi definida no verbete "Arqueologia": "A ciência dos usos e costumes dos antigos. A dos monumentos antigos é uma de suas partes essenciais; é possível considerá-los na acepção mais especial da palavra, ou seja, no sentido em que eles servem para conservar a memória dos acontecimentos e das pessoas; ou como obras de arte, relativamente ao prazer inspirado por sua forma. Portanto, a ciência da Antiguidade pode ser abordada sob dois aspectos: é possível considerar os monumentos somente como tais e ter como objetivo unicamente estudar os usos e costumes, a constituição política, a teologia, as cerimônias religiosas, as leis, a segurança pública, a vida privada, etc., dos antigos. Então, os monumentos literários, tais como as obras dos autores, os documentos legais e administrativos, as inscrições; os monumentos da arte, tais como os restos da arquitetura, escultura, pintura, glíptica, numismática, etc.; e os monumentos mecânicos, tais como os utensílios, as armas, etc.; são igualmente importantes, afinal, eles servem apenas para explicar os usos e costumes dos antigos. Esta parte da ciência é designada comumente por antiguidades, e o nome de antiquário é atribuído àquele que a possui. Em seguida, pode-se considerar, sob uma relação particular, os monumentos cujo único interesse tem a ver com o fato de serem obras das belas-artes. Eles podem ser abordados como De maneira geral, sobre a elaboração da história literária, cf. o trabalho inacabado de Claude Cristin, Aux Origines de l'histoire littéraire, Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1873; e Luc Fraisse, Les fondements de l'histoire littéraire: De Saint-René Taillandier à Lanson, Paris: Champion, 2002, estudo que começa em 1733 e inclui uma análise de Histoire littéraire "alie de Pierre-Louis Guingené (1811-1819). Para a relação desses ensaios com as coleçóes, cf. Neil Kenny, "Books in space and time: Bibliomania and early modern histories of learning and literature in France", in Modern, Language, Quarterly, 61, 2, 2000, p. 253-286. 83. Peter Burke, "Images as Evidente in Seventeenth-Century Europe", inJouralfthe History of Ideas, 2003, p. 273-296. 74

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amador, quando se procura apenas o prazer de contemplar o que é belo; ou como artista, para aprimorar sua instrução e seu gosto; ou, por último, como um connaisseur, que, além dos dois objetivos precedentes, tem o propósito de apreciar o assunto, a ideia, o espírito, o estilo, a execução dos monumentos, de interpretá-los, conhecer seus autores e descobrir sua história. A ciência que se interessa, assim, pelas obras de arte entre os monumentos antigos é chamada arqueologia. Como é costume atribuir o nome de antiguidades às obras de arte entre os monumentos da Antiguidade, o estudo dessas obras designa-se também por arqueologia. Aquele que possui tal ciência não deve ser confundido com quem é apenas antiquário [...]. Portanto, essa ciência deveria interessar-se em geral por monumentos de toda a Antiguidade que chegaram até nós. Essa ampla extensão fez com que tivesse sido estabelecido um número de antiguidades e arqueologias tão grande quanto o de povos antigos. Entretanto, como numerosas nações antigas não se distinguiram na arte e, por conseguinte, seus monumentos não merecem ser analisados nesse aspecto, a arqueologia, habitualmente, trata apenas das obras conservadas por quatro nações: Egito, Grécia, Etrúria (atual Toscana, na Itália) e Roma. Em seu sentido estrito, a arqueologia designa, portanto, 84 o conhecimento dos monumentos artísticos desses quatro povos." Nessas condições, concebe-se a profunda indignidade do estudo dos monumentos franceses. Em sua obra Monuments de la monarchie française, publicada entre 1729 e 1733, o beneditino B. de Montfaucon multiplicava, assim, justificativas e precauções oratórias, chegando mesmo a escrever na apresentação: "Falou-se tanto dos gregos e dos romanos que é perfeitamente razoável prestar alguma atenção ao que nos toca de perto sem receio de perder o caráter da venerável antiguidade." Além de qualificar os monumentos como testemunhas dos "tempos de ignorância", Montfaucon acrescentava que "seu aspecto grosseiro fez com que nossos antepassados, sem conhecimento da importância desses monumentos, tivessem permitido o desaparecimento da maior parte deles. Foi apenas nos últimos tempos que houve quem se apercebesse de que, por mais grosseiros que sejam, tais monumentos instruem 84. Aubin-Louis Millin, Dictionnaire des beaux-arts, 1806, p. 51.

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sobre inúmeros aspectos que não podem ser encontrados alhures: esse gosto diferenciado pela escultura e pela pintura, em diversos séculos, pode mesmo [grifo de Dominique Poulo- t] ser contado entre os fatos históricos". Este beneditino tinha publicado, em 1719, o primeiro dos quinze volumes de L'Antiquité expliquée, obra que pretendia relacionar a religião da Antiguidade greco-romana com os cultos de mistério de Isis, Átis e Mitra. Tal empreendimento de livraria fazia referência a obras medievais, mas para reconhecer nessa época outros tantos monumentos druídicos, até mesmo o paradigma dos hieróglifos egípcios, arguindo em favor de uma continuidade entre a Antiguidade e o cristianismo, entre gregos ou romanos e celtas. Assim, nas coletâneas de monumentos gravados, Montfaucon reconhecia plenamente a Idade Média, mas em nome da Antiguidade "nobre". Um passado longínquo e prestigioso (o Egito como origem do mundo) justificava o estudo das Antiguidades da França. Em compensação, na nova coletânea, a motivação nacional, patriótica, era evidente: "Além de que o gosto e o engenho de tempos tão grosseiros são um espetáculo bastante divertido, o interesse pela nação compensa, aqui, o prazer que poderia ser extraído de monumentos com maior elegância."" A metáfora da pedreira e do monumento erguido por um arquiteto percorreu, então, o intercâmbio entre eruditos e letrados, singularmente nos confrontos de caráter ideológico e pessoal. No momento em que Sainte-Palaye se apresentou à Academia contra um "verdadeiro" autor, os bons espíritos fizeram o seguinte comentário: "Eis uma forma de equiparar Mansart com quem, da pedreira, extraiu as pedras que serviram para construir Versalhes."" O princípio da divisão do trabalho continuava ainda explícito em uma carta do ministro da Justiça, A. Th. Hue de Miromesnil, para o intendente da Guiana (1783): "Esses numerosos volumes in-fólio que, até aqui, têm sido preparados pela Congregação Beneditina de Saint-Maur sobre um grande número de províncias, tais como a Bretanha, o Languedoc e a Borgonha, devem ser considerados não 85. "Prospectus", in L'Antiquité expliquée, I, Paris: Compagnie de Librairies, 1716. [N.T.] 86. Apud Lionel Gossman, op. cit., p. 103. [Jules Hardouin-Mansart (1646-1708), foi o primeiro arquiteto de Luís XIV, que realizou a ampliação do Palácio de Versalhes (Galeria dos Espelhos e Capela). (N.T.)] 76

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tanto como verdadeiras histórias, mas como coletâneas imensas de todos os materiais que devem estar a serviço da história. Em decorrência de sua condição, os beneditinos, por mais eruditos que sejam, limitaram-se, propositalmente ou por impossibilidade, a conhecer os monumentos: foram à sua procura, procederam à sua análise, emitiram juízos a seu respeito, tendo estabelecido a ordem dos fatos a partir do testemunho desses monumentos. Convém reconhecer que as pedras estão colocadas na ordem adequada, mas o acabamento do edifício exige algo mais que as mãos deles."" Essa tradicional oposição entre pedante e homem de gosto duplicava-se de outra, não menos repisada, que separava o erudito do filósofo. Para Diderot, em seu Salon de 1767, "Voltaire escreve a história como os grandes estatuários antigos faziam o busto [...], ele amplia, exagera e corrige as formas. Estará certo? Ou equivocado? Para o pedante, ele equivoca-se, enquanto tem razão para o homem de gosto"." Certamente, inúmeros pontos de encontro entre defensores dos filósofos e representantes da erudição "parlamentar" tornaram a oposição menos caricatural. No verbete "Erudição" da Encyclopédie, D'Alembert parece pretender colocar um termo a tal querela, reconhecendo que "o espírito filosófico encontra frequentes oportunidades de exercer-se nas matérias de erudição" (e, em primeiro lugar, sem dúvida, na crítica das fontes, segundo os critérios sugeridos por Bayle 89). Assim, esboçava-se 9 o que Judith Shklar designou por "reabilitação da história" 0. Bayle suscitava também a grande admiração de Denys-François 9 Secousse, o mestre de Lacurne de Sainte-Palaye. 1 Quanto a Voltaire,

87. Cf. Dieter Gembicki, op. cit., p. 269-270. 88. Em uma abundante literatura, cf. Matthew Anthony Fitzsimons, "Voltaire: History Unexemplary and en Philosophe", in The Review of Politics, vol. 40, n. 4, out. 1978, p. 447-468; republicado em The Past Recaptured, Notre Dame: Notre Dame University, 1983, p. 106-127. 89. Pierre Bayle (1647-1706), escritor francês; sua crítica das superstições populares e seu monumental Dictionnaire historique et critique (1696-1697) anunciavam o pensamento filosófico do século XVIII. [N.T.] 90. Judith Shklar, "Jean d'Alembert and the Rehabilitation of History", in Journal of the History of Ideas, vol. 42, 1981, p. 643-664. 91. Jacob Soll, "Empirical History and the Transformation of Political Criticism in France from Bodin to Bayle", in Journal of the History of Ideas, vol. 64, n. 2, 2003, p. 297 ss. 77

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formado na esfera dos jesuítas, ele acompanhava as discussões da Académie des Inscriptions, e seu respeito chegava a ponto de solicitar a Foncemagne para reler sua obra histórica antes da publicação. Em seu ensaio histórico, Le Siècle de Louis XIV (1751), ele não poupou elogios aos grandes eruditos, beneditinos ou jesuítas. Do mesmo modo, a pedido dos espíritos cultos, D'Alembert vai interceder junto a Frederico II para obter informação sobre o manuscrito de J. Froissart, em Breslau. Os estudos historiográficos recentes convidam também a reconsiderar a análise tradicional ao suprimir as diferenças estabelecidas, de forma demasiado nítida até então, entre história filosófica e história erudita. "O erro seria acreditar", escreve Jean-Marie Goulemont, "que discurso sobre a história da Idade Clássica e novo discurso — ao sublinhar que as Luzes se haviam inspirado em ambos — seguem vias autônomas: um mantém-se em sua integridade primordial, ao passo que o outro adquire, aos poucos, sem deixar de ser de forma contínua, a coerência e a nitidez, aliás adotadas mais tarde em Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain."93. Ocorre que o século XVIII filosófico, em busca constante de um uso pedagógico da história, exasperava-se regularmente com as preocupações eruditas, a tal ponto que, em Émile, Rousseau escreve que "não sabemos tirar qualquer verdadeiro proveito da história; tudo é absorvido pela crítica de erudição; como se fosse muito importante constatar a veracidade de um fato com a condição de ser possível extrair dele uma instrução útil"94 A paixão pelo útil levou, inclusive, D'Alembert a "desejar que, em cada centenário, se fizesse um apanhado dos fatos históricos realmente úteis e que o resto fosse queimado" (Réflexions sur l'histoire). Assim, o gosto e a utilidade convergiam para julgar que a Idade Média merecia apenas um resumo cronológico que, sucintamente, colocasse em ordem esse caos "em que a barbárie, a ignorância e a superstição cobriam a face do mundo" (Essai sur les moeurs ). 92. Jean Froissart (c. 1337-c. 1405), um dos mais importantes cronistas da França medieval; seus textos foram considerados como a expressão mais significativa do renascimento cavalheiresco, ocorrido na França e na Inglaterra durante o século XIV. (N.T.] 93. Jean-Marie Goulemot, Discours, histoire et révolution, Paris: UGE, 1975, p. 482. 94. Cf. o verbete "Histoire", p. 407-411 de Raymond Trousson e Frédéric S. Eigeldinger (orgs.), Dictionnaire de Jean-Jacques Rousseau, Paris: Champion, 1996. 78

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Desse modo, o prestígio dos indícios do passado permaneceu precário no âmago da república das letras, em contraste com o culto votado aos textos clássicos, muito apreciados pelo gosto universal. Numerosos bons espíritos deploravam o incrível caos em que haviam sido submersos pela sucessão dos séculos, oferecendo resistência em preencher sua memória com fatos já ocorridos, inúteis ao projeto da razão: um i maginário da saturação dominava sua perspectiva. Eles preferiam i maginar uma sociedade ideal em que, na sequência de uma seleção cuidadosa, subsistiria apenas um passado escolhido e meditado, digno do "nacionalismo da humanidade"" forjado pelo cosmopolitismo das Luzes. Quando, hoje em dia, pensamos espontaneamente o patrimônio em termos de conquistas a serem ampliadas, em vista de uma conservação cada vez mais completa e mais garantida dos restos mais rudimentares do passado, o século XVIII, fatigado com as trivialidades da história, considerava-o no âmbito de uma depuração negociada a ser empreendida. As testemunhas das origens eram as únicas que podiam ser legitimamente preservadas — de tal modo a época sonhava, naturalmente, com os alicerces (com sua energia desaparecida que deve ser 96 recuperada ou superada) : assim, esboçava-se um programa de trabalho 97

do historiador em forma de busca das prefigurações. Pensar as antiguidades podia, então, culminar em uma modalidade de projeto político ou, pelo menos, de compromisso cívico. A reflexão de Joseph Addison (1672-1719) sobre a numismática — Dialogues upon the Usefulness of Ancient Medals (1721) — estabelecia, assim, a distinção entre a adequada apreciação da arte das moedas, elogiada pela virtude cívica e pela revolução financeira inglesa, e as manifestações de um saber pedantesco. O sentimento do objeto antigo tinha pouco a ver com a crítica das fontes e com a administração da prova: ele contribuía para elaborar um pensamento da coletividade e da atualidade em que Nova York: 95. Carleton J. Hayes, The Historical Evolution of Modern Nationalism, Richard Smith, 1931, p. 13-17. Paris: PUF, 96. Michel Delon, L'Idée d'énergie au tournant des Lumières (1770-1820), 1988. ' reviewers", in Review of 97. Charles F. Millett, "Ancient historians and 'Enlightened Politics, vol. 21, n. 3, 1959, p. 550-565.

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cada qual poderia tornar-se antiquário." Na França, a pesquisa histórica mais "esclarecida" menosprezava "a sucessão dos fatos relacionados com armas e guerras" (G. Bonnot de Mably) para se empenhar em desvencilhar o emaranhado dos "princípios incontestáveis". A historiografia de H. Bouvainvilliers, J.-B. Du Bos e Ch. Montesquieu promoveu o debate da história da Gália com uma preocupação constante de rendimento imediato. Em suma, essa história tentava elaborar cenários a propósito de um processo marcado por uma longa decadência, mas que podia alimentar, simultaneamente, um esforço de memória: "O esquecimento não é, de modo algum, ignorância. Até mesmo esquecidas, as antigas noções de sociedade e de ordem devem ser não tanto inculcadas, mas reanimadas; a história é uma reminiscência."99 Em meados do século, "fundamentalmente, a reconstituição da instituição original permanece o objetivo essencial da historiografia [...] A revelação de novos documentos, a nova interpretação atribuída, aqui e ali, a esta ou aquela ordenação régia, o que poderia ser designado como progresso da erudição, depende da dinâmica própria a essa reconsideração periódica e não pode dissimular uma estabilidade legível para além das divergências de detalhe"100. O que considerávamos desde o Romantismo como um sentimento rudimentar do passado — a cor local, o pitoresco — não importava mais agora. L'Année littéraire elogiava, em 1765, une Histoire de la ville de Lille nos seguintes termos: "Não há lugar para confundir esta história com a maior parte daquelas narrativas, cujo único objeto é a cidade. O autor esboçou os costumes e o espírito dos homens; o que se torna interessante para todas as regiões." Desse modo, a maior parte das coletâneas de monumentos são estranhos ao gosto "filosófico". Por exemplo, como introdução à tradução bastante livre, elaborada pelo general Pommereul, no ano VI, da obra do teórico neoclássico, Francesco Milizia, De l'Art de voir dans les beaux-arts, lê-se o seguinte: "Dispomos 98. David Alvarez, "'Poetical Cash': Joseph Addison, Antiquarianism, and Aesthetic Value", in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, Primavera 2005, p. 509-531. 99. François Furet e Mona Ozouf, "Mably et Boulainvilliers: Deux Légitimations historiques de la société française au in Annales ESC, 1979, p. 169-170.

100. Jean-Marie Goulemot, op. cit., p. 427.

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apenas de longas e insignificantes nomenclaturas sobre os monumentos das artes, em Paris e arredores; além disso, nem uma única linha para mostrar como observá-los com proveito e deleite." 101 Em compensação, os princípios de J. J. Winckelmann parecem responder às exigências de uma história "filosófica" que menosprezaria os aspectos acessórios, de acordo com a tradição de Vasari, a propósito dos artistas e das obras, para se dedicar a um quadro das relações entre arte e liberdade. "As artes associadas ao desenho começaram", escreve ele, "como todas as outras invenções humanas, pela estrita necessidade; em seguida, elas desejaram profundamente alcançar o belo. E depois, passaram ao excesso e ao desmesurado. Esses são os três períodos principais. [...] Neste livro, vamos descrever, as artes do desenho tais como elas haviam sido em sua origem; e depois trataremos das diferentes matérias sobre as quais trabalharam os artistas e, em seguida, da influência dos climas sobre esses artistas." 10 Em Winckelmann, a erudição devia permitir sobretudo o acesso ao ideal grego, para além do tempo corrompido pelo mau gosto e pela servidão: nesse aspecto, ela estava a serviço de um desígnio de ruptura radical. Eis por que Lionel Gossman tem motivos para defender que o combate das Luzes contra a tradição e a história é compatível com a ideia de um retorno 103 à história, depois de terem sido afastados seus aspectos malfazejos. O contraste é considerável com o monumento erguido, simultaneamente, por Séroux d'Agincourt à história da arte, em sua "fraqueza" em relação aos tempos intermediários, apesar do caráter igualmente iniciador de seu empreendimento comparativo. Se o exercício do antiquário era praticamente similar nos dois casos, a obra winckelmanniana introduzia uma revolução de grande amplitude na implementação da documentação, 101. Général Pommereul, De l'Art de voir dans les beaux-arts, traduit de l'italien de Milizia; suivi Des institutions propres à faire fleurir la France, et D'un état des objets d'art dont ses musées ont été enrichis par la guerre de la Liberté, Paris: Bernard, ano 6, 1798. 102. Cf. as profissões de fé do conservador de museu Alexandre Lenoir, membro influente da Revolução Francesa: "O objeto de uma história ponderada da arte consiste em remontar até sua origem, acompanhar seus avanços e variações até sua perfeição, além de identificar sua decadência e queda até sua extinção" ( Musée, ano IX, p. 50). 103. Lionel Gossman, "History as Decipherment: Romantic Historiography and the Discovery of the Order", in New Literary History, vol. 18, n. 1, 1986, p. 23-57. 81

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das ficções e das convenções que a organizam. Em igualdade de circunstâncias, o texto de Séroux — importa sublinhar —, na sequência de um processo de edição particularmente complexo, constituía sobretudo uma memória dos arquivos consultados ou elaborados — e de seu eventual desaparecimento. Uma ego-história, à mercê das notas esparsas do opus magnum dessa primeira história da arte, transpôs a Revolução: o manuscrito, terminado sob o Antigo Regime, foi publicado nos novos tempos, com a menção aqui e ali da diferença manifesta entre os dois mundos. A nota de rodapé tornou-se então o recurso pelo qual não só se fazia referência aos arquivos, à sua consulta ao acaso de visitas, descobertas inesperadas e salvamentos imprevistos, mais ou menos favorecidos pela sociabilidade do Antigo Regime mas também, finalmente, evocava-se a passagem dessa afinidade erudita para a proscrição de seus materiais. Em uma divagação sobre o castelo de Verger, na província de Anjou, Séroux dirigia à república das letras a seguinte observação: "Na sequência dos últimos distúrbios, ignoro em que estado ficará o próprio castelo e tudo o que ele continha de interessante para a história da França e das três artes, no momento em que o visitei em 1764. [...] No canto de uma sala que servia de biblioteca, encontrei manuscritos da história da França, assim como livros gregos e latinos com anotações manuscritas de Eleonora, princesa de Rohan. Com o máximo cuidado, recuperei esse material para depositá-lo, em seguida, na biblioteca de Soubise: bastante feliz por ter fornecido uma prova de minha afeição particular por uma família de tão elevada reputação e, desse modo, reconhecer suas liberalidades em meu favor e em favor de meus familiares que, desde os mais remotos tempos até este momento, têm servido nos exércitos comandados por célebres generais com tal nome."'" Semelhante referência memorial lembrava a existência de formas de sociabilidade tradicional para ter acesso aos arquivos e escrever a história de determinadas corporações, seja no círculo dos parlamentos ou na escrita das histórias das cidades; além

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disso, ela evocava o desaparecimento — com os documentos que lhes davam justificação ou serviam de caução — de esmerados interesses patrimoniais. Se, como foi demonstrado por Anthony Grafton, a nota de erudição é sinal de pertencimento a uma comunidade moral reivindicação da verdade e da autoridade —, nesse caso formula-se a questão a respeito das convenções e das categorias da análise, no aspecto em que elas envolvem regras de fiabilidade, critérios de crença e utensílios de credenciamento — relativamente à articulação entre depósito de indícios do passado e saberes apropriados para validá-los — no momento em que, de repente, verifica-se uma mudança de toda a economia moral dos bens simbólicos.105

104. Jean-Baptiste-Louis-George Séroux d'Agincourt, Histoire de l'art par les monuments, depuis sa décadence au IV siècle jusqu'à son renouvellement au XVIe, II, "Sculpture". Paris, 1825, p. 70, n. c. [Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 77, nota 53. (N.T.)]

105. Anthony Grafton, Les Origines tragiques de l'érudition: Une Histoire de la note en bas de page, Paris: Le Seuil, 1998.

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2 UMA NOVA AUTENTICIDADE A história — farol eterno das nações, patrimônio indestrutível que as fez passar da infância para a idade adulta serve-lhes de instrução e de advertência em cada página. Discurso destinado a ser pronunciado na Assembleia Nacional por Jean-Henri Bancal, deputado representante dos Citoyens-pétitionnaires da cidade de Clermont-Ferrand, sede do Departamento de Puy-de-Dôme, 29 jul. 1791.'

A Revolução Francesa é tributária da cultura material do passado sob duas formas principais. O tempo inscreve-se nos monumentos deixados in situ, na paisagem das cidades, enquanto as obras, os livros e os arquivos acumulam-se nas coleções de caráter científico ou nos acervos de bibliotecas. No entanto, todos esses materiais são imediatamente requisitados por serem úteis. Eles podem convir, segundo a distinção clássica de Rabaut Saint-Étienne (21 de dezembro de 1792), "à instrução pública [que] esclarece e exercita o espírito" e "à educação nacional [que] deve formar a sensibilidade". De acordo com sua explicação, "a primeira deve fornecer esclarecimentos, enquanto a segunda suscita virtudes; a primeira contribuirá para a reputação da sociedade, enquanto a segunda, para sua consistência e seu dinamismo. A instrução pública exige liceus, colégios, academias, livros, instrumentos, cálculos, métodos; ela está implantada em recintos fechados. Por sua vez, a educação nacional requer circos, ginásios, armas, jogos públicos, festas nacionais, a cooperação fraterna de todas as idades e de ambos os sexos, além do espetáculo imponente e pacífico da sociedade humana reunida."2 De fato, a cultura material 1. Philippe Bourdin, "Bancai des Issarts, militant, député et notable: de l'utopie politique à l'ordre moral", in Revue Historique, vol. 302, n. 4, 2000, p. 895-937. 2. Cf. James Guillaume (org.), Procès-verbaux du Comité d'instruction publique de la Convention, Paris, 1891-1907, p. 232. A fórmula é comentada por Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976; e por Keith M. Baker, Condorcet from 85

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do passado integra ao mesmo tempo um processo de reescrita da história e a reconfiguração das imagens públicas, a elaboração de uma nova memória dos saberes e um discurso sobre a monumentalidade coletiva; desse modo, ela alimenta uma reflexão sobre a arqueologia e a história, a estética e o político. A melhor ilustração dessa mudança encontra-se no historiador Jules Michelet (1798-1874), no célebre trecho do livro Le Peuple, no qual a busca do "instinto do povo" encarna-se no face a face com um "gigantesco monumento" — extraordinário momento onírico que acaba evocando a imagem do "gigantesco elmo" e da "montanha de plumas" na corte do Castelo de Otranto — romance inglês de 1764, o primeiro da literatura gótica, escrito por Horace Walpole. Essa é a oportunidade de opor, termo a termo, a abordagem, por um lado, estética do artista e, por outro, arqueológica do historiador — ou, ainda, em termos rieglianos, o culto do monumento antigo e o do monumento histórico. Ah! como ele está, hoje, desfigurado, sobrecarregado com aditamentos estranhos, manchas esbranquiçadas e bolores, conspurcado pelas chuvas, lama e insultos dos passantes!... O pintor, o homem da arte pela arte, chega, observa e sente-se atraído exatamente por essas manchas... Por minha parte, eu gostaria de arrancá-las. Ouça, pintor de passagem, isto não é um brinquedo de arte, preste atenção, mas um altar! Tenho de esburacar a terra para descobrir as bases profundas desse monumento; a inscrição, dou-me conta agora, está completamente soterrada, escondida bem longe, embaixo... E, para cavar, não tenho enxada, nem barra de ferro, nem picareta; vou contentar-me em utilizar minhas unhas. [...] Hoje, ainda estou cavando... Eu gostaria de alcançar o fundo da terra; mas, não gostaria de exumar um monumento do ódio e da guerra civil... Pelo contrário, tenho desejo de encontrar, ao descer debaixo desta terra estéril e gélida, as profundezas em que ressurge o calor social, em que se conserva o tesouro da vida universal, em que voltariam a abrir-se, para todos, as nascentes exauridas do amor.' Natural Philosophy to Social Mathematics, Chicago: Chicago University, 1975 (trad. fr.: Condorcet: Raison et politique, Paris: Hermann, 1988, p. 416 ss). 3. J. Michelet, Le Peuple, Paris, Comptoir des Imprimeurs unis, 1846, p. 154-155. Sobre os desafios da época de Le Peuple, cf. Arthur Mitzman, "Michelet and Social 86

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Talvez seja impossível encontrar melhor apresentação do modelo epistemológico moderno da "profundeza", tal como é esboçado por Frederic Jameson — sem deixar de relacionar o episódio com outras dissimulações de Michelet — com as curas de lama nas Termas de Acqui (Itália), nas profundezas do mar ou da montanha. Contra a postura do artista, Michelet reivindicava a do historiador-arqueólogo: ele apresentava-se como homem que se enfurnava nos arquivos e nos subterrâneos das criptas, em busca das ruínas do tempo. Desse modo, ele definia — ao lado do porta-voz excepcional do patrimônio francês, encarnado por Victor Hugo — outra figura de patrimonializador, dedicado à recuperação dos túmulos esquecidos, servidor de memórias privadas de manutenção e, preferencialmente, da primeira de todas elas, a do Povo. Ora, a figura da exumação revolucionária — não a exumação dessacralizante dos reis da abadia de Saint-Denis, mas a exumação simbólica, sob a forma de ascensão até a revelação dos princípios originais da nação — marcou surdamente essa construção fantasmática. Nesse sentido, pelo menos, é que nos propomos questionar, aqui, o legado revolucionário em matéria de entendimento do passado. No lugar da esperança da salvação, instalaram-se com as Luzes dois tipos de futuro: a prognosis racional e a filosofia da história. A previsão opunha-se exatamente à profecia: o futuro tornava-se o domínio de possibilidades finitas. "Enquanto a profecia transgride as balizas da experiência e dos cálculos, a prognosis permanece nos limites da situação política." No entanto, "sub specie aeternitas, é indiferente que o futuro seja considerado em termos de fé ou de cálculo ponderado: nada de novo pode emergir". Somente "a filosofia da história separa, pela primeira vez, a modernidade de seu passado e, no mesmo momento, inaugura nossa modernidade por um novo futuro. Uma consciência do tempo e do futuro começa a desenvolver-se no obscurantismo da política absolutista, inicialmente em surdina, e mais tarde abertamente, combinando de Romanticism: Religion, Revolution, Nature", in Journal of the History of ldeas, vol. 57, n. 4, 1996, p. 659-682. 87

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forma audaciosa a política e a profecia. Nesse instante, na filosofia do progresso, introduz-se uma mistura típica do século XVIII, ou seja, predição racional e expectativa de uma salvação."4 A fraseologia de Robespierre — em particular o famoso discurso de 10 de maio de 1793 sobre a Constituição — fornece uma boa ilustração do tema em que a aceleração do tempo encarnava a tarefa a ser empreendida em direção a uma época de liberdade e de felicidade. Segundo a feliz fórmula de Reinhart Koselleck, o futuro torna-se "irresistível — o que, paradoxalmente, corresponde à sua construtibilidade". 5 Em suma, "a Revolução liberava um novo futuro, pressentido seja como progresso ou catástrofe, e, pelo mesmo movimento, um novo passado; o caráter de estranheza inédita deste último levava-o a adequar-se para se tornar o objeto particular da ciência crítica-histórica."6 Concretamente, o tempo novo inscreve-se em uma proliferação de panfletos e opúsculos diversos que dão conta da atualidade de múltiplos "fatos históricos" — do jornalismo revolucionário aos Tableaux de la Révolution Française.7 Nessa perspectiva, o conjunto dos gestos de cerceamento da Revolução, tradicionalmente associados a uma "estratégia consciente, apesar de ser mais ou menos secreta, dos políticos moderados" remetia, 4. Reinhart Koselleck, Future Past: On the Semantics of Historical Time, Cambridge: MIT, 1979, p. 17. 5. Assim, o homem novo aparece, ao mesmo tempo, como um "dom" e como uma tarefa prática a ser empreendida. (Mona Ozouf, L'Homme régénéré, Paris: Gallimard, 1989, p. 131-132.) 6. Fórmula de Reinhart Koselleck, op. cit. Sobre esse aspecto, cf. as análises de François Furet, "Ancien Régime", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire critique de la Révolution Française, Paris: Flammarion, 1989, p. 627-638. 7. Pierre Rétat, "Forme et discours d'un journal révolutionnaire: Les Révolution de Paris en 1789", in Claude Labrosse, Pierre Rétat e Henri Duranton (orgs.), L'Instrument périodique: La Fonction de la presse au XVIII' siècle, Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1986, p. 139-178; L'Espace et le Temps Reconstruits: La Révolution Française une Révolution des Mentalités et des Cultures?, Marselha, 22-24 fev. 1989 (Atas do colóquio), Aix-en-Provence: Publications de l'Université de Provence, 1990; Warren Roberts, The Public, the Populace, and Images of the French Revolution: Jacques-Louis David and Jean-Louis Prieur, Revolutionary Artists, Albany: State University of New York, 2000; Claudette Hould, La Révolution par l'écriture: Les Tableaux de la Révolution Française — une entreprise éditoriale d'information (Ie791-1817), Paris: Réunion des Musées Nationaux, 2005. 88

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"ao mesmo tempo, a uma angústia generalizada e menos consciente causada por um futuro apresentado como um espaço ilimitado". Para combater, em melhores condições, essa "desorientação", o "sentido vivenciado" da Revolução integrava-se, pelo imaginário, em uma temporalidade cíclica que equivale a uma obstrução do futuro vazio e ameaçador. Daí, a contradição entre um sentido oficial, teleológico, e um sentido ilusório, permitindo, "a um só tempo, o recalcamento do futuro ilimitado e a celebração da Revolução."8 Ora, ao dar testemunho eloquente de um mundo fragmentado, o patrimônio assegurava também a continuidade — de um passado regenerado a um futuro estabilizado. Ele podia configurar a permanência dos valores e dos recursos diante da incerteza do futuro — com a condição de não implicar o retorno ao antigo estado das coisas, perspectiva indubitavelmente ameaçadora, e portanto, fundamentar-se na razão. A materialidade das coisas podia servir de vínculo entre a história e a posteridade, encarnar uma lição do passado que corresponde à afirmação dos princípios; ela era não tanto uma ameaça para a experiência revolucionária, mas uma possibilidade de elaborar a definição abstrata da nação, ao manifestar sua realidade concreta>

Uma nova história Mesmo que Grimm ou Diderot tenham manifestado, ocasionalmente, sua admiração pelo pitoresco da cavalaria, o período medieval 8. A maîtrisefórmula foi forjada por Hans-Ulrich Gumbrecht; cf. "Chants révolutionnaires et de l'avenir", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, 1975, p. 244. Foi aplicada por Mona Ozouf ao dossiê da festa nestes termos: "Ao questionar o vocabulário da comemoração, a finalidade da festa é puramente conservadora: trata-se apenas de manter, perpetuar, conservar [...]. O apelo à memória deve ser dirigido, efetivamente, por uma representação do futuro. No entanto, as repercussões atribuídas à festa comemorativa estão dotadas de um valor exclusivamente repetitivo. [...] Ela está incumbida, precisamente, de encarnar esse desfecho voluntário e arbitrário." Portanto, o objetivo consistiria em manter "uma memória sem história" uma vez que, "subtraída aos caprichos do tempo, projetada na eternidade do discurso, a Revolução desestimulará os homens, seja a contestá-la ou a prossegui-la" ("De thermidor à brumaire: Le Discours de la Révolution sur elle-même", in Revue Historique, vol. 243, 1970, p. 31-66, aqui, p. 37-38). 89

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havia mantido uma posição muito mais significativa nas versões conservadoras do mito primitivo, como outras tantas imagens dos "bons velhos tempos."9 No declínio do século, as imagens da Idade Média remetiam, cada vez mais, a uma época heroica (e perdida) da realeza francesa contra as imagens concorrentes do modelo antigo ou do Éden selvagem. Em seu panorama de Trois siècles de la littérature (1779), um jornalista antifilosófico, tal como Sabathier de Castres, elogiava encomiasticamente Sainte-Palaye por seu interesse pela "história dos bons velhos tempos de nossa monarquia". Portanto, a escola histórica dos magistrados opôs-se logicamente aos tumultos institucionais no momento em que a Revolução rejeitava radicalmente tudo o que a havia precedido ("Há quem se apoie na história; mas nossa história não é nosso código", proclamava Rabaut Saint-Étienne; por sua vez, Sieyès afirmava que não se deve desanimar pelo fato de "nada encontrar na história que possa convir à nossa posição"10). Em seu Rapport sur les Académies (1791), o escritor e moralista Sébastien-Roch N. de Chamfort dirigia um ataque contundente contra a Académie des Inscriptions, que se limitava a enunciar os lugares-comuns tanto da futilidade dos conhecimentos eruditos como do ridículo de pedantes interessados em bagatelas. Mas essa foi sobretudo a oportunidade para derrubar "os srs. Secousse, Foncemagne e vários outros membros dessa companhia" que haviam pretendido "estudar nossas antiguidades francesas para desnaturalizá-las, deturpar as origens de nossa história, colocar às ordens do despotismo uma falsa erudição, combater e condenar de antemão a assembleia nacional, ao declarar equivocada e perigosa a opinião que retira do Rei o poder legislativo para atribuí-lo à Nação". Daí em diante, a história pretendeu, de fato, estar em harmonia com tempos inéditos. O programa do Liceu republicano para o IX ano letivo, ou seja, o ano II, enunciava claramente suas novas tarefas: "Entre 9. François Pupil, Le Style troubadour ou la nostalgie du bon vieux temps, Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1985. 10. Jean-Paul Rabaut Saint-Étienne, Considérations sur les intérêts du Tiers-État, adressées au peuple des provinces, 1788, p. 13-14; Emmanuel Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers-État?, org. Roberto Zapperi, Genebra: Droz, 1970, p. 175. Cf. Jean Egret, La Prérévolution française (Ie787-Ie788), Paris: PUF, 1%2, p. 332. 90

todos os conhecimentos humanos, a história é aquele que deve receber, o mais rapidamente possível, todas as influências das revoluções que acabam de se operar entre nós; no momento em que nos separamos tão completamente dos séculos passados, convém abordá-los a partir de uma última e nova perspectiva. Além da nossa maneira de ser, nossa maneira de ver deve ser transformada. Essa distinção da história entre antiga e moderna será suprimida; toda a história, até mesmo a de ontem, será considerada como antiga. Os fatos permanecerão os mesmos, mas apresentar-se-ão para nós como diferentes porque haveremos de observá-los e julgá-los de maneira diferente" (p. 17).1 1 Na verdade, a história dos revolucionários — de Condorcet aos ideólogos — retomou as convicções anteriores relativamente a uma necessária utilidade da disciplina: o curso de história da École Centrale du Rhône foi qualificado por seu professor como "moral reduzida em exemplos." 12 Para Destutt de Tracy, considerado o chefe dos ideólogos, os compêndios deveriam fornecer "um quadro completo da marcha do espírito humano que mostra as verdadeiras causas de seus sucessos e de seus desvios". No entanto, as circunstâncias conferiam uma força inédita ao imperativo de seleção que já orientava a relação com o material do passado. As antiguidades nacionais davam testemunho de épocas bárbaras, indignas do universal estético e histórico. Nada de surpreendente, por conseguinte, em escutar um filósofo da história, Condorcet, reivindicando na tribuna da Assembleia Nacional a destruição dos arquivos: "Hoje, comemora-se o aniversário do dia memorável em que, ao derrubar a nobreza, a Assembleia Constituinte colocou a última pedra no edifício da igualdade política. É hoje que, na capital, a Razão queima no sopé da estátua de Luís XIV esses imensos volumes que atestavam a futilidade dessa casta; e ainda subsistem outros vestígios nas Bibliotecas Públicas, nas Câmeras de Contas, nas repartições de provas e nos escritórios dos 11. Cf. ainda Daniel Nordman (org.), L'École normale de l'an Leçons d'histoire, de géographie, d'économie politique, Paris: Dunod, 1994. 12. Louis Trenard, Lyon, de l'Encyclopédie au Préromantisme, Paris: PUF, 1958, p. 495. 91

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genealogistas. Importa que todos esses depósitos sejam reunidos em uma destruição comum." Ao anunciar a comemoração do 14 de julho, o decreto de 20 de junho de 1790 referia-se a esta dupla proclamação: "É importante para a glória da nação impedir a subsistência de algum monumento que faça lembrar ideias de escravidão. [...1 Convém à dignidade de um povo livre consagrar-se tão-somente a ações que ele próprio tenha considerado e reconhecido como grandes e úteis. Em seu livro Idées sur les arts, publicado em pluviôse do ano II, E-A. Boissy d'Anglas definia assim essa nova dignidade: "A França regenerada acabou recebendo do despotismo, já moribundo, uma ampla e impressionante herança que ela deveria repudiar sem qualquer constrangimento. Para os séculos e para o universo, ele lhe havia restituído o imenso depósito de todos os conhecimentos humanos, o resultado de todos os talentos do espírito, o produto de todas as criações do gênio. Ela lhes [às "'nações que, um dia, hão de suceder-lhe"'] fica devendo, além de não interromper, por uma culposa indiferença, a marcha e os avanços do espírito humano, fazer para a posteridade o que os séculos passados fizeram em seu favor." A França tornou-se, pelo mesmo movimento, depositária da história universal e guia do futuro, já que ela havia assumido, "de uma só vez, a ambição de pretender servir de exemplo às nações" (Sieyès). Esse foi o caso particularmente da Academia Céltica, fundada em 1804, em que Cambry, Volney, La Révellière-Lépeaux, Lenoir, Mangourit, Roquefort e, em seguida, Millin, Dulaure... comungavam sob a mesma divisa: "Gloriae Majorum". 13 A associação propunha-se lançar um programa de pesquisas linguísticas, etnológicas e arqueológicas, com o objetivo de provar que as antiguidades nacionais francesas eram simplesmente os monumentos do povo celta, ou seja, o povo original da terra; assim, seria estabelecida definitivamente a identidade das antiguidades francesas e das antiguidades universais. O discurso preliminar de Joseph 13. Mona Ozouf, "L'Invention de l'ethnographie française: Le Questionnaire de l'Académie Celtique", in Annales ESC, n. 2, 1981, p. 210-230; Nicole Belmont (org.), Aux Sources de l'Ethnologie française: L'Académie Celtique, Paris: CTHS, 1995; André Burguière, "L'Historiographie des origines de la France: Genèse d'un imaginaire national", in Annales HSS, n. 1, 2003, p. 41-62. 92

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2 Lavallée, na abertura do 1 tomo de Mémoires de l'Académie, evocava as posições dos antiquários do Antigo Regime, preocupados em legitimar seus trabalhos. No entanto, ele trazia a marca de uma nova busca de legiti midade, estreitamente atribuída aos poderes instituídos — a tal ponto que Flaubert, em seu Dictionnaire des idées reçues, citará ironicamente a Academia Céltica no capítulo da independência das academias: "Não será simples que uma nação [...] conceba uma elevada ideia de sua própria nobreza? E que, dirigindo um olhar religioso para seus antepassados, ela se aplique a desvencilhar, nas lembranças históricas, a estima de que eles usufruíram na terra, e procure dar-se conta se lhe é permitido acrescentar, à solenidade de uma glória recentemente adquirida, o nobre orgulho de uma glória herdada? Que a nação francesa se entregue sem inquietação a essa busca, seu orgulho não será decepcionado; ela cultiva ainda o solo que, em direção ao ápice dos tempos, mais fértil em homens que em safras, povoou o globo antes de alimentá-lo [...]. O território habitado por nós havia sido a metrópole desse povo que, pelo excedente de sua população, colonizou um tão grande número de regiões longínquas. Enquanto filhos mais velhos dos celtas, nenhum povo estrangeiro conseguiu desapossarnos de sua herança, e, apesar de ter usurpado nosso território, não chegou a obscurecer nossa filiação [...]. Talvez fosse mesmo possível para alguns cientistas comprovar que a presença dos francos entre nós é o resultado não tanto de uma invasão, mas do retorno de uma grande porção de nossos irmãos para sua primeira pátria. Assim, portanto, fiéis guardiões dos túmulos celtas em que repousam os pais de tantos povos belicosos, podemos até mesmo afirmar-nos como o ramo mais antigo da grande

família das nações." Nada é mais afastado de Ossian, traduzido parcialmente por Diderot, Turgot ou Suard, que oferecia, em sua obscuridade, a abordagem de uma selvageria melancólica, entre perda e confusão, sem conseguir conciliar sensibilidade com heroísmo — além disso, nada é retomado, aqui, da discussão sobre a autenticidade do conhecimento dos tempos druídicos, bastante complexo, pela Europa.14 Nada é mais 14. Sobre o estado das disputas eruditas da época, cf. Kristine Louise Haugen, "Ossian and the invention of textual history", in Journal of the History ofldeas, vol. 59, n. 2, 93

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afastado, também, do caso alemão em que a ênfase é colocada na reivindicação do particular15; assim, antes da viagem à Itália, Goethe enaltecia — em seu ensaio Sur l'Architecture gothique (1722) — a catedral de Estrasburgo como monumento da arte alemã, baseada em princípios nacionais e ao mesmo tempo na natureza. Pelo contrário, ao propor ao governo — em sua obra Antiquités gauloises et romaines recueillies dans les jardins du Palais du Sénat (1807) — a "criação de um museu", "verdadeiramente nacional", C.-M. Grivaud definia tal estabelecimento como algo "composto unicamente por monumentos antigos, existentes na França". A instância legitimante permanecia o universal antigo, a tal ponto que ele inspirou amplamente o Génie du christianisme: "Não cessamos de nos recriar a partir das instituições da Antiguidade e rejeitamos reconhecer que o culto evangélico seja o único resíduo dessa antiguidade que tenha chegado até nós. Se fixamos nosso olhar no padre cristão, no mesmo instante somos transportados para a pátria de Numa, Licurgo ou Zoroastro. A tiara mostra-nos o persa errante por cima das ruínas de Suza e Ectabana Os monumentos franceses configuram, assim, os últimos sinais de um mundo já perdido ou a caminho de desaparecer; sua melhor ilustração encontra-se no Questionnaire 17 da Academia Céltica sobre os usos e costumes. Como é referido por seu secretário temporário, M.-A. Mangourit, "alguém observou com engenhosidade, na última assembleia, que conviria apressarmo-nos na formulação de nossas questões porque o Código e as outras instituições que, atualmente, dirigem a França conduzirão necessariamente à extinção de um grande número de costumes típicos". Portanto,

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16. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris: Garnier-Flammarion, 1993, T. 1, t. II, p. 57.

a investigação foi empreendida com um sentimento de urgência, à procura das últimas testemunhas — dos contemporâneos das origens — cujo inelutável desaparecimento era previsível: exemplo de um momento apenas perceptível em que a antiga diversidade dos sujeitos cede o lugar à nova forma de excelência, ou seja, à uniformidade dos cidadãos.18 O terceiro parágrafo do questionário, elaborado por Dulaure e Mangourit entre abril e julho de 1805, classificado e redigido por Dulaure, fixou-se no que seu secretário perpétuo Éloi Johanneau designava por "nomenclatura e configuração" dos monumentos para "restituir-lhes (o lugar a que têm direito) na história geral da Gália". Trata-se das "Questões sobre os monumentos antigos": "23. Foi descoberto algum campo com túmulos? Onde é que ele se encontra? Será no acostamento de um caminho antigo, nas margens de um rio, no cimo de uma montanha, em um terreno outrora estéril, em antigas divisas? Qual é o nome desse cemitério antigo? Estará relacionado com algum tipo de tradição popular? Situa-se a oeste ou ao sul do lugar [habitado perto do qual] ele se encontra? 24. Qual é a forma, a matéria desses túmulos? Qual é sua disposição geral em relação aos pontos cardeais? Já foram escavados? Está confirmado que não o foram? O que foi encontrado no local? 25. Esses túmulos estão acompanhados por algumas construções antigas? Qual é sua forma, e que grau de perfeição deve ser atribuído à sua arte? Ou, então, tais construções não passam de um amontoado de pedras sem forma, fragmentos de rochas amontoadas, erguidas e amparadas por outros fragmentos de rochas isoladas e implantadas em forma de obelisco, ou várias dessas rochas estão dispostas em um plano circular ou longitudinal? Haverá alguma que apresente, grosseiramente, a forma de um assento? 26. Cada um dos monumentos brutos que acabam de ser indicados existe alhures ou foi construído isoladamente? As pedras de sua construção pertencem ao solo em que ele se encontra ou foram extraídas de outro lugar? Qual é a sua denominação e a do terreno ocupado por elas? Qual é a opinião do povo a seu respeito? Que tradição foi conservada por elas

17. Elaborado entre abril e julho de 1805, este questionário foi distribuído, a partir de 1807, às "pessoas mais esclarecidas" de cada departamento francês; elas deveriam enviar as respostas para o secretário perpétuo da Academia. Cf. (último acesso: jul. 2009). [N.T.]

18. Arthur Onck Lovejoy. The Great Chain of Being: A Study of the History of an Idea, Cambridge: Harvard University Press, 1933.

1998, p. 309-327; e para uma recente análise literária, o artigo de Dafydd Moore, "HeroicEighten-Cury incoherence in James Macpherson's the poems of Ossian", in Studies, vol. 34, n. 1, 2000, p. 43-59. 15. Louis Dumont, "Peuple et nation chez Herder et Fichte", in Libre, n. 6, 1979, p. 233-250.

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sobre o motivo e o autor de sua construção? Que fábula maravilhosa é relatada a seu respeito? O povo pratica à sua volta algum tipo de superstição? Espalha óleo? Depõe flores? Os passantes acrescentam uma ou várias pedras ao amontoado de pedras a que se dá o nome de sepultura, túmulo, mausoléu, jazigo, etc.? Que ideias estão associadas a essa prática? Quais são os monumentos ou as ruínas de construção atribuídos às fadas, a César ou ao diabo? 27. Existe no interior dos lugares consagrados ao culto, ou alhures, algumas pedras às quais o povo atribui a faculdade de fazer milagres [...] qual é o nome e a forma dessas pedras [...] quais são esses milagres?" Essa pesquisa não é, como foi aduzido precipitadamente, o precursor da etnologia francesa: Mona Ozouf esclareceu perfeitamente tal mito. Em seu contexto é que o documento se compreende como a ilustração talvez mais consequente da representação patrimonial revolucionária, entre inventário das singularidades e projeção do universal, consciência de uma paisagem cultural diversificada e expectativa de seu desaparecimento.

O triunfo da alegoria Com a Revolução Francesa, o passado nacional transforma-se, com efeito, integralmente em um Antigo Regime amaldiçoado; segundo uma denominação forjada propositalmente com esse fim. Os anos concebidos a posteriori como fundadores do patrimônio inscrevem-se, portanto, em contradição aparente com a evolução que, supostamente, eles deveriam prefigurar: no mais profundo de uma convicção da insignificância do passado para a construção do novo, insignificância decorrente da consideração unívoca relativa ao contrato na definição da nação.A atitude a adotar em relação à herança do passado e da desordem legada pelo acaso dos sdevr séculos tinha a ver, daí em diante, com a Lei; nesse sentido é que entendida a intuição de Michelet, ao evocar um "tribunal revolucionário" dos arquivos. Assim, a devastação ou as reutilizações do decênio diferem, radicalmente, dos episódios precedentes, ou seja, fundição das peças de prata e ouro da realeza para encher os cofres públicos, iconoclastia religiosa, substituição de uma decoração obsoleta por outra, etc. 96

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Mas, se toda a história moderna francesa torna-se, de repente, estranha aos novos fundamentos da sociedade e do político — e, por assim dizer, tão afastada quanto são longínquos os objetos da Antiguidade —, a herança material pode entrar na economia geral dos "monumentos" disponíveis e manipuláveis, segundo o modelo explicitado no capítulo precedente. Esse quadro fornece um "horizonte de recepção" a obras que — em razão da perda de sua situação, de seu contexto ou, mais amplamente, das condições originais de seu projeto — estavam 9 privadas, daí em diante, dessa dimensão.1 Uma nova economia moral das imagens pretendia estar, então, na origem de uma conservação maduramente refletida; tal possibilidade só poderia aparecer depois que fosse descartada a ideia de um passado, fonte de legitimidade 20 para os negócios do Estado. Aliás, como havia sido resumido por Hannah Arendt: "O passado torna-se referência com a condição de que seja transmitido como tradição; por sua vez, a autoridade torna21 se tradição com a condição de apresentar-se historicamente." Pelo contrário, a revolução exige um modo a-histórico da autoridade (eis o desafio, em particular, de um "retorno" aos princípios da natureza) e um modo de existência do passado que não é a tradição (em vez voluntári) um vínculo obrigatório, impõe-se a ideia de um reconhecimento de Daí em diante, a transmissão "à posteridade" foi o resultado de iniciativas ponderadas, desenvolvidas propositalmente, e não o fruto do curso dos acontecimentos; nesse sentido, o patrimônio deve ser entendido como uma forma da reorganização racional dos recursos para a nova coletividade, ao contrário dos usos que esta ou aquela herança poderia ter imposto, anteriormente, a determinada comunidade seja ela de "raça", como se dizia, da inteligência ou 19. Cf. o balanço equilibrado proposto por Martyn P. Thompson a respeito das teses da nova história política, "Reception theory and the interpretation of historical meaning", in History and Theory, vol. 32, n. 3, out. 1993, p. 248-272. 20. Em relação ao papel instrumental da tradição na política do Antigo Regime, cf. Denis Richet, La France moderne: L'Esprit des institution, Paris: Flammarion, 1973, p. 129-131, 143-146, 148-163; e Keith M. Baker, Au Tribunal de l'opinion: Essais sur l'imaginaire politique au XVIII' siècle, Paris: Payot, 1993. 21. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972. 97

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da arte, porque pesa continuamente sobre as elites a suspeita de possíveis manipulações do povo. De acordo com os decretos oficiais, a conformidade das obras do passado deveria operar-se, do ponto de vista profissional, fora da praça pública, por rasuras, supressões e diferentes medidas, realizadas em ateliê. As recomendações das Assembleias sugeriam um trabalho capaz de fazer desaparecer, sem deixar rastro, os símbolos condenados, ao contrário do gesto iconoclasta que usufrui do espetáculo da destruição visível, até mesmo do efeito das ruínas na praça pública, além de contar com suas repercussões demonstrativas.22 Rapidamente, o novo termo "vandalismo" designa uma conduta escandalosa porque, além de ser retardada e ignorante, é sobretudo ilegítima por depender da iniciativa de grupos isolados, de facções particulares — para não dizer de conspiradores contrarrevolucionários. Um trabalho permanente deve, em suma, posicionar o patrimônio contra o passado, como um dos símbolos da vontade revolucionária, associado aos dois temas do reconhecimento e da emulação — do mesmo modo que, segundo a fórmula de Hayden White, os historiadores das Luzes escreviam a história contra o passado. 23 Tenta-se forjar uma nova representação do passado por uma criteriosa distinção entre o desprezível a ser suprimido e algo de memorável a ser instaurado ou, às vezes, a recuperar, mas sempre em nome de uma reabilitação do verdadeiro. Sua melhor definição é fornecida pelo presidente do Comitê de Instrução Pública, Mathieu, que propôs em 28 de frimaire do ano XI (18 de dezembro de 1793) a coleta "do que pode servir ao mesmo tempo de ornamento, troféu, além de apoio à liberdade e à igualdade". 24 Mas, se alguém continua afirmando que o "verdadeiro objetivo" das obras de arte "consiste em prolongar a lembrança das ações úteis e em fazer viver,

22. Sobre a poética das ruínas e de seus aspectos patrimoniais, cf. a coletânea editada por Brian Neville e Johanne Villeneuve. Waste-Site Stories: The Recycling of Memory . Albany: State University of New York Press, 2002. 23. Hayden White, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973, p. 63. 24. James Guillaume, op. cit., p. 180. 98

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durante muito tempo, a memória dos benfeitores da humanidade"," essa convicção era dificilmente compatível com uma hostilidade rousseauniana diante da representação. Como se sabe, a contradição caracterizava os organizadores das festas revolucionárias: "persuadidos do poder das i magens", servem-se dele "sem deixarem de permanecer obstinadamente 26 convencidos da falsidade de tudo o que assume a forma de figura". A característica mais notável da sensibilidade às imagens na Revolução foi, então, a substituição de modelos: do icônico pelo narrativo." Exibidos por ocasião das festas, os "ícones" manifestam, por exemplo, uma rejeição e a impossibilidade de "relatar" o acontecimento histórico ou a vida do "mártir" republicano. A propósito da festa em homenagem a Marat, Mona Ozouf mostrou que o cortejo tornava-se uma "frisa", concebida por "um ponto de vista de arquiteto", que em vez "das circunstâncias da vida de Marat, desenroladas segundo a ordem de uma gênese", expunha "o recorte das características lendárias: pura distribuição de papéis alusivos sem a mínima profundidade". Do mesmo modo, a festa elaborada por David para o aniversário de 10 de agosto fracassou em sua narrativa ao representar a história da Revolução sob a forma de cartazes e inscrições: "Esvaziado de história, o 28 espetáculo vai relegá-la, ainda outra vez, ao texto escrito." De forma mais abrangente, a segunda metade do século XVIII havia rejeitado amplamente a complexidade de linguagens abstratas — e, portanto, confusas — para enfatizar a utilidade de um discurso que associava as i magens e as palavras em uma estreita relação com a experiência dos sentidos." Parece ser bastante nítida a raiz filosófica e linguística do 25. Instruction sur la manière d'inventorier et de conserver [...) par la Commission temporaire des arts, ano II. 26. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, op. cit., p. 244. La 27. Klaus Herding, "Utopie concrète à l'échelle mondiale: L'Art de la Révolution", in Révolution Française et l'Europe Ie789-1799, Paris, Grand Palais, t. 1, p. XL (Catálogo da exposição). 28. Mona Ozouf, op. cit., p. 21-43. 29. Cf. Theresa M. Kelley, "Visual Suppressions, Emblems and the Sister Arts", in Eighteenth-Century Studies, vol. 17, n. 1, 1983, p. 28-60, para a demonstração sobre a evolução das edições de Ripa. [Cesare Ripa (c. 1560-1625), autor de Iconologia. Em Significado nas artes visuais, o mestre alemão Erwin Panofsky define esta obra 99

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"privilégio da metáfora, enaltecida em Condillac, tornada primitiva deste último a Turgot ou Herder; devaneio sobre a gestualidade; ideia de uma original comunhão mental, cuja oposição ao consenso moderno será sobrecarregada, em Rousseau, com a nostalgia"". A preeminência da alegoria, confirmada por todos os observadores, dava conta dessa especificidade. Com efeito, "diferentemente do simulacro e do símbolo, a alegoria é", se dermos crédito a Quatremère de Quincy, uma "imitação até certo ponto inimitável".31. Na esteira de seu estudo sobre as teorias estéticas de Quatremère, Philippe Junod chega mesmo a tirar a conclusão, nesse autor, do paradoxo de um ideal de pintura "para cegos inteligentes"." Assim, "quando o ministério do Interior pretende, em pluviôse do ano VII, fixar o modo de celebração da festa da Soberania do Povo", ele convida os artistas a procurar "imagens" ou, de preferência, corrigindo-se, "ideias".3 Sob esse aspecto, a alegoria, apesar de sua evidente dificuldade de leitura — aliás, aspecto que "transpêci"3 lhe é criticado com frequência —, corresponde ao novo ideal de por impedir que se esqueça sua distância em relação ao que é verdadeiro. A suspeita que pesa sobre a representação imitativa mantém uma relação óbvia com a teoria política revolucionária, ou seja, a necessária impessoalidade do poder que Marcel Gauchet lê como "uma

30. 31. 32. 33. 34.

como "aquela 'summa' da iconografia que, abeberando-se em fontes tanto clássicas e medievais como contemporâneas, foi chamada, justamente, de 'chave das alegorias dos séculos XVII e XVIII', e explorada por artistas e poetas tão ilustres quanto Bernini, Poussin, Vermeer, e Milton [...] publicada em 1593, reeditada inúmeras vezes e traduzida em quatro línguas [...]" (São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 216). Cf. tima consulta: jul. 2009)(N.T.).] Daniel Droixhe, La Linguistique et l'appel de l'histoire, Ie600-1800, Genebra: Droz, 1978, p. 348. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252. Philippe Junod, Transparente et opacité: Essai sur les fondements rhétoriques de l'art moderne, Lausanne: d'Homme, 1975, p. 309. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252. Marc Richir, "Révolution et transparente sociale", in J. C. Fichte, Considérations destinées à rectifier le jugement du public sur Révolution Française, Paris: Payot, 1974; e Myriam Revault d'Allones, "Le Jacobinisme ou les apories du politique", in Reune Française de Science Politique, vol. 4, ago. 1986, p. 519-527. 100

corrida mortal em direção ao anonimato", mas que, para J.-P. Brissot, por exemplo, não passa da recusa de "transformar o homem-Rei em um Deus"35. Multiplicadas no decorrer do ano II, as fórmulas exprimem suficientemente que a "idolatria" continuava ameaçando a encarnação da pátria36; a imagem nunca mais será ilusória, para evitar qualquer equívoco na reverência devida com exclusividade aos princípios. A Revolução pretendia conduzir o homem à "maioridade" diante da imagem, segundo a fórmula kantiana do Sapere aude [Tenha coragem de fazer uso de seu próprio entendimento], além de impedir sua regressão à relação primitiva com o ídolo. Tal programa teria exigido, em substância — como foi bem observado por Ernst Gombrich dar a conhecer Condillac a todos os franceses, com o receio de que uma eventual "sonolência da razão" suscitasse ainda outros ídolos." Tarefa rapidamente reconhecida como impossível, em vários planos, e cujo abandono deixava um espaço livre para a encarnação dos mártires e santos patriotas: uma obra-prima republicana, tal como o quadro A morte de Marat de David, oferece "a presença palpável do ídolo" e, ao mesmo tempo, uma "figura ideal, clássica e distanciada"?8 Do mesmo modo, Albert Mathiez pôde insistir sobre as tendências comuns dos "cultos revolucionários" e das práticas tradicionais das religiões reveladas: "Evidentemente, o patriota que ostentava o cocar nacional não atribuía a esse pedaço de pano, em geral, o poder de fazer milagres; nesse aspecto, verificava-se uma diferença entre seu estado de espírito e o do católico que pendura ao pescoço uma medalha benzida, ou alguma relíquia preciosa. De qualquer modo, não deixa de ser verdade que o cocar, a medalha ou a relíquia são, no mesmo plano, símbolos religiosos por terem a seguinte característica em comum: eles representam, concretizam, evocam um conjunto de ideias ou sentimentos, ou 35. Marcel Gauchet, La Révolution des droits de l'homme, Paris: Gallimard, 1989, p. 27, que cita essa fórmula de J.-P. Brissot, pronunciada em 3 de agosto de 1789. 36. Cf. as circulares citadas por Lucien Jaume, Le Discours jacobin et la démocratie, Paris: Fayard, 1989, p. 183, 342. 37. Ernst-Hans Gombrich, "The Dream of Reason: Symbolism in the French Revolution", in The British Journal for Eighteenth-Century Studies, vol. 2, n. 3, 1979, p. 187-205. 38. Fórmula forjada por Klaus Herding, op. cit. 101

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seja, uma fé. [...] Aliás, não é absolutamente verdadeiro que o valor dos símbolos revolucionários se limitasse a simples sinais ou alegorias inofensivas sem virtude nem eficácia particular."39 Todavia, a Revolução temia que uma eventual perversão da razão levasse a substituir os extravios do passado por uma nova idolatria. A escolha de atrizes para figurar as "divindades", por ocasião das festas, pretendia atenuar esse deslize porque — desincumbidas, imediatamente depois da cerimônia, de qualquer status simbólico — elas não exerciam o papel de intercessor.40 Do mesmo modo, a possibilidade de um acordo entre a moral evangélica e a moral republicana teria ocorrido no âmago de uma religião depurada: a teofilantropia pretendia existir "sem padres — substituídos pelos pais de família — nem emblemas, imagens ou estátuas, ou seja, um retorno à simplicidade das origens (os teofilantropos por pouco 41 evitaram a denominação de 'cristãos primitivos')".

Distribuir o patrimônio em novos lugares A nova época pretendeu tirar partido da experiência e do talento natural dos homens. Tal postura explica que o qualificativo "regenerado" 39. Albert Mathiez, Les Origines des cubes révolutionnaires, Paris: Beijais, 1904, p. 34-35. Cf. ainda Albert Soboul, "Sentiment religieux et cultes populaires pendant la Révolution: Saintes patriotes et martyrs de la liberté", in Annales Historiques de la Révolution Française, vol. XXIX, 1957, p. 195-213. A partir de quatro estudos de casos (Paris, Toulouse, Departamentos de Aube e de Bouches-du-Rhône) sobre os primeiros decênios do século até 1789, Cissie Fairchilds pretendeu mostrar a importância considerável dos objetos religiosos no consumo doméstico e como a influência jansenista acabou pesando na autonomização desses artefatos: uma demonstração que espera ser validada por outros meios e pode esclarecer alguns aspectos da mutação ulterior — cf. "Marketing the Counter-Reformation: Religious Objects and Consumerism in Early Modern France", in Christine Adams, Jack R. Censer e Lisa Jane Graham (orgs.), Visions and Revisions of Eighteenth-Century France, University Park: The Pennsylvania University Press, 1997. 40. Maurice Agulhon, Marianne au combat: L'Imagerie et la symbolique re'publicaines de Ie789 à Ie880, Paris: Flammarion, 1979, p. 38; Madelyn Gutwirth, Twilight of the Goddesses: Women and Representation in the French Revolutionary Era, New Brunswick: Rutgers University Press, 1992. 41. Mona Ozouf, "Religion révolutionnaire", op. cit., p. 610. 1 02

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é atribuído ao monumento que, extraído do passado, tem valor, a contragosto, para o futuro, ao demonstrar que os valores presentes são eternos, apesar de terem sido combatidos, outrora, pelos malintencionados. Nesse mesmo movimento que destruía as imagens corrompidas do Antigo Regime, a Revolução pretendia, portanto, N despotismo. revelar a arte ãoautêntica, até então relegada aos depósitos obscuros do foi sem malícia que determinadas obras passaram despercebidas ou foram esquecidas: elas revelavam um talento desconhecido ou ofuscado, exigindo de saída a atenção dos republicanos. A iniciativa estava diretamente associada a um pensamento que estabelecia a separação entre a permanência da natureza humana e a perversão histórica das sociedades, em favor de uma restauração do verdadeiro e do belo, outrora desdenhados ou dissimulados por terem sido vítimas de diversas conspirações. Ao proceder desta forma, a Revolução anulava a historicidade em benefício do presente, ao tratar esse legado como 42 precursor de sua gloriosa atualidade. Ela retomava amplamente à sua conta a opinião dos filósofos e de seus êmulos que, de acordo com o resumo de Arnaldo Momigliano, "consideravam a história como uma luta permanente de alguns sábios, de quem eles eram os continuadores, contra a violência, a superstição e a tolice da maior parte das pessoas'''. Certamente, a literatura artística ou a memória coletiva — a herança das antigas comunidades de especialistas ou dos que mantêm familiaridade com a obra — são importantes na maneira como se considera e aborda os objetos. No entanto, seus novos lugares de conservação e de exposição determinavam grandemente, daí em diante, seus valores os de obras-primas restauradas, de documentos convenientemente colocados em perspectiva ou de ilustrações pertinentes . Tais lugares — os museus, o Panthéon, os jardins, os depósitos ou conservatórios tornaram-se o teatro de múltiplas consagrações e desconsagrações. Com efeito, para os diferentes especialistas, essa foi a oportunidade de atribuir novas significações aos objetos reunidos no mesmo espaço; as Reviw Egbert, "The Idea of Avant-Garde in Art and Politics", in American Historical 42. Donald , vol. 2, 1967, p. 339-366. 43. Arnaldo Momigliano, "La Contribution de Gibbon à la méthode historique", in Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983, p. 335-336. 103

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rivalidades ou as contradições entre essas novas atribuições constituíram outros tantos conflitos de classificação e de legitimidade. Assim, em 26 de vendémiaire do ano VIII, o administrador do museu especial da École Française, em Versalhes, E. A. Gibelin, protestava junto de Sieyès contra a remoção das marinhas do pintor Vernet, que deveriam servir, por ordem do ministro da Marinha, para a instrução dos futuros marinheiros. Em 4 de nivôse do mesmo ano, L. Daubenton44 solicitava, em nome do Museum National d'Histoire Naturelle (1793), ao Musée Central des Arts um Cristo da coluna em jaspe sanguíneo: "O interesse que, eventualmente, essa peça possa ter do ponto de vista artístico não se compara com sua importância para o estudo da História Natural." No dia 13, o Musée rejeitava abrir mão dessa "belíssima figura": "Se o mérito desse objeto se limitasse à matéria, a administração teria tido a solicitude de oferecê-lo ao senhor." Do mesmo modo, o Conservatoire National des Arts et Métiers e o Museu dos Monumentos Franceses entraram em competição a propósito dos revestimentos de madeira do castelo de Écouen: em nome da unidade arquitetural e sentimental, eles foram reivindicados por Lenoir para terminar a sala do século XVI, no Louvre. Por sua vez, o colega do Conservatoire defendeu seus direitos nestes termos: "É importante que os lambris de Écouen entrem (no Conservatoire) como monumento histórico da arte, como elemento de comparação da marcenaria em diferentes épocas, além de mostrar aos artistas o ponto de partida da caminhada progressiva do gênio. Colocar esse monumento em local diferente do Conservatoire seria mutilar, de alguma forma, a história da marcenaria e romper a série dos conhecimentos que apresentam a marcha sucessiva da arte, desde seu começo até o mais avançado de seus progressos." Tais reivindicações desenhavam, em cada momento, uma "biografia cultural dos objetos", correspondendo aos diferentes valores que lhes eram reconhecidos. 2 Imagem ideal de uma abertura das Luzes a todos, em um espaço utópico de comunhão com o Belo e com os Princípios, o museu tinha a 44. Louis Daubenton (1716-1800), naturalista francês e um dos colaboradores da Histoire naturelle (perto de quarenta volumes, de 1749 a 1804), sob a direção de GeorgesLouis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). [N.T.]

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vantagem de promover debates sobre os tutores e os recursos dessa educação regeneradora, sobre o perigo das corporações renascentes, sobre seus interesses particulares, etcEm pé de igualdade com o Panthéon ou com outros templos (um projeto monumental de Durand e Thibault elaborava, para o concurso do ano II, um Templo da Igualdade que, em seguida, reaparecia como um lugar de reunião de cidadãos a fim de 45 praticarem nesse espaço "um culto qualquer" ), o museu era um lugar do qual se exigia a imediata eficácia e a ambição universal. Paradigma da perfeição sensualista absoluta, ele encarnava uma vantagem de ordem pedagógica que permitia conferir uma utilidade de princípio a acervos, sem a qual sua significação e apropriação permaneceriam problemáticas. Evocar seus recursos e seu poder era enaltecer a energia revolucionária, sua capacidade para subordinar tal monumento particular ao ensino dos novos princípios — o que é denunciado, imediatamente, por alguns (Quatremère de Quincy, por exemplo) como uma desnaturalização da arte, novo gênero de vandalismo. Com efeito, semelhante investimento museográfico envolvia o desapossamento do Estado tradicional. A consciência revolucionária manifestava uma real indiferença, para não dizer uma hostilidade declarada, em relação à inscrição territorial ou histórica dos monumentos e das coleções; inversamente, ela prosseguia uma distribuição equitativa do patrimônio por todo o território nacional e, ao mesmo tempo, alimentava a centralização tradicional das obras-primas. Quando as leis de 24 e 25 de janeiro de 1790 organizaram uma divisão inédita do espaço francês em 83 departamentos, o Comissão dos Monumentos pretendeu formar, com a ajuda dos objetos reconhecidos e inventariados por ele, um museu em cada departamento. Em 2 de dezembro do mesmo ano, Bréquigny, o ilustre membro da Académie des Inscriptions, propunha "a distribuição dos monumentos" nas igrejas transformadas em museus: "Todos esses monumentos", escreve ele, "pertencem em geral à Nação. Portanto, convém que, na medida do possível, todos os indivíduos possam ter seu usufruto e, em meu entender, a melhor contribuição 45. James A. Leith, "The terror: Adding the Cultural Dimension", in Canadian Journal of History, vol. XXXII, 1997, p. 315-337. 105

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nesse sentido consistirá em atribuir um dos depósitos em que eles serão reunidos, com a condição de que tal acervo seja o mais completo possível a cada departamento." O "Projet d'instruction pour hâter les établissements de bibliothèques et de muséums", apresentado em novembro de 1792, reafirmava que "cada departamento formará seus estabelecimentos públicos ao escolher, em primeiro lugar, o que poderá lhe convir entre os monumentos espalhados por seu território; o excedente será destinado a outros departamentos menos dotados nesse gênero de objetos, a fim de que se consiga, na medida do possível, uma distribuição equitativa das ciências e das coleções que lhes pertencem". Tal projeto previa "a execução de um plano que, em todas as partes da República, apresentará amplos depósitos de livros, quadros, esculturas e objetos preciosos de toda a espécie, que estarão disponíveis em sua totalidade, organizados de acordo com o mesmo critério e subdivididos segundo as mesmas regras, até mesmo nos detalhes mais insignificantes". Em suma, uma "útil e ponderada distribuição" deveria "vivificar todas essas riquezas, centuplicá-las" e, finalmente, "animá-las em benefício do ignorante que as desdenha". Assim, inscrevia-se a distribuição territorial do patrimônio no âmago de uma economia da circulação, baseada em equipamentos cuidadosamente concebidos e distribuídos, qualificados pelo abbé Grégoire" como "ateliês do espírito humano". Tal resolução caracterizou o decênio, já que, em 1801, a obra anônima Correspondance de deux généraux sur divers sujets sugeria o estabelecimento "dos museus secundários nas principais cidades da França, em que haveria a preocupação de reunir, o mais rapidamente possível, as cópias dos melhores exemplares dos mais célebres pintores". A penúria, frequentemente deplorada, de bons exemplos, artísticos e morais, é a consequência de um panteão de originais por definição limitado, que não pode ser depauperado; pelo contrário, sua influência deverá crescer pelo recurso à "multiplicação de exemplares". A malha — no plano

nacional, utópica — do patrimônio foi bem descrita no relatório de J. Lakanal47 sobre as Écoles centrales e seus museus-bibliotecas, em dezembro de 1794: "A engenhosidade impulsionará sua flama depuradora até as extremidades da República. Daí, por um esforço recíproco, direcionado naturalmente para o centro, formar-se-á uma circulação da qual dependem a boa disposição e a vida do corpo social." Essa é a forma de delinear, na perspectiva de remodelar a sociedade, uma circulação patrimonial à custa de coleções originais, inacessíveis ou deterioradas. Neste ponto, abordamos as relações complexas dos revolucionários com a questão do luxo e, de forma mais específica, com o status do artista, além de sua relação com suas criações e com as criações anteriores — já que o senso patrimonial identifica-se com uma moral da propriedade, ao mesmo tempo pública e privada, para além das repetidas condenações da futilidade." A crise da representação tradicional implementou uma crítica contra os abusos de riqueza, contra os objetos de luxo e, igualmente, contra a superabundância de palavras. A separação entre os artigos de distinção — que carregam, daí em diante, o estigma do luxo amaldiçoado — e as obras de arte foi uma primeira condição para construir uma ideia de patrimônio artístico legítimo.49 Sabe-se como os debates, em matéria de edição, sobre o direito autoral e a figura do escritor acabaram por estigmatizar o autor "absoluto" como uma criatura do privilégio, substituindo-o pela imagem cívica de um criador a serviço do bem público, de um herói das Luzes. Carla Hesse insiste justamente sobre a instabilidade da síntese realizada dessa forma, que "combina uma instrumentalização a serviço do bem público com 47. Joseph Lakanal (1762-1845), político francês. Enquanto membro da Convenção, entre as numerosas medidas relativas à instrução pública (1793-1795), promoveu a criação das Écoles centrales — uma por departamento. Nestas instituições, a ênfase é colocada no ensino científico, em vez da tradição clássica dominada pelo latim. [N.T.] 48. Sobre o debate geral a esse propósito, cf. Isser Woloch, "On the Latent Illiberalism of the French Revolution", in American Historical Review, vol. 95, 1990, p. 1467-1470.

46. Henri Grégoire, conhecido como abbé Grégoire (1750-1831), padre e político francês, prestou juramento à Constituição Civil do Clero (1790); como deputado da Convenção promoveu a votação pela abolição da escravatura. [N.T.]

49. Remy G. Saisselin, The Enlightenment against the Baroque: Economics and Aesthetics in the Eighteenth-Century, Berkeley: University of California Press, 1992, p. 133; John Shovlin, "The Cultural Politics of Luxury in Eighteenth-Century France", in French Historical Studies, vol. 23, n. 4, 2000, p. 577-606.

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uma teoria do autor baseada no direito natural", dando lugar a uma série de renegociações que se estendeu durante todo esse período." A representação de um patrimônio revolucionado, ou seja, cortado da história, tinha a ver com o paradoxo de uma herança identificada com a permanência de princípios de que, em última instância, ela procede e, daí em diante, deve defender contra seus primeiros proprietários ou comanditários que haviam sido seus atores, por assim dizer, involuntários. O empreendimento patrimonial prosseguia, desse modo, um desígnio de emancipação que não deixava de revelar, através dos "monumentos", a relação com as origens. Sua justificativa era a de excluir qualquer consideração de um "trabalho" da duração — genuína "profundidade" do tempo.51 Segundo a célebre fórmula do membro influente do partido liberal, Benjamin Constant, os revolucionários "espantam-se que a lembrança de vários séculos não tenha desaparecido rapidamente diante dos decretos de um dia. Considerando que a lei é a expressão da vontade geral, ela deveria, em sua opinião, prevalecer em relação a qualquer outro poder, incluindo o da memória e o do tempo."52 Tal era exatamente o projeto que permitiria viver, por assim dizer, no mesmo nível com as origens, mediante uma verdadeira "travessia" dos tempos intermediários, em particular de toda a civilização do Antigo Regime. O conjunto dessas características esboçava um patrimônio sem outro proprietário além da humanidade inteira, tendo atingido a idade da razão. Verificava-se, segundo parece, a fusão entre passado, presente e futuro, respaldada na garantia dos princípios de que a Nação era, daí em diante, depositária.

50. Carla Hesse, Publishing and Cultural Politics in Revolutionary Paris, 1789-1810, Berkeley: University of California Press, 1991, p. 122-123. 51. Mona Ozouf, "Régénération", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire critique, op. cit. 52. Benjamin Constant, "De l'Usurpation", in Marcel Gauchet (org.), De la Liberté chez les modernes, Paris: Le Livre de Poche, 1980, p. 189-190. 108

O museu regenerador O museu constituiu uma instituição-chave do empreendimento de regeneração; acima de tudo, ele encarnava uma súbita e espetacular publicidade das artes, sob a forma da reivindicação atendida, da "conquista" coletiva. Simples episódio ou transição de aparência lógica no resto da Europa, a abertura de museus inspirou-se, na França, na retórica da ruptura instauradora. Mas, sobretudo, o museu era um espaço em que o estatuto a atribuir às imagens herdadas do Antigo Regime revelou-se como um desafio crucial: um dispositivo para alegorizar o passado. Se alguns — entre eles, o abbé Grégoire — chegaram a evocar a possibilidade de uma memória do Antigo Regime, a fim de votá-lo a um "pelourinho eterno", o projeto de um estudo esclarecido dos erros do passado, a partir da hipótese de uma história negativa, cujo ensino teria efeitos positivos, afigurava-se difícil, uma vez que, evidentemente, limitar-se-ia a estigmatizar os mal-intencionados. O desejo de uma amnésia generalizada — que seria a antítese da lembrança da militância — deveria ler-se, nessas condições, como falta de segurança ou como extremismo político? De fato, esses debates participavam do que Mona Ozouf designa por comum "pessimismo original sobre a história da França" ou, no mínimo, de uma convicção da instabilidade histórica." Uma leitura radical sobre o tema foi fornecida, há pouco, por Bernard Groethuysen: "Entre os revolucionários [...] a fé no reinado futuro da razão compensa a visão pessimista dos tempos passados. Essa falta de racionalidade na vida dos homens não deve ser atribuída ao ser humano. Cada homem está dotado de razão e, como criatura da natureza, faz parte de um todo coerente. Não é ele nem a natureza que é irracional, mas sua situação atual de vida. E essa situação tem a ver com as lacunas da organização social [...]. O século XVIII é dominado pela ideia da antinomia entre racionalismo inerente à natureza do homem e o irracionalismo da vida humana, tal como é testemunhado pelo curso da história: ele é pessimista em 53. Mona Ozouf, "De thermidor à brumaire..." , in Revue Historique, op. cit., p. 40-41. 109

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sua concepção da história e, ao mesmo tempo, otimista na concepção que tem da natureza. Para explicar essa antinomia, deve existir um terceiro elemento (:) a sociedade."" De fato, em Condorcet, como é resumido por Keith Baker, "o progresso histórico (é percebido) como um processo de incrementação, dependendo do acúmulo constante e da disposição dos conhecimentos (em que) o erro é uma consequência natural da defasagem entre o que podemos e o que desejamos conhecer, defasagem perpetuada e tornada nociva por poderosos interesses bem arraigados"." Em suma, quando a razão se amplia à custa da superstição e da tradição, o uso do passado desenvolve-se contra ele próprio. Enviada, em março de 1794, para todos os departamentos pela Comissão Temporária das Artes, a célebre Instruction sur la manière d'inventorier et de conserver dans toute l'étendue de la Republique tous les objets qui peuvent servir aux arts, aux sciences et à l'enseignement cuja redação havia sido confiada a F. Vicq d'Azyr e Dom Poirier, beneditino de Saint-Germain-des-Prés — proclamava que "as lições do passado, marcadas indelevelmente, podem ser repertoriadas por nosso século, que terá condições de transmiti-las, com novas páginas, à lembrança da posteridade". Nessa perspectiva, F. Vicq d'Azyr escrevia que "todos esses objetos preciosos, que têm sido mantidos longe do povo ou que lhe eram mostrados apenas para suscitar seu espanto ou respeito, todas as riquezas [...], daqui em diante, servirão para a instrução pública: elas servirão para formar legisladores com base filosófica, magistrados esclarecidos, agricultores instruídos. [...] A indiferença [...] seria um crime".56 Aqui, a evocação da impostura, sacerdotal e régia, que mantinha as obras a distância do povo, suscitando o temor e a admiração, justificava a iniciativa que acabava de ser empreendida no sentido de proceder a um inventário e à sua preservaçáo. A fórmula evoca o que Condorcet havia 54. Bernard Groethuysen, La Philosophie de la Révolution Française, Paris: Gallimard, 1982, p. 249. O tema é desenvolvido por Henry Vyverberg, Historical Pessimism in the French Enlightenment, Cambridge: Harvard University Press, 1958. 55. Keith M. Baker, Condorcet from Natural Philosophy to Social Mathematics, op. cit., p. 467. 56. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3. ed., São Paulo: Unesp/Estação Liberdade, 2006, p. 114, nota 45. [N.T.] 110

escrito na introdução de seu livro: se a filosofia forçou a superstição a encontrar regras nas condutas do passado, "não será que ela deve compreender, na mesma proscrição, o preconceito que rejeitasse com orgulho as lições da experiência?" A abertura da "10a época" justificava, de fato, a "tentativa de delinear com alguma verossimilhança o quadro dos destinos futuros da espécie humana, de acordo com os resultados de 57 sua história". Como é resumido por Keith M. Baker: "A história deveria, portanto, tornar-se a auxiliar da ciência social".58. Assim, a obra-prima do passado não tem virtude pedagógica a não ser mediante a comprovação de que os valores presentes já existiam outrora, mas haviam sido combatidos pelos mal-intencionados. O escritor e moralista N. de Chamfort já havia garantido que "a única história digna de atenção é a dos povos livres, enquanto a dos povos subjugados ao despotismo não passa de uma coletânea de historietas"." Eis a distinção reivindicada por P. Daunou — na época, presidente da Convenção (período da Revolução Francesa entre setembro de 1792 e outubro de 1795) — por ocasião da Festa da Queda do Trono em 10 de agosto, 23 de thermidor do ano III, ao lembrar que "os anais de um povo inteiro eram suprimidos pela história de uma família, forçando a nação a procurar nesse episódio as causas de sua alegria e os períodos anuais de seus folguedos públicos"; entretanto, no tempo presente, "os cidadãos dos países livres limitam-se a celebrar e a prestar homenagem aos acontecimentos imortais da família nacional". O periódico literário La Décade Philosophique, Littéraire do et Politique (1794-1804) dirá, de forma mais sóbria, em germinal ano X: "A história da França, propriamente falando, existe apenas após a Revolução."69 Essa tarefa permanente de apropriação transformou humain, apres. Alain 57. Condorcet, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit Pons, Paris: Garnier-Flammarion, 1988. 58. Keith M. Baker, op. cit., p. 463. : Maximes et 59. Sébastien-Roch N. de Chamfort, Produits de la civilisation perfectionnée (1795), Paris: Gallimard, 1970, Máxima n. 486. pensées — Caracteres et anecdotes 27 jul. 1793, in James Guillaume, 60. Pierre Daunou, Essai sur l'instruction publique, op. cit., 1, p. 581: "Para instituir uma República, é insuficiente derrubar um trono se ainda não tiverem sido abolidas todas as obras da realeza, se não tiverem sido suprimidas suas criações morais, se não tiverem sido desenraizados os hábitos que 111

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o patrimônio em um dos símbolos da vontade revolucionária e participou de um imaginário de utopia no sentido em que ela previa, como afirmava Pierre Francastel, "os efeitos sociais benéficos das artes depuradas" — no caso concreto, o fim da idolatria.61 Sob o Antigo Regime, de fato, por uma impostura premeditada, o ídolo usurpava um respeito a que não tinha direito; com efeito, ele era uma i magem sobreavaliada, cujo gesto iconoclasta manifestava a vacuidade. Eis o que, desde 1757, na introdução de sua obra, Guillaume-Alexandre de Méhégan havia afirmado: "A idolatria estava associada à constituição dos Estados; ela havia sido transformada pelo tempo em uma espécie de fundamento dos Impérios, dos quais esperava receber toda a proteção."62 Repetia-se, incessantemente, que os objetos em questão eram outros tantos "chocalhos" com os quais o adulto regride à enfermidade da infância. A retórica da iconoclastia opunha a um adversário irracional, obscurantista, até mesmo obsceno, o bom senso do patriota. Na edição de 1792 de sua obra, que obteve grande sucesso, tendo sido vivamente recomendada pelos panfletos radicais, Louis Lavicomterie de Saint-Samson — jurista, polígrafo e membro da Convenção, além de primeiro historiógrafo republicano — afirmava o seguinte: "Se, depois de ter lido esta obra, algum vil idólatra ainda rasteja diante deles, tendo percorrido sem pavor catorze séculos de infortúnios e crimes, neste caso, afirmo que a servidão quebrou, em sua alma, a mola da natureza; afirmo que se trata de um cego nato."63 ela havia imposto, se, finalmente, não houver apropriação das ideias e dos costumes políticos para harmonizá-los com uma constituição republicana." Sobre essa posição de La Décade, cf. Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, Paris: Gallimard, 1988, p. 253. Em relação à iconoclastia da Revolução sobre ela própria — assim como sobre a destruição simbólica das leis anteriores à medida de sua radicalização cf. Jonathan Ribner, Broken Tablets: The Cult of the Law in French Art from David to Delacroix, Berkeley: University of California Press, 1993. 61. Bronislaw Baczko, Lumières de l'utopie, Paris: Payot, 1978, p. 36, 51. Cf. ainda Alexandre Cioranescu, L'Avenir du passé: Utopie et littérature, Paris: Gallimard, 1972; Christian Marouby, Utopie et primitivisme: Essai sur L'imaginaire anthropologique à l'âge classique, Paris: Le Seuil, 1990. 62. Guillaume-Alexandre de Méhégan, Origine, progrès et décadence de L'idolâtrie, Paris: Paul-Denys Brocas, 1757, p. 18. 63. Louis Lavicomterie de Saint-Samson, Crimes des rois de France, depuis Clovis jusqu'à Louis XVI, Paris: Au Bureau des Révolutions de Paris, 1792, p. 3. Cf. ainda o caso da historiadora Louise de Kéralio em Carla Hesse, The Other Enlightenment: How French

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Entretanto, o temor de sucumbir ao ídolo antigo era permanente", alimentado pela fragilidade comum dos homens diante da imagem; esse medo tinha a ver com a "dúvida no cerne do sensualismo", a qual 65 suscita "o pavor de não ter conseguido pensar em tudo". O ato iconoclasta por excelência é a destruição, total ou parcial, executada in situ, que aniquila a mensagem original da obra: o melhor exemplo dessa operação é fornecido pela demolição da Bastilha. Mas, se a lei de 23 de outubro de 1790 previa a fundição geral dos objetos preciosos encontrados nas igrejas, as Instructions concernant les châsses, reliquaires et nutres pièces d'orfevrerie provenant du mobilier des maisons ecclésiastiques et destines à la fonte, publicadas no ano seguinte, ordenavam a conservação de todas as obras anteriores a 1300 nas quais o valor do trabalho artístico fosse superior ao do metal e que tivessem algum interesse por sua qualidade histórica ou pelas informações sobre a evolução do traje — aliás, a lógica do materiam superabat opus. Tal lógica levou os membros da Comissão dos Monumentos — que, em 4 de agosto de 1793, examinaram as estátuas restantes da abadia de Saint-Denis — Women Became Modern, Princeton: Princeton University Press, 2001. Sobre o título de historiógrafo, cf. François Fossier, "La Charge d'historiographe du XVI' au XIX' siècle", in Revue Historique, vol. 523, 1977; e "A Propos du Titre d'historiographe sous l'Ancien Régime", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, vol. 32, 1985. 64. Cf. ainda Robert Sauzet, "L'Iconoclasme dans le diocèse de Nîmes au XVI' et au début du XVII' siècle", in Revue d'Histoire de l'Église de France, vol. 56, 1980, p. 5-15. A iconoclastia revolucionária tem numerosas características das iconoclastias clássicas da modernidade. Desse ponto de vista, podemos apenas indicar o interesse de uma abordagem "antropológica" dos gestos iconoclastas que permitisse enfatizar certas regularidades (por exemplo, a decapitação das estátuas). Cf. alguns elementos em Natalie Zemon Davis, Les Cultes du peuple, Paris: Aubier, 1979, p. 251-307; Phyllis Mack Crew, Calvinist Preaching and Iconoclasm in the Netherlands, Ie544-1569, Cambridge: Cambridge University Press, 1978 (que insiste sobre a "magia" do ato e sobre seu caráter, finalmente, pedagógico); John Phillips, The Reformation of Images: Destruction of Art in England Ie535-1660, Berkeley: University of Califórnia Press, 1973; Ann Kibbey, The Interpretation of Material Shapes in Puritanism: A Study of Rethoric, Prejudice and Violente, Cambridge: Cambridge University Press, 1986 (que evoca, nas p. 42-64, um "materialismo iconoclasta"). Prestemos atenção para não esquecer a relação da iconoclastia com o medo: Jean Delumeau, em La peur en Occident, Paris: Fayard, 1978, p. 185, apresenta o vandalismo como "um rito coletivo de exorcismo", derradeiro recurso para conjurar "a profundidade de um medo coletivo". 65. Mona Ozouf evoca uma verdadeira "reconstituição do meio ambiente", em que "nada pareceu insignificante" ("Régénération", in Dictionnaire critique, op. cit., p. 825). 113

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a conservar, no depósito de Petits-Augustins, as estátuas jacentes dos séculos XIV e XV, interessantes pelo realismo de suas características e da indumentária. Ao mesmo tempo, eles decidiram abandonar as esculturas dos séculos precedentes por não oferecerem qualquer característica notável, "seja para as artes ou para a história".66 Essas diferentes intervenções contaram com a participação, em diversos planos, do povo e de uma elite de especialistas; a operação foi tanto oficial e regular (nesse caso, organizada por gestores públicos ou multidões convidadas) quanto espontânea, até mesmo anárquica. A ação pôde também desenrolar-se alhures: nesse caso, a eliminação do objeto foi diferida, seja com o objetivo de cumprir uma tarefa delicada, uma reutilização técnica (retomada do Hôtel de la Monnaie), seja para integrar sua destruição a uma festa ulterior, em um lugar mais propício. Enquanto o motim, a favor da conservação ou da destruição, se desencadeava sempre diante do monumento in situ e assumia um caráter global, a iconoclastia parcial associada à conservação assemelhava-se à "limpeza" dos monumentos, efetuada no próprio local (rasurar as inscrições) ou intervenções limitadas, realizadas por profissionais, após transferência para o "centro de triagem" ou para o ateliê (apagar os brasões estampados nos livros, etc.). Aliás, a remoção — por exemplo, de objetos de culto — fazia-se às vezes de forma discreta, até mesmo secreta, para evitar os roubos ou os protestos populares. Assim, os atores e o caráter do ato iconoclasta eram, evidentemente, diferentes de acordo com as circunstâncias — na praça pública, na discrição de um gabinete ou de uma biblioteca — de sua realização. Seu alcance, porém, permaneceu idêntico, ou seja, uma nova ponderação do valor do passado para o presente, em nome de um saber autêntico dos princípios e da ciência. Ocorre que a aplicação de semelhante "doutrina" assumiu um caráter bastante pragmático, como é ilustrado pelo exemplo da catedral de Amiens: enquanto "ela é considerada pela Comissão das Armas, sem 66. Em relação à abadia de Saint-Denis, cf. a síntese de Pamela Z. Blum, Early Gothic Saint-Denis: Restorations and Survivals, Berkeley: University of Califórnia, 1992; além de Roger Bourderon (org.), Saint-Denis ou le Jugement dernier des Rois, Saint-Denis: PSD, 1993 (Atas do Colóquio). 114

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dúvida, mal informada, como um edifício que pode ser descartado e destruído sem inconveniente, como um amontoado de objetos, sem outro valor além da matéria bruta, a Comissão dos Trabalhos Públicos, suficientemente esclarecida [...], vai apreciá-la como um dos mais belos monumentos da Europa, que não pode deixar de ser conservado em bom estado para a honra da nação". Por conseguinte, a municipalidade reivindicou que, em nome do patrimônio, as despesas de manutenção fossem assumidas pelo governo: "Como a supracitada catedral é um monumento público que, por ser obra-prima de arquitetura, pode ser considerado como pertencente à França inteira e não ao departamento de Somme, nem à cidade de Amiens, tampouco a uma seção dessa comuna; além disso, é palpável que os cidadãos, em reduzido número, que se reúnem nesse local para o culto, nunca terão condições de conservar, em bom estado, esse imenso prédio; sobretudo depois de ter sido menosprezado, como foi o caso após a Revolução, é evidente que a administração terá toda a razão em continuar reivindicando os recursos do governo para as reformas." O reconhecimento do valor artístico podia ser acompanhado ou não por mutilações, assim como sua reutilização podia operar-se no próprio local ou exigir uma transferência. A conservação do monumento podia servir-se da dissimulação de toda espécie de recursos (estátua por trás de uma paliçada, quadro virado para a parede, símbolos escamoteados, etc.). Tal conservação era, em geral, efêmera: a pretensão em garantir a subsistência do objeto levava, logicamente, a depositá-lo em um museu. Podia tratar-se então de coleções acessíveis ao público em geral, ou de acervos de obras úteis, mas repreensíveis, destinadas aos artistas e cientistas. A transferência para o museu impunha-se, particularmente no caso de alguns monumentos, cuja permanência na praça pública havia sido rejeitada. O decreto de 3 de brumaire do ano II (24 de outubro de 1793), promulgado na sequência do Relatório de Romme, indicava no artigo 2º que "os monumentos públicos removíveis, que suscitam o interesse das artes e da história, portadores de algum dos sinais proscritos, cujo desaparecimento causaria um prejuízo real, serão transportados para o museu mais próximo, no qual deverão ser conservados para a instrução nacional". Daí, a ideia, proposta por 115

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Alexandre Lenoir, de um " Museum inacessível ao público no qual são reunidos os objetos que, por seu caráter e nas circunstâncias atuais, não podem ser expostos, mas estarão disponíveis aos artistas para seu progresso". A proibição de obras nocivas foi, explicitamente, concebida como provisória: com a consolidação da República, as imagens "feudais" perderão seus poderes e poderão ser mostradas sem risco.

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67. Sobre o contexto, cf. Martin Rosenberg, "Raphael's Transfiguration and Napoleon's cultural politics", in Eighteenth-Century Studies, vol. 19, 1986, p. 180-205.

Nas imagens herdadas do passado, esse desígnio de regeneração operava uma dissociação fundamental entre o trabalho despendido, o savoir-faire desenvolvido pelo artista e o sentido exigido por seus patrões. O efeito direto de semelhante distinção acarretou uma reificação do legado que se traduziu pelo primado atribuído ao trabalho, até mesmo a seu estatuto de prova para a ciência social. Desse modo, enviados pela Comissão dos Monumentos nos primeiros dias de setembro de 1793, Cossard e Mulot sublinharam o interesse de conservar o medalhão de Luís XIV na prefeitura de Troyes: certamente, foi necessário "removê-lo da vista dos republicanos que, por seu ódio contra o despotismo, não teriam suportado observá-lo durante muito tempo"; mas "tais ornamentos, elaborados pelo cinzel de Girardon, exigem serem conservados por respeito à arte, por reconhecimento de seu autor e pelo interesse na formação dos alunos". Entre uma infinidade de textos similares, o depoimento do membro a Convenção, Lequinio, em 7 de setembro de 1793, sobre os túmulos dos reis na abadia de Saint-Denis resumia esse expediente instrumentalista: "Não convém, de modo algum, que esses monumentos sejam objetos de idolatria para o povo; mas eles devem existir para alimentar a admiração dos amigos das artes, assim como a emulação e o gênio dos artistas." O valor patrimonial do objeto remetia, em primeiro lugar, ao elogio do trabalho que o havia produzido; em seguida, tal valor participava da permanência da lembrança artesanal e artística, além do culto da memória dos homens ilustres; por último, ele sugeria um mundo subjacente da arte, submetido tanto a critérios constantes (os da natureza humana), quanto às "revoluções" da história. Portanto, diferentes estratégias poderão manifestar-se no interior do mesmo quadro conceitual, mais ou menos propensas a reconhecer a obra como presente e, nesse caso, a confirmar seu estatuto ou, pelo contrário, a compartilhá-la entre parcela eterna e parcela caduca — o que obriga a um cuidado especial na sua apresentação. Nos museus, além de fornecerem modelos aos artistas, as obras-primas serviam de instrução sobre o que é justo e injusto nas sociedades, assim como formavam, em cada cidadão, o legislador das artes. Apresentado em 1808 por Joachim Le Breton, em nome do Institut de France, o Rapport historique sur l'état

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O combate pela autenticidade A iconoclastia identificava-se com uma hábil restauração; ela removia das obras as marcas contingentes da história para enfatizar o valor atual, autêntico, mas outrora ignorado, desconhecido, negado ou manipulado de maneira mal-intencionada. Essa retórica da restauração tinha como complemento lógico, a propósito das remoções das obras-primas estrangeiras, a da repatriação. A vinda de "Roma a Paris" manifestava uma verdadeira substituição de um passado transitório pelo presente eterno. O melhor testemunho foi deixado neste discurso de François de Neufchâteau: "Os homens ilustres trabalharam não para os reis, nem para os pontífices, tampouco para seus equívocos. Pode-se dizer que o gênio é o ouro da divindade; nada de impuro chega a conspurcá-lo. Esses homens ilustres, durante séculos de servidão, cederam à necessidade da criação. Eles elaboraram suas obras não tanto para sua época, mas para obedecer ao instinto da glória e, se é que se pode falar assim, à consciência do futuro. Sem dúvida, eles adivinhavam os destinos dos povos; e seus quadros sublimes constituíram o testamento pelo qual eles legaram ao gênio da liberdade o cuidado de oferecer-lhes a verdadeira apoteose e a honra de discernir-lhes a verdadeira palma de que eles se sentiam dignos."67 Nesse aspecto, tratava-se de uma restituição do valor; de fato, as obras desempenhavam o papel de alegorias revolucionárias ao tomarem o lugar das ilusões, daí em diante destruídas, que elas estavam incumbidas, inicialmente, de fazer perdurar.

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et les progrès des beaux-arts en France afirmava que "a história das belasartes de uma nação é, de alguma forma, a história de seu governo e de seus costumes", reivindicando uma leitura política e social das obras. Mas, enquanto os revolucionários julgavam ter substituído a ilusão pela verdade — a imagem, daí em diante, considerada como o que ela representava para o ídolo, o qual, anteriormente, encarnava o erro ao ocultar sua própria natureza —, a contrarrevolução lia, simetricamente, uma alteração absurda ou falsa da herança. Para além de um equívoco primordial — o museu alimentava-se com as ruínas do mundo —, a tese contrarrevolucionária denunciava a carência de gosto e a ignorância: eis o que A. Rivarol transformou em motivo recorrente do discurso da reação. Ao exigir que o Diretório (período da Revolução Francesa entre outubro de 1795 e setembro de 1799) suspendesse a pilhagem dos monumentos romanos, a petição dos artistas afirmava recear somente que "tal entusiasmo que nos deixa apaixonados pelas produções do gênio não venha a desencaminhar até mesmo os amigos mais ardorosos em relação aos verdadeiros interesses". Entretanto, a obra de Quatremère de Quincy, Lettres à Miranda — que havia inspirado a petição —, criticava abertamente uma "tola afeição pelas artes" e uma "sabença" de "supostos eruditos": "Nada é tão perigoso quanto um amigo ignorante." A idolatria condenada, aqui, remetia a um proletariado de semicultos e a intelectuais mambembes ("Outras tantas crianças que se disputam imagens"); ela evocava também a figura de um desenraizamento que se referia a operações comerciais, quando "as obras tornam-se outros tantos 'fardos de mercadorias' a transportar". O aspecto mais pernicioso dessa idolatria do gênio, identificado por Quatremère com o espírito revolucionário, tinha a ver com o ativismo artístico que ela alimentava: sabe-se como o horror da ação era uma pedra de toque inabalável da posição contrarrevolucionária." Winckelmann havia insistido sobre o fato de que a melhor qualidade da escultura grega correspondia a um período bem determinado, ou seja, o produto de circunstâncias ao mesmo tempo geográficas, políticas e religiosas que não podiam voltar a manifestar-se. Simultaneamente, segundo parece,

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ele esperava assistir ao renascimento da arte grega: mas como conciliar uma visão messiânica da liberdade com um organicismo?69 Daí, um debate capital entre aqueles que consideram os dois postulados como incompatíveis e aqueles que propõem (sem grande sucesso) sua conciliação. Concretamente, a Revolução Francesa fornecia a seus admiradores a expectativa de igualar os gregos, para não dizer de superá-los, em nome de um democratismo estético, baseado no efeito das instituições: a força das leis regeneradoras, segundo o que se julgava, não podia ser sobreavaliada. Entre os revolucionários, as obras patrimonializadas eram outras tantas figuras dos princípios eternos: elas remetiam não tanto a um passado específico, mas à atualidade de uma promessa. Inversamente, para seus adversários, a impossibilidade de um retorno à perfeição antiga tornara-se, no plano político, um artigo de fé. As causas físicas do milagre grego eram, naturalmente, enfatizadas; por sua vez, no campo oposto, a valorização incidia sobre as causas morais." As representações antagonistas do Museum universal são, nesse aspecto, exemplares. Enquanto ele era identificado por Quatremère com Roma, Mathieu imaginava-o confundido, no futuro, com a República, a partir da transformação utópica: "Ao considerar tudo o que a Natureza e a arte fizeram e podem fazer na França, a Repú71 blica inteira será um imenso e esplêndido Museum." O museu do futuro dava testemunho, aqui, de um ideal ainda a realizar — o de uma humanidade superior —, enquanto Roma-museu encarnava, em Quatremère, a república das artes e das letras, espaço homogêneo da inteligência europeia, hoje destruído. Em um caso (Mathieu), bastava que a vontade geral mantivesse tal expectativa; no outro (Quatremère ou, ainda, Carlo Fea), um conjunto de circunstâncias, de condições

68. Cf. Stéphane Riais, Révolution et contre-révolution au XI» siècle, Paris: Albatros, 1987.

69. Sobre o debate ulterior, cf. Brian Vick, "Greek Origins and Organic Metaphors: Ideais of Cultural Autonomy in Neohumanist Germany from Winckelmann to Curtius", in Journal of the History of Ideas, vol. 63, n. 3, 2002, p. 483-500. philos que é desenvolvido, em particular, por Pierre Chaussard, em seu &sai 70. O tema sur la dignité des arts, Paris: Impremerie des Sciences et des Arts, ano VI; assim como pelo tradutor de Winckelmann, Hendrick Jansen (1742-1812), em seu Projet tendam' à conserver les arts en France..., Paris, 1791. 71. Mathieu, presidente do Comitê das Artes, fevereiro de 1794.

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geográficas, históricas, políticas — em que tinha sido preponderante o papel desempenhado pela memória, pelos costumes e pela rotina haviam reunido, sob o céu romano, o essencial do Belo.72 A demonstração resumia-se à negação da eficácia, por si só, dos modelos formais que a educação de museu propunha de acordo com esta fórmula da VIe Lettre à Miranda: "O infortúnio é que a virtude associada ao conjunto de uma escola não se comunica, como é o caso de uma relíquia, a cada uma de suas partes isoladamente." A reflexão histórica revolucionária culminava na construção primordial do passado nacional como inimigo, sob as características do Antigo Regime: nada, ou muito pouco dessa época parecia utilizável para a regeneração já empreendida, enquanto uma política da memória visava manter a lembrança renovada de uma época inédita em todas as suas encarnações e que deve ser perpetuamente renovada ou sobrecarregada de exemplaridade, sob pena de conhecer o estiolamento e o declínio. Nesse caso, as obras herdadas do passado eram submetidas ao imperativo de manifestar a atualidade; daí em diante, debilitadas em seus desígnios, elas davam testemunho do talento — outrora oprimido — de seus criadores. Quatremère de Quincy defendia, inversamente, a ineficácia das obras-primas do passado desde que fossem privadas de seus destinos e separadas de suas lembranças. Tais representações opostas do "patrimônio" — idolatria do passado ou, ao contrário, alegoria contemporânea — não devem dissimular, porém, uma clivagem mais profunda, que interferia na própria possibilidade de pensar um patrimônio de um ponto de vista "cultural" e não de um modo exclusivamente político. Em seu livro Opinion sur les musées, o escultor L.-P. Deseine criticava o museu de Lenoir por configurar a vertente da hybris denunciada por Quatremère, na transferência de "Roma". 'Alguém poderá questionar-se", escreve ele, "como a demência chegou ao ponto de imaginar que um recinto com algumas polegadas, no qual existem oito túmulos, algumas estátuas de diferentes épocas e alguns baixos-relevos, bastará para

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dar à posteridade uma ideia apropriada das maravilhas do século XVII?" A esta crítica contra um fetichismo museográfico, acrescentava-se a crítica conta a desnaturalização de monumentos "democratizados", que lhes forneceu, "sucessivamente, o caráter de diferentes facções que dominavam a opinião pública"." Desse modo, Deseine denunciava uma idolatria inédita em que a obra transportada era avaliada, daí em diante, como imagem do novo regime e não como legado da história; de maneira notável, ele enfatizava sobretudo a necessidade de despolitizar a definição dos monumentos para fazer aparecer, precisamente, a noção de patrimônio nacional. Enquanto a nação estiver identificada com a Revolução, em uma completa absorção, será impossível aparecer sua verdadeira caracterização cultural Com a campanha contra o vandalismo do abbé Grégoire e dos Thermidoriens , com a despolitização dos museus, a herança do passado pôde ser nacionalizada e estetizada (François Guizot reconhecerá o mérito de Lenoir por ter sido o primeiro a considerar os monumentos franceses do ponto de vista da arte, e não mais somente como outras tantas antiguidades para eruditos). Desde então, a nação pôde apropriar-se do passado como recurso e não mais como ameaça, além de pensar seu futuro em termos de definição progressiva de uma identidade; assim, as peripécias do decênio legavam um fecundo repertório de conflitos aos séculos XIX e XX. Entre herança revolucionária e mania nascente por estátuas, David d'Angers escreveu em uma carta de 1847: "É necessário que [...] a França se torne um vasto panteão."74 Mas, a orientação geral está bem definida: a ênfase será colocada, daí em diante, no fato de que, tendo sido patrimonializado, o passado da cultura representava

72. Pascal Griener, "Carlo Fea and the Defense of the Museum of Rome, 1783-1815", in Georg-Bloch Jahrbuch, n. 7, 2000, p. 96-110.

73. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les mùsées, où se troùvent retenus tous les objets d'art qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholiqùe, Paris, 1801. Louis-Pierre Deseine (1749-1822), escultor francês que participava, regularmente, dos Salons, expondo os bustos de artistas ou de personalidades da época. Em 1780, obteve o Prêmio de Roma de escultura. [N.T.] 74. ApùdViviane Huchard (org.), Aux Grands Hommes, David d'Angers, Fondation Coubertin, 1990, p. 52 (Catálogo da exposição). [Pierre Jean David, chamado "David d'Angers" (1788-1856)), escultor e estatuário francês. Entre a produção de grande número de obras de diversos gêneros — monumentos, túmulos, bustos, medalhões, baixos-relevos —, destaca-se o célebre frontão do Panthéon, em Paris. (N.T.)]

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de maneira ideal, segundo a fórmula de Étienne François, "os três valores fundamentais, ou seja, a identidade (a nação é pensada e apresentada como uma pessoa), a continuidade (no decorrer de toda a sua história, a nação permanece a mesma; além disso, os diferentes momentos de seu passado só adquirem sentido ao serem relacionados uns com os outros) e a unidade (a única garantia da existência da nação é a unidade de todos os seus membros)".75 O mesmo ocorreu relativamente aos seguintes aspectos: invenção dos antepassados fundadores; construção de uma história amplamente compartilhada e que havia passado ao estado, por assim dizer, de conhecimento difuso no corpo social; afirmação de uma língua e de uma literatura comuns; e, por último, progressiva sensibilização em relação a uma paisagem concebida como uma representação do território nacional [pays].76

75. Étienne François, "Les Mythologies historiques des nations européennes", in Pùblics et projets culturels: Un Enjeu des musées en Europe, Paris: L'Harmattan, 2000, p. 126-137. 76. Em uma imensa bibliografia, cf. Denis E. Cosgrove e Stephen Daniels (orgs.), The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation, Design and Use of Past Environments, Cambridge: Cambridge University Press, 1988; Simon Schama, Le Paysage et la mémoire, Paris: Le Seuil, 1999; François Walter, Les Figures paysagères de la nation: Paysage et territoire en Eùrope (XVIe-XXe siècle), Paris: EHESS, 2004. 122

3 A MEMÓRIA INSPIRADORA dfert Não existe homem iletrado, ignorante, innem espírito , insensível, qùe possa evitar ùma emoção de respeito — eu diria quase de terror — ao entrar nas salas de nosso museu de história natural [...]Façmosvtdeqù[.1, ao lado dos naturalistas ilustres, sejam colocadas as imagens dos navegantes corajosos e dos viajantes perseverantes; todos eles, pelas pesqùisas empreendidas e pelos perigos enfrentados, arriscando incessantemente suas vidas, trouxeram-nos estes tesouros. Apesar de serem valiosos em si mesmos, seu valor é, talvez, ainda maior pelo heroísmo e destemor de quem os obteve para nós. [...]Esaédùplgrneztu. Alguns heróis enviaram esses objetos qùe firam coletados, classificados, harmonizados por homens importantes, para qùem tùdo afluía como se tratasse de um centro legítimo; além disso, tanto por sua posição como por seù gênio, eles criaram as condições de operar, aqui, a centralização da natùreza. [ De modo que essas coleções, sùpostamente mortas, estão vivas; animadas pelos ilustres espíritos qùe convocaram todos esses seres como testemunhas de seu combate fecùndo, elas guardam ainda a palpitação dessa luta. Jules Michelet, L'Oiseaù, 1856.

A Revolução Francesa — escreveu, alhures, o mesmo Michelet abriu "dois imensos museus", na sequência da festa de 10 de agosto de 1793, que legaram "uma impressão indelével" a seus visitantes': um deles é o Louvre, "museu das nações", que reunia todas as escolas artísticas nacionais e que, após disputas complexas com o programa de um museu da École Française, em Versalhes, irá expor as melhores obras dessa escola; observava-se nesse espaço, em uma perspectiva uni2 versal, cada povo "representado por sua arte e por imortais pinturas". Entretanto, ele permanecia como que privado desse caráter intimamente nacional que, pelo contrário, caracterizou desde o início o espaço dos 1. J. Michelet, Histoire de la Révolùtion Française, II, livro XII, cap. VII. Paris: R. I affont, 1979, p. 548-549. 2. Ibidem, p. 549. 123

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Petits-Augustins, museu de monumentos — ou seja, de túmulos e até mesmo, mais precisamente, como veremos, de corpos históricos. Neste livro, vamos defender que os "monumentos" conservados pela França regenerada ilustram uma dimensão fundamental, ou seja, aquela que o antropólogo Ernesto De Martino define como "o poder formal de transformar em valor o que, na natureza, nos conduz para a morte.3 Ao separar-se da França do Antigo Regime, a Revolução tornava possível uma apreensão sem precedentes do passado nacional; o que, porém, não se efetuou de maneira evidente ou imediata. Como foi demonstrado por Lionel Gossman, somente o romantismo político e religioso da década 1830-1840 conduziu o labor dos antiquários, por exemplo, o de Lacurne de Saint-Palaye, à narrativa nacional. Segundo parece — pelo menos retrospectivamente —, tal desfecho correspondia a uma evolução lógica. O espanto manifestado pela geração da primeira metade do século XIX diante da indiferença de seus pais pela história nacional dava testemunho de uma sensibilidade inédita; aliás, ela constituiu uma das figuras da ruptura moderna. Com efeito, entretempo, foi necessário apropriar-se dos corpos desaparecidos: passar dos monumentos inacabados do século XVIII e das ruínas fictícias para verdadeiros túmulos densos, por assim dizer, de diversas presenças, tais como eles foram reconhecidos pelo século XIX. Assim, Michelet faz uma leitura retrospectiva, em forma de estética da nação, do museu de Alexandre Lenoir, e seu encantamento data de 1846. "Na juventude de Michelet, não havia discurso apropriado para exprimir uma relação viva e afetiva com as imagens do passado", o que será o caso, em seguida, com a geração do historiador e político barão de Barante e de Walter Scott — cuja epístola na dedicatória do romance Ivanhoé, em 1819, propunha pela primeira vez a metáfora da ressurreição.' Essa era uma leitura fantasmática do museu: a dos corpos do passado a ressuscitar. 5 3. Ernesto De Martino, Morte e planto rituale nel mondo antico: Dal lamento pagano al planto di Maria (Turim: Bollari Boringhieri, 3. ed., 2000), apud Roberto Harrison, Les Morts, Paris: Le Pommier, 2003, p. 107. 4. Stephen Bann, "The Road to Roscommon", in Oxford Art Journal, vol. 17, n. 1, 1994, p. 98-102. 5. "A História é, afinal de contas, a história do lugar fantasmático por excelência, a saber, o corpo humano; ao partir desse fantasma, associado nele à ressurreição lírica dos

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O culto dos homens ilustres Sob o Antigo Regime, a memória dos defuntos tinha a ver com um conjunto de representações, ao mesmo tempo, religiosas e sociais. De acordo com a proposta de Reinhart Koselleck, elas foram identificadas com duas características principais: "Por um lado, o além da morte é plasticamente representado; por outro, a morte é, em sua relação com o mundo, diferenVerifica-se uma interferência ciada segundo cada ordem e cada estado. [ recíproca entre a transcendência cristã da morte e a diferenciação, segundo a ordem, da morte empírica." Na sequência, o culto dos homens ilustres constituiu um elemento essencial da representação da sociedade das Luzes que, por seu 6 intermédio, "não cessa de narrar a si mesma seu próprio advento". Em particular, "por volta de 1760 e até a Revolução, a apologia do letrado transformou-se uma verdadeira glorificação, associada em um tom grandioso a uma doutrina geral de emancipação e de progresso". Tal desígnio de forjar um corpus de homens importantes inscrevia-se em uma transferência notória da sacralidade. Stendhal tornou-se sua testemunha militante quando evoca, em seu avô, "uma veneração e afeição pelos homens ilustres que haviam provocado um grande choque ao rev. pároco" e compreendiam "todos os homens ilustres da França, 7 desde Clément Marot a Voltaire, Diderot e D'Alembert". A anglomania mobilizou, na época, a imagem de Westminster como monumento da nação, desde Voltaire em seu livro Lettres philosophiques (1734), mesmo que alguns tivessem denunciado a incongruência de uma comercialização do espaço para a grande satisfação corpos passados, é que Michelet conseguiu transformar a História em uma imensa antropologia" (Roland Barthes, La leçon, Paris: Le Seuil, 1978). 6. Jean-Claude Bonnet, Naissance du Panthéon: Estai sur le culte des grands hommes, Paris: Fayard, 1998, completado por Michael Garval, "A Dream of Stone: Fame, Vision and the Monument in Nineteenth-Century French Literary Culture", in College Literatùre, vol. 30, 2003, p. 82-119. 7. Stendhal, Vie de Henry Brulard, Paris: Gallimard, p. 170. 125

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de diversos novos-ricos que, no local, mandaram erigir extravagantes monumentos.8 Mas, para além dessas relações complexas entre riqueza privada e devoção pública que marcaram amplamente o novo classicismo fim de siècle, foi sem dúvida a literatura utópica — orientada pelos ideais da razão e da moralidade, além de sua preocupação em pôr termo à desordem de instituições ridículas ou funestas — que forneceu as imagens mais impressionantes do Panthéon. As origens da sociedade descrita por essa literatura são unicamente aquelas que o legislador lhe atribui; ora, em seu funcionamento, elas desempenham um papel não menos essencial que o da tradição para o regime absoluto. A mais célebre dessas elaborações continua sendo a obra Paris en l'an 2440, de Louis-Sébastien Mercier, em que o testamento tornouse o órgão exclusivo da memória coletiva; os cidadãos reconhecidos por seus méritos são os únicos a serem celebrados, em nome de uma mentalidade histórica discriminatória" (Bronislaw Baczko). "Esse espaço" — observa o historiador —, "além dos monumentos e templos, é mobiliado por uma verdadeira arquitetura ficcional": em particular, por galerias dos estadistas ilustres, por uma verdadeira "fila de heróis, cujo semblante, silencioso sem deixar de ser imponente, proclama a todos que é útil e grandioso angariar a estima do público". As estátuas de Voltaire, Rousseau e Buffon formam "um livro de moral" e todos conjuntamente dão "uma lição pública tão vigorosa quanto eloquente". O respeito pelo gênio levou, também, a homenagear os espaços ocupados por ele. De acordo com a observação de Jean-Claude Bonnet, a melhor descrição dessa nova moda deve-se a Diderot em Essai sur les règnes de Claude et de Néron (1778): "Uma espécie de reconhecimento delicado acrescenta-se a uma curiosidade digna de elogios para despertar nosso interesse pela história privada dos autores, cujas obras 8. Cf., nas perspectivas entrecruzadas aqui, os trabalhos bastante diferenciados em sua inspiração de Philip Connell, "Death and the Author: Westminster Abbey and the Meanings of the Literary Monument", in Eighteenth-Centùry Studies, vol. 38, n. 4, 2005, p. 557-585; Matthew Craske, "Westminster Abbey 1720-1770: A Public Pantheon Built upon Private Interest", in Richard Wrigley e Mattew Craske (orgs.), Pantheons: Transformations of a Monumental Idea, Aldershot: Ashgate, 2004, p. 57-80; além de David Bindman e Malcolm Baker, Roubiliac and the Eighteenth-Century Monument: Sculpture as Theatre, New Haven: Yale University Press, 1995, cap. 2. 126

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suscitam nossa admiração. [...] Gostamos de visitar suas moradias." Portanto, na França do século XVIII, o culto pelos homens ilustres implicava uma peregrinação a seus túmulos ou lugares de criação, reativando rituais reservados até então à categoria do sagrado. Em primeiro lugar, aparece a visita ao escritor famoso' que, no século XIX, irá conhecer certo número de avatares até configurar uma espécie de corpo a corpo que a simples leitura não permite alcançar, ou apenas de maneira insuficiente. 10 A sanção da opinião pública tornava-se, assim, necessária para o sucesso de uma homenagem, mesmo que fosse pronunciada em nome da república das letras; aliás, desde 1765, Marc Antoine Laugier no capítulo "Monumentos em homenagem aos homens ilustres" de seu livro Observations sur l'architecture — recomendava que se fizesse apelo ao "voto do público" para selecionar os respectivos beneficiários. Na tensão entre essa reverência devotada a personagens específicos e a homenagem geral prestada ao engenho humano é que se esboçou, aos poucos, a figura do Pantheon francês. No início do reinado de Luís XVI, a França conheceu, na pessoa do conde d'Angiviller (1730-1809), nomeado diretor das Obras Públicas, uma nova política da posteridade: um de seus símbolos foi, em 1775, a nomeação de Thomas, autor de célebres Éloges, para o posto de historiógrafo dessa repartição pública." E, acima de tudo, o diretor anunciou, em dezembro de 1774 e em 9. Olivier Nora, "La Visite au grand écrivain", in Pierre Nora (org.), Les Deux de mémoire, II: La Nation, vol. 3. Paris: Gallimard, 1986, p. 563-587. 10. Desse ponto de vista, Marc Augé descreve a visita aos castelos em termos reveladores: "A percepção da casa como corpo efetua-se em dois planos: a casa é um corpo em si, tem sua própria personalidade, sua aparência, suas aberturas, sua intimidade, e por ser um corpo é que ela pode ser assimilada ao corpo daquele ou daquela que o ocupa, do ponto de vista seja do próprio ocupante, seja de uma testemunha exterior que, impelida pela energia romanesca do ódio, amor ou lembrança, será levada a confundir uma pessoa ainda viva ou falecida com o invólucro de pedra em que se dissimula seu corpo ou sua sombra." (Domaines et châteaux, Paris: Hachette, 1992.) 11. Sobre o contexto do sucesso considerável obtido por Éloges de Thomas no âmago do espaço acadêmico e do campo literário, cf. Georges Armstrong Kelly, "The History of the New Hero: Eulogy and Its Sources in Eighteenth-Century France", in The Eighteenth Centùry, vol. 21, 1980, p. 3-24; Volker Schröder, "Entre l'Oraison funèbre et l'éloge historique: L'Hommage aux morts à l'Académie Française", in MLN, vol. 116, 2001, p. 666-688. 127

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janeiro de 1775, a encomenda anual de "quadros de história e de estátuas, cujo tema será a figura dos homens ilustres da França". 12

A funcionalização dos mortos

Tal iniciativa ia alimentar o projeto de museu no Louvre, já evocado favoravelmente pela Encyclopédie, e que os dirigentes das Obras

No início do século XIX, aparece o que Reinhart Koselleck designa como "a funcionalização da representação da morte em benefício dos sobreviventes". A venda dos bens da primeira ordem, no período inicial da Revolução, parece ter proporcionado a oportunidade de uma política da memória, finalmente, moral e lógica. As intervenções sobre os restos mortais dos homens ilustres a fim de prestar-lhes uma homenagem solene manifestam claramente que a Revolução entende como fundar, de novo, o passado em seus próprios monumentos. Alguns mausoléus desapareceram com as cinzas que eles continham, enquanto outros subsistiram na qualidade de monumentos históricos, e, finalmente, outros acabaram por ser erguidos no lugar dos modestos túmulos outrora dedicados ao gênio, às vezes longe do local da sepultura original. A criação do Panthéon resultou do discurso do marquês de Vilette ao clube dos jacobinos, em 10 de novembro de 1790: "De acordo com os decretos da Assembleia Nacional, a abadia de Sellières foi vendida e, nesse local, jaz o corpo de Voltaire; ora, ele pertence à Nação. Os senhores consentirão que essa preciosa relíquia se torne a propriedade de um particular? Permitirão que ela seja vendida como bem nacional ou eclesiástico? Se os ingleses chegaram a reunir seus homens ilustres em Westminster, por que hesitaríamos em colocar a urna de Voltaire no mais belo de nossos templos, na nova Sainte-Geneviève, em face do mausoléu de Descartes? 1 6conAta." Desse modo, estou decidido a erguer-lhe um monumento por minha [...] invenção de relevantes exemplos apropriados para suscitar

Públicas pretendiam levar a bom termo, dedicando-o "à glória tanto dos Reis da França como dos Homens Ilustres da Nação". De forma mais geral, uma série de projetos arquiteturais acalentava a ideia de um campo santo em que houvesse uma mistura do culto pelos homens ilustres com a religião dinástica na mesma exaltação da moral pública.13 Ao estudar os projetos da década de 1780, John Mac Manners evoca um "idílio, mediante o pagamento de somas consideráveis, de túmulos pitorescos no meio de árvores e de canteiros de flores, ornado de templos, colunatas e estátuas", assim como "uma espécie de Panthéon nacional", construído em decorrência de um "vandalismo patriótico" por antecipação. Aliás, frequentemente, a posição dos túmulos era ordenada segundo as famílias, assim como de acordo com o dever: os dois sistemas da raça e do mérito coabitavam no cerne de um patriotismo esclarecido. 4'

12. Andrew McClellan, "La Série des grands hommes de la France du comte d'Angiviller et la politique des parlements", in Clodion et la sculpture française de la fin du XVIII siècle: Actes du colloque du musée du Louvre, 20-21 mar. 1992, Paris, 1993. 13. Sobre o tema da arte que serve de ilustração para a virtude, c£ a tese sempre válida de Jean Locquin, La Peinture d'histoire en France de Ie747 à 1785 (Paris, 1912), Arthena, 1978. 14. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment Changing Attitudes to Death among Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University Press, 1981. A publicação Nouvelles de la République des Lettres et des Arts de 3 de janeiro de 1787 observava que esse cemitério reúne, "em torno de nossos soberanos, até mesmo depois de seu óbito, aqueles que mantêm com eles vínculos de sangue, reconhecimento, amor, patriotismo, virtudes, ciências e talentos, a fim de que os sujeitos, cujos serviços ou conhecimentos haviam alicerçado a glória de nossos reis, sirvam ainda à sua imortalidade pela homenagem contínua e coletiva que lhes seria prestada pela posteridade nesses amplos monumentos" (apud Richard Etlin, The Cemetery and the City: Paris, Ie744-1804, Ph.D. Princeton University, 1978). 128

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15. Adoto, nesse ponto, a posição de Mark K. Deming no catálogo da exposição dirigida por Barry Bergdoll, Le Panthéon, symbole des révolùtions, Paris: CNMHS, Hôtel de Sully; e em "Le Panthéon révolutionnaire", Montreal: CCA/Picard, 1989, p. 97-150. Essa representação é, evidentemente, a herdeira de uma longa tradição; aliás, uma de suas etapas notórias é a publicação de Titon du Tillet, Description du Rimasse françois exécuté en bronze à la gloire de la France et de Louis le Grande et à la mémoire esse perpétuelle des illustres poètes et das fameux musiciens françois , Paris, 1760. Sobre The Parnasse (rançaïs: Titon du Tillet and the Orïgins projeto de 1708, cf. J. Colton, of the Monùment to Genius, New Haven: Yale University Press, 1979. Paris: PUF, 1982; 16. Cf. Marie-Louise Biver, Le Panthéon à l'époque révolùtionnaire, Paris: PUF, 1979, p. 37-38, que fornece Les Fites révolutionnaires à Paris, assim como uma coletânea de textos sobre as sucessivas panteonizações. 129

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a emulação foi, particularmente, evidente no decorrer da Revolução"; além disso, a literatura contrarrevolucionária não se equivocou a esse respeito, transformando o tema dos "homens ilustres" em material que desencadeou uma profusão de sarcasmos. No livro Petit Almanach de nos grands hommes (1788), Rivarol descreveu o retrato coletivo das mediocridades literárias antes de esboçar sob a Revolução, durante seu exílio na Holanda, um contrarretrato do filósofo ( De la Philosophie moderne).18 Do mesmo modo, as antiutopias floresceram no discurso dos anti-Luzes, exacerbado no decorrer do primeiro ano da Revolução.19 Aliás, a questão da legitimidade de um Panthéon para garantir a imortalidade literária foi formulada no próprio campo revolucionário: Louis-Sébastien Mercier havia assumido uma postura semelhante a propósito de Descartes. De qualquer modo, entre os revolucionários, subsistia uma contradição fundamental — como é sublinhado por Michel Vovelle — entre duas mortes, objeto da atenção dos doutos por ocasião do concurso promovido pelo Institut, em 1800, sobre os funerais: entre "a morte ameaçadora, repugnante, perigosa, cuja gestão é assumida por eles, e a outra morte, abstrata, útil, recuperável, a serviço da vida"." Desta última, Arsenne Thiébaut esboçou as vantagens ao evocar em seu livro Réflexions sur les pompes funèbres, publicado em frimaire do ano VI (1797), os "efeitos maravilhosos que o busto dos homens ilustres, e as honras que lhes são conferidas, terão sobre os costumes, as ciências e as artes. [...] Nesta escola é que o professor primário formará o aluno; daí é que o artista extrairá seus temas; para aí é que a mãe conduzirá o 17. Léonard Bourdon, Recueïl des actïons héroïques et civiques des Républicains français, ano II. 18. Philippe Roger, "Les Grands Hommes de Rivarol", in Le Culte des grands hommes, Actes des troisièmes entretiens de La Garenne-Lemot, Nantes: Université de Nantes, 1998, p. 43-52. 19. No livro L'Île des philosophes (1790), o obscuro abbé Balthazard descreve uma viagem na ilha do acaso, na qual reinam as doutrinas de seus inimigos. Cf. Darrin M. McMahon, "Narratives of Dystopia in the French Revolution", in Yale French Studies, n. 101, 2001, p. 103-118; e, de forma mais geral, Enemies of the Enlightenment: The French Counter-Enlightenment and the Making of Modernity , Nova York: Oxford University Press, 2001.

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filho para corrigir seus vícios; aí é que o aspecto desses bustos servirá de veículo para a emulação e para o amor da Pátria; aí, finalmente, é que o viajante virá avaliar a glória da República e a felicidade do povo".21 Nessa perspectiva, o Panthéon transformou-se, de acordo com a expressão forjada por Mona Ozouf, na "escola normal dos mortos".22 Entretanto, o advento dessa morte patriótica dependia da construção de valores adequados, o que não aconteceu sem vicissitudes. As sucessivas transferências dos restos mortais do marechal da França Henri de La Tour d'Auvergne, visconde de Turenne (1611-1675), caracterizaram, nesse sentido, um percurso exemplar": a "múmia" dessecada, removida da urna da abadia de Saint-Denis, foi mostrada, em primeiro lugar, aos amadores (durante uns oito meses), mediante uma gorjeta ao guardião; em seguida, ela foi transportada para o Museu de História Natural e "colocada entre o esqueleto de um rinoceronte e o de um elefante". Em 15 de thermidor do ano IV (2 de agosto de 1796), os Cinq-Cents24 deram-se conta de que os restos mortais de Turenne haviam sido deslocados para esse local e o Diretório ordenou que eles fossem depositados no Museu dos Monumentos Franceses. Depois de terem sido conservadas como curiosidade da física — por seu material —, as ossadas de Turenne voltaram então a seu túmulo, que, por isso mesmo, se tornou monumento histórico. Mais tarde, tendo sido informado de um destino considerado, por sua vez, inconveniente, Napoleão decidiu instalar, solenemente, o mausoléu no Hôtel des Invalides, contra a opinião de Lenoir, que pretendia estabelecer a dissociação entre os restos e o monumento — conservar o túmulo para a história, em seu estabelecimento, e mandar erguer um novo mausoléu, adaptado à sua nova situação como ao gosto presente. Os restos mortais de Turenne haviam 21. ApudRichard Etlin, op. cit., p. 327. 22. Mona Ozouf, "Le Panthéon, l'école normale des morts", in P. Nora (org.), Les Lieùx de mémoire: La Republique, Paris: Gallimard, 1984, p. 139-196.

20. Pascal Hintermeyer, Politiques de la mort, Paris: Payot, 1979, p. 73; Michel Vovelle, La mort et l'Occident, de 1300 à nos jours, Paris: Gallimard, 1983.

23. Cf. ainda Suzanne Clover Lindsay, "Mummies and Tombs: Turenne, Napoleon and Death Ritual", in Art Bulletin, vol. 82-3, 2000, p. 476-489. 24. Conseil des Cinq-Cents (Conselho dos Quinhentos). Sob o Diretório (1795-1799), essa assembleia constituía — com o Conseil des Anciens (Conselho dos Anciãos, formado por 250 deputados) — o poder legislativo. [N.T.]

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percorrido, de algum modo, o arco completo dos tipos e dos valores de conservação, tendo acabado por ilustrar um caso exemplar dessa política das novas sepulturas, adotada nesse período no Panthéon e alhures." O caso ilustra perfeitamente a constatação feita por Robert Harrison, segundo a qual "as leis culturais da mudança são históricas e, portanto, obedecem também à lei da mudança. Sem sua substituição por novas leis, não há transformação de valor, porque, precisamente, estamos desprovidos de um saber do luto". 26 Nesse momento histórico particular que foi a Revolução Francesa, o desafio consistia em que os túmulos herdados tivessem um lugar em uma esfera pública, exclusivamente regida pelo valor testamentário heroico — prelúdio à exigência comemorativa, tal como ela será concebida pelo romantismo.27 O Panthéon — que, de acordo com a sugestão de Quatremère de Quincy, deveria ser rodeado por uma cerca viva, à semelhança do que havia sido adotado no recinto sagrado dos templos antigos 28 — e em seguida o museu, sob suas diferentes formas, constituíam uma possibilidade de outros tantos novos santuários. Na escala regional e local, os decretos ulteriores sobre as sepulturas davam testemunho do empreendimento descristianizador, além da continuidade do combate higienista e dos modelos de "campos de repouso" que triunfarão no ano XII com o decreto do Conselho de Estado sobre as sepulturas." 25. Permito-me citar meu livro Surveiller et r'instruire: La Révolution Françaire et l'intelligence de l'héritage historique, Oxford: Voltaire Foundation, 1996. Para um balanço da reflexão contemporânea dos especialistas sobre esse tema, cf. em particular Gary S. McGowan e Cheryl J. LaRoche, "The Ethical Dilemma Facing Conservation: Cate and Trearment of Human Skeletal Remains and Mortuary Objects", in Journal of the American Institute for Conrervation, vol. 35, n. 2, 1996, p. 109-121. 26. Robert Harrison, Les Mortr, Paris, Le Pommier, 2003, p. 107. 27. Para as notas de rodapé, suprimidas na tradução francesa, cf. a edição original de Robert Pogue Harrison, The Dominion of the Dead, Chicago: University of Chicago, 2003, p. 162-167. 28. Mark K. Deming, in Barry Bergdoll, op. cit., p. 136-138. 29. Ao lado dos famosos decretos de Fouché ou Chaumette, o de Étienne Maignet em Marselha, promulgado em 9 de germinal do ano II — pretende, assim, assumir toda a "economia da morte": cf. Régis Bertrand, "Maignet, Marseille et la mort: La Réorganisation des sépultures en I'an II", in Elizabeth Liris e Jean-Maurice Bizière (orgs.), La Révolution et la mort, Toulouse: Mirail, 1991, p. 61-73. 132

Por toda parte, o reordenamento revolucionário pretendia superar o que Mark K. Deming designa como "os conjuntos confusos e labirínticos da abadia de Saint-Denis e da Abadia de Westminster" em nome de uma obrigação imperiosa de classificação. A pedagogia tomou o lugar do status diferenciado dos mortos por ordens e estados: o desígnio didático tornou-se, daí em diante, exclusivo de qualquer outra preocupação e exigiu um esforço de clareza e de eficácia até então incongruente. Alexandre Lenoir, zelador ainda jovem de um depósito de monumentos, oriundos das igrejas parisienses, começou apresentando um catálogo das obras de arte conservadas ao Comitê da Instrução Pública e à Comissão Temporária das Artes; nesse texto, ele explicava ter "tido o cuidado, na medida do possível, de reunir tudo o que pode fornecer ideias das indumentárias antigas, seja civis, masculinas e femininas, seja militares, segundo as patentes. Espero, acrescentava ele, que essa reunião seja interessante também para os artistas que desejarem reconstituir indumentárias que seriam difíceis de encontrar se, porventura, a vigilância e a solicitude da Convenção Nacional negassem a autorização para conservar tais obras." Em suma, esta era sua conclusão: "Esses monumentos, apresentados deste modo, devem ser considerados apenas como uma reunião de figurinos, utilizando indumentárias segundo as épocas a que pertencem e segundo as posições ocupadas por aqueles que eles representam."" A fórmula remetia, de maneira exemplar, tanto a uma tradição dos estudos de antiquários marcada pelo gênero da coletânea de modas31 como a uma dessacralização propriamente revolucionária do túmulo, considerado como simples figurino e representante de uma posição social e de uma época, em vez de um defunto específico. Assim, ao dar a impressão de metamorfosear a coleção dos reis em outros tantos artefatos de exposição, Lenoir pretendia romper, de forma brutal e negociada, com qualquer evocação de figuras individualizadas, assim como concentrar a atenção no dispositivo de representação dos antiquários. Tudo se passa como se 30. Cf. Archiver du Mude des Monuments Français, Paris: Inventaire Général des Richesses d'Art de la France, 1883-1897, II, peça CXLII. Noùvelles 31. Laure Beaumont-Maillet, "Les Collectionneurs au cabinet des Estampes", in de l'Estampe, n. 132, 1993, p. 5-27. 133

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os iconoclastas revolucionários, ao observarem a imagem, ignorassem o médium, enquanto uma percepção "profissional" — no caso concreto, a do artista e conservador — limitava-se, pelo contrário, a considerar o médium, ou seja, o figurino. Tal interesse vai subsistir: a revista Musée do ano IX compreendia "uma dissertação sobre a indumentária", e a sexta edição do ano X acrescentava "uma dissertação sobre a barba". Entretanto, sua museografia imaginava, em breve, associar os membros da mesma família ou do mesmo contexto histórico. Em março de 1803, Lenoir reivindicava a urna do condestável Olivier de Clisson "para colocá-la, no Museu, ao lado do túmulo de Du Guesclin, seu êmulo; assim, esses dois monumentos, depositados perto do túmulo de Carlos V, suscitarão mutuamente um novo interesse". 32 Como é resumido pelo barão de Norvins, a propósito de um projeto concorrente para o jardim de Élysée, trata-se de agrupar "túmulos segundo a vida ou o caráter de seus antigos ocupantes". Para solicitar a transferência, para seu museu, do túmulo do chanceler da França, Michel de l'Hôpital, erguido em uma aldeia perto de Étampes, Lenoir exprimia-se, em 13 de prairial do ano VIII, nos seguintes termos: "Quem poderá observar, insensivelmente, a estátua de l'Hôpital, ao lado dos túmulos dos príncipes lorenos, dos Médicis e dos Valois que tiveram de enfrentar, em várias oportunidades, a coragem desse homem ilustre ao defender os interesses do povo de quem ele declarava ser o pai?"33 Michelet tornou-se o intérprete fiel desses diálogos mortuários quando, em sua aula de 5 de janeiro de 1843 no Collège de France, escreveu que os monumentos "haviam tido uma felicidade, sem precedentes e jamais experimentada depois, isolados nas igrejas, de se verem uns aos outros e conversarem entre si".34 Em suma, ele desenvolvia, a posteriori, a nostalgia da conversation Piece que teria sido encarnada pelo estabelecimento concebido por Lenoir: "Todas essas figuras, isoladas nas igrejas ou reunidas nos museus, deixaram de se exprimir; mas aí, no Museu dos Monumentos 32. Cf. Archives du Musée des Monuments Français, op. cit.,

peça CCXCV. 33. Carta para Lucien Bonaparte, in Archives dù Musée des Monuments Français, I, p. 174. 34. J. Michelet, Cours du Collège de France, I, Ie838-Ie844, Paris: Gallimard, 1995, p. 524.

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Franceses, organizadas de acordo com a posição ocupada na sociedade de suas épocas e segundo as respectivas sensibilidades, sob a claridade 35 suave dos vitrais, elas tornavam-se expressivas [...J." A primeira sala do museu oferecia uma visão panorâmica de todos os séculos, ordenados de forma cronológica. "O artista e o amador", sublinhava Lenoir, "hão de observar, em um piscar de olhos, a infância da arte entre os godos, seu avanço sob Luís XII e sua perfeição sob Francisco P, além da origem de sua decadência no reinado de Luís XIV e sua restauração no final de nosso século." Resumo de todo o estabelecimento, a sala prefigurava as "colagens" arquiteturais do século XIX e, especificamente, as de Duban, sucessor de Lenoir. Nas salas seguintes, a distribuição das obras obedecia a uma classificação "por época e por ordem cronológica, ou seja, em outras tantas peças separadas quanto o número de períodos notáveis que a arte nos oferece". Uma sala "primitiva" — prevista em 1806 como "sala do século XI, época que nos apresenta poucos monumentos de arte (e que) seria única na Europa" — permaneceu no estado de projeto. No final do percurso, Lenoir imaginou, por assim dizer, uma sala da atualidade, cuja definição hesitava, de maneira característica, % entre um Panthéon napoleônico e um museu de arte contemporânea. Em 1809, surgiu a ideia de uma sala dos fatos heroicos de Napoleão, o Grande, Imperador dos Franceses — composta "por modelos das estátuas e dos baixos-relevos encomendados atualmente por ele" —, que "formaria cf. Mario Praz, Consersation Pieces: A Survey Ibidem , p. 524. Sobre a conversatïon piece, ïn Europe and America, University Park: Pennsylvania of the Informal Group Portrait State UR 1971; e sua crítica por Francis Haskell, in Art Bulletin, vol. 56, n. 2, assim como Simon Schama, "The Domestication of Majesty: Royal Family Portraiture 1986, p. 155-183. 1500-1850", in Journal of Interdisciplinary Hïstory, vol. 17, n. 1, 36. "Uma grande e esplêndida entrada pelo cais deixaria ver um grande pátio que seria decorado com estátuas erguidas a intervalos regulares. As salas do térreo seriam

35.

utilizadas da seguinte forma: 1) uma coleção de retratos dos homens célebres da França; 2) uma sequência cronológica de armaduras de todas as épocas; 3) uma coleção completa de medalhas francesas; 4) uma biblioteca cujo acervo seria formado unicamente por livros necessários para o conhecimento dos monumentos existentes no museu. Finalmente, todos os objetos relativos à instrução, seja da arte ou da história relativamente à França. [...] Esse monumento, único por sua classificação, tornar-se-ia I, peça CLXXXII.) extraordinário." (Archïves du Musée des Monuments Frangis, 135

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naturalmente o século XIX".37 Mas, sob o título "Século XIX, viagem ao Egito do imperador e rei Napoleão I", Lenoir projetava também uma sala egípcia. Por último, em 1811, outro plano esboçou uma sala de vitrais em que estes "seriam o ornamento principal e, ao mesmo tempo, dariam a conhecer os primeiros passos da pintura e das artes do desenho, cujos progressos seriam em breve constatados"38. Esses diferentes projetos comprovavam como a especificidade do depósito dos Petits-Augustins empenhava-se no desígnio de conferir, " a cada uma das salas, o caráter, a fisionomia exata do século que ela deve representar"39, mediante a reutilização de "detalhes". Com efeito, "em matéria de antiguidade", eis a conclusão do conservador, "são as partes que, essencialmente, constituem a arte, servindo habitualmente para reconhecer o povo a que pertence o objeto que deve ser explicado ou descrito". De forma mais geral, Lenoir escolheu uma obra particular como espécime da arte de um século e, à sua volta, organizou toda a decoração da sala. Assim, alguns monumentos "matriciais" ordenavam, com um maior ou menor grau de fidelidade, o conjunto do quadro da exposição. Tal foi o princípio declarado da sala do século XV em que ele "compôs (seu) teto, (suas) janelas e, em geral, toda a decoração de acordo com o tipo do túmulo de Luís XII que, por sua vez, ocupa o centro". Esse tipo de organização permite conferir como que um "ar de família" à coleção reunida nesse espaço, desenhando a imagem de uma comunidade de personagens ilustres. Nesse quadro, o epitáfio continuava sendo uma fonte indispensável para a compreensão do monumento; mas sobretudo, com a divisa, ele permite definir a personagem por inteiro, fornecendo de forma mais conveniente o ponto culminante de um retrato.40 Por exemplo, a de Valentina de Milão, "a mulher inconsolável ao perder o marido": "Nada mais é importante para mim" ["Rien ne m'est plus, Plus rien ne m'est"]. Por sua vez, a placa dedicada a François Chevert, na igreja parisiense 37. Ibidem, I, peça CCCC. 38. Archives Louvre, Z 62-63. 39. Cf. Musée, 1810, p. 6. 40. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment:• Changing Attitudes to Death among Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University Press, 1981, p. 328-330. 136

de Saint-Eustache, que data do decênio de 1770 e cuja celebridade é enorme, ilustrava o percurso excepcional de um patriota de mérito, cuja exemplaridade continuava sendo atual. Igualmente, a divisa de Dominique Sanède de Vic d'Ermenonville, amigo de Henrique IV, que morreu de desgosto dois dias depois do rei, assumia um caráter emocionante. À semelhança do que se passava no jardim com fabriques, o epitáfio desempenhava, então, o papel tanto de uma lição de moral como de um apelo à memória: semelhantes usos inscreviam-se 4 no gênero dos "derradeiros escritos", para citar Armando Petrucci. 1 Por último, essa predileção remetia, de forma mais abrangente, à moda, por volta da década de 1770, de historietas benfazejas, de ações louváveis e de modelos éticos, associados, em particular, à difusão dos 42

temas filantróp icos . O preço a pagar por essa nova vida — a ressurreição dos mortos — constituía, para Michelet, o heroísmo de Lenoir; de fato, o historiador retomou a compilação de lendas que havia sido elaborada desde thermidor, transformando os monumentos em outros tantos feridos que tivessem ressuscitado pelo sacrifício de seu conservador. O museu tornou-se o espetáculo de vítimas de pedra, reunidas em torno 43 da ideia de nação. Graças a seu sacrifício, instrumento de qualquer patrimonialização, Lenoir "havia curado os ferimentos dessas vítimas, ajustando seus frágeis membros que se encontravam dispersos [...] Por seu intermédio, esses monumentos receberam uma nova consagração por terem sido cobertos com seu nobre coração e tingidos com seu sangue[...]" .44 O martirológio prosseguiu no decorrer de toda a aula 41. Armando Petrucci, Le scritture ultime: Ideologia della morte e strategie dello scrivere nella cultura occidentale, Turim: Einaudi, 1995, p. 141-142. Paris, Comité des Travaux Historiques 42. Catherine Duprat, Le Temps der philanthropes, et Scientifiques, 1993, p. 52-53, 203. Sobre os catecismos revolucionários e outros suportes de propaganda, cf. Colporter la Révolution, Montreuil, 1989 (Catálogo da exposição). 43. Para Deborah Jenson, essa perspectiva anuncia a conferência de Renan sobre a nação Life o que parece ser algo de arriscado: Trauma and its Representations: The Social (1882), of Mimesis in Post-Revolutionary France, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2001, cap. 1. 44. J. Michelet, Cours du Collège de France, op. cit., p. 521. 137

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de Michelet, em 29 de dezembro de 1842: "O senhor Lenoir havia salvaguardado todos os túmulos da França, por um lado, ao propor à Assembleia que eles fossem conservados e, por outro, ao cobri-los com seu corpo. E acabou por ser vítima desses ferimentos." Desse modo, ele retomava o discurso do próprio Lenoir, que, em diferentes edições de seu catálogo, afirmava ter machucado a mão ao afastar as baionetas que ameaçavam destruir o túmulo do cardeal de Richelieu, obra-prima de Girardon. No lado oposto a esse patrimonializador, como homem ferido que podia orgulhar-se de seu estigma, manifestou-se uma leitura contrarrevolucionária que, pelo contrário, limitava-se a perceber, no museu, o sparagmos, a dispersão dos corpos dos heróis, a derrota e a anarquia, em suma, o desmembramento da comunidade, em vez de sua reunião em uma nova coletividade." O colecionismo de Alexandre Lenoir correspondia, em sua busca e em suas modalidades, a figuras banais desde o Antigo Regime (ele não perdia de vista os marchands nem os leilões, "mantendo-se incógnito" para negociar as peças "a um preço moderado")." Entretanto, alguns episódios inauguravam as narrativas ulteriores, as do século XIX, com achados no meio dos detritos da nova vida. Assim, em 14 de novembro de 1796, Lenoir identificou o túmulo de Diana de Poitiers, favorita de Henrique II, em Anet — cidade em que ela possuía um magnífico castelo, cuja construção se deve a Philibert de l'Orme, por encomenda do rei: tendo sido "vendido a um cidadão das redondezas, o túmulo era utilizado como cocho para dar de beber aos porcos e às aves". 47 Às vezes, o proprietário exigia a menção da dívida contraída a seu respeito: assim, o dr. Boysset, detentor do túmulo do filósofo e teólogo Abelardo, em Chalon-sur-Saône, "não pede de modo algum a restituição do valor despendido por esse bloco de pedra da antiguidade", mas "reivindica [...] que a inscrição histórica (destinada) a esse túmulo faça menção e designe o nome daquele que o havia conservado e sem o qual ele não teria subsistido". 45. Retomo, aqui, a figura elaborada por Northrop Frye, Anatomie de la critique, Paris: Gallimard, 1969. 46. Musée, n. 446, p. 200. 47. Musée, n. 91, p. 191; n. 443, p. 195. 138

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Enfim, quando faltava o monumento desejado, Lenoir recorria a diversos expedientes, incluindo a encomenda aos artistas contemporâneos. Sua primeira iniciativa data de 11 de agosto de 1796 e diz respeito 48 a bustos de Sarrazin, Poussin e Le Sueur ; em relação ao século XVI, Montaigne, Fabri de Peiresc e Goujon; enfim, para o século XVIII, Rousseau, Helvétius, Raynal, Chamfort e o incontornável Winckelmann — aliás, uma escolha bastante significativa de uma opção "democrática". O historiador abbé Guillaume Raynal, falecido recentemente (1796), representava, antes da Revolução, o arquétipo do filósofo vítima do despotismo, em decorrência de sua detenção em 1781. Apesar de ter deixado de pertencer ao panteão republicano a partir de maio de 1791, ele continuou sendo uma ilustração do anticlericalismo — e, obviamente, o defensor das "Colônias", assumindo uma posição contra a colonização." Por sua vez, Sébastien-Roch N. de Chamfort — que ganhou notoriedade com o livro Caractères, publicado postumamente, em 1795 — pôde simbolizar o talento como vítima dos tempos de Terror. Por conseguinte, o museu demonstrava como o patrimônio voltava a reivindicar as genealogias, em termos de filiação invertida pela qual os filhos engendram os próprios pais."

A busca de um santuário do Estado O jardim de Lenoir herdou um imaginário de Élysée, cujas características principais já foram abordadas; no entanto, os primeiros anos Nouveller Archives 48. Cf. Jules Guiffrey, "Bustes commandés à Michallon et Deseine", in de l'Art Français, 1880-1881, II, p. 383. de 1798 (n. 194) o "retrato 49. O pintor Girodet-Trioson (1767-1824) expôs no Salon de C. Belley, ex-representante das Colônias", diante de um busto de G. Raynal à moda antiga (Versalhes, Museu Nacional do Castelo). Cf. Hans-Jurgen Lüsebrink e Manfred Tietz (orgs.), Lectures de Raynal: L'Hirtoire des deux Meles en Europe et en Amérique auXVIIIe siècle, Oxford: Voltaire Foundation, 1991; e Muriel Brot, "Raynal Sacie, vol. 27, 1995, p. 317-322. au printemps 1793", in romain", chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit 50. Yann Thomas, "Res, in Archives de la Philosophie du Droit, Paris, Sirey, 1980, p. 425; "Les ornements, la cité, le patrimoine", in Images romaines, Paris: ENS, 1998.

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da Revolução haviam tentado dar-lhe uma nova fisionomia. Uma boa representação dessa tentativa foi o Plan allégorique d'un jardin de la Republique française et des vertus re'publicaines, proposto pelo cidadão Verhelst ao Comitê de Salvação Pública, em 16 de prairial do ano II; organizado à volta de falsas ruínas que estão em nítida oposição aos dispositivos anteriores, ele configura uma damnatio memorie didática. O programa detalhado é o seguinte: "Na Praça da Revolução, serão instaladas as ruínas de um Palácio de Tirano e, sobre elas, será erguida uma plataforma. No centro dessa praça, será colocada a estátua da Liberdade, que fica observando incessantemente seus Filhos. Por baixo dessas ruínas, haverá quatro salas destinadas a demonstrar as causas da justa destruição dos Reis: na primeira sala, serão inscritos os Vícios da Monarquia; na segunda, a Política e a Adulação dos Cortesãos; na terceira, a Injustiça e os Privilégios; enfim, na quarta, o Fanatismo e a Fraude. Neste aspecto é que todos os Estrangeiros, ao lerem as causas de nossa bem-sucedida Revolução, assim como da destruição do Tirano, impregnar-se-ão do horror pela escravidão e proclamarão: Não haverá felicidade sem a Liberdade e a Igualdade. No local reservado ao Jardim Nacional, à direita e à esquerda, serão erguidas duas colunas destinadas aos mártires da Revolução. Da plataforma será possível descobrir vários caminhos, dissimulados até então pelo Palácio do Tirano, dedicados às Virtudes e às afeições puras de todas as épocas. Desse modo, veremos: 1) o caminho da Honra, da Verdade, da Liberdade, da Igualdade e da I mortalidade; 2) o caminho da Virtude, no qual serão encontrados vários objetos, tais como estátuas, escritos empolgantes ou, finalmente, informações capazes de inspirar sentimentos republicanos; 3) o caminho da Fraternidade, para alimentar a amizade e a boa harmonia entre Pai, Mãe, Filhos(as), Irmãos, Irmãs, Amigos e Concidadãos; 4) o caminho da Probidade e da Fidelidade; 5) o caminho do Amor Conjugal neste local, os Esposos virão prestar, mutuamente, o juramento de viver em bom entendimento e de ficarem juntos para sempre; 6) o caminho do Gênio e das Artes, no qual o Homem assumirá o compromisso de renunciar a fazer qualquer obra contrária aos bons costumes — o Poeta deixará de escrever em um estilo indecente, o Artista não irá 140

expor outros quadros obscenos e, finalmente, o fabricante fará questão de fornecer mercadorias em bom estado; 7) o caminho da Humanidade, em que nada será poupado para inspirar sentimentos em relação ao que o rico deve aos pobres que são seus irmãos e semelhantes; 8) o caminho do Amor pela Pátria. Todos esses caminhos conduzem ao Templo do Ser Supremo e da Imortalidade. Se o Homem vier a afastar-se desses caminhos, ele cairá em outros tortuosos — tais como Orgulho, Cupidez, Avareza, Devassidão, Infidelidade, etc. — que o conduzirão à sua perda; essas estradas desembocam em cloacas, figuras de todos os vícios. Ao sair do Templo, entra-se nos Campos Elísios. Nesse local, usufruir-se-á de tudo o que pode encantar a vista; aí, ver-se-á um tanque de sessenta toesas de comprimento e vinte de largura. Mais adiante, uma grande cascata, cujas águas servirão para regar os prados. Em um dos lados do tanque, o Homem da Natureza, Rousseau, colocado perto de uma cabana rodeada de córregos serpeantes e guarnecida com choupos bem altos. À esquerda da cascata, será erguido um Templo ao Gênio, no qual hão de figurar Voltaire e os Heróis da Liberdade. À direita, será construída uma coluna em que serão inscritos os nomes de todos os Homens Ilustres da História." Semelhante programa tem a vantagem de reunir facilmente quase todas as representações forjadas pelo decênio em relação aos elementos comemorativos, ao mesmo tempo nos jardins com fabriques, nos cemitérios e nos panteões; esta configuração topográfica e alegórica, heroicizada pelo amor da pátria, pretende ser um recurso eficaz, em forma de propedêutica, para homenagear os dois heróis das Luzes, Voltaire e Rousseau. Aliás, o gótico em ruínas, como metáfora para um regime desacreditado, tornar-se-á um lugar-comum da iconografia militante: após thermidor, uma alegoria complicada, dirigida contra Robespierre e intitulada Le Miroir du passe pour sauvegarde de l'avenir, mostrava um "tribunal terrorista" instalado em uma construção 5 gótica — indício "realista" e, ao mesmo tempo, emblemático. 1 No início do século XIX, alguns jardins — tal como o de "Mousseaux", o território da ilusão, desenhado por L. de Carmontelle de 1773 a 51. Lauren M. O'Connell, "Redefining the Past: Revolutionary Architecture and the Conseil des Bâtiments Civils", in Art Bulletin, vol. 77, n. 2, 1995, p. 207-224. 141

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1778, e no qual Rousseau colhia suas plantas — conservaram sua antiga celebridade, mesmo que tivessem sido degradados; entretanto, impunhase atribuir-lhes uma nova serventia. A ideia de "converter os jardins de Mousseaux — sua situação em local recuado e em posição elevada, longe e acima dos ruídos da cidade, parecia destiná-los a tal objetivo — no Élysée histórico francês" ocorreu ao barão de Norvins, secretário particular do administrador do departamento de Seine. Seu livro Mémoires evocava seu desígnio de instalar nesse lugar os monumentos franceses: "Os hóspedes naturais desse Élysée expiatório da amnésia do tempo e das lembranças da Revolução deveriam ser todos os túmulos e monumentos [...] do depósito dos Petits-Augustins. Eu tinha estudado meu projeto no próprio terreno e havia tirado partido do relevo tão diversificado do parque de Monceaux, de suas colinas, de suas aleias escavadas e solitárias, de suas águas e das sombras fornecidas pelas folhagens de suas árvores, para colocar e abrigar túmulos, segundo a vida ou o caráter de seus antigos ocupantes. Além disso, uma capela sepulcral teria reavivado o interesse de um curso de história nacional, a céu aberto, ministrado a partir de peças irrecusáveis." Segundo parece, Nicolas Frochot (1761-1828) — 1º administrador do departamento de Seine, cuja capital era Paris — serviu-se amplamente desse projeto; com efeito, em 1800, ele solicitou que os monumentos, até então reunidos no depósito dos Petits-Augustins, fossem instalados em Monceau, parque em que "essa lúgubre e majestosa coleção de arquivos da morte, colocada sob a abóbada do céu no meio de um Élysée guarnecido de flores, tornar-se-ia, subitamente, inspiradora para o gênio, além de proclamar aos séculos futuros a religião dos túmulos [grifo de Dominique Poulot], consagrada pelo testamento dos séculos passados"." Eis uma forma de anunciar o programa do cemitério parisiense de Père-Lachaise, sob a Restauração (1814-1815), no qual Frochot mandará colocar, finalmente, alguns desses mais célebres monumentos com o objetivo de "lançar" o novo cemitério. As opiniões divergiam, porém, relativamente à adequação desse jardim ao intuito pretendido. Para Louis de Fontanes (1757-1821) — reorganizador do sistema educacional 52. Sobre esse assunto, cf. Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, Paris:

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Plon, 1963, p. 138.

francês e criador dos liceus —, "quase todos esses monumentos têm um caráter grave e religioso. Teria sido bastante difícil harmonizar seu efeito com o aspecto sorridente dos jardins de Mousseaux; aparentemente, eles seriam mais adequados ao recinto de um antigo mosteiro que desperta sentimentos e pensamentos análogos a seu destino". De fato, "um templo ou um jardim moderno nunca chegarão a ser significativos para a alma e a imaginação como ocorre com essas antigas basílicas consagradas pela veneração dos séculos; para ler os epitáfios dos heróis do tempo passado, 53 o ambiente mais apropriado é sob velhas abóbadas." Aliás, essa valorização do gótico pela ancianidade inspirava-se na defesa apresentada por seu amigo Chateaubriand, em Génie du christianisme. Quanto ao parque de Monceau, Louis de Fontanes sugeria sua transformação em galeria dos artistas contemporâneos: "Uma espécie de museu campestre, um lugar semelhante a essas 'villas' que embelezam os subúrbios de Nápoles e de Roma. Seria possível até mesmo reservar uma das salas de Mousseaux para receber todas as obras dos artistas vivos: em vez de dois meses, como ocorre em Paris, essas obras seriam expostas em Mousseaux durante todo o ano." Finalmente, na sequência da visita do Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, ao depósito dos Petits-Augustins, em março de 1801, o Museu dos Monumentos Franceses acabou conservando seu jardim Élysée, cuja arrumação foi concluída para a Festa da Paz Continental. Sob o Império (1804-1814), o jardim organizou-se em dois pátios, cada qual guarnecido com vestígios arqueológicos. A fachada do castelo de Anet, reproduzida na capela do convento, servia de entrada principal do museu: simbolicamente, ela colocava o estabelecimento sob os auspícios do Renascimento, quando Philibert de l'Orme encarnava, segundo Lenoir, o primeiro arquiteto francês. Na extremidade do pátio oposto, o conservador dispôs três arcadas do castelo de Gaillon (que, supostamente, era o representante do século XV). Mais adiante, outro pátio deveria acolher peças do século XIII — da autoria do arquiteto francês, construtor da Sainte-Chapelle, Pierre de Montereau —, mas essa obra nunca chegou a ser concluída. O objetivo do Élysée consistia 53. Archives dù Musée des Monuments Français, I, peça CLXVIII.

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em fornecer "uma paisagem augusta" para os monumentos dedicados, por "uma mão tímida, a homens célebres". Nesse aspecto, Lenoir reivindicava a qualidade de arquiteto, mas para assimilá-lo, imediatamente, à elaboração de um cenário: "Sem ser arquiteto, a arte é para mim algo de tão familiar quanto ela deve ser para um pintor que compõe pessoalmente o fundo de seus quadros." Sua primeira preocupação tinha a ver com a organização da luz e, especialmente, com o olhar que, da entrada, se dirigia para o claustro ou para o próprio jardim. A composição dessa "paisagem" dependia amplamente do gênero do jardim inglês: "Amores-perfeitos, flores de todas as espécies guarnecem esses túmulos; na sua proximidade, o próprio cipreste parece ter perdido sua aparência lúgubre para tornar-se luminoso.."54 Em janeiro de 1807, 454 pés de árvores e arbustos foram solicitador por Lenoir a seu ministro de tutela. Diante da rejeição de seu pedido, ele baixou sua exigência para 164 plantas, cuja lista foi conservada escrupulosamente, graças aos trâmites administrativos: "11 acácias, 6 alertes, 2 bordos de açúcar, 6 cítisos, 6 carpas, 4 anetos, 4 cerejeiras de flores duplas, 6 madressilvas, 4 puás, 2 catleias, 6 epíceas, 8 lilases variados, 6 amoreiras da China, 4 bolas de neve, 6 roseiras bravas enxertadas, 3 titias, 4 espinheiras, 12 roseiras vulgares, 6 cedros da Virgínia, 4 trifólios, 4 loureiros, 6 ciprestes, 4 freixos, 6 sarças, 4 bétulas, 6 azevinhos com espinho, 2 olmos, 2 lariços, 2 bordos com folhas de freixo, 4 olmos ainda novos."" Em 1810, o catálogo da revista Musée repertoriava "mais de quarenta estátuas; alguns túmulos, distribuídos ao acaso sobre a grama verde, erguiam-se com dignidade no meio do silêncio e da tranquilidade".56 54. Musée, edição do ano VII, n. 510. 55. AN F17 2410. Essa amoreira da China deu seu nome ao pátio, beneficiado por sua sombra, da École des Beaux-Arts. A introdução de espécies exóticas do Novo Mundo ou do Extremo Oriente aumentou as possibilidades dos jardineiros: essa é uma das causas do sucesso do arquiteto-paisagista, Louis-Martin Berthault — apelidado o "Le Nôtre do século XIX" — em La Malmaison, que, em 1799, se tornou a residência do Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, e de Josefina de Beauharnais, sua primeira esposa. De acordo com o resumo apresentado por um dos mais famosos paisagistas da época, Gabriel Thouin — em sua obra Plans raisonnés de toutes les espèces de jardins (1820) —, a nova arte das paisagens mescla as flores com os gramados. 56. Musée, ed. de 1800, p. 19. Cf. ainda Ch.-P. Landon, Annales dù Mùsée et de l'École Moderne des Beaux-Arts , Paris, ano IX, I, 12. 144

De acordo com o guia, dois conjuntos se destacavam: "(Em primeiro lugar), na encosta de uma colina, ao lado de um canteiro de roseiras, murta e ciprestes, vemos erguer-se majestosamente uma capela antiga, cujas abóbadas em ogivas alongadas encobrem religiosamente as cinzas 57 de Heloísa e de Abelardo. [...] Na parte alta do morro que serve de base às urnas imortais de nossos poetas mais célebres, observa-se um monumento com quatro faces que se ergue acima dos outros túmulos: composto por quatro nichos, ele contém os bustos de Molière, Jean de La Fontaine, Boileau e Racine." O caráter "falante" desse jardim era duplicado pelas múltiplas inscrições, disseminadas no local. Por esse espetáculo, o conservador entendia que, "à alma dos leitores e de todos aqueles que visitarão esse Élysée, fosse transmitido o santo respeito pelo qual, ao instalá-lo, ele havia sido impregnado através das luzes, talentos e virtude". Nesse lugar da imortalidade poética, será possível "supor que esses restos inanimados venham a receber uma nova vida a fim de se observarem e se entenderem, além de usufruírem de uma felicidade comum e inalterável"." A implicação política de tal iniciativa era óbvia: o jardim pretendia fornecer o novo padrão das reputações, ao reparar as injustiças cometidas no passado. De acordo com a afirmação de Lenoir, "as homenagens públicas e a veneração nacional consolarão os manes desses homens ilustres pela injustiça que pesou sobre suas vidas e pelos ultrajes suportados após terem falecido"". Contrariamente à acusação de pieguice aliciante, desencadeada por seus adversários, o jardim Élysée colocava-se, portanto, sob o patrocínio da razão. Mesmo que o conservador pretenda oferecer "os monumentos erguidos com ternura e reconhecimento à atenção dos cientistas e às lágrimas das almas sensíveis", prevalecia, finalmente, a preocupação de adotar a perspectiva do panteão, nem que fosse para justificar o monumento dedicado a Heloísa e Abelardo: "Basta abrir a história", escreve 57. Sobre a posição do episódio na fortuna crítica, cf. Cécile A. Feilla, "From Sainted Maid to Wife in all Her Grandeur: Translations of Heloise 1687-1817", in EighteenthCentury Lifè, vol. 28, n. 2, 2004, p. 1-16. 58. Eis o que seria, diz ele, "a recompensa mais apreciada por nosso coração" ( Musée, ed. de 1810, op. cit., p. 293). 59. Archives du Musée der Monuments Français, I, peça CXXXIV.

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Lenoir, "para conhecer o mérito desse filósofo, mais notável ainda pela força do gênio que ele desenvolveu, em um século mergulhado nas trevas da superstição, que pelo interesse suscitado pela lembrança de seus infortúnios." Em 1806, no quinto volume de seu grande catálogo do Musée, Lenoir citava o famoso trecho da obra de Condorcet, já citada, como o inspirador de sua "imagem de um verdadeiro Élysée": "O quadro da espécie humana, desvencilhada de todas as suas correntes, liberada do império do acaso, assim como do inimigo de seus avanços, e percorrendo com um passo firme e confiante o caminho da verdade, da virtude e da felicidade, apresenta ao filósofo um espetáculo que o consola dos erros, crimes e injustiças com que a terra ainda continua conspurcada e de que ele é frequentemente vítima. [...] Aí é que ele existe verdadeiramente com seus semelhantes, em um Élysée que sua razão conseguiu criar para si mesma e que seu amor pela humanidade embeleza com as mais puras fruições."60 O museu ilustrava assim, amplamente, uma criminalidade histórica, não a que Chateaubriand havia reconhecido no princípio da Revolução, mas aquela que os filósofos do segundo período das Luzes — a geração do abbé Grégoire — observaram em ação na cronologia universal. Em seu guia de 1810, Lenoir justificava "o termo Élysée" neste trecho: "Mas por que — poderá alguém se questionar — servir-se de uma palavra que se limita a designar uma quimera? [...] Somos incapazes de dissimular que existe uma espécie de magia associada a esse termo que é da alçada da linguagem das artes e da qual nos servimos, todos os dias, para significar nossa ideia a respeito da felicidade: ele destina-se a caracterizar, sobretudo, a felicidade que supomos ser compartilhada pelos homens virtuosos depois de terem deixado de viver neste mundo visível. E por que motivo não poderíamos nos conformar, nesse aspecto, com um uso que, graças ao conhecimento e à razão, nada tem de perigoso?"61 Aliás, o modelo antigo havia inspirado inclusive a disposição das obras, uma vez que "os monumentos são colocados à beira das alamedas, à 60. Musée, vol. 5, 1806, p. 192-193. 61. Ibidem., ed. de 1810, p. 285. [Em relação à palavra "Élysées", cf. Musée, éd. 1810, p. 285. (N.T.)]

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maneira dos antigos" — mesmo que a imprensa evocasse, de preferência, a poética noturna de Young.62 Apesar de inscrever-se perfeitamente na moda dos jardins de valores morais, tal como ela havia sido legada pela sensibilidade anterior à década de 1790, o jardim Élysée depende também das "afeições privadas" que, de acordo com o testemunho de Benjamin Constant, tomavam o lugar, na época, da religião. De fato, o jardim reunia imagens, afinal de contas, heteróclitas — herói do dia e figuras célebres da história da França, testemunhas da inteligência universal e simples pretextos para a expressão de uma sentimentalidade. Aliás, na sua obra, o representante da tradição, L.-P. Deseine, apresentava uma descrição voluntariamente caótica da situação, a fim de condenar o caráter desconexo das referências, pagãs e cristãs, antigas e modernas: há quem tenha "levado a demência até o ponto de nos dizer que essa reunião de monumentos apresenta o conjunto emocionante de um Élysée. [...] Já se viu, algum dia, estátuas de Diana, Júpiter, Mercúrio, de animais e quimeras de toda a espécie, em um lugar reservado a sepulturas? [...] O caráter de um Élysée é determinado não por 63 arbustos, gramados e canteiros, mas certamente por seus monumentos". De qualquer modo, o Élysée forneceu uma das encarnações mais convincentes da sensibilidade pré-romântica, ao servir-se de um vocabulário formal, reconhecido e apreciado, além de ser a ilustração de valores amplamente compartilhados. Sem poder erigir-se em lugar da memória, esse "jardim de ilusões" influenciou, por sua vez, um grande número de empreendimentos associados à história nacional, desde o projeto de Saint-Morys até a reforma de La Malmaison, que foi orientada por Lenoir, J.-M. Morei — "o patriarca dos Jardins Ingleses" — e o arquiteto P. Fontaine, antes da intervenção de L.-M. Berthault.64 Como tal, o 62. Journal des Débats [boletim oficial, criado em 1789, dos debates da Assembleia Nacional], de 16 de ventôse do ano X (7 de março de 1802): "Uma visita ao Museu dos Monumentos Franceses vale uma noite passada com Young" (p. 36). 63. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les musées, oà se trouvent retenus tous les objets d'art qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholique, Paris, 1801. O panfleto teria uma nova edição em 1814. 64. Cf., em geral, Louis Courajod, "L'Influence du musée des monuments (rançais sur le développement de l'art et des études historiques", in Revue Historique, vol. 30, n. 1, 1886, p. 107-118. O projeto de um colecionador-antiquário, Saint-Morys, que

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Élysée constituía sem dúvida o único exemplo de um jardim, destinado a receber construções, que conheceu, na França, certo sucesso; eis o que ocorreu, na contramão tanto da frieza frequentemente glacial das instituições encarregadas de comemorar eventos oficiais como do desígnio exclusivo de diversão que, no mesmo momento, animava os parques do estilo de Tívoli e outros jardins de empresários do lazer parisiense. 65 Ao marcar a restauração do Estado em suas prerrogativas de memória, o Império condenava esse empreendimento como uma excentricidade individual. O desígnio oficial consistiu, daí em diante, em fundar uma nova memória dinástica e nacional, assim como em realizar a amálgama das ilustrações da França antiga com os homens célebres da nova. Por um decreto de 1806, a igreja de Sainte-Geneviève recebeu os túmulos depositados no museu, destinando esse templo à "sepultura dos senadores, grandes oficiais da Legião de Honra e generais, além de outros funcionários públicos que tivessem prestado bons serviços ao Estado"; paralelamente, previa-se instalar, na abadia de Saint-Denis, a sepultura dos imperadores. No diário oficial Moniteur Universel de 22 de fevereiro do mesmo ano, J.-B. Champagny — nomeado ministro do Interior por Napoleão, entendia criar em Houdainville, no departamento de Oise, em torno de seu castelo, "um museu que expõe, em um quadro romântico, a evolução dos monumentos funerários na França" foi estudado por Françoise Arquié-Bruley, "Un Précurseur: Le Comte de Saint-Morys (1772-1817), collectionneur d'antiquités nationales", in Gazette des Beaux-Arts, out. 1980, p. 109-118; fev. 1981, p. 61-77. O Élysée foi construído apenas depois do falecimento do conde, sob a orientação do genro, Engelbert Schillings, oficial prussiano que dispôs as estátuas funerárias em torno de rochedos e entre as árvores. No entanto, o exemplo mais nítido da influência de Lenoir sobre o cenário de seus contemporâneos é, evidentemente, o de La Malmaison. Redigido pelo próprio Lenoir, o verbete "Malmaison", da coletânea enciclopédica Dictionnaire de la conversation, publicada em 1836, dá uma ideia bastante precisa de seu papel nessa reforma; seus esforços incidiram sobretudo sobre o embelezamento das fachadas e sobre as fabriques do jardim à maneira inglesa, do qual ele pretendeu fornecer uma das peças mais importantes, ou seja, uma "capela" gótica transportada de Metz (e que permanecerá na embalagem). Deve-se observar que o diário de P. Fontaine, em sua narrativa espiritual dos arranjos do jardim, não menciona Lenoir; se lhe dermos crédito, foi o famoso teórico J.-M. Morei — na época, septuagenário — quem lhe ditou a realização de tal projeto (Marie-Louise Biver, Pierre Fontaine, Premier architecte de l'Empereur, Paris: Plon, 1964, p. 34). 65. Gilles-Antoine Langlois, Folies, tivolis et attractions: Les Premiers pares de loisirs parisiens. Paris: Délégation à l'Action Artistique de la Ville de Paris, 1991.

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em 1804 — justificava a dissolução anunciada do Museu dos Monumentos Franceses em decorrência da preocupação em "restituir à religião os mausoléus que ela havia instituído, em restituir-lhes seu caráter primitivo, em restabelecê-los na sua harmonia natural com todas as lembranças que eles devem celebrar e sem retirá-los da admiração pública, além de associar sua presença às cerimônias fúnebres e ao espetáculo do culto divino". Com efeito, "sofremos", prossegue ele, "ao observar que eles são depositados em um recinto em que tudo lhes é estranho, em que parece estar extinto o pensamento que reconhece seu valor, em que nada os explica; ora, tendo-se tornado estéreis e silenciosos, eles limitam-se a transmitir uma impressão incerta à alma do espectador"." Essa decisão foi saudada, imediatamente, por D.-V. Denon, que condenava "o solo salgado e destrutivo do depósito dos Petits-Augustins".67 Apesar de ter sido adiado, em última instância, esse projeto de desmantelamento do museu dava testemunho de uma transformação das expectativas e das representações, relativamente à memória nacional.68 Após os Cem Dias, foi decidida a dissolução do museu. Um decreto real, promulgado em 24 de abril, restituía "os monumentos de toda a espécie que adornavam a igreja de Saint-Denis [...] à igreja do rei para retomarem seu lugar nesse recinto". Entretanto, no final de 1816, Lenoir dirigiu uma derradeira súplica ao rei, pela qual ele recomendava que fosse criado, "em Paris, um Museu de Arte Francesa de modo que os monumentos, sem procedência determinada, permanecessem no depósito dos Petits-Augustins e se procedesse à fabricação de provas ou de moldes de todas as estátuas dos reis que voltariam à abadia de Saint-Denis, além de outras peças destinadas a ser restituídas, sem deixarem de serem essenciais à cronologia tanto da história da França como de nossas artes". Assim, o desmantelamento levou Lenoir a formular o princípio de um 66. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCXXV. 67. Apud Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, op. cit., p. 260. 68. Sobre esses panteões nacionais, cf. o catálogo da XXI Exposição do Conselho da Europa, 1991, Emblèmes de la liberté: L'Image de la République dans l'art du XVIe siècle, Berna: Staempfli, 1991, n. 444, "Projet pour un monument national au suisse", 1845-1846, por J. G. Müller.

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museu de moldes, anunciando, de certa maneira, a solução adotada pelo Museu de Escultura Comparada de Viollet-le-Duc. No entanto, esse recurso à cópia era, na verdade, uma solução inevitável. Daí, a sugestão alternativa de "santificar" de certa maneira o ex-museu revolucionário "no interior do qual havia sido estabelecida uma capela com seu capelão que, cotidianamente, rezaria uma missa em memória das pessoas, cujos mausoléus se encontram no depósito dos Petits-Augustins. O público teria a possibilidade de participar desse ato. Todos os bustos, estátuas ou monumentos que fazem lembrar ideias, sem qualquer relação com as virtudes morais, seriam retirados e colocados em uma sala particular". "Essa instituição santa e religiosa", concluía Lenoir, "acalmaria as almas inquietas que, ao admirarem nosso Museu, não deixam de experimentar uma espécie de mal-estar ou descontentamento pelo fato de ser composto por monumentos destinados a homenagear nossos antepassados. Ao arriscar-me a fazer tal proposição, tudo seria levado em consideração, incluindo a moral, a utilidade e a economia; além disso, Paris disporia realmente de um Westminster mais rico, mais belo e mais completo que o da abadia de Londres. [...] Assim, o Museu da Capela Real da Rainha Margot — ou seja, Margarida de Valois (1553-1615), que desposou, em 1572, Henrique IV — seria substituída pelo Museu Real dos Monumentos Franceses."69 Era uma forma de tentar reunir o museu das personalidades ilustres com a capela dinástica, aproveitando-se do gosto gótico e do culto prestado ao bon roi Henri (ou seja, Henrique IV, de quem a rainha Margot havia sido a "primeira mulher"; de fato, ele é considerado o soberano mais promíscuo da história da França). No entanto, o caráter revolucionário do estabelecimento estava demasiado presente nos espíritos para permitir o sucesso de tal estratégia"; de qualquer modo, os cenotáfios pareciam 69. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCLXIII. 70. Com o decreto de 18 de dezembro de 1816, o lugar — daí em diante reservado à École des Beaux-Arts — começou a receber uma nova coleção, desta vez de moldes de obras antigas. Cf. Ch. Pinarei, "Origines de la collection des moulages d'antiques de l'École nationale des beaux-arts de Paris, aujourd'hui à Versailles", in Annie-France Laurens e Krzysztof Pomian (orgs.), L'Anticomanie: La Collection d'antiquités aux XVIII° XIX' siècles, Paris: EHEES, 1992, p. 307-325.

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reanimar seus cadáveres, negando o trabalho precedente de ocultação, além de restaurarem espetacularmente a evocação dos corpos defuntos no âmago de um espaço que acabava de ser (re)consagrado.

A encarnação dos antepassados Para Michelet, o museu remetia à tradição bíblica que evoca o vale de Josafá, perto de Jerusalém, no vale à frente do Templo — o lugar do Juízo Final — em que ricos e pobres estão à espera do juiz71: "Um número respeitável de mortos históricos, removidos de suas capelas pelo vigoroso apelo da Revolução, tinha se dirigido a este vale de Josafá. [...] A França deparava-se, finalmente, com ela mesma em sua evolução; de século em século e de homem em homem, de túmulo em túmulo, ela podia fazer, de algum modo, seu exame de consciência."72 Essa representação de uma nação sob a ascendência da ressurreição dos mortos e, sobretudo, pela "sentença" do historiador que assumia a função de juiz

71. Livro de Joel, 4, 1-13: "Vai acontecer naqueles dias, naquele tempo: vou mudar a sorte de Judá e Jerusalém. Reunirei todos os povos do mundo para fazê-los descer ao Vale de Josafá [nome do rei piedoso, significa também "o Senhor julga"; por isso, é chamado no v. 14 "Vale da Decisão"]. Ali abrirei um processo contra eles, por causa de Israel, meu povo e minha herança. [...] Por acaso quereis vingar-vos de mim? Se tirardes vingança contra mim, bem depressa farei recair a vingança sobre vossas cabeças! Vós que roubastes minha prata e levastes meu ouro, vós que carregastes para vossos templos o melhor dos meus tesouros. Vós que vendestes aos gregos a população de Judá e de Jerusalém, só para afastá-los de seu território. Pois bem, vou chamá-los de volta do lugar para onde vós os vendestes e farei recair vossos atos sobre vossas cabeças! Venderei vossos filhos e filhas pelas mãos dos filhos de Judá que hão de vendê-los aos sabeus, a uma nação longínqua, porque o Senhor falou! Proclamai isto entre as nações: Preparai uma guerra santa! Convocai os heróis! Que avancem, subam todos os guerreiros! De vossos arados fazei espadas e de vossas podadeiras, lanças. Que o covarde diga: Sou um herói!' Apressai-vos e vinde, todas as nações dos arredores e reuni-vos lá! O Senhor faz descer teus guerreiros. 'Que venham todas as nações e subam ao Vale de Josafá! Sim, ali eu me sentarei para julgar todas as nações dos arredores. Lançai a foice porque a colheita está madura; vinde, pisai as uvas porque o lagar está cheio; as tinas transbordam, pois grande é a sua malícia!' Multidões e multidões no Vale da Decisão! Sim, está próximo o dia do Senhor, no Vale da Decisão!" (Bíblia Sagrada, Tradução da CNBB, várias editoras, 2001.) 72. J. Michelet, Histoire de la Révolution Française, op. cit., p. 549. 151

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soberano, foi desenvolvida, particularmente, pela geração de 1830 ; ela não tinha a ver expressamente com a experiência do Museu dos Monumentos Franceses, tal como havia sido imaginada por seu conservador 74, na perspectiva de uma leitura quase esotérica." Ocorre que alguns dos quadros que na época tinham como tema esse Museu faziam aparecer as personagens históricas na realidade presente do estabelecimento, em uma metalepse 76 que implicava a confusão dos tempos.77 Nesse aspecto, Michelet — ao evocar em um Cours no Collège de France "esses mortos em seus túmulos, fazendo com que todos os tempos fossem contemporâneos"78 — continuava sendo o melhor intérprete desse desaparecimento do tempo, concebido como modalidade da historicidade revolucionária do museu. Os retratos constituíam seu primeiro instrumento, por conservarem as características "daqueles que já deixaram este mundo e cuja memória ainda gostamos de relembrar"." Antropologicamente, como é sublinhado por Susan Stewart, o retrato é um dos dispositivos

73. Sobre esse tema em Michelet, cf. Olivier Renaud, Michelet, la magistrature de L'histoire, Paris: Michalon, 1998. 74. "[...] esse passado havia sido o presente; se vocês são incapazes de tal constatação, se esses mortos não estão ressuscitados, então vocês não os conhecem". (François Guizot, Histoire de la civilisation en France, 1, Paris, 1856, p. 284). E, além dos célebres trechos sobre a ressurreição dos mortos, a famosa narrativa da visita por Michelet: "Foi aí, e em nenhum outro lugar, que experimentei a vivida impressão, pela primeira vez, da história. Com minha imaginação, eu enchia esses túmulos, eu sentia esses mortos através dos mármores e, certamente, com algum receio, eu penetrava na sala de abóbadas baixas em que repousavam Dagoberto, Chilperico e Fredegunda." ("A. M. Edgar Quinet", in P. Viallaneix (org.), Le Peuple, Paris, Garnier/Flammarion, 1974, p. 67-68). 75. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 520-522. 76. Gerard Genette, Métalepse: De la Figure à la fiction, Paris: Le Seuil, 2004. 77. Assim, o quadro de Charles-Marie Bouton — Vue de la salle du XVII siècle, ou La folie de Charles VI — exposto no Salon de 1817, Museu de Brou, Bourg-en-Bresse. Em 1821, Népomucène Lemercier escreve o livro La Démence de Charles VI. 78. Sobre esse tema, cf. Jacques Rancière, Les Noms de L'histoire: Estai de poétique du savoir, Paris: Le Seuil, 1992, p. 100 ss. — a respeito de Michelet, que revolucionou o tempo ao neutralizar a aparência do passado para criar uma comunidade entre vivos e mortos. 79. Musée, 1810, p. 79.

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mais seguros da memória e da coleção80; ele é a confirmação de uma identidade e tem sua origem — feminina, como defendem os contemporâneos inspirados no mito de Dibutade — no desejo de compensar a ausência do ser amado. Algumas observações incidentes do catálogo de Lenoir esboçavam, de maneira espetacular, essa suposta presença. "O túmulo de Clóvis — rei dos francos (465-511) — [...] mostra-nos esse rei deitado: em sua face, lê-se ainda a audácia e a intriga. 1...] No túmulo de Fredegunda, a lista de seus crimes aparece burilada em caracteres indeléveis; aliás, eles não foram desgastados pelo tempo. [...] O sorriso da sedução que se espelha nos lábios de Catarina de Médicis disfarça as pulsões criminosas de sua alma." Ou, a propósito de Abelardo: "Na cabeça inclinada desse sábio doutor, observa-se ainda a doçura amável que havia subjugado a alma de Heloísa."81 Uma verdadeira leitura do invisível — grande produtora de imagens — desenvolveu-se desse modo, fazendo apelo a uma fisiognomonia vulgarizada82 e, segundo parece, à retórica winckelmanniana da imperceptível carne das estátuas da Antiguidade. Dessa sensibilidade de época participaram outras museografias, tal como aquela, contemporânea, do Louvre, em que Morel d'Arleux utilizava a historiografia artística — o Traité des passions do pintor Charles Lebrun — para orientar a exposição de desenhos.83 Essa preocupação com o requinte das aparências e expressões remetia, de forma mais geral, a uma antropologia física dos cadáveres, cujas estátuas parecem dar uma imagem fiel. De acordo com Schlegel, "os Monumentos Franceses, cujo catálogo bastante detalhado foi 80. Susan Stewart, "Death and Life, in that Order, in the Works of Charles Willson Peale", in Lynne Cooke e Peter Wollen (org.), Visual Display: Culture beyond Appearances, Dia Center for the Arts, Seattle: Bay, 1995, p. 32. 81. Description..., edição do ano X, p. 9-10. Bárbara Maria Stafford, "Beauty of the Invisible: Winckelmann and the Aesthetics of Imperceptibility", in Zeitschrifi fiir Kunstgeschichte, 43 Bd., H. 1, 1980, p. 65-78. 82. Cf. Melissa Percival, The Appearance of Character: Phyriognomy and Facial Expression in Eighteenth-Century France, Londres: Maney, 1999. 83. L'an V Dessins des Grands Maîtres, 92" Exposition Cabinet des Dessins, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1988; Pascal Grienes, L'Usage muséographique des passions sous le Directoire et l'Empire", in Revue d'Esthétique, vol. 40, 2001, p. 98-103.

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publicado por Lenoir, têm no mínimo a vantagem de mostrar, com toda a clareza possível, o que não deve ser, de modo algum, arte e, em particular, escultura; e seria bastante difícil fazer uma ideia, sem dispor da prova à sua frente, das possibilidades da imaginação humana — capaz, inclusive, de avançar tão longe no equívoco —, conduzindo um grande número de artistas franceses a esculpir cadáveres escrupulosamente imitados, vestidos ou até mesmo nus, estendidos em suas urnas, ou então as senhoras e os homens que podemos ver neste 84 museu, com uma indumentária moderna, ajoelhados aqui ou ali.." De fato, a abordagem do museu estava focalizada na semelhança das efígies mortuárias e das estátuas que fazem o efeito de simulacros dos corpos defuntos." Eis o que é testemunhado pelas descrições de Lenoir a respeito das personagens de acordo com suas estátuas: por exemplo, a de Du Guesclin, "de pequena estatura, mas compacto; ombros amplos, braços repletos de nervuras; pequenos olhos, mas vivos e fogosos; nariz curto e avantajado, além de lábios espessos"." Os desenhos de SaintDenis — que Lenoir não deixa de mostrar aos visitantes de prestígio duplicavam o interesse, nunca desmentido, pelo corpo, cabelos, barba [...] das "múmias"." Tais dissertações aprofundadas tinham a ver com um gosto da época", testemunhado por um grande número de percursos turísticos que, além do depósito dos Petits-Augustins, incluíam a visita das Catacumbas, do Necrotério, da cripta do Panthéon, e até mesmo uma peregrinação aos lugares dos eventos ocorridos, em Paris, durante os períodos de Terror." Desse modo, o museu fornecia um excelente exemplo 84. Friedrich Schlegel, Descriptions de tableaux, Paris: ENSBA, 2001, p. 182. 85. Hans Belting, Pour une Anthropologie des images , Paris: Gallimard, 2004. 86. A personagem de Du Guesclin é bastante popular: desde o Salon de 1777 (Brenet, Durameau) até o de 1806 (Vafflard), o herói foi objeto de importantes telas, gravuras, etc. Cf. Marc Sandoz, Nicolas-Guy Brenet (1728-1792), Paris: Éditart-Quatre Chemins, 1979. 87. Cf. o testemunho de James Forbes, que, no decorrer de suas numerosas visitas ao museu, acabou por travar amizade com a família Lenoir (Letters from France Written in the Years 1803 and 1804, Londres: J. White, 1806, 2 vols., I, p. 404). 88. Sobre as escavações da época, cf. Annette Laming-Emperaire, Originer de l'archéologie préhistorique en France, Paris: Picard, 1964, p. 91-122. 89. William Roots representa os fantasmas entre os túmulos do Panthéon para divertir

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do triângulo homem-corpo-imagem do qual Hans Belting propôs uma leitura antropológica e que, no caso concreto, vai da divisa e do retrato ao cadáver esculpido, à "múmia" desenhada ou narrada de acordo com as exumações da abadia de Saint-Denis; aliás, Lenoir afirmou ter sido testemunha dessa operação. Nesse museu, triunfavam, em suma, todas as formas de representação que se inspiram da máscara em que a morte garante a imagem. Os historiadores da geração seguinte demonstraram, em compensação, como as imagens podem induzir em erro todo aquele que vier a depositar nelas uma confiança demasiado literal: a estátua não representa fielmente o cadáver, objeta Michelet, porque ela é, por si só, uma figura que deve ser entendida em conformidade com uma gramática das representaçóes.90 Contrariamente aos aprofundamentos dedicados por Lenoir à iconografia parisiense a respeito do primeiro bispo dessa cidade, são Dionísio [saint Denis], que o conduziam a "negar sua existência", arguindo da "semelhança que existe entre a alegoria antiga de Baco e a lenda de nosso são Dionísio" — "a tal ponto que, para a cabeça deste santo, há também um culto particular semelhante ao que era praticado pelos antigos em relação à cabeça de Baco" —, Michelet tirava a conclusão de que "Hilduíno apresenta, talvez, aqui uma história popular sugerida, sem dúvida, pela observação das estátuas que representavam o martírio de são Dionísio: em todas elas, o santo carrega a cabeça nas mãos; ora, tal representação indicava simplesmente a degolação. É provável que a visão de semelhante estátua terá fornecido a Hilduíno o fundo de sua lenda e que, sem procurar a coisa significada sob o signo, ele terá apresentado como um fato autêntico o que lhe era mostrado por essa representação figurada". Com a ruptura entre o signo e o significado, abria-se a possibilidade de uma leitura crítica das imagens, em sua profundidade histórica. os filhos. Além disso, na década de 1820, os restos do depósito dos Petits-Augustins serão associados aos do cemitério de Père-Lachaise e das Catacumbas; cf. Henry A. Ogle (org.), Paris in 18Ie4 or a Tour in France, Tyne, New Castle-on-Tyne, 1909, p. 60. Desde 1791, o arquiteto Vaudoyer previa que o Panthéon seria visitado somente pelos estrangeiros; cf. Marc K. Deming, "Le Panthéon révolutionnaire", in Le Panthéon Symbole des Révolutions, Paris: Picard, 1989, p. 147 (Catálogo da exposição). 90. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 110.

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4 O TRABALHO DO LUTO Em Ie830, os passantes ainda podiam vero Torniquete pintado na tabuleta de um comércio de vinhos; no entanto, mais tarde, a casa foi demolida. [ ...]construçõe Infelizmente! As antigas de Paris desaparecem com urna rapidez assustadora. Em diferentes trechos desta obra, algumas ainda estão de pé: seja o tipo de moradia da Idade Média, tal como a casa descrita no começo de Chat-qui-pelote e da qual ainda subristem um ou dois modelor; seja a casa habitada pelo juiz Popinot, na rue du Fouarre, espécime da velha burguesia; aqui, os vestígios da casa de Fulbert;• ali, toda a bacia do rio Sena, durante o reinado de Carlos IX Como novo Old Mortality — romance em que o idoso de Walter Scott reanimava os túmulor — por que motivo o historiador da sociedade francesa não salvaguardaria essas curioras expressões do passado? Balzac, Scènes de la vie parisienne: Splendeurs et misères des courtisanes, 4: Les Petits Bourgeois, cap. 1, "Le Paris qui s'en va", 1843.

A narrativa de Augustin Thierry, que relatava sua descoberta, no início de 1820, da grande coleção dos historiadores originais da França e das Gálias (a de Dom Bouquet, 1738-1767), é emblemática do despertar de uma vocação para a leitura de antigos trabalhos beneditinos que, havia sessenta anos, tinham sido votados ao esquecimento. Mesmo que ela tenha sido encenada, posteriormente, tal enxerto do historiador no antiquário era marcado pela emoção de um desapossamento e pela vontade de restituição: "À medida que eu avançava nessa leitura", lê-se no prefácio de Dix Ans d'études historiques, "a viva impressão do prazer que me causava a descrição contemporânea dos homens e das coisas de nossa história antiga foi seguida por um surdo movimento de cólera contra os escritores modernos que, longe de reproduzirem fielmente esse espetáculo, haviam disfarçado os fatos, desnaturalizado os caracteres..." Se a constatação parece óbvia, a elaboração de uma nova relação de fidelidade com o passado exige, todavia, relações inéditas entre visível 157

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e invisível.' O projeto de história nova tem dificuldade para desligarse de um gênero retórico convencional, da influência de antiquários grudados aos detalhes, enfim, de uma exigência de pitoresco pronto a aceitar citações em francês antigo para fornecer a "fisionomia do tempo" aos leitores. Daí em diante, o desafio do historiador consistia em "descrever os homens de outrora com a fisionomia do tempo em que eles tinham vivido, mas ele próprio falando a linguagem de (seu) tempo". E o depoimento de Thierry prossegue: "Nesta tentativa de conciliação entre métodos tão diversos, eu ficava incessantemente hesitante entre dois obstáculos. Eu caminhava entre dois perigos: o de atribuir demasiada importância à regularidade clássica, perdendo assim a força da cor local e da verdade pitoresca; e o outro, ainda mais grave, de obstruir minha narração com uma infinidade de fatos insignificantes, talvez poéticos, mas incoerentes e desprovidos de seriedade e até mesmo de significação para um leitor do século XIX."' Após uma pesquisa obstinada, Thierry — um dos primeiros historiadores a trabalhar a partir de fontes originais — teve graves problemas de vista. Entretanto, essa nova obscuridade ou, antes, essa cegueira do historiador diante dos textos, deixou-lhe (somente durante um instante) a possibilidade de ler os monumentos graças a uma espécie de talento multiplicado. No decorrer de uma viagem na Provence, em 1825 — na companhia do historiador, linguista, crítico e erudito Ch.-Cl. Fauriel —, ele escreveu: "Eu dispunha de uma visão apenas suficiente para olhar à minha frente, mas na presença dos edifícios ou das ruínas, cuja época deveria ser reconhecida e cujo estilo deveria ser determinado, não sei que tipo de sentido interno vinha prestar ajuda aos meus olhos. Animado pelo que eu designaria, de bom grado, por 1. Sobre o historiador, cf. Lionel Gossman, "Augustin Thierry and Liberal Historiography", in Between History and Literature, Cambridge: Harvard University, 1990, p. 83-151. 2. Lembremos que a cegueira do cientista é, aqui, o equivalente do imposto do sangue, porque, neste prefácio a seus "dez anos de estudos históricos", datado de 10 de novembro de 1834, Thierry afirmava o seguinte: "Se, como tenho prazer em acreditar, o interesse pela ciência encontra-se entre os grandes interesses nacionais, dei ao meu país tudo o que lhe dá o soldado mutilado no campo de batalha." (Augustin Thierry, Lettres sur l'histoire de France: Dix Ans d'études historiques, Paris: Garnier frères, 1866, p. 310.)

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paixão histórica, eu conseguia enxergar mais longe e de forma mais nítida."3 Ao olhar instruído, o monumento ou as ruínas oferecem o livro aberto da história. Uma espécie de imediatidade da leitura, resultado de longos esforços preliminares, culminava em uma "história que se absorve pelos olhos'', segundo a esplêndida fórmula de Michelet. Com efeito, Thierry adotou plenamente a convicção de que os monumentos são os historiadores das respectivas nações. "Para o verdadeiro filósofo, as Artes são os historiadores populares de um grande número de fatos, opiniões e tradições que compõem a existência moral das nações. A influência dos monumentos sobre o espírito, a memória e o entendimento procede, frequentemente, não tanto de sua própria perfeição, mas de sua ancianidade, da autenticidade de seu uso e de sua publicidade. Esses livros originais, sempre abertos à curiosidade pública, levam sua instrução para fora, comunicando-a sem reservas ao sentimento que os consulta sem esforço."5 Para adquirir seu pleno valor, essa afirmação deve superar, em primeiro lugar, a ruptura revolucionária. As polêmicas da década de 1830 sobre a pertinência de uma conservação dos monumentos inscreviam-se neste contexto: preservar os castelos e as igrejas era reconhecer seus valores tradicionais, negando de facto aos compradores a plena capacidade para servir-se ou usufruir desses monumentos. Eis o que era afirmado explicitamente por Victor Hugo: "Quaisquer que sejam os direitos da propriedade, a destruição de um edifício histórico e monumental não deve ser permitida a esses ignóbeis especuladores [...], tão imbecis que eles nem compreendem que são bárbaros."6 Inversamente, o panfletário e erudito, Paul-Louis Courier desejava o desmantelamento do parque de Chambord pela bande 3. Ibidem: "Cego, sofrendo sem esperança e quase sem tréguas, posso prestar este testemunho que, feito por mim, não suscitará qualquer suspeita: neste mundo, a dedicação à ciência é preferível às fruições materiais, à fortuna e à própria saúde." 4. De acordo com o título do artigo de Pierre Malandain, "L'histoire qui se prend par les yeux...': Michelet et Rubens", in Annales ESC, n. 29, 1974, 2, p. 349 ss. 5. Augustin Thierry, op. cit., p. 47. 6. Victor Hugo, OEuvres complètes, I: Philosophie, 1819-1834; Eugène Renduel (org.), Littérature et philosophie mêlées , mar. 1834, p. 73.

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noire 7 para revender os terrenos aos camponeses. "Os monumentos conservam-se nos lugares, tais como Balbek, Palmira e sob as cinzas do Vesúvio, em que os homens pereceram; mas, alhures, ao renovar tudo, a indústria declara-lhes uma guerra sem tréguas [...] . O que aconteceria com o mundo se cada época respeitasse, reverenciasse e consagrasse, por critério de ancianidade, todas as obras dos tempos passados, sem ter a ousadia de tocar, destruir ou remover seja lá o que for? [...] Será pelas lembranças que esses castelos e esses claustros góticos são respeitáveis? À nossa volta, que ideia pode ser feita de monumentos tais como Chenonceau, Le Plessis-lês-Tours, Blois, Amboise, Marmoutiers? Evocação de vergonhosas devassidões, infamantes traições, assassinatos, massacres, suplícios, torturas, execráveis crimes, luxo e luxúria, além da crassa ignorância de párocos e monges, para não falar do que ainda é pior: a hipocrisia. Deus disse: 'Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra', ou seja, cultivai a terra com esmero — com efeito, sem esse cuidado, como será possível povoá-la? E compartilhai a terra — mas sem essa partilha, como será possível cultivá-la? Ora, a bande noire empenha-se, precisamente, a proceder a essa partilha de comum acordo, amistosamente, sem disputas, o que é, afinal de contas, uma boa e santa obra. Esses destruidores de terras trazem um grande benefício para a terra, dividem o trabalho, ajudam na produção e, na execução de tais ações, sua contribuição para a indústria e para a agricultura é superior a tudo o que possa ter sido empreendido por qualquer ministro, administrador regional ou agência de fomento sob a proteção desse administrador."8 Nesse sentido, o verdadeiro romance do monumento histórico desses anos era Les Paysans de Balzac, e não tanto Notre-Dame de Paris. Balzac e Victor Hugo vituperavam os novos compradores, burgueses usurários que revendiam as grandes propriedades em lotes aos camponeses, enquanto P.-L. Courier e o Michelet de Le Peuple defendiam a regeneração do mundo rural pela pequena propriedade em decorrência da liquidação dos grandes domínios da aristocracia. 7. Literalmente, "bando negro". Na época, tais grupos obstinavam-se a pilhar as grandes propriedades. [N.T.] 8. P.-L. Courier, V' lettre au rédacteur du Censeur, [enviada de] Véretz, em 12 de novembro de 1819, in Lettres au redacteur du Censeur, Paris: Comte, 1820. 160

Uma consciência literária A eficácia da literatura na patrimonialização é bem conhecida. Desde a origem, a literatura artística identificou-se com a erudição religiosa e cívica, associada à glória de sua localidade e preocupada em justificar sua preeminência em relação com a reputação de outras cidades e regiões.' < Mais tarde, a literatura foi um "ator do surgimento da sensibilidade ao patrimônio", segundo a fórmula de Jacques le Goff:10 Desse ponto de vista, sua análise deveria considerar a evolução de alguns gêneros tais como o pitoresco — e, de forma mais abrangente, as vicissitudes da posição e do papel do escritor na sociedade. Constatação tanto mais verdadeira que a emergência, no âmago da sociedade francesa, de um depósito de valores específicos, tal como o "patrimônio", é contemporânea da aparição de um novo poder espiritual laico, ou seja, o do escritor. Assim, seria possível explicar que, na França, a história do patrimônio tenha sido profundamente alimentada pela literatura, sem que a eminência da sacralidade literária tenha sido, algum dia, ameaçada pelo predomínio das belas-artes. Nessa elaboração complexa, os decênios de 1820-1840 são certamente centrais, ao construírem, por exemplo, a imagem de Victor Hugo como poeta dos monumentos históricos — uma reputação fielmente sublinhada, em seguida, pela história da arte. Na importante obra Histoire de l'art depuis les premiers temps chrétiens jusqu'à nos jours, organizada por André Michel, em 1925, Victor Hugo aparece no início do tomo VIII, dedicado à arquitetura na França: de acordo com o comentário, Hugo — posicionado entre o barão Taylor", os historiadores, Augustin Thierry e François Guizot, por um lado, e, por outro, Chateaubriand

9. Cf. G. Previtali, Le Goût des primitifs, Paris: Gerard Monfort, 1994. 10. Jacques Le Goff, apud P. Nora, Science et conscience du patrimoine, Paris: Fayard, 1998, p. 121. 11. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3." ed., São Paulo: Unesp/Estação Liberdade, 2006, p. 146, nota 50. [N.T.] 161

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ou Montalembert 12 —, no prefácio de 1831 de Notre-Dame de Paris, escreveu "um hino à arquitetura gótica". O poeta passava por ser o meiotermo, se é que podemos nos exprimir assim, entre o campo católico e legitimista e o campo liberal; entre os historiadores ou os arqueólogos e os letrados. Assim, em suas obras, o escritor romântico sancionava a emergência de novas curiosidades, vulgarizava os conhecimentos eruditos, exercia influência sobre os interesses de ordem científica e, finalmente, contribuía para o repertório das fontes da história." Basta comparar a geração literária anterior a 1789 com aquela posterior a essa data para mostrar a novidade patrimonial do século XIX. Eis um dos textos mais famosos que, no Salon de 1767, Diderot dedicou aos vestígios do passado: "Oh, as belas, as sublimes ruínas! [...] Quanto efeito! Quanta grandiosidade! Quanta nobreza! Digam-me quem é seu proprietário a fim de que eu possa sutilizá-las, ou seja, o único recurso que resta a um indigente para se apropriar de algo. Infelizmente, talvez, elas nem deem qualquer felicidade a seu rico e estúpido dono; eu, pelo contrário, seria tão feliz em possuí-las! Proprietário indolente, esposo obcecado! Será que te prejudico ao apropriar-me dos encantos que ignoras ou menosprezas?" 14 Eis, por contraste, um dos trechos mais citados de Victor Hugo: "Se esta situação se mantiver durante algum tempo, em breve, o único monumento nacional que vai sobrar à França será a obra Voyages pittoresques et romantiques dans l'ancienne France, em que o lápis de Taylor e a pluma de Charles Nodier rivalizam em graciosidade, imaginação e poesia. [...] Chegou a hora de impedir que seja quem for se mantenha em silêncio. Impõe-se que um grito universal convoque, finalmente, a nova França a prestar socorro à antiga. Todos os gêneros de profanação, degradação e estragos têm ameaçado, simultaneamente, o pouco que

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nos resta dos admiráveis monumentos da Idade Média em que ficou impregnada a antiga glória nacional; eles associam a memória dos reis à tradição do povo. [...] Em um edifício, existem dois aspectos: seu uso e sua beleza; o primeiro pertence ao proprietário, enquanto sua beleza cabe de direito a todo o mundo; portanto, ao destruí-lo, desconsidera-se tal direito."" O contraste entre Diderot e Victor Hugo é instrutivo em vários aspectos: começando pela diferença dos objetos, já que se trata de quadro de ruínas no primeiro caso, enquanto no segundo de ruínas bem reais. Certamente, o circuito entre a fabrique representada em pintura e a fabrique real, ou seja, aquela que é erguida pelos jardineiros, marcou a segunda metade do século XVIII, como vimos mais acima; assim, nesta transferência das ruínas, somos tentados a ver um processo no mínimo idêntico. Victor Hugo, porém, lançava um apelo para reparar essas ruínas e interromper essa degradação, em nome do respeito pelo monumento original; nada disso, com toda a evidência, em Diderot, para quem o desmantelamento era respeitável por ser digno de interesse em si mesmo, além de pretexto a um desenvolvimento filosófico. Esse é o sentido de outro trecho do Salon de 1767: "As ruínas despertam em mim grandes ideias. Tudo se aniquila, tudo desaparece, tudo passa. Apenas o mundo subsiste. Apenas o tempo perdura. Como este mundo é velho! Faço meu caminho entre duas eternidades. Ao observar, de qualquer ponto, os objetos à minha volta, eles me anunciam um fim e me resignam ao fim que me espera.16 A diferença é, também, impressionante em relação à atenção prestada à propriedade e aos proprietários: Diderot dava testemunho de um tom de época naturalmente hostil à posse privada de objetos, seja por gosto ou por cultura. A equivalência entre propriedade e esterilidade

12. Charles Forbes, conde de Montalembert (1810-1870), escritor, político e polemista francês. Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 134. [N.T.] 13. Jean Mallion, Victor Hugo et l'art architectural, Grenoble: Imprimerie Allier, 1962. De forma mais abrangente, cf. as reflexões de Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, Paris: Gallimard, 1977, e seu prefácio para o livro de Marc Bloch, Apologie pour l'histoire ou Métier d'historien, Paris: A. Collin, 1997. 14. Salon de 1767, XI, apud Diderot sur L'art, Paris: Hermann, 1978, p. 170.

15. V. Hugo, Guerre aux démolisseurs, versão de 1825, nova edição de Patrice Béghain, Guerre aux démolisseurs! Hugo, Proust, Barrès: Un Combat pour le patrimoine, Paris: Paroles d'Aube, 1997, p. 45-47. 16. Salon de 1767, XI, op. cit., p. 170. Mais tarde, Alois Riegl (cf. cap. 5) designará por valor de ancianidade o que o século XVIII havia qualificado, naturalmente, como espetáculo sublime: eis porque ambos estão afastados, por razões diversas, da definição canônica do monumento histórico.

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ou, no mínimo, tédio, era comum em numerosas críticas das Luzes: essa é, aliás, a lição de Candide quando, na companhia de Martin, o herói chega a Veneza para visitar o grande senador Pococurante no palácio de La Brenta e usufruir das obras de Rafael, da música e dos livros desse faustoso personagem. No entanto, esse bibliófilo que, tendo lido todos os livros, os desdenhava, será verdadeiramente um homem superior? Do mesmo modo, contra os proprietários enfarados com suas posses, Rousseau defendia, em Émile, o despojamento do amador: "Eu teria renunciado a uma galeria e a uma biblioteca, sobretudo, se eu apreciasse a leitura e tivesse um conhecimento aprofundado de pintura." No final do século, o Dictionnaire des beaux-arts de WateletLevesque fornecia a vulgata dessa desconfiança em relação aos fazedores de gabinetes, deplorando a confiscação de sua fruição entre as mãos de ignorantes ou presunçosos, além de reclamar sua abertura ao público. Victor Hugo é tributário, de algum modo, das condenações banais do filistinismo: mas o "roubo" evocado por Diderot havia deixado de ser atual porque, após 1789, desaparecera certa ingenuidade intelectual. A socialização reivindicada daí em diante foi marcada pela experiência das reviravoltas introduzidas pelas novas noções de nacionalização e de vandalismo. Assim, Chateaubriand havia estabelecido a distinção entre os estragos do tempo e a decadência dos homens para condenar, de forma mais argumentada, "a criminalidade histórica", se undo a expressão de Francesco Orlando ao falar dos monumentos.18 O apelo ao interesse geral para legitimar eventuais expropriações figurava, por conseguinte, entre as novidades da intervenção hugoliana: "Quando, cotidianamente, o interesse geral faz ouvir sua voz, a lei impõe o silêncio aos uivos do interesse privado. A propriedade particular foi, frequentemente, e continua sendo, em todos os momentos, modificada no sentido da comunidade social. Compra-se, à força, um terreno para transformá-lo em uma praça; uma casa, para se tornar um hospício. Um dia, o monumento privado será comprado."

O novo aspecto da situação traduzia-se, finalmente, pelo apelo ao espaço público: enquanto Diderot dirigia-se à Europa das Luzes por via da correspondência de Grimm, Victor Hugo tinha a intenção de empreender uma verdadeira campanha de opinião, assim como é manifestado pelo título de seu artigo. Ele reivindicava, por isso mesmo, o status de porta-voz que, em caso de necessidade, podia ser requisitado por seu campo. "Oh Hugo! Empresta-me tua indignação inflamada", escreve, com humor, Mérimée a Ludovic Vitet ao narrar-lhe as atrocidades cometidas na abadia de Saint-Savin — o mais importante conjunto de pinturas murais de estilo românico conservado na França.'° O monumento histórico tornava-se um programa de 20 escrita e ao mesmo tempo um objeto de apropriação pelo escritor. Em segundo plano, surgiam as especulações filosóficas sobre as ruínas marcadas pela temática do sublime, em primeiro lugar, e em seguida pela literatura artística; a mutação do pitoresco era seu elemento essencial, que culminou em Ballades de 1826 e em Orientales de 1829, livros que indicavam a introdução da cor exótica e, depois, medieval na poesia francesa. A glória de Victor Hugo devia-se ao fato de ter reconhecido ao novo patrimônio francês — ou seja, a arte da Idade Média, com a qual ele se identificava inteiramente — uma modernidade e uma atualidade que, posteriormente, nenhum outro artista foi capaz de lhe conferir em tal grau, nem dessa forma.21 Com os versos sobre o Arco de Triunfo de 1837, as igrejas góticas deixaram de ser as únicas a confundir-se com a natureza no âmago de civilizações soterradas. Por sua vez, o poema "Passé" de 1835, do livro Les Voix intérieures, é dedicado a determinado "grande castelo do tempo de Luís XIII", o que correspondia a uma moda da época de Luís Filipe (período da Monarquia de Julho, 1830-1848), ilustrada no mesmo momento pelos escritores, Théophile

17. Rousseau, Émile , Livro IV, Paris: Garnier-Flammarion, 1990, p. 455. 18. Francesco Orlando, Gli oggetti desueti nelle immagini della letteratura, Turim: Einaudi, 1993, p. 306.

19. Poitiers, em 15 de julho de 1840, in Maurice Parturier (org.), Lemes de Mérimée à Ludovic Vitet, Paris: Plon, 1934, p. 14. 20. Cf. Ségolène Le Men, La Cathédrale illustrée de Hugo à Monet, Paris: CNRS, 1998, "La cathédrale et le sacre de l'auteur", p. 24-25. 21. Nicole Savy e Guy Rosa (orgs.), L'OEil de Victor Hugo, Paris: Cendres/Musée d'Orsay, 2004 (Atas do Colóquio, 19 a 21 de setembro de 2002, Paris, Musée d'Orsay).

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Gauthier e Gérard de Nerval.22 Em compensação, o Renascimento continuava sendo estigmatizado; além disso, Montalembert, na carta enviada a Victor Hugo, publicada na Revue des Deux-Mondes de 1º de março de 1833, criticava essa primeira modernidade para enaltecer ainda mais a arte religiosa da Idade Média." Victor Hugo inaugurou a figura do escritor que inventa o patrimônio, porta-voz dos monumentos, em relação com uma religião estética que se erguia vigorosamente contra o prosaísmo burguês e contra todas as formas de destruição da beleza. No entanto, a ideia de um patrimônio assumia, nesse contexto, a forma de uma moldura, de uma encadernação — ainda de acordo com a afirmação de Victor Hugo — destinada a valorizar a história. Ao participar da inauguração, em 10 de junho de 1837, do museu de todas as glórias da França, seu olhar dava a i mpressão de atravessar o castelo para considerar, de saída, os anais do país: "Ao livro magnífico, cujo título é a história da França, conferiu-se a magnificente encadernação que é designada por Versalhes"." Assim, Versalhes ilustrava como o patrimônio é "enquadramento" da história: nesse sentido, conservar os monumentos consiste não tanto em conservar a história — que será lida sempre pelos historiadores —, mas homenageá-la ao preservar sua moldura.

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No âmago da genealogia oficial do "culto moderno aos monumentos", Guizot parece ter sido vítima de um esquecimento, em benefício de

um pequeno grupo pioneiro do qual ele não faz parte, assim como de organismos instalados por sua iniciativa sem que ele tivesse assumido qualquer função direta. Assim, Antonin Proust evocaria, em 1887, apenas cinco antecessores: Alexandre Lenoir, talvez, na época, no auge de sua reputação; os indispensáveis gênios da causa, Chateaubriand e Victor Hugo; por último, Augustin Thierry e Prosper Mérimée. Destes dois últimos personagens, o primeiro havia fornecido a legitimidade científica do empreendimento: "Nestes livros (de pedra), encontra-se o que Augustin de Thierry designa por alma da história: e aprendemos a lê-los por ele e pelos grandes fundadores da escola histórica do século XIX." Por sua vez, o segundo foi considerado o fundador da administração ao propor, após a Revolução de Fevereiro", "a reunião de todos os serviços que têm a ver com as artes"26. Este eclipse de Guizot não foi o resultado exclusivo da condenação do político; sua reputação de "conservador" padecia de um descrédito associado à sua insuficiente "francidade", por ser visto, na época, como discípulo do estadista prussiano Friedrich Ancillon e admirador do historiador britânico E. Gibbon. Ele não confessava o entusiasmo patriótico julgado apropriado — com o gosto romântico pela Idade Média — ao compromisso patrimonial. A altivez afetada de seu livro Cours d'histoire moderne manifestava uma carência afetiva, assim como aconteceu com um de seus projetos — abrir, em Versalhes, um museu do "Ideólogo" —, que o senso político do soberano transformou em espetáculo propício a influenciar a opinião pública, à semelhança — de acordo com a expressão forjada pelo historiador norte-americano dos 27 usos da história Stanley Mellon — da "filosofia da magnanimidade".

22. V. Hugo, OEuvres poétiques, Paris: Gallimard/La Pléiade, I, p. 970-971. Cf. ainda "La Statue" (1837), in OEuvres poétiques — Les Rayons et les Ombres, p. 1105-1108. Sobre esse tema, cf. os comentários de Francesco Orlando, op. cit., p. 313.

25. Segunda revolução francesa do século XIX, que se desenrolou em Paris de 23 a 25 de fevereiro de 1848. Ao imporem a abdicação do rei Luís Filipe, os revolucionários, apoiados pelos liberais e republicanos, criaram a Segunda República (1848-1852). [N.T.]

23. Paul Bénichou, Les Mages romantiques, Paris: Gallimard, 1989, p. 194.

26. Antonin, Rapport fait au nom de la Commission chargée d'examiner le projet de loi..., Paris, 1887, Chambre des Députés, n. 1501; e Recueil de Pièces relatives à la conservation der monuments (coletânea de obras diversas), Paris: Bibliothèque Nationale, 1849-1888, 18 peças, fol. L 212, 212, peça n. 13.

Os desafios a enfrentar por uma geração

24. V. Hugo, Choses voes, 1830-Ie846, Paris: Gallimard, 1972, p. 153-154. Eis seu comentário: "Aprovo o que o rei Luís Filipe fez em Versalhes. A realização dessa obra demonstra que ele foi grande como rei e imparcial como filósofo; que transformou um monumento monárquico em um monumento nacional; que conferiu uma ideia imensa ao passado, tendo colocado 1789 diante de 1688, o imperador no lugar do rei, Napoleão no lugar de Luís XIV." 166

27. Um "grande museu etnográfico no qual seriam depositados os monumentos e os vestígios dos costumes, usos, vida civil e na guerra, em primeiro lugar, da França e também de todas as nações do mundo" (F. Guizot, Mémoires pour servir à l'histoire de 167

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A fórmula de Michelet — em sua dedicatória ao inspirador da república laica, E. Quinet, que serve de prefácio ao livro Le Peuple — era, neste caso, reveladora: a Guizot, ele atribuía a análise, enquanto Thierry encarnava a narração, e ele próprio a ressurreição. No entanto, ao refletir o descrédito generalizado que afetou o ministro de forma duradoura, sua exclusão não deixava de dar testemunho de um postulado de unanimidade nacional em matéria de patrimônio: parecia indecente que a iniciativa e a responsabilidade pela proteção dos monumentos fossem atribuídas a um estadista. Em compensação, a evocação de uma responsabilidade coletiva — o voto das Assembleias Revolucionárias ou a reivindicação dos espíritos cultos sob a Restauração (1814-1830) — permitia sugerir uma tomada de consciência, pela comunidade nacional, de seu passado. O discurso patrimonial empenhava-se, de maneira geral, a esboçar as etapas de uma dedicação — desde a coragem demonstrada no combate contra os vândalos até a abnegação do cientista — e limitava-se a atribuir um interesse de erudição à criação de uma administração. Neste caso, a evocação de Guizot servia apenas para negar-lhe, de forma mais nítida, qualquer originalidade, até mesmo qualquer responsabilidade efetiva: ele passava por ser o intérprete, com toda a certeza experiente, de um progresso da opinião pública associado ao novo espírito das artes e da história; seu grande mérito consistiu em ter conseguido aplicar-lhe a conveniente sanção governamental. Tal interpretação adotava grandemente a filosofia dos próprios doutrinários.28 Em compensação, a história política clássica da Monarquia de Julho assimilava frequentemente sua ação patrimonial a um artifício destinado a desviar as energias da crítica e do combate contra a Câmara mon temps, 8 vols., Paris, 1858-1867, t. II, p. 69). Charles-Henri Pouthas havia sublinhado bastante o vínculo entre os Ideõlogos e Guizot em Guizot pendant la révolution, Paris: Plon, 1923; e em La jeunesse de Guizot, Paris: Alcan, 1936. Cf. ainda Stanley Mellon, The Political Uses of History : A Study of Historians in the French Restoration, Stanford: Stanford University Press, 1958; e, neste caso, "The July Monarchy and the Napoleonic Myth", in Yale French Studies, vol. 26, 1960, p. 70-78. 28. No original, Doctrinnaires, denominação atribuída, sob a Restauração, ao pequeno grupo de monarquistas franceses que esperavam reconciliar a monarquia com a Revolução, assim como a autoridade com a liberdade. [N.T.] 168

dos Deputados; de acordo com determinada tradição, tais medidas eram consideradas como um plano maquiavélico para enfraquecer a classe intelectual. Atualmente, para alguns pesquisadores, a questão do do patrimônio em Guizot tornou-se "a vertente oposta da farsa nacional 'enriqueçam'"29; ela seria a "herança fictícia dos deserdados", o "álibi econômico à propriedade privada". A tal ponto que a denúncia dessa particular "conivência entre o capitalismo e o patrimônio"" forneceu a derradeira condenação do regime. Para a ideologia oposta — que identificava o burguês conquistador com o precursor da decadência — Guizot passava por ser, ao contrário, o primeiro gestor do declínio espiritual do Ocidente?' Para além de tais processos peremptórios, as análises da obra "patrimonial" de Guizot interessaram-se, sobretudo, pelo projeto de 1833, que advogava uma "publicação geral de todos os materiais i mportantes, e ainda inéditos, sobre a história da nossa pátria", assim como pela fundação da Sociedade da História da França e pelo Comitê dos Trabalhos Históricos. Aliás, ninguém contesta a importância desse legado; sobretudo, "essa instituição historiográfica é o aspecto que, acima de qualquer outro, mostra a indissociabilidade dos vínculos 32 entre o estadista e o historiador". Assim, a iniciativa arqueológica foi relegada para uma quase obscuridade em relação ao trabalho arquivístico; acertadamente, se levarmos em consideração que, nessa matéria, o interesse de Guizot parece ser, em uma primeira abordagem, singularmente menos notável. Todavia, o deslocamento da curiosidade para um episódio, mencionado superficialmente, da carreira política e da reflexão sobre a história do "senhor Guizot" pode revelar-se fecundo: 29. Pierre-Marc de Biasi, "Système et déviances de la collection à l'époque romantique", in Romantisme, n. 27, 1980, p. 77-93. , Paris-Lyon: J. Vrin, 30. Bernard Deloche, Museologica: Contradictions et logique du musée 1985. Les 31. De acordo com a afirmação do narrador de Jacques Laurent em seu romance Sous-Ensembles flous , Paris: Grasset, 1981, p. 44. 32. Charles-Olivier Carbonell, "Guizot, homme d'État, et le mouvement historiographique français du XIX' siècle", in Actes du Colloque François Guizot, Paris: Société de I'Histoire du Protestantisme Français, 1976, p. 221 (Atas do colóquio, Paris, 22-25 de outubro de 1974).

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a contrapelo de uma comemoração do primeiro artesão do patrimônio, trata-se de reconhecer, neste livro, a unidade de um projeto que inspirou as medidas adotadas e os discursos proferidos, sem reduzi-lo, imediatamente, à preocupação política. A Restauração foi, por excelência, o período em que, de acordo com a constatação de Chateaubriand no prefácio de Études historiques de 1831, "tudo — polêmica, teatro, romance, poesia — assume a forma da história". Tendo chegado à mesma conclusão, Guizot tirou partido dessa situação favorável para lançar a Collection de mémoires relatifs à l'histoire de France (1823), cuja apresentação afirmava o seguinte: "Os monumentos originais de nossa antiga história foram até aqui o patrimônio exclusivo dos cientistas; tendo sido mantido a distância, o público só teve a oportunidade de conhecer a França e sua vida, dos séculos V ao XIII, por intermédio das obras de escritores modernos." Essa moda estendeu-se à custa das outras encarnações do universal. Enquanto as publicações francesas de arqueologia nacional suscitavam a admiração da Europa erudita do século XIX, os estudos sobre a civilização romana e, em menor medida, sobre a civilização grega foram abandonados a partir de 1815. Mais tarde, Camille Jullian poderá escrever que "a Restauração é uma das épocas em que, na França, a Antiguidade Romana foi menos estudada e, aliás, nunca mais conseguimos recuperar o avanço que, então, deixamos escapar para nossos rivais"." A partir da década de 1830, o historiador foi levado a enfatizar a reunião confusa de conhecimentos que havia sido desdenhada por seus predecessores. Essa mutação decisiva inspirou a Chateaubriand — observador favorável, embora pouco preocupado em inscrever-se nessa corrente — uma célebre constatação: "Nas suas narrativas, os analistas da Antiguidade não introduziram, de modo algum, o quadro dos diferentes ramos da administração: as ciências, as artes, a educação pública eram rejeitadas da área da história; Clio prosseguia com maior leveza seu caminho, aliviada do pesado fardo que, atualmente, ela 33. Camille Jullian, Notes sur l'histoire en France au XIX' siècle, Paris, 1896. Cf. ainda Les Politiques de l'archéologie du milieu du XIX' siècle à l'orée du XXIe siècle, Atenas: École française d'Athènes, 2000; e Mélanges de l'École française de Rome: Italie et Méditerranée, 113/2, "Antiquité, archéologie et construction nationale au XIX siècle", 2001. 170

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arrasta atrás de si. Agora, a história é uma enciclopédia; tudo tem de ser incluído no seu domínio, desde a astronomia até a química; desde a arte do financista até a arte do manufatureiro; desde o conhecimento do pintor, escultor e arquiteto até a ciência do economista; desde o estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais, assim como políticas. Na sua tentativa para descrever uma cena de costumes e de paixões, o historiador moderno vai atribuir o maior destaque ao imposto do sal; e já se reivindica outro imposto; aflui a guerra, a navegação e o comércio. Como eram fabricadas, na época, as armas? De onde vinha a madeira para as construções? Quanto valia uma libra de pimenta? Tudo se perde se o autor não observou que o ano começava na Páscoa e que ele lhe havia atribuído a data do 1º de janeiro. A sociedade permanecerá desconhecida se for ignorada a cor da parte superior dos calções do rei e o preço de oito onças de prata."34 Enquanto o medievalismo do século XVIII se apoiava no direito público e no estudo das prerrogativas régias (através de decretos e leis, área dos feudistas e juristas), o do século XIX enfatizava o Povo e a Nação (essencialmente através das crônicas, narrativas, poesias e canções populares). As razões dessa postura foram perfeitamente resumidas em "L'Enchanteur", prefácio de Études historiques (1831): "Atualmente, ao lermos nossa história do passado, ficamos mortificados pelo fato de nos sentirmos perdidos [...1. Nada foi criado pelos historiadores do século XIX; ocorre que, à sua frente, eles deparam-se com um novo mundo que lhes serve de escala-padrão para avaliar o mundo antigo. Antes da Revolução, os manuscritos eram questionados apenas em relação aos padres, nobres e reis. Pelo contrário, agora, nossa pesquisa interessa-se exclusivamente pelo que diz respeito à vida dos povos e às transformações sociais: ora, esse aspecto foi completamente desdenhado pelos documentos oficiais." No seu esforço para manter-se acima da corrente das histórias sucessivas, Chateaubriand tirou a conclusão de que, "antes da época da Revolução, deve-se distinguir duas escolas históricas: a escola do século XVII e a escola do século XVIII, em que uma é erudita e religiosa, enquanto 34. Chateaubriand, Études historiques (1831), prefácio, p. 4-5. Cf. A. Dollinger, Les Études historiques de Chateaubriand, Paris, 1932. 171

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a outra é crítica e filosófica; na primeira, os beneditinos reuniam os fatos e Bossuet empenhava-se em divulgá-los; na segunda escola, os Enciclopedistas criticavam os fatos e Voltaire dedicou-se a expô-los às disputas entre os letrados. Nossa escola moderna do século XIX pode ser designada como a escola política; ela é também filosófica, mas diferente da escola do século XVIII." Por sua vez, desde o primeiro curso sobre Les Origines du gouvernement représentatif en Europe, Guizot afirmava que "o passado transformase com o presente": "Tudo se transforma no homem e à sua volta [...], o ponto de vista a partir do qual ele considera os fatos, assim como suas disposições para proceder a esse exame."" O professor analisava a atividade historiográfica em seu contexto: "Segundo o estado político e o grau de civilização, os povos consideram a história sob determinado aspecto, procurando determinado gênero de interesses nesse estudo."" A "primeira época das sociedades" conheceu uma história poética, "narrações brilhantes e ingênuas que encantam uma curiosidade ávida e fácil de satisfazer" — por exemplo, os textos de Heródoto. Em seguida, uma história filosófica, "série de dissertações sobre a caminhada do gênero humano" — de que E. Gibbon e D. Hume deixaram exemplos notáveis — correspondeu perfeitamente "ao tempo dos conhecimentos, da riqueza e do lazer". Por último, uma história "prática", tal como em Tucídides ou Lord Clarendon, forneceu "instruções análogas às necessidades experimentadas pelas pessoas em sua vida concreta"; ela correspondeu a "uma vida política animada e intensa". Atualmente, "por uma rara convergência de circunstâncias, todos esses gostos e todas essas necessidades parecem estar reunidas; a história é agora, entre nós, suscetível de todos esses gêneros de interesse". Com efeito, ela dá testemunho de um respeito novo pelo princípio fundamental da civilização, "ideia preeminente que toma a dianteira e é predominante em toda parte em que se manifesta o espírito humano: a justiça equitativa, aplicada em escala universal". O respeito pelo passado, aqui, "não aprova nem impõe o

silêncio ao que é falso, culpável ou funesto. [...] O tempo não recebeu a ímpia missão de sancionar o mal ou o erro; pelo contrário, além de desvendá-los, serve-se deles". Desse imperativo absoluto, o século XIX manifesta uma consciência bem apurada: "É reduzido, talvez, o número de pessoas para quem o dever de todos os tempos é a imparcialidade, a qual, em meu entender, é a vocação de nossa época; mas", acrescenta ele imediatamente, "em vez da imparcialidade insensível e estéril que surge da indiferença, trata-se da imparcialidade enérgica e fecunda, 37 inspirada pelo amor e pela visão da verdade." A probidade intelectual da nova história está associada intimamente à sua eficácia social. Esse apogeu da inteligência do historiador é, simultaneamente, o de sua publicidade: ela "deixou de ser o patrimônio dos eruditos" quando os espíritos "tornaram-se capazes de compreender o homem em todos os graus de civilização" e serviram-se desse saber. Em suma, "sua utilidade deixou de ser, como outrora, uma ideia geral, uma espécie de dogma literário e moral, professado de preferência pelos escritores, e não tanto adotado e aplicado pelo público. Agora, trata-se de uma necessidade para o cidadão que pretenda tomar parte nos negócios de seu país ou somente ter um julgamento criterioso." A tarefa do historiador é, ao mesmo tempo, política e ética. O Cours d'histoire moderne é um Métier d'historien duplicado por um breviário político, cujo único programa resume-se deste modo: "Descobrir a verdade, realizá-la fora, nos fatos exteriores, em benefício da sociedade; transformá-la, dentro de nós, em crenças capazes de nos inspirar o desprendimento e a energia moral que são a força e a digni38 dade do homem neste mundo.." Sob esses dois aspectos, o empreendimento de conservação assumia, em 1830, uma evidente atualidade; ele devia estar a serviço da sociedade, levando-a a respeitar a ordem sublime da justiça, tanto quanto isso fosse humanamente possível.39

35. François Guizot, Histoire eles origines du gouvernement représentatif en Europe, Paris, 1855, t. I, 1a lição, p. 2 (doravante HOG). 36. Ibidem, t. II, p. 6-10.

37. Ibidem, t. I, p. 13. 38. François Guizot, Histoire de la civilisation en France depuis la chute de l'Empire romain jusqu'en Ie789, 11. ed. Paris, 1869, p. 30 (doravante HCF). 39. Cf. Philippe Raynaud, "Le Libéralisme français à l'épreuve du pouvoir", in Pascal Ory (org.), Nouvelle Histoire des idées politiques, Paris: Hachette, 1987, p. 172, sobre a "antropologia pessimista".

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Na sequência dos tumultos do início do século, numerosos monumentos trocaram de mãos; daí em diante, eles dependiam do direito exclusivo de proprietários. De forma mais geral, a manutenção e a transmissão dos patrimônios tradicionais estavam ameaçados pela situação movimentada da época. Como reconhecer a legitimidade social e o interesse da civilização sem fazer apelo ao Estado? Paralelamente, a fisionomia da verdade histórica estava passando por uma completa mutação. Enquanto ator dessa revolução historiográfica, o próprio Guizot entendia associar a "verdade poética" à "história filosófica como estudo da organização geral e progressiva dos fatos".40 Como pensar, de comum acordo, a história filosófica e o inventário estatístico, além da petição de princípio de "manter, ao mesmo tempo, o rigor do método científico e o legítimo predomínio da inteligência"? Somente a unidade do ponto de vista adotado — o da civilização — permite que o historiador "ensine o passado não apenas à memória, mas à inteligência".42 A conservação dos monumentos recebia, assim, sua legitimidade tanto intelectual como política e social.

Uma teoria do patrimônio Qualquer sociedade exige que sua memória seja bem cuidada. Contrariamente à tentação da tabula rasa — "a febre que às vezes atinge os povos no âmago das mais úteis e mais gloriosas regenerações" —, o herói da obra de Guizot, L'Histoire de la révolution d'Angleterre (1854), Cromwell, fazia prevalecer o bom senso, ou seja, a conservação. Com efeito, "sob o efeito de uma crise violenta, os povos podem momentaneamente negar seu passado, até mesmo abominá-lo; mas não conseguiriam esquecê-lo, nem desligar-se dele por muito tempo e de

40. François Guizot, HCF, t. I, 1P lição, p. 313-315. 41. Ibidem, t. 1, 2a lição, p. 33-35. Cf. ainda 11a lição, p. 313-315. 42. Advertência do editor, in François Guizot, Histoire de la civilisation en Europe, org. Pierre Rosanvallon, Paris: Hachette, 1985, p. 41 (doravante HCE). 174

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forma absoluta".43 Ora, o século XIX francês conheceu, precisamente, a obsessão de viver os últimos momentos de uma tradição. Aubin-Louis Millin, no verbete "Monumento" de seu Dictionnaire des beaux-arts, observava o seguinte: "Nos cinco volumes de minha obra Antiquités nationales, mandei gravar um grande número de monumentos da França setentrional; atualmente, na sua maioria, eles foram destruídos, mutilados ou desnaturados." A abertura da famosa obra — a já citada Voyages pittoresques et romantiques dans lAncienne France, de Nodier, Taylor e Cailleux, cujos volumes foram publicados entre 1820 e 1854 exprimia a emoção de uma época: "Os monumentos passam rapidamente [...] . A marca deixada pelo tempo nesses vestígios é de tal modo incisiva que, ao observá-los pela segunda vez, já hesitamos em reconhecê-los; além disso, nossos croquis, desfigurados pela precipitação dos demolidores, não passam, atualmente, talvez, do retrato do que deixou de existir" (Ancienne Normandie, 1820). Mas, se numerosos autores deploravam o declínio do interesse pelos monumentos antigos, tal como ele havia sido garantido pela propriedade religiosa ou pela memória dinástica, Guizot não denunciava os culpados do "vandalismo", nem preconizava, à guisa de solução, a restauração das memórias extintas, mas pensava o patrimônio em termos sociológicos de opinião pública. Com efeito, a importância do passado para o presente é variável. Convém estabelecer uma distinção entre "acontecimentos consumados" e "porção imortal da história": se os primeiros tornam-se rapidamente indiferentes para nós, "todas as gerações têm necessidade de assistir [aos fatos gerais] para compreenderem 4 o passado e para se compreenderem a si mesmas". 4 Em suma, a relação com o passado deveria ser ponderada, em plano semelhante a todas as atividades humanas para as quais a civilização contemporânea exige "a 45 legitimidade dos motivos e a utilidade dos resultados". O estiolamento da conservação tradicional, até mesmo seu desaparecimento, devia-se, segundo Guizot, a uma extenuação dos poderes 43. François Guizot, HOG, t. I, p. 10. 44. Idem, HCE, p. 258-259. 45. Idem, t. 1, P lição, p. 30. Sobre este tema, cf. Douglas Johnson, Guizot, Aspects of French History, Ie787-Ie874, Londres: Routledge, 1963, p. 283-288, 330-332. 175

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sociais, associada às mutações da civilização. A conservação "arcaica" revestia uma dimensão religiosa, ou familiar, em suma, de "governo"; em seu entender, assistia-se a seu desmantelamento gradual em decorrência do declínio dos "poderes de toda a espécie existentes na sociedade, desde o poder doméstico, restrito à família, até o poder público situado na cúpula do EstadoN Responsáveis, há pouco, pelas "relações entre os homens sem que estes tivessem oportunidade de manifestar sua vontade", tais poderes acabaram sendo substituídos pela "sociedade sem governo que subsiste pelo desenvolvimento espontâneo da inteligência e da vontade humana" e é chamada a tornar-se o "fundo do estado social"." A figura da última testemunha encarnava em Cours d'histoire moderne o esgotamento dessa relação com o passado. A personagem foi tomada de empréstimo à criação romanesca — aliás, esse não foi o único caso de intercâmbio entre história e ficção, profusamente praticado pelos historiadores de sua geração. Trata-se de um extrato da obra Les Puritains d'Écosse, de Walter Scott, dedicado ao "respeito e à devoção" de que "os túmulos dos mártires puritanos" são "ainda objeto por parte de seus partidários": "Há sessenta anos que alguém [...] , chamado Robert Patterson — descendente, segundo parece, de uma das vítimas da perseguição —, deixou sua casa e sua pequena herança para se dedicar à manutenção desses modestos túmulos [...1. As famílias dos mártires e os zeladores da seita garantiram-lhe a hospitalidade [...1. Por ignorar seu verdadeiro nome, o povo designava-o pela alcunha de Old Mortality (o homem dos mortos dos tempos antigos), de acordo com o ofício ao qual ele havia consagrado sua vida."47 Nos dias de hoje, ao contrário, a força motriz da solicitude conservadora parecia passar da "perpetuidade e da regularidade [...] impostas pelos 46. François Guizot, HCF, t. III, 11ª lição, p. 271-272. Em particular, à semelhança de B. Constam, ele observa que "o poder abandonou as famílias". Cf. Benjamin Constant, De la Liberté chez les modernes, org. Marcel Gauchet, Paris: Hachette, 1980, p. 181-183. 47. Ibidem, t. II, 17'lição, p. 28-29. O primeiro capítulo de Old Mortality (1816) — obra traduzida em francês sob o título Les Puritains d'Écosse — desenvolve o paralelo entre a tarefa de limpeza dos túmulos e os interesses do romance histórico pelo passado. Sabe-se que, de acordo com as lembranças de Paul Lafargue, tratava-se de um dos romances preferidos de Karl Mau.

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poderes" para a energia íntima da pessoa. Na sociedade contemporânea, a manutenção dos monumentos abandonados, em razão principalmente do desaparecimento de diversas corporações sociais — ou, mais exatamente, da remodelação do respectivo passado — exigia uma memória por assim dizer individual, eventualmente mobilizada no seio de novas sociabilidades. Uma conservação "espontânea" devia atenuar, de algum modo, a perda das conservações impostas. No entanto, o patrimônio daí resultante não podia ser, logicamente, arbitrário, mas o da inteligência e da justiça. O documento Rapport en vue de créer un poste d'inspecteur général des monuments historiques, apresentado ao rei em 21 de outubro de 1830, esboçava a história das antiguidades nacionais nestes termos: "No desfecho da Revolução Francesa, alguns artistas esclarecidos que tinham presenciado o desaparecimento de um grande número de monumentos preciosos sentiram a necessidade de preservar o que havia escapado à devastação: o museu dos Petits-Augustins, fundado pelo senhor Lenoir, preparou a retomada dos estudos históricos e criou as condições para apreciar todas as riquezas da arte francesa. A dispersão fatal desse museu levou os arqueólogos e artistas a se interessarem pelo estudo das localidades; assim, a ciência aumentou a amplitude de sua ação e ganhou maior dinamismo; bons escritores juntaram-se à elite de nossa escola de pintura para dar a conhecer os tesouros da França dos tempos passados. Esses trabalhos, que se multiplicaram durante os últimos anos, não tardaram a produzir excelentes resultados nas províncias: formaram-se centros de estudo; monumentos foram preservados dá destruição; os conselhos regionais e as municipalidades votaram recursos financeiros para esse fim; o clero foi impedido de continuar as reformas deploráveis que haviam sido i mpostas aos edifícios sagrados por um gosto equivocado a respeito da renovação. Tais esforços, porém, produziram apenas resultados incompletos: a ciência carecia de um centro de decisão para orientar as boas intenções manifestadas em quase todos os cantos da França; era necessário que o i mpulso fosse desencadeado por uma autoridade de âmbito nacional."" De 1815 a 1830 (e sobretudo após 1840), surgiu nas províncias um grande número de associações e sociedades eruditas, aos poucos 48. Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 259. [N.T.] 177

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enredadas pela centralização parisiense. A propósito da reorganização da École des Chartes, Augustin Thierry já se referia à "aplicação da centralidade administrativa às pesquisas históricas", "lei do século XIX" e, "com o desaparecimento da associação religiosa, a influência crescente das antigas corporações científicas".49 A Sociedade da História da França foi fundada em 1833. Depois de ter iniciado um Cours sobre monumentos da Antiguidade, em Caen, em 1830 — sob os auspícios da Sociedade dos Antiquários da Normandia, da qual ele também tinha sido um dos fundadores —, Arcisse de Caumont fundou a Associação Normanda, a Sociedade Francesa para a Conservação dos Monumentos, o Instituto das Províncias e, por fim, organizou os Congressos Científicos Regionais da França. No decorrer de todo o século XIX, o estudo das antiguidades nacionais foi concebido como o cimento do patriotismo francês, o instrumento privilegiado da reunião das localidades com a Nação. No alvorecer da nova história, que, aliás, havia despertado seu interesse, Augustin Thierry fixou seu programa deste modo: "O primeiro mérito de uma história nacional escrita para um grande povo consistiria em evitar o esquecimento de alguém, promovendo, assim, a apresentação dos homens e dos fatos relacionados com cada parcela de território. A história do lugarejo, da província ou da cidade natal é a única capaz de despertar em nós um interesse patriótico.""

A administração do luto e da ressurreição A conservação moderna, à imagem daquela preconizada em Old Mortality, exige um delegado para desempenhar o trabalho de memória. Além de sancionar as iniciativas das pessoas idôneas, o Estado confialhe a missão de dirigi-las de maneira oportuna. Tal responsabilidade incumbe, naturalmente, ao poder porque, "ao falar de maneira geral, o poder [pertence] ao espírito superior e, por conseguinte, este [é] a

situação natural e legítima do poder"?' Torna-se desnecessário legislar sobre essa matéria, porque o progresso da civilização acarreta a caducidade das "leis morais", "espécie de pregação, instrumento de ensino" dos tempos arcaicos; o século XIX conhece apenas "leis respaldadas na ciência que, além de depositarem a confiança na moralidade e na razão dos indivíduos, deixam tudo o que é puramente moral no domínio da liberdade. O inspetor tem, assim, a missão de "entrar em contato direto com as autoridades e com as pessoas que se dedicam a pesquisas relativas à história de cada localidade, [de] esclarecer os proprietários e os detentores sobre a importância dos edifícios, cuja conservação depende de seus cuidados e, finalmente, [de] incentivar, orientando-o, o zelo de todos os conselhos de departamento e das municipalidades, de maneira que nenhum monumento de valor incontestável desapareça em razão da ignorância e da precipitação, e sem que as autoridades competentes tenham tentado todos os esforços convenientes para garantir sua preservação e, também, de forma que a boa vontade das autoridades ou dos particulares não se esgote em objetos indignos de seus cuidados"52. Graças a essa incansável informação do corpo social, mediante a reunião de administradores e de proprietários, confere-se, "aos espíritos mais recalcitrantes, a consciência da necessidade de que o governo se mantenha ativamente vigilante em relação aos interesses da arte e da história". O inspetor "orienta as boas intenções manifestadas em quase todos os cantos da França", à imagem de um Estado que seja um "centro de impulso e de coordenação de uma rede, bastante ampla, de influências e de conhecimentos relativamente autônomos".53 Para ser coroado de êxito, "lógico ou social", o empreendimento obedece

la Guizot, Des Moyens de gouvernement et d'opposition dans l'état actuei de 51. François France (1821); extratos apresentados por Pierre Manent, Les Libéraux, II, Paris: Hachette, 1980, p. 150. 52. O Rapport é publicado, por exemplo, como anexo da obra de E Guizot, Mémoires,

49. Augustin Thierry, Récits des temps mérovingiens, précédés de Considérations sur l'histoire de France. Cf. History and Theory, vol. 15, n. 4, Beiheft 15: Augustin Thierry and Liberal Historiography, 1976. 50. Auguste Theory, Lettres sur l'histoire de France, II, 1826. 178

op. cit.

53. Guizot descreve a "dupla histõria" da centralização civilizadora seguida por uma descentralização "distribuída de forma conveniente", em HOG, p. 59. Cf. o aprofundamento de Pierre Rosanvallon, Le Moment Guizot, Paris, Gallimard, 1985, p. 63. 179

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às exigências científicas (imparcialidade e exaustividade da recensão), assim como aos princípios de governo (liberdade de iniciativa, garantia da propriedade, descentralização...). Portanto, a tarefa do inspetor geral tem a ver, por excelência, com o talento político, cujo ideal é esboçado por Guizot em seu livro Cours d'histoire moderne: "Aliar a lucidez teórica e a consequência lógica do filósofo com a flexibilidade 54 de espírito e de bom senso de quem possuiu experiência." Uma fórmula quase mercantil de Ludovic Vitet, a propósito das bibliotecas, resume perfeitamente este pragmatismo esclarecido: "Convém", escreve ele, "voltar a introduzir a vida [...] nesses galpões de mercadorias obsoletas e sem consumidores."" O patrimônio de uma civilização é também o do senso comum, da opinião geral e até mesmo dos preconceitos, ou seja, da "força das coisas", conceito-chave do historicismo de Guizot. Em poucas palavras, trata-se de "vivificar" um patrimônio "já pronto": a política dos doutrinários distingue-se absolutamente do princípio revolucionário baseado na redescoberta das riquezas nacionais, até então desnaturadas ou espoliadas, como foi mostrado no capítulo precedente. Desse ponto de vista, Guizot foi levado a comentar o franco sucesso obtido pelo legado da Idade Média. Sua obra L'Histoire de la civilisation en France constata que "seria impossível desconhecer o atrativo que suas tradições, seus costumes, suas aventuras e seus monumentos suscitam no público. Pode-se questionar, neste aspecto, as letras e as artes; pode-se abrir as histórias, os romances e as poesias de nosso tempo; pode-se entrar nas lojas de móveis e de curiosidades; por toda parte, encontrar-se-á a Idade Média analisada minuciosamente e reproduzida, suscitando a reflexão e servindo de diversão ao gosto"." Essa vertente da opinião implica tentativas de manipulação partidária que são condenadas formalmente por Guizot. A hostilidade dos "amigos sinceros da ciência e do progresso da humanidade" contra a época feudal conta com a admiração daqueles que, nesse período, "procuram inspirações (para o) despotismo e (para o) 54. François Guizot, HCF, t. II, 28' lição, "Hincmar, sa vie, ses écrits", p. 351. 55. Ludovic Vitet tinha visitado os departamentos de Oise, Aisne, Mame, Nord e Pasde-Calais. 56. François Guizot, HCF, t. III, 1' lição, p. 11-12. 180

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privilégio". E ele tira a seguinte conclusão: "Aqui e por toda parte, a impiedade provocou a superstição." "O passado tão desdenhado e tão abandonado por uns tornou-se para os outros o objeto de um culto idólatra"; além disso, "utopias no passado" corresponderam às utopias dos "mestres do futuro". Todos esses esforços são inúteis, porque "as massas são governadas por ideias e paixões simples, exclusivas; por isso, não se deve recear que elas julguem de forma demasiado favorável a Idade Média e seu estado social".57 Do mesmo modo que os doutrinários resistiram ao retorno ao Antigo Regime e, ao mesmo tempo, à "adesão, até mesmo especulativa, aos princípios revolucionários" (Pierre Rosanvallon), assim também a Idade Média de Guizot evitou cuidadosamente as trevas voltairianas e a lenda cor de rosa à maneira de Sainte-Palaye; aliás, Guizot rejeitou vigorosamente conformar-se à moda que, além do mais, não chegou a atrair realmente seu gosto pessoal. Ele limitou-se a manifestar um interesse intelectual em relação a um período que se confunde com "o berço das sociedades e dos costumes modernos. Daí datam, efetivamente: 1) as línguas modernas [...]; 2) as literaturas modernas [...]; 3) a maior parte dos monumentos modernos nos quais, durante séculos, se reuniram — e ainda hoje se reúnem — os povos, igrejas, palácios, prefeituras, obras de arte e de utilidade pública de toda a espécie; 4) quase todas as famílias históricas [...]; 5) um grande número de acontecimentos nacionais, importantes em si mesmos e durante muito tempo populares [...], em poucas palavras, quase tudo o que preocupou e agitou, durante séculos, o imaginário do povo francês"." Se as Luzes ignoraram sua importância, incumbe à imparcialidade presente posicionar essa época no lugar apropriado; inversamente ao século XVIII, o século XIX compreendeu, sobretudo, "o verdadeiro papel desempenhado pela imaginação na vida do homem e da sociedade. O quadro da anarquia feudal e das lutas da burguesia, confrontado com a evocação da civilização atual, permite associar as instituições "jovens", instauradas "em nome da razão e da filosofia", "aos princípios 57. Ibidem, p. 13. 58. Ibidem, p. 15.

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pressentidos e às garantias procuradas no mesmo sentido, através dos séculos". Em suma, a Idade Média pode servir de suporte a um governo ainda privado do "poder das lembranças". Tal necessidade é tanto mais decisiva quanto maior foi a submissão das vontades, durante muito tempo, a "terríveis acontecimentos" que haviam colocado em dúvida as respectivas potencialidades. A "reforma moral", sobretudo, da qual procede a placidez da vida social ("a repressão das vontades individuais nunca teve de recorrer à menor força pública") contentou-se com o estiolamento dos caracteres. Portanto, Guizot regozijou-se com o fato de que a representação da civilização medieval tivesse fornecido à individualidade contemporânea — cuja "energia íntima (é) fraca e tímida" — uma lição salutar, "mostrando-nos a capacidade de um homem ciente de suas crenças e de seus desejos"." A iniciativa de Guizot punha um termo à incerteza da primeira metade do século XIX, quando o programa de uma conservação do passado era claramente concebido e exposto sem traduzir-se em atos, por falta de uma concepção da nação que se conformasse aos valores específicos dos tempos e dos lugares. "Sempre fez falta à França" lê-se no relatório da Académie des Inscriptions, redigido em 1818 por iniciativa do conde de Laborde — "atribuir a devida importância a essa espécie de riqueza, de velar por sua conservação e de procurar, do ponto de vista da instrução e da história nacional, tirar partido desse material."60 O conceito administrativo de "monumento histórico" baseia-se em uma arqueologia moderna, cujo esboço foi fornecido por alguns precursores, tais como Séroux d'Agincourt e Alexandre Lenoir. Diferentemente deles, Guizot conferiu um sentido à reunião dos catálogos e da narrativa cronológica: o da história da civilização, moldura universal de uma representação cultural — portanto, particularizada — da nação.

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Uma história do ponto de vista da civilização Ao servir-se das ciências naturais como referência, o ideal de Guizot consistia em pintar a fisionomia exata do passado, graças à síntese da "anatomia ou a busca dos fatos", da fisiologia ou "o estudo de sua organização" e, finalmente, da "reprodução de sua forma e de seu movimento".61 Sua obra L'Histoire de la civilisation en Europe fornece um repertório cuidadosamente hierarquizado de todos esses aspectos, desde os "fatos materiais, visíveis, tais como as batalhas, as guerras, os atos oficiais dos governos", até os "fatos morais, ocultos, que nem por isso deixam de ser reais". "Existem fatos individuais que têm um nome próprio; quanto aos fatos gerais, é impossível atribuir-lhes uma data precisa, circunscrevê-los em limites rigorosos, sem que por isso deixem de ser fatos semelhantes aos outros, ou seja, fatos históricos, que não podem ser excluídos da história sem mutilá-la."62 Guizot preocupou-se, particularmente, com a história dos "fatos mais importantes, mais sublimes em si mesmos, sublimes independentemente de qualquer resultado externo e unicamente em suas relações com a alma do homem", como são "as crenças religiosas e as ideias filosóficas, as ciências, as letras e as artes".63 Mas, para além disso, o "ponto de vista da civilização" é o único que permite considerar historicamente os "fatos individuais" no âmago "do progresso e do desenvolvimento da atividade tanto social como individual"; tanto mais que sua "importância aumenta e [sua] sublimidade eleva-se por sua relação com a civilização". "Existem, até mesmo, oportunidades", acrescentava o professor, "em que os fatos mencionados [...] são frequentemente considerados e julgados do ponto de vista da sua influência sobre a civilização; influência que se torna, até certo ponto e durante certo tempo, a medida decisiva de seu mérito e de seu valor."64 Em poucas 61. François Guizot, HCF, t. I, 11' lição, p. 313-315. 62. Idem, HCE, p. 57-58.

60. Apud Laurent Theis, "Guizot et les institutions de mémoire", in Pierre Nora (org.), Les Lieux de mémoire, II, op. cit., p. 574.

63. Ibidem, p. 59. 64. Ibidem, p. 60, 64. "Reconhecer e pintar, sob os nomes próprios e os acontecimentos particulares, o destino e os trabalhos, as vitórias e os fracassos da sociedade e da alma humana."

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59. Ibidem, p. 24.

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palavras, a ideia de civilização é "o fato geral e definitivo: o de convergência de todos os outros, seu resumo". Semelhante distinção entre parte caduca e parte decisiva da memória é válida, de maneira mais ampla, entre os contemporâneos, como critério de julgamento estético: evocado pela filosofia estética de Victor Cousin, sua melhor ilustração deve ser procurada, talvez, em Baudelaire. São bem conhecidas as fórmulas emblemáticas do pintor da vida moderna: "O belo é feito por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, alternadamente ou em conjunto, a época, a moda, a moral, a paixão [...]. A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade da arte, em que a outra metade é o eterno imutável." Entretanto, no Salon de 1846, Baudelaire fornece uma leitura em termos de memória: nesse texto, Horace Vernet é ferozmente criticado por sua "memória de almanaque" que "sabe o número de botões em cada uniforme". Em compensação, o desenvolvimento dedicado a "Do ideal e do modelo" afirma que "a lembrança (é) o grande critério da arte; a arte é uma mnemotécnica do belo". Semelhante princípio redunda em conselhos adaptados: por exemplo, "a imitação exata estraga a lembrança", ou "particularizar ou generalizar demais impedem, igualmente, a lembrança". Nesse apelo à memória, que acompanha uma recusa categórica do ecletismo, Michael Fried reconhece uma reação à década de 1830-1840, marcada pela multiplicação das alusões aos temas e aos estilos históricos nas artes." Uma dupla exigência orienta, então, a reflexão de Baudelaire: a arte contemporânea deve fazer referência a uma memória das obras anteriores, mas esses vestígios de uma longa cadeia de lembranças não devem anunciar-se como tais. Ou, dito em outras palavras, esse patrimônio artístico deve ser quase inconsciente, embora deixe a marca de sua aura nas obras presentes, como a parcela mais significativa da memória.66

Em seu trabalho de historiador, Guizot empenhou-se também em conjurar a ruptura entre a "condição exterior do homem" e seu estado moral, sua "natureza íntima". Em relação ao fundo — saber se "a sociedade é feita para servir o indivíduo ou o indivíduo para servir a sociedade" —, a obra L'Histoire de la civilisation en Europe tirava a conclusão da impossibilidade de dizer algo que não seja "conjetural" e se limita a copiar a profissão de fé do amigo Royer-Collard. Em compensação, compete ao historiador repetir que "existe uma estreita ligação entre essas duas porções da civilização". Na França, "a marcha e o crescimento do homem e da sociedade ocorreram sempre [...] a pouca distância. [...] Nada se passou no mundo real sem que tivesse sido imediatamente captado pela inteligência, que, por sua conta, extraiu daí uma nova riqueza; nada no domínio da inteligência sem ter tido no mundo real, e quase sempre bastante rapidamente, sua repercussão e seu resultado. Em geral, inclusive as ideias na França precederam e provocaram os avanços da ordem social: eles prepararam-se nas doutrinas antes de se tornarem realidade; além disso, o espírito tomou a dianteira no caminho da civilização". 67 Daí, a evidente consequência de método: "O estudo, a ciência, procede e deve proceder de fora para dentro. É de fora que vem sua primeira investida, e ao observá-la é que ela avança, penetra e chega gradativamente ao interior." Pelo contrário, "na realidade, os fatos desenvolvem-se, por assim dizer, de dentro para fora; as causas são internas e produzem efeitos externos". Portanto, o historiador há de começar "sempre pelo estudo do estado social", sabendo bem que este "deriva, entre muitas outras causas, do estado moral dos povos [...]. As crenças, os sentimentos, as ideias e os costumes precedem a condição exterior, as relações sociais e as instituições políticas"." Nesse esforço de representação do passado, que revela a dinâmica das condicionantes exteriores e da liberdade individual, da alma e da sociedade, a história das artes, especialmente da arquitetura, usufrui de um privilégio particular. O capítulo de L'Histoire de la civilisation

65. Michael Fried, "Painting Memories: on the Containment of the Past in Baudelaire and Manet", in Critical Inquiry, vol. 10, n. 3, 1984, p. 510-542.

67. François Guizot, HCF, t. I, 1' lição. Em seguida, vem a política: "Os progressos da igualdade social e os saberes da civilização precederam, na França, a liberdade política; por seu intermédio, ela será mais completa e mais depurada."

66. Essa construção acaba por evocar Winckelmann, cujo sistema articula, de maneira paradigmática, parte eterna e parte contingente na leitura da história da arte. 184

68. Ibidem, t. I, 2' lição, p. 33-35, 69.

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en France dedicado ao castelo sob o regime feudal tem a ver, nesse aspecto, com um exercício escolar: como escrever uma arqueologia filosófica? Como passar — retomando a metáfora-chave da disciplina arqueológica — da superfície para a profundidade, de fora para dentro? A "assustadora anarquia" dos séculos feudais, "sobretudo após a morte de Carlos Magno", explica o desígnio exclusivamente utilitário da construção dos castelos, assim como sua profusão. "Nessa época, a guerra grassava, por toda parte; os monumentos da guerra deveriam estar, também, por toda parte. [...] Além da construção de numerosas fortalezas, tudo era transformado em fortificação, esconderijo ou habitação defensiva. [...] O território estava coberto por esse tipo de imóveis e todos possuíam o mesmo caráter." Essa restituição do "estado material das habitações feudais" não é, por si só, suficiente, nem se limita a fornecer os prolegômenos da narrativa: ela alimenta a inteligência com as questões propriamente históricas. "0 que se passa no interior? Qual será o tipo de vida do proprietário? Que influência seria exercida sobre ele e sobre os outros habitantes por essa moradia e as circunstâncias materiais resultantes daí? Como e em que direção deveria desenvolver-se a pequena sociedade que ocupava o castelo, e quem era o elemento constitutivo da sociedade feudal?" O caráter primordial dessa habitação, o isolamento, que permite associar estado social e vida interior, nada tem de surpreendente para o ouvinte do Cours d'histoire moderne: em suas longas digressões, Guizot mostrou a feudalidade sob todos os seus aspectos, além de se servir de todas as suas variações. A essa característica fundamental acrescenta-se "uma ociosidade singular": para resumir, "nunca tinha sido observado tal lazer em tal isolamento [...]. A única ideia do proprietário do castelo consistia em sair dessa situação. Fechado nesse recinto em ocasiões em que tal providência era absolutamente necessária para sua segurança ou sua independência, ele foi procurar fora, tão frequentemente quanto pôde, o que lhe fazia falta, ou seja, a sociedade e a atividade. A vida dos proprietários dos feudos passou-se nos caminhos e em aventuras". O habitat determinado até então pela insegurança geral aparece, por sua vez, como fonte de desordens. "Essa longa série de assaltos,

saques e guerras, que caracteriza a Idade Média, foi em grande parte o efeito do gênero de habitação feudal, assim como da situação material em que se encontravam seus donos; eles procuraram, por toda parte, o movimento social inexistente no seu interior." Daí as cruzadas, cuja explicação se baseia nesta fórmula lapidar: "Eles foram mais longe e por outras causas; essa é a grande diferença." No entanto, a demonstração não se limita ao estado social; os "dois aspectos característicos" da mentalidade feudal ("a selvagem e bizarra energia do desenvolvimento dos caracteres individuais" e "a obstinação dos costumes, sua longa resistência à mudança, ao progresso") estão associados, igualmente, aos castelos. Com efeito, "as muralhas e os fossos dos castelos criaram obstáculos tanto para as ideias quanto para os inimigos". No entanto, "ao mesmo tempo, [...] eles eram de certa forma um princípio de civilização. [...] A vida doméstica, o espírito de família e, particularmente, a condição das mulheres desenvolveram-se, na Europa moderna, muito mais completa e favoravelmente que alhures. [...] Nunca, em nenhuma outra modalidade de sociedade, a família reduzida à sua mais simples expressão — marido, mulher e filhos — encontrava-se tão compacta: seus membros estavam comprimidos uns contra os outros, separados de qualquer outra relação poderosa e rival." Em suma, "nos castelos é que surgiu e cresceu a cavalaria", ou seja, o estado moral que se encontra na origem da sociedade feudal. Por sua arquitetura, é possível ler uma civilização inteira. Tal concepção da arqueologia exige a apreensão de um monumento social em sua integralidade. De fato, por defeito, "a história envolve e abrange a história da civilização" sob a abundância das obras e "cenas exteriores"69, a tal ponto que torna impossível sua aparição. Essa leitura compartilha alguns dos pressupostos do uso do castelo como cronotopo, tal como ele é concebido, em particular, pelo romance histórico: de fato, este o transforma em ponto de interseção de um universo humano, ao mesmo tempo época e configuração espacial.70

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69. Ibidem, t. III, 9 lição, p. 112-135. 70. Segundo Bakhtin, "o cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária nas suas relações com a realidade [...] Na arte e na literatura, todas as definições espaço-temporais são inseparáveis e comportam sempre um valor emocional [...]

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Uma arqueologia dos Modernos O inventário geral, imaginado em 1834, entende do mesmo modo superar a utilidade de um panorama dos monumentos de todas as épocas e de todos os lugares. Tal recapitulação do passado nacional, em seu intuito de compensar a amnésia e as ruínas, pretende sobretudo colocar em destaque o princípio de unidade, até então dissimulado ou mal compreendido: o sentido da civilização. A classificação, em um fichário completo, de todas as obras que nunca chegaram a ser edificadas deve fornecer "os vestígios do estado e do movimento geral dos espíritos", do mesmo modo que, no Cours "cofre modelize, o conjunto dos livros de um Alcuíno descrevia a vida intelectual, no reinado de Carlos Magno. O Rapport au Roi sur l'état des travaux relatifs à la recherche et à la publication de documents inédits concernant l'histoire de France (2 de dezembro de 1835) observa: "Ao deixar as ciências e as letras para considerar as artes, convém necessariamente trocar de método. Neste caso, está fora de questão descobrir e imprimir obras inéditas. Salvo algumas características especiais e em número reduzido, a história das artes não se encontra nos livros; ela está escrita nos próprios monumentos, cujas formas, variáveis de acordo com os tempos e os lugares, representam não só os princípios e as regras adotadas pelas diversas escolas, mas sobretudo o espírito, as ideias e os próprios conhecimentos que pertencem aos séculos evocados por elas."1 Prevalece, então, a ideia de recorrer ao método moderno da investigação intelectual: se "as tabelas estatísticas [são] um dos melhores meios de estudar, sob certos aspectos, o estado de uma sociedade, por que razão", pergunta Guizot, "não aplicá-las ao estudo do passado?" Trata-se de "apresentar, sob forma [de tabelas], os fatos especiais da época que, a arte e a literatura estão impregnadas de valores cronotópicos, em diversos graus e dimensões. Qualquer motivo, qualquer elemento privilegiado de uma obra de arte apresenta-se como um de seus valores". (Mikhail Bakhtin, "Du Discours romanesque", Esthétique et théorie du roman, Paris: Gallimard, 1978, p. 85-233.) 71. Xavier Charmes, Le Comité des travaux historiques et scientifiques, Paris, 3 vols., 1886 (t. II, p. 46-47). 188

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além de estarem relacionados de perto com os fatos gerais, culminam i mediatamente na história da civilização. A tentativa não reproduz, de modo algum, [o passado] vivo e animado, à semelhança da narrativa; mas ela garante, por assim dizer, seu arcabouço, impedindo que as ideias 72 gerais flutuem na imprecisão e ao acaso". A estatística, cada vez mais utilizada "à medida que se avança no curso da civilização", torna-se a ferramenta capaz de "fazer prevalecer, na ordem intelectual, o império dos fatos"73; além de poupar ao Cours a inclusão de minúcias prejudiciais à exposição dos temas e de digressões demasiado dispersas, ela é a única a permitir a retomada e a integração da herança dos antiquários no âmago da história filosófica. Com efeito, se a história das artes, "em relação à história geral, tem a vantagem de possuir e poder mostrar os próprios objetos que ela deseja dar a conhecer e submeter a um julgamento", 74 mesmo assim "é insuficiente limitar-se a ver, mas se deve compreender". A riqueza do material prejudica, então, o historiador, ao prodigalizar-lhe não tanto um testemunho apropriado, mas enigmas insolúveis. O conhecimento da época é necessário para o entendimento das obras, como se verifica com a literatura: "Como compreender a história literária sem conhecer os tempos e os homens no meio dos quais foram erguidos os monumentos mencionados por ela?" Ocorre que tal conhecimento é insuficiente, já que "essas características decisivas que servem para explicar o caráter e a conduta dos povos [...] não desvelam, de modo algum, o segredo das causas que determinaram o espírito das literaturas. [...] A ação dos acontecimentos importantes da história sobre os textos escritos ocorre unicamente através de relações desconhecidas, distorcidas e quase imperceptíveis. [...] Assim, será reconhecida a influência dessas inumeráveis causas secundárias; 72. François Guizot, HCF, t. II, 20' lição, p. 120. Nessa época, a preocupação com a estatística histórica assume uma grande importância, particularmente na Alemanha. Cf. G. Iggers, "L'Université de Göttingen, 1760-1800: La Transformation des études historiques", in Francia, vol. IX, 1981, p. 602-621. Cf., de maneira mais geral, J.-L. Heilbron, "The Measure of Enlightenment", in Tore Frãngsmyr, J.-L. Heilbron e Robin E. Rider (orgs.), The Quantifying Spirit in the 18th Century, Berkeley: University of California Press, 1990, p. 207-242. 73. François Guizot, HCF, t. I, 1ª lição, p. 21-25. 74. Idem, Corneille et son temes: Études littéraires (1852), Paris, 1880, p. 1. 189

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entretanto, é impossível definir com precisão sua natureza ou sua amplitude, e às vezes, até mesmo afirmar sua existência". Em poucas palavras, "o historiador que pretenda descobrir as causas determinantes do caráter e da orientação das literaturas modernas [está] reduzido a contentar-se com resumos raramente completos e com pesquisas raramente bem coordenadas". Esse balanço refere-se não tanto à confissão de humildade do historiador, mas ao sentimento da complexidade das artes modernas, que, em L'Histoire de la civilisation en Europe, são julgadas "bastante inferiores, sob o ponto de vista da forma e da beleza", às artes da Antiguidade; mas, "do ponto de vista do fundo dos sentimentos e das ideias, [...] mais vigorosas e fecundas"." Tal imperfeição é o fruto paradoxal da "prodigiosa diversidade das ideias e dos sentimentos da civilização europeia". No discurso preliminar de Musée royal (1816), Guizot já escrevia o seguinte: "Na época [moderna] em que a escultura começava a seguir os vestígios da escultura antiga e a pintura começava a produzir obras-primas que, provavelmente, nunca haviam sido imaginadas pelos próprios Antigos, surgiu uma arte (nova), a gravura"." Ao lado de uma arqueologia antiga solidamente estabelecida a partir da "unidade simbólica" de seu material, a arqueologia moderna deve enfrentar os desafios de um corpus superabundante e disperso de monumentos desiguais ou, às vezes, defeituosos, sem deixarem de ser reflexos de uma civilização mais rica. Entretanto, a tentativa canônica da "ciência da Antiguidade" é diretamente transferida para o campo nacional; deste modo, é reconhecida a necessidade de "uma série de monumentos variados, de diferentes épocas, para criar uma escola de arte, (além de) uma sucessão de tempos e de artistas para constituir uma história com esses elementos". Sabe-se que "a arte e a história" na Antiguidade, "tal como esta nos foi legada greos".7 pelo tempo", encontram-se apenas entre os egípcios, os etruscos e os A época moderna conhece, do mesmo modo, uma nação 75. Idem, HCE, p. 77. 76. Idem, Essai sur les limites qui séparent et les liens qui unissent les Beaux-Arts (1816), La Rochelle, Rumeur des Ages, 1995, p. 57. 77. Raoul Rochette, Cours d'archéologie, Paris, 1828, 2' lição, p. 39. Sobre a "disputa" ulterior com Viollet-le-Duc, cf. Bruno Foucart, Viollet-le-Duc, Paris: Galeries Nationales du Grand Palais, 1980, p. 101.

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privilegiada: esse é o sentido da afirmação repetida, em Guizot e seus sucessores, sobre a amplitude cronológica e a variedade estilística do patrimônio francês. Por último, se a arqueologia faz "coincidir os trechos dos Antigos com os monumentos" para "apoiar-se no duplo conhecimento dos fatos e dos monumentos"", a criação de uma cátedra de história literária comparada da Europa moderna corresponde a essa exigência: ela permite, à semelhança do que ocorre com a disciplina canônica, a "equiparação dos mais belos monumentos da arte com os mais belos monumentos da literatura". De acordo com sua obra Mémoires, Guizot atribuía um estatuto histórico, absolutamente privilegiado, à aparição simultânea dessas duas análises da modernidade. "O movimento intelectual que contribuiu para a glória da Restauração" caracteriza-se, de fato, pelo "despertar do gosto pelos antigos monumentos históricos da França e pelo estudo das literaturas estrangeiras". Apesar "da tentativa no sentido de tomar, desde então, algumas medidas para interromper a destruição das obras-primas da arte francesa e para dar a conhecer as obras-primas das letras europeias à França da época moderna", "faltava um centro fixo e a garantia de meios de ação""; neste caso, a solicitude ministerial vai incidir sobre "as nobres aspirações da inteligência humana" a fim de "fornecer-lhes o apoio de instituições permanentes". Enquanto Ludovic Vitet deve "prosseguir e popularizar a restauração dos antigos monumentos da França", Cl. Fauriel empenhar-se-á em "espalhar o conhecimento e o sentimento das grandes produções literárias do gênio europeu"80; a tomada 78. Cf. a carta de Millin para Champollion-Figeac, em 5 de messidor do ano X, apud Charles-Olivier Carbonell, LAutre Champollion, Toulouse: IEP, 1982, p. 27. De forma mais abrangente, cf. Michel Dewachter e Alain Fouchard (orgs.), L'Égyptologie et les Champollion, Grenoble: Presses Universitaries Grenoble, 1994. 79. François Guizot, Mémoires, op. cit., t. II, p. 66-69. Mais longe, a propósito das atribuições do ministério da Instrução Pública, Guizot retomava esse tema: "As artes mantêm, com a literatura, vínculos naturais e necessários; é apenas através desse trato íntimo e habitual que elas garantem a conservação de seu prõprio e eminente caráter que é o culto do belo e sua manifestação diante dos homens. [...] Posicionadas longe da esfera da literatura [...], as artes correm sério risco de voltar a cair sob o jugo de uma exclusiva utilidade material ou das rudimentares fantasias do público" (t. III, p. 34-35) 80. Sobre o episódio, cf. Michel Espagne, "Claude Fauriel en quête d'une méthode ou l'Idéologie à l'écoute de l'Allemagne", in Romantisme, n. 73, 1991, p. 7-18. Vamos 191

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de consciência do fato artístico moderno encontra-se, portanto, na origem das duas iniciativas. Como é testemunhado pelo Rapport de 1830, ninguém — até Lenoir, que "havia preparado" os espíritos "ainda havia percebido a importância" dos monumentos "do ponto de vista da arte". De fato, nos séculos precedentes, eles haviam sido considerados apenas como "a fonte de relevantes ilustrações históricas".

A conservação para o futuro A conservação dos monumentos é, para Guizot, um fato da civilização contemporânea, distinto das atitudes anteriores; ela remete ao projeto de uma arqueologia moderna, tanto imparcial como científica, que exige, em primeiro lugar, um inventário das fontes. No âmago desse sistema de inteligibilidade, decalcado no modelo canônico da ciência da Antiguidade, o monumento aparece como o intermediário privilegiado entre o social e o individual; mas, sobretudo, expressão "exterior", ele fornece a compreensão do "interior" e permite a descoberta dos princípios de uma civilização ao adotar o procedimento inverso de sua concepção e de sua construção, ou seja, do vestígio ao molde. De fato, ao dar crédito ao discurso ministerial de 1834, "o estudo que nos revela, de forma mais convincente, o estado social e o verdadeiro espírito das gerações passadas é o de seus monumentos religiosos, civis, públicos e domésticos, das diversas ideias e regras que presidiram sua construção, em poucas palavras, o estudo de todas as obras e de todas as variações da arquitetura que é o começo e, ao mesmo tempo, o resumo de todas as artes". No entanto, o "Primeiro Ministro intelectual" de Luís Filipe — para aplicar-lhe a fórmula que ele próprio havia forjado para Hincmar — enlaça de maneira exemplar essa evocação do passado à administração de um espírito público. O patrimônio convoca as energias cidadãs em favor de uma cultura de governo: em primeiro lugar, ao mostrar que o poder atual inscreve-se limitar-nos a indicar, aqui, a importância da transformação da relação com a literatura nacional, que se torna, igualmente, um "monumento histórico". Cf. Michel Charles, "La Lecture critique", in Poétique, n. 34, 1978, p. 129-151: "Descobre-se, assim, por uma via pedagógica e mediante a história, que não se conhece a prõpria língua." 192

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em um longo processo; e, em seguida, ao reanimar uma individualidade sensata, até mesmo abatida pelas circunstâncias, em seu proveito. Ele contribui para a luta contra "os dois graves perigos [da civilização atual]: o orgulho e a tibieza". A tarefa do Inspetor dos Monumentos Históricos, seu estatuto institucional e a falta de uma legislação protetora ilustram a imbricação sociológica entre poder e opinião pública. A administração do patrimônio funde-se na atividade intelectual da própria sociedade; ela traduz a "dupla generalização" do poder e da sociedade, conformando-se ao princípio da civilização contemporânea, ou seja, a "soberania da razão, da justiça e do direito", e não a qualquer idolatria do passado. Ao mesmo tempo, sursum corda e lição de civismo, a conservação para os doutrinários é, além de uma ferramenta de governo, um adjuvante da moralidade individual contra "a indiferença e a apatia" das "classes 81 favorecidas que se dedicam ao trabalho intelectual". Ela metamorfoseia a preocupação tradicional do proprietário ao criar, nas pessoas idôneas, um novo imperativo nacional. À imagem do governo livre que tem "o desígnio e o objetivo de esquadrinhar incessantemente a sociedade, de valorizar os espíritos superiores de todo o gênero [...], de conduzi-los 82 ao poder e [...1 obrigá-los a merecê-lo" , o patrimônio é esse incansável trabalho de atualização do passado no horizonte de um país cada vez mais esclarecido e ético. Assim, o princípio de conservação está associado à convicção de saber não só o que foi, mas o que deve ser e o que será a expressão arquitetural de uma época. O relatório do senhor de Gasparin, presidente do Comitê das Artes e Monumentos, sobre "as instruções relativas à conservação dos monumentos" (4 de maio de 1840) considera sete classes de monumentos: a última é dedicada aos "monumentos que existem apenas em projeto. Até o presente, escreve ele, foram abordados apenas os monumentos antigos, a arte do passado; mas a arte do futuro, os monumentos futuros deveriam constituir uma preocupação para o Comitê. Neste aspecto, ele 81. Em sua circular de 23 de julho de 1834, destinada aos membros das sociedades científicas, apud X. Charmes, Le Comité des travaux historiques et scientifiques, op. cit., t. 11, p. 309. 82. François Guizot, Des Moyens de gouvernement et d'opposition, op. cit., in Pierre Manent, Les Libéraux, op. cit., p. 157. 193

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não se deve eximir de fornecer os numerosos pareceres que lhe têm sido solicitados. Na construção, que estilo de arquitetura deve ser adotado, de preferência, pela França?"" Para outros, mais radicais, somente o artista pode conceber e legar à posteridade a imagem — a lembrança — de seu tempo. A esse respeito, um David d'Angers apresentava uma formulação límpida, em 1848, por ocasião de um pedido de socorro em favor dos prêmios de Roma, referindo-se aos artistas como "arquivistas dos povos, encarregados de legar ao futuro os gloriosos anais da humanidade"." De fato, a Segunda República (1848-1852) pretendeu abandonar, aparentemente, a categoria de "monumento histórico" em benefício de uma concepção sobretudo utilitária do monumento nacional, conservado por seu valor de uso. Como se tivesse assumido uma postura defensiva, o Rapportde 1850 afirmava que "os trabalhos como objetivo de restaurar nossos antigos edifícios são, hoje em dia, bastante apreciados", enquanto "há pouco, eram considerados apenas como objeto de estudo ou, até mesmo, de diversão para os arqueólogos". Ele colocava em dúvida a pertinência da definição administrativa, herdada de Guizot: "Esses edifícios, definidos imprecisamente pelo nome de monumentos históricos, têm uma afetação pública e uma utilidade cotidiana. Salvo algumas ruínas romanas, gigantescas lembranças de um povo, cuja história constitui a base de nosso sistema de educação, o que são esses monumentos históricos além de igrejas, prefeituras, fóruns?"" Mas, tendo passado esse breve eclipse, prevaleceu a filosofia da Monarquia de Julho (1830-1848), em que Viollet-le-Duc passou por ser, sob certos aspectos, discípulo de Guizot." Aliás, Guizot foi o primeiro a relacionar o respeito pela arte das épocas passadas — o sentido da arqueologia moderna — com a utilidade científica — o fichário da documentação — e com o uso cívico, ou seja, a mobilização das pessoas idôneas. O sucesso de tal 83. X. Charmes, op. cit., III, p. 575. 84. Proposição de M. David d'Angers, in L'Artiste, 5a série, vol. 1, ago. 1818, p. 224. 85. Rapport au ministre de l'Intérieur par Mérimée, apresentado à Commission, em 19 de julho de 1850, in Recueil BN , op. cit. 86. Cf. o parecer de B. Foucart, Viollet-le-Duc, op. cit., p. 369-374.

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representação revelou-se excelente para identificar a conservação dos monumentos, para além da perspectiva própria dos antiquários, com a salvaguarda da civilização. A ideia, mais ou menos explícita, de uma verdadeira teleologia das heranças sucessivas veio rapidamente fortalecer essa convicção sobre a necessidade do patrimônio para a nação. A este propósito, o século XIX conheceu uma inflexão sensível que, de um sentimento "patriota", passou, no final do período, para o que Maurice Agulhon designa como "um sentimento mais conciliador e apaixonado, de estilo bem francês". Entretanto, mantém-se o princípio de que, para a conservação, deve ser suficiente a interação entre curiosidades, gostos e interesses, desde que a opinião pública tenha recebido o devido esclarecimento. O espírito geral da conservação sob a Terceira Republica (1871-1940) baseou-se, assim, no investimento livre das preferências e interesses intelectuais na matéria; neste caso, o Estado desempenhou o papel de moderador ou serviu de última instância. Por ocasião do exame do projeto de lei Bardoux de 1878, o conselheiro do Estado CourcelleSeneuil recomendou que a intervenção pública fosse requisitada apenas em favor de "um reduzido número de monumentos ou objetos suficientemente importantes para que sua conservação seja de interesse nacional, e não [de] todos aqueles que possam ser úteis para a ciência da história e para a arqueologia. De acordo com o curso natural das coisas, devem ser conservados com todo o cuidado apenas os monumentos e objetos que apresentem uma utilidade atual, ou seja, que sirvam para satisfazer os gostos e as necessidades da geração presente; ora, somente um interesse realmente superior poderá autorizar que sejam tomadas medidas de conservação artificial. A decisão relativa à conservação de monumentos e objetos de interesse secundário deve contar com os estudos de pessoas e sociedades esclarecidas, com a evolução do gosto e com a influência da opinião pública." Acima de tudo, a ideia de que a conservação dos monumentos visa, para além da perspectiva própria dos antiquários, salvaguardar a expressão nacional, encarnação da civilização universal, tornou-se consubstancial ao discurso patrimonial. Louis Tétreau resumiu, em 1896, a legitimidade da conservação nestes termos: "A história das origens de um país, de 195

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sua civilização e de seu gênio está escrita em seus monumentos. A preocupação em conservar as obras de arte, testemunhas dos tempos passados, corresponde, portanto, a um sentimento nacional."" Ou, ainda melhor, a virtude da percepção do patrimônio, para Pariset, é quase condillaciana: "Espalhados em todo o território francês, esses monumentos suscitam, por bem ou por mal, naqueles que os contemplam desde sua infância, os mais elevados sentimentos [...1. Ao garantir a manutenção da integridade dos monumentos antigos, trabalha-se para elevar o nível artístico e moral daqueles que, por seu intermédio, recebem uma iniciação ao belo ou à imagem de nossas grandezas patrióticas." A paisagem dos monumentos torna-se desse modo uma lição propícia a instruir seus habitantes evocando uma convicção muito apreciada pelo patrimônio jacobino.88 No decorrer da Terceira República, a imagem do "patrimônio", sem ter passado ainda por qualquer ampliação, participou de um projeto democrático que era perfeitamente estranho à elaboração dos doutrinários. O sucesso da aculturação republicana da França (especialmente pela escola) ficou comprovado, antes de 1914, pelo fato de que, para retomar uma vigorosa conclusão de Alphonse Dupront, "a pátria tornou-se patrimônio"." De fato, cada um "pode encontrar nela aquilo de que tem necessidade. Terra, antepassados, história, ideal, promessa de futuro ou de glória e justificativa para o sacrifício: eis o que, de uma forma desconexa ou confusa, concorre para a subsistência da pátria."

87. Sucessivamente, Rapport..., par M. Courcelle-Seneuil, Projet de loi pour la conservation des monuments historiques, 1881, p. 2; e L. Tétreau, Législation relative aux monuments et objets d'art, Paris, 1896, p. 3. 88. "Apesar de serem bastante tributários de uma filosofia orleanista dos interesses, os integrantes da Terceira República conservam alguns aspectos dos antepassados ilustres da rue Saint-Honoré, a saber: a precedência do cidadão em relação ao homem privado e o papel pedagógico do Estado, portanto da escola, na formação do cidadão." (François Furet, "Les Jacobins", in Lettre Internationale, vol. 15, 1987, p. 86.) 89. Alphonse Dupront, La France et les Français, Paris: Gallimard, "Encyclopédie de la Pléiade", 1972, p. 1433. Será possível comparar essa postura com a construção italiana, graças a uma monografia recente: Simona Troilo, La Patria e la memoria: Tutela e patrimonio culturale nell'Italia unira, Milão: Electra, 2005.

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5 A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE Alguns afirmavam que a arte de uma época marcada pela rapidez seria breve, do mesmo modo que houve quem predissesse, antes da guerra, que ela seria curta. A estrada de ferro deveria, assim, matar a contemplação; então, era inútil lamentar o tempo das diligências, mas o automõvel veio substitui-las e, de novo, os turistas detêm-se nas igrejas abandonadas. Marcel Proust, À la Recherche du temps perdu.

No decorrer de sua viagem à Inglaterra com o amigo Chéruel, em agosto de 1834, Michelet foi visitar o castelo de Warwick, acessível habitualmente aos "turistas". Ele confessa, então, ter sido "tocado pela liberalidade com que o lord abre a casa aos estrangeiros. A conservação de tal castelo custa somas enormes; ora, o proprietário usufrui dele menos que o público. Os viajantes sucedem-se sem interrupção. O filho do lord estava ocupado a pintar a paisagem. Levaram-nos ao quarto de dormir, ao toucador. Eu entrava com hesitação; parecia-me que era uma forma de violar a santidade do lar doméstico. Cartas e jornais estavam em cima da mesa da condessa; o retrato de Napoleão sobre uma cadeira. [...] Tal uso da opulência e da grandeza é realmente um sacerdócio da arte; prouvera que o fluxo nivelador, em fase ascendente, venha a respeitar esta arca da arte e da Antiguidade".1 Semelhante liberalidade inscrevia-se na herança do século XVIII, a de uma Inglaterra em que o patrimônio dos aristocratas, acessível a um público mais ou menos distinto, era considerado como herança 2 da coletividade no âmbito de uma (falsa) consciência coletiva. Suas formas permaneceram imutáveis de Jane Austen a 1914, tanto mais 1. Éric Fauquet, Michelet ou la gloire du professeur d'histoire, Paris: Cerf, 1990, p. 194. 2. Linda Colley, Britons: Forging the Nation (1707-Ie837), New Haven: Yale University Press, 1992. Sobre o efeito de atualidade de tal leitura, cf. Francis Graham-Dixon, "The Albatross of the Past: Colley's Britons and Early Twenty-First Century Britain", in Journal of Contemporary History, vol. 9, 2005.

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que "a persistência do Antigo Regime"3 revelou-se, nesse ponto, impactante: no monumental Palácio de Blenheim, no final do século, Consuelo Vanderbilt — norte-americana, herdeira de considerável fortuna que se tornou duquesa de Marlborough pela vontade materna — descreveu os dias de visita do domínio de um modo semelhante ao utilizado cerca de cem anos antes pelo historiador francês.4 Entretanto, Michelet era sensível, sobretudo, às ameaças que pairavam sobre os monumentos da tradição — igrejas e castelos, através da Europa e, em primeiro lugar, na França — diante das medidas tomadas pelo recém-iniciado século liberal-democrático. No Journal, ele evocava sua "devoção" por "essa grandeza moribunda" e acrescentava que "os corvos da demagogia planam e crocitam acima desse grande cadáver feudal; os ecos da imprensa contribuem para desmantelar e solapar essas poderosas torres". Um século e meio depois, esses temores tornaram-se inúteis, apesar da profusão de crônicas sobre as destruições especulativas e, em particular, sobre as dispersões de um grande número de mobiliários. Em compensação, o visitante do castelo do "fazedor de reis" assiste, atualmente, a um espetáculo totalmente diferente daquele presenciado por Michelet: figurantes em traje de época, manequins de cera, música de fundo, e até mesmo odores ad hoc fazem parte de uma diversão bem organizada. Em relação aos parques de atração prestigiosos do grupo Tussaud, uma encenação convencional do passado acompanha uma comercialização bem rentável do lazer5; neste caso, o castelo apresenta o resumo acessível a "outros mundos" que vão da Idade Média até o século XIX vitoriano, justapostos a alguns metros de distância, no âmago de um espaço "sintético", de um hiper-realismo desconcertante,

3. Amo Mayer, La Persistance de l'Ancien Régime: L'Europe de Ie848 à la grande guerre, Paris: Flammarion, 1983. 4. Consuelo Vanderbilt Balsan, The Glitter and the Gold, Maidstone: George Mann, 1973. 5. David Lowenthal, "The Past as a Theme Park", in Terence Young e Robert Riley (orgs.), Theme Park Landscapes: Antecedente and Variations, Washington: Dumbarton Oaks Research, 2002, p. 11-23. 198

que evoca a concentração utópica dos parques temáticos.6 Por mais caricatural que possa parecer, essa patrimonialização bem-sucedida de um castelo-museu não deixa de ser reveladora das rupturas sucessivas pelas quais havia passado a herança histórica em suas relações com a propriedade e com a legitimidade.

A nova urgência da transmissão O patrimônio ocupa, atualmente, uma posição privilegiada nas configurações da legitimidade cultural, nas reflexões sobre a identidade e nas políticas do vínculo social.' Do ponto de vista da legitimidade, ele tem a ver com uma antropologia jurídica e política de longa duração, permitindo inscrever-se em uma filiação e reivindicar uma transmissão. Por sua vez, o segundo aspecto, o da identidade, coincidiu, desde a Revolução Francesa e a aparição do Estado-Nação no decorrer do século XIX, com a afirmação de uma coletividade ou de uma "comunidade imaginária", de acordo com a designação forjada por Benedict Anderson. Desde o período posterior à Segunda Guerra Mundial até os últimos decênios, as políticas, tanto educativas e culturais do Estado-Providência como sociais e urbanas, fizeram com que o culto da herança deixasse de ser a preocupação de uma reduzida elite para se tornar um compromisso coletivo, nem que fosse por delegação. Além dos desafios tradicionais a enfrentar pelas instituições, o fenômeno participa de uma mutação fundamental: verifica-se, a partir da década de 1960, a mudança da definição da cultura, que, daí em diante, engloba os mais diversos aspectos das práticas sociais, misturando alta e baixa cultura, de acordo com a afirmação dos sociólogos, no momento em que a paisagem material e imaterial passava por alterações aceleradas. Longe da definição canônica de uma herança cultural coerente a ser transmitida à geração seguinte, assistiu-se à emergência da ideia de culturas múltiplas, propícias a alimentar e a fortalecer a pluralidade de identidades. 6. Louis Marin, Utopiques, jeux d'espaces, Paris: Minuit, 1973. 7. Cf. Patrice Beghain, Le Patrimoine: Culture et lien social, Paris: Presses de Sciences Po, 1998. Sobre os casos franceses, Alban Bensa e Daniel Fabre (orgs.), Une Histoire à soi, Mission du Patrimoine Ethnologique, cahier n. 18, Paris: MSH, 2001. 199

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Atualmente, nas nossas sociedades de consumo e de cultura de massa, o uso do patrimônio, sua interpretação, até mesmo sua simulação — daqui em diante, por dispositivos virtuais —, passam por ser o instrumento de um desenvolvimento local ou nacional, em função do turismo e das práticas mercantis do saber e do lazer.8 Por todas essas razões, o patrimônio tornou-se o objeto de uma "cruzada popular", de acordo com a expressão forjada por David Lowenthal. Na Grã-Bretanha, ao lado da abordagem científica do patrimônio arqueológico, determinados usos "neopagãos" (os de Stonehenge) ou outras práticas marginais (como a detecção de metais por arqueólogos amadores) 9 são considerados, por exemplo, como uma modalidade de apropriação — um procedimento furtivo, teria dito Michel de Certeau10 — que deve ser pensada em uma perspectiva patrimonial democrática. Paralelamente, nos últimos vinte anos, as recomposições de heranças materiais na Europa, associadas ao desaparecimento do bloco socialista, deram lugar a uma patrimonialização às vezes nostálgica. Se sua ilustração mais espetacular é fornecida pelo filme Adeus, Lênin, uma parte do fenômeno, sob a forma de um novo futuro da nostalgia, refere-se, inversamente, a uma antropologia política dos fantasmas precedentes (estão de volta os reis defuntos e os príncipes desaparecidos)." Finalmente, o sentimento de urgência que tem sido o incentivo constante da consciência patrimonial foi, recentemente, duplicado por determinados processos de destruições (iconoclastias de ordem religiosa ou ideológica,

8. Cf. Xavier Greffe, La Valorisation économique du patrimoine, Paris: La Documentation Française, 2003. 9. Raphaël Samuel, Theatres of Memory: Past and Present in Contemporary Culture, I. Londres: Verso, 1996. 10. Uma posição, aliás, ilustrada pela Escola de Birmingham. 11. Sobre a natureza da cultura material que suscita essa nostalgia, cf. Paul Betts, "The Twilight of the Idols: East German Memory and Material Culture", in Journal of Modera History, vol. 72, n. 3, 2000, p. 731-765. De forma mais geral, cf. Svetlana Boym, The Future of Nostalgia, Nova York: Basic Books, 2001; Katherine Verdery, The Political Lives of Dead Bodies: Reburial and Postsocialist Change, Nova York: Columbia University Press, 1999; Jan-Werner Müller (org.), Memory and Power in Post-War Europe: Studies in the Presence of the Past, Cambridge: Cambridge University Press, Introdução. 200

2 estragos colaterais de conflitos ou "domicídios" negociados)1 -além outros tantos tipos de destruição, alguns inéditos, outros desaparecidos na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial. Por outras palavras, do mesmo modo que a memória tornou-se uma ferramenta 13 bem eficaz para pensar a justiça e o acervo dos conhecimentos , assim também o patrimônio — inclusive no "ódio aos monumentos" que ele suscita nas guerras civis contemporâneas — participa de uma nova consciência política. A razão patrimonial pode fornecer uma moldura para as iniciativas de restituição de bens culturais ou para as decisões de anistia em relação a pilhagens do passado — por exemplo, nas relações de uma metrópole com suas antigas colônias. Em todas as circunstâncias, o imperativo de conservação da herança — material e, daqui em diante, imaterial — impõe-se de maneira generalizada e obrigatória, como é testemunhado pelo aparato legislativo e por regulamentos que não cessam de estender sua área de aplicação.14 Nos últimos dois séculos, numerosas nações têm elaborado e implementado políticas de preservação e de conservação do patrimônio nos respectivos territórios. Na sequência dessas medidas, as organizações internacionais, em uma escala mais ou menos considerável, retomaram ou reivindicaram, por sua vez, esse tipo de preocupações. A Convenção Cultural Europeia, promulgada em 19 de dezembro de 1954, definiu uma herança comum do Continente em termos de um conjunto de línguas, de história e de civilização. Por último, a Unesco transformou essa política em um de seus títulos de glória menos contestados; desse modo, as ações em favor do patrimônio tornaram-se, frequentemente, a vanguarda de uma democratização cultural.

12. John Douglas Porteous e Sandra E. Smith, Domicide: The Global Destruction of Home, Montreal: McGill-Queen's University Press, 2001; livro em que se encontra a geografia das tentativas deliberadas de destruição das casas e dos terrenos ocupados com construções. 13. Ian Hacking, L'Âme réécrite: Étude sur la personnalité multiple et les sciences de la mémoire, Le Plessis-Robinson: Éditions Institut Synthélabo, "Les Empêcheurs de penser en rond", 1995. 14. Em 2003, a Unesco adotou uma Convenção para a Preservação do Patrimônio Cultural Imaterial. [Cf. Ra Abreu e Mário Chagas (orgs.), Memõria e patrimônio: ensaios contemporâneos, 2. ed., Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. (N.T.)] 201

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Esse triunfo não deixa de implicar riscos para a definição e para o uso reflexivo do termo, aos poucos debilitado e banalizado a ponto de abranger uma multiplicidade de noções e de objetos. De tal modo que, na França, o interesse pelo patrimônio, nas pesquisas em história e ciências humanas, tem sido limitado; diferentemente do arquivo, que à primeira vista lhe é relativamente aparentado por seu objeto e, ao mesmo tempo, por ser uma instituição de memória", mas que havia assumido o caráter de uma metáfora central — tanto na teoria cultural após Michel Foucault e Jacques Derrida quanto na reflexão epistemológica dos historiadores e dos antropólogos, ou nas interpretações da paisagem, do corpo e da fotografia (Rosalind Kraus) —, bem antes de tornar-se objeto de uma (re)apropriação crítica pelos arquivistas. A atualidade impactante da patrimonialização parece ter impedido o questionamento a respeito da construção dessa forma de obrigação relativamente à presença material do passado." A afirmação de um ponto de vista contrário — a eventual recusa da patrimonialização ou sua contestação — é rapidamente estigmatizada, no debate público, com o termo "vândalo". A emergência de críticas é, por isso mesmo, bastante i mprovável fora da expressão de divergências sobre a maneira de realizar, nas melhores condições, o tratamento dos monumentos, objetos e sítios. Ocorre, às vezes, que certas reivindicações, por parte de um grupo social, conduzem a debater ou a suscitar polêmicas a propósito de determinada forma de patrimônio vista como exagerada ou ilegíti ma; mas, em uma visão de conjunto, essas situações que eventualmente poderiam levar a um discurso crítico permanecem marginais. Para escapar a tal contingência, a história da invenção e da publicidade do patrimônio, pela exposição e pela escrita, deve ser tratada graças ao estudo dos recursos utilizados para seu (re)conhecimento, graças 15. Para um balanço da situação, cf. Jean Boutier, Jean-Louis Fabiani e Jean-Pierre Olivier de Sardan, Corpus , sources et archives, 1999, IRMC, 2001 (Atas das Jornadas de Tunis).

16. Sobre o caso dos museus, cf. Ludmilla Jordanova, "Objects of Knowlegde: A Historcal Perspective on Museums", in Peter Vergo (org.), The New Museology, Londres: Reaktion Books, 1989, p. 22-40; Daniel J. Sherman, Worthy Monuments: Art Museums and the Polotics of Culture in Nineteenth-Century France, Cambridge: Harvard University Press, 1989.

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à análise de suas modalidades — jurídicas e científicas — de identificação e de gestão, e, finalmente, à abordagem de suas práticas e de suas fruições.' Com efeito, os "achados" atinentes ao patrimônio, em cada época, elaboram-se através de inventários, percursos e operações comerciais" que mobilizam intrigas, tipos de inventores ou de patrimonializadores em uma relação com a "ecologia" dos objetos e dos lugares, orientada pelos diferentes registros do acesso, da (re)apropriação e da emoção. A noção de patrimônio implica um conjunto de posses que devem ser identificadas como transmissíveis; ela mobiliza um grupo humano, uma sociedade, capaz de reconhecê-las como sua propriedade, além de demonstrar sua coerência e organizar sua recepção; ela desenha, finalmente, um conjunto de valores que permitem articular o legado do passado à espera, ou a configuração de um futuro, a fim de promover determinadas mutações e, ao mesmo tempo, de afirmar uma continuidade. Esboçadas progressivamente por dispositivos de enquadramento de artefatos, lugares e práticas, as diversas configurações desdobram-se através das sociabilidades que as cultivam, das afinidades que se estabelecem por seu intermédio, além das emoções e dos saberes que se experimentam nesse contexto. Tal postura é contrária à ideia de um galpão repleto de obras e monumentos, segundo o modelo do depósito destinado a fatos, desqualificado por Lucien Febvre, em que o conservador do patrimônio, à semelhança do historiador anterior aos Annales, iria coletar as peças patrimoniais em nome de uma moldura constantemente válida, marcada somente pelas vicissitudes do gosto.

A formação de um cânon O estudo do patrimônio corresponde, em sua generalidade, aos três princípios — ou seja, perceptibilidade, especificidade e singularidade The 17. Para um exemplo do ponto de vista metodolõgico, cf. Sharon Macdonald (org.), Politics of Display, Londres: Routledge, 1998. Cf. os resultados da pesquisa recente, histórica e antropológica, sobre a economia 18. informal in Noël Barbe e Serge Latouche (orgs.), Économies choisies? Échanges, circulations et débrouille, Paris: MSH, 2004.

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— característicos da sociologia da recepção, tal como haviam sido explicitados por Jean-Claude Passeron.19 Seu corpus se fixa nos guias, relatos de viagem, cartas, jornais, catálogos, em função das reproduções em circulação, da importância das evocações ou das citações a seu respeito ou de que ele é a origem. O discurso patrimonial foi, em primeiro lugar, uma categoria de celebração própria da literatura artística, sob a forma da "exaltação de uma cidade ou de uma nação, apreendidas em suas tradições e obras", de acordo com o resumo de André Chastel a partir de Julius von Schlosser. Na época moderna, os textos escritos dos antiquários multiplicaram as listas de obras e as coleções de histórias relativas a cidades": o cavaleiro de Jaucourt tornou-se seu compilador nos verbetes da Encyclopédie dedicados à geografia. Em seguida, com a Revolução Francesa e o consequente desaparecimento dos objetos de memória e das civilidades do Antigo Regime, o século XIX assistiu à reconfiguração de suas relações com a coletividade. Esse comércio particular com as "lembranças" delineou formas culturais que levam a uma reação mútua entre estética e política, do sublime à nostalgia, dando lugar a múltiplas interpretações de apropriação.21 Trata-se de um elemento-chave das relações entre historiografia da arte e construções patrimoniais. O vínculo da conservação com a nação parecia evidente quando a maior parte desses objetos — "que contam"22 e cuja beleza pertence a todo o mundo, como escreve o primeiro Victor Hugo tornaram-se a encarnação da "comunidade imaginária".23 19. J.-C. Passeron, Le Raisonnement sociologique (l'espace non poppérien du raisonnnement naturel), Paris: Nathan, 1991, cap. IX e XII. 20. Cf. Julius von Schlosser, La Littérature artistique, Paris: Flammarion, 1984. Essas áreas, raramente estudadas na França, são bem aprofundadas na Inglaterra. Cf. Rosemary Sweet, The Writing of Urban Histories in Eighteenth-Century England, Oxford, Clarendon, 1997, cap. 1, em particular sobre o antiquariato. 21. Suzanne Marchand, Down from Olympus, Archaeology and Philhellenism in Germany, Ie750-1970, Princeton: Princeton University Press, 1996; e o clássico Eliza Marian Butler, The Tyranny of Greece over Germany, Cambridge: Cambridge University Press, 1935. 22. Daniel Miller, "Why some Things Matter", in D. Miller (org.), Material Cultures, Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 3-21. 23. Benedict Anderson, "Census, Map, Museum", in Imagined Communities, Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Nova York/Londres: Verso, 1991, p. 163-186.

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Os novos monumentos históricos inscrevem-se em um lugar uma jazida — do qual eles são a ilustração e que, por sua vez, os implica seja em uma reivindicação de autoctonia, seja em um culto da transmissão nacional24: aliás, não há contradição entre os dois aspectos quando o apego ao lugarejo [petite patrie] conduz a uma pedagogia da nação [grande patrie]. Visitar seu domínio — os objetos de sua petite patrie — torna-se um ato político para o cidadão." Observa-se, então, a emergência progressiva de um academismo inédito a respeito da conservação-restauração. A arqueologia, paralelamente, dá lugar a diversas enunciações dos valores do in situ, reinvestidas em múltiplas 26 demonstrações ao sabor dos tradicionalismos ou dos revivals. Atualmente, as reflexões político-administrativas não cessam de afirmar que o patrimônio é "um presente do passado"27, o que implica tomar consciência das omissões e das falsas evidências. Assim, marcado por notórias controvérsias pós-coloniais, o patrimônio mundial abre-se, com um relatório de Léon Pressouyre, para um retorno reflexivo sobre sua composição e seus usos." Para além da crítica contra ficções romain" Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit 24. Yann , in Archives de la Philosophie du Droit, 1980, p. 425; "Les Ornements, la cité, le patrimoine", in Images romaines, Paris: ENS, 1998. 25. Assim, Jean-François Chanet, Les Félibres Cantaliens: Aux Sources du Régionalisme auvergnat (1879-19Ie4), Clermont-Ferrand: Adosa, 1999; Philippe Martel, "Le Félibrige", in P. Nora, Les lieux de mémoire, III: Les France, 2: Traditions, Paris: Gallimard, 1992, p. 566-604. 26. Dois exemplos bastante significativos: John Hutchinson, "Archaeology and the Irish Rediscovery of the Celtic Past", in Nations and Nationalism, vol. 7, n. 4, 2001, p. 505-519; além de Catherine Bertho-Lavenir, L'Invention de la Bretagne: Genèse sociale d'un stéréotype", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 35, nov. 1980, p. 45-62; e "La Géographie symbolique des Provinces: De la Monarchie de Juillet à l'entre-deux-guerres", in Ethnologie Française, n. 3, 1988. 27. Notre Patrimoine, un présent du passé, Proposition à Madame le ministre de la Culture sous la présidence de Roland Arpin, Groupe-conseil sur la politique du patrimoine culturel du Québec, Canadá, nov. 2000. 28. Ao lado de disputas já antigas sobre as restituições de obras, Moira G. Simpson forneceu um quadro dos debates atuais sobre a devolução dos objetos sagrados e dos restos humanos em Making Representations: Museums in the Post-Colonial Era, Londres/Nova York: Routledge, 1996. Para uma análise exemplar, cf. Yves Le Fur, "Europe chasseuse siècles", in La Mort n'en saura rien: Reliques d'Europe de têtes en Océanie, et d'Océanie, Paris: RMN, 1999, p. 59-67.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE sinceras ou invenções desonestas, trata-se de questionar a produção e o consumo da própria evidência patrimonial, ao mesmo tempo imaginária e instituição. O historiador deve justificar a formação complexa das inclusões e exclusões que constituem o cânon patrimonial. Os objetos patrimoniais têm sido protegidos por convenções discursivas que, por sua vez, estão associadas, frequentemente, a exigências materiais ou técnicas. Os guias de pesquisa ou os compêndios pedagógicos, os documentos ministeriais e os pareceres das sociedades científicas — e, de forma mais ampla, os romances familiares dos patrimonializadores e toda a literatura favorável aos monumentos pertinentes — alimentam especulações sobre as nomenclaturas, questionamentos sobre a história, afirmações moralizadoras e enunciações de hierarquias. Os detalhes a apreender correspondem a diversos gêneros de inscrição do que é notório e apropriado no âmago de repertórios a construir." Em qualquer circunstância, as missões improvisadas ou planejadas, as visitas e as coletas, as compilações e as investigações, as intervenções de restauração e as aprendizagens de savoir-faire elaboram e sancionam determinados procedimentos." O jornalismo patrimonial, se é que se pode atribuir-lhe tal qualificativo, que anuncia periodicamente "invenções" e descobertas, continua empenhado em ajustar o sentido de um passado e a consciência do presente31 — contribuindo tanto para normalizar as diferenças, como para colocar em destaque a singularidade de um monumento ou de uma peça para o entendimento da história e para suscitar o orgulho de uma coletividade. A documentação patrimonial, assimilada na origem por Guizot ao gênero da estatística descritiva alemã, cria cifras em condições particulares de produção — cifras comparadas, aos poucos, entre nações para avaliar o "peso" relativo de seus patrimônios, no cerne de intercâmbios

29. Cf. N. Leask, Curiosity and the Aesthetics of the Travei Writing, Ie770-1840. "From an Antique Land", Oxford: Oxford University Press, 2002.

entre cientistas, administradores, legisladores e opinião pública.32 Esse esforço documental fornece representações frequentemente concorrentes de um conjunto imperceptível como tal.33 No entanto, essas montagens inibem, em geral, considerar o detalhe dos procedimentos que as tornam possíveis, impedindo de pensar as incertezas das ofertas, escolhas e recursos que marcaram, e até mesmo limitaram estreitamente, a realização de tais inventários. As "coleções efêmeras" formadas assim, para distorcer a expressão forjada por Francis Haskell, são outras tantas (re)produções — pela imagem34 e pelo texto escrito — de objetos em uma recontextualização ad hoc; elas empenham-se na identificação de um Estado-Nação em determinado momento do saber e do gosto que corresponde à definição de sua identidade.

As civilidades do patrimônio Os "amigos" dos objetos patrimoniais, sejam eles amadores ou profissionais, polígrafos ou experts, militantes ou funcionários, e estejam eles constituídos ou não em comunidades de interpretação, erigem-se em porta-vozes ou em advogados das inovações, apropriações e atribuições." Algumas dessas figuras — o antiquário e seus vestígios, o conservador e seu museu, o folclorista e seu material — passaram aos poucos para o estado de estereótipos quase antropológicos, para além do registro dos clichês literários." Eles encarnam convenientemente 32. Cf. Eric Brian, La Mesure de l'Êtat: Administrateurs et géomètres au XVIII' siècle, Paris: Albin Michel, 1994. 33. Thomas da Costa Kaufmann fornece um balanço historiográfico que, em certos aspectos, responde à questão em Toward a Geography of Art, Chicago: University of Chicago Press, 2004. 34. Cf., por exemplo, Anne de Mondenard, La Mission héliographique: Cinq Photographes parcourent la France en 185Ie, Paris: Monum/Éditions du Patrimoine, 2002.

30. Cf., a partir dos objetos de ciência, as perspectivas abertas por Éric Brian, "Calepin: Repérage en vue d'une histoire réflexive de I'objectivation", in Enquête, vol. 2, 1996, p. 193-222.

35. Os estudos de microssociedades, assim como dos intercâmbios informais em seu seio, multiplicam-se, atualmente, na história moderna e contemporânea. Nesse ponto, alguns bosquejos bastante sugestivos de Miguel Tamen, em Friends of lnterpretable Objects, Cambridge: Harvard University Press, 2001, podem servir de base metodológica.

31. Cf. a contribuição de Daniel Woolf em Brendan Dooley e Sabrina Baron, The Politics of Information in Early Modern Europe, Londres: Routledge, 2002.

36. No início do século XIX, a peça Les Antiquaires, de Sade , dá testemunho, entre outros, desse registro.

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A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

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as identidades construídas pela reciclagem de imagens, objetos e práticas sem herdeiros naturais e, simultaneamente, "dados" em herança; além disso, alimentam as intrigas de diferentes discursos ou roteiros, científicos ou familiares, e fazem parte da encenação das redes de socialização erudita e artística, segundo diversos modelos — por exemplo, o do proselitismo patrimonial.37 Nesse aspecto, é elucidativo o caso do escritor e desenhador Alexis Muston, homem-memória dos habitantes do cantão de Vaud, elogiado por Michelet. De fato, os princípios morais no plano individual e as éticas coletivas elaboram-se ou reconfiguram-se a respeito de legados mais ou menos reivindicados e de invenções mais ou menos oportunas; assim, a emulação científica e a rivalidade pela fruição dos acervos exacerbam-se mutuamente, em benefício da identidade de uma população, de uma memória religiosa ou de uma cidade. Para além de uma geografia sempre essencial ao projeto patrimonial, as atividades dos amigos de objetos desenham uma economia da intuição e do acaso, a da serendipity,38: ela se encontra na origem de achados bem preparados e, por seu intermédio, de uma hierarquia dos "patrimonializadores" — colecionadores, arqueólogos, "acumuladores" de objetos "selvagens" ou, ainda, atores de folclorismos mais ou menos associados a uma "performatividade" comemorativa, sob os auspícios do presentismo.39 Daí, a constatação do fracasso dos

37. Conviria empreender a comparação com a ética da república das letras, abordada por Ann Goldgar em Impolite Learning, New Haven: )(ale University Press, 1995, e sua crítica por Christian Jouhaud. 38. Sobre esse termo, inventado por Horace Walpole em 1754, e seus recursos para uma sociologia e uma antropologia histõricas do trabalho científico, cf. Robert K. Merton e Elinor G. Barber, The Traveis and Adventures of Serendipity: A Study in Historical Semantics and the Sociology of Science, Princeton: Princeton University Press, 2004. 39. Em 1962, Hans Moser faz surgir a questão do folclorismo nos estudos etnolõgicos sobre a tradição, distinguindo três tipos: a reprodução de práticas folclóricas fora de seu contexto, a imitação de um folclore popular por outras classes sociais e a invenção de um folclore sem tradição anterior. Cf. Venetia J. Newall, "The Adaptation of Floklore and Tradition (Folklorismus)", in Folklore, vol. 98, n. II, 1987, p. 131-151. Cf. ainda a análise de Barbara Kirshenblatt-Gimblett sobre o encontro do folclorismo com o etnólogo, "Folldorists in Public: Reflections on Cultural Brokerage in the United States and Germany", in Journal of Folklore Research, vol. 37, n. 1, 2000, p. 1-19. 208

antiquários, dos colecionadores mais ou menos benfeitores ou dos conservadores cultos, quando seus conhecimentos ou suas preferências pessoais são pouco ou mal compartilhados ou, pelo contrário, de seu sucesso quando eles recebem, prestigiados por um concerto de elogios, um reconhecimento particular." As histórias de vidas ou os romances familiares — por exemplo, o dos Visconti, conservadores do Vaticano e, em seguida, do Louvre no final do século XVIII, que acompanharam os objetos no meio de ocupações e revoluções — mostram como é possível articular a singularidade de compromissos particulares com a partilha de valores coletivos. Neste aspecto, foi implementada uma considerável diversidade de maneiras de fazer: assim, as práticas da escrita habitual do patrimonializador, da qual participam seus eventuais cadernos de compras, relatórios de escavações ou notas de investigação; aliás, a sondagem das riquezas de todo esse acervo foi empreendida pela etnologia contemporânea." Essa tentativa do homem do patrimônio, decidido a dotar o objeto com as respectivas referências — temporais, espaciais — para situá-lo, explicá-lo e interpretá-lo", segundo suas ambições, é sempre mais ou menos uma autodidaxia, de acordo com o termo utilizado desde o século XVIII a propósito do connoisseurship, considerado como um saber aprendido "à força de correr", ou seja, no decorrer de viagens 40. Roger Cardinal, "The Eloquente of Objects", in Anthony Shelton (org.), Collectors: Expressions of Self and Other, Londres: Horniman Museum and Gardens/Museu Antropológico da Universidade de Coimbra, 2001. 41. Daniel Fabre (org.), Écritures ordinaires, Paris: Centre Georges-Pompidou/POL, 1993; Martin de La Sourdière e Claudie Voisenat (orgs.), Par Écrit: Ethnologie des écritures quotidiennes, Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1997. Em outro plano, para exemplos de escritas pesquisadas em que algumas são patrimonializadas, cf. Armando Petrucci, Jeux de Lettres: Formes et usages de l'inscription en Italie, XIe-XXe siècle, Paris: EHESS, 1993; e Béatrice Fraenkel, Les Écrits de septembre: New York 2001, Paris: Textuel, 2002. 42. Bonnie Smith, em The Gender of History: Men, Women and Historical Practice, Cambridge: Harvard University, 1998, examina a questão do gênero no estudo de arquivos — particularmente, a relação entre trabalho original e vulgarização, entre amador e profissional — de uma forma que poderia ser útil aqui para pensar a posição do feminino na elaboração de um corpus patrimonial e sua validação. Cf., de forma mais abrangente, o dossiê reunido por Luisa Passerini e Polymeris Voglis, Gender in the Production of History, EUI Working Paper HEC, n. 2, 1999. 209

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e de intercâmbios. Nesse caso, foi essencial elaborar um sentido visual do passado, desde as paisagens formadas por monumentos urbanos às ruínas na zona rural, em uma relação complexa com a historiografia e com as aprendizagens eruditas; na sequência, abriu-se o leque das curiosidades, exigindo uma verdadeira coleta de recursos complementares. A tentativa de preparar uma história da patrimonialização da cultura material implica debruçar-se sobre a erudição e sobre o colecionismo com suas disposições tácitas e seus recursos mais insignificantes, em suma, com todos os gestos que organizam a percepção e a representação dos objetos em função de saberes locais, tradicionais e populares, que estão relacionados, por um lado, com as afinidades específicas de eruditos ou de amadores e, por outro, com os conhecimentos gerais do homem de bons costumes.43 Esboça-se, assim, uma verdadeira economia da arqueologia, desde o Antigo Regime até as redes mais densas da poligrafia do século XIX, entre descobertas fortuitas por ocasião das lavouras campestres, "invenções" por antiquários locais e reconhecimentos no âmago da erudição nacional.44 Para além disso, os princípios de construção do corpus correspondem, em geral, à estratégia do trabalho em comissão para resolver crises ou problemas de definição, assim como aos modos da inspeção e da inscrição em séries que pressupõem uma cadeia de categorias a preencher, de lugares a verificar, em suma, uma hierarquia a estabelecer." No afastamento ou na proximidade das peças, na permanência ou na precariedade de sua exposição, na eventual sedução dos procedimentos de sua reprodução, efetua-se, de qualquer modo, uma publicidade ampliada dos patrimônios que mantém vínculos complexos com o comércio 43. Esse é o programa realizado por Keith Thomas com o livro Dans le Jardin de la nature: La Mutation des sensibilités en Angleterre à l'époque moderne (1500-1800), Paris: Gallimard, 1985. De maneira geral, cf. Peter Becker e William Clark (orgs.), Little Tools of Knowledge: Historical Essays on Academic and Bureaucratic Practices, Ann Arbor: Michigan University Press, 2001. 44. Daniel Woolf, The Social Circulation of the Past: English Historical Culture, Ie5001730, Oxford: Oxford University Press, 2003. 45. Além dos estudos de Anne-Marie Thiesse (La Création des identités nationales. Paris: Le Seuil, 2001), cf., sobre esse tipo de sociabilidade erudita a partir da Monarquia de Julho, Stéphane Gerson, The Pride of Place: Local Memories and Political Culture in Nineteenth-Century France, Ithaca: Cornell University Press, 2003. 210

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de objetos e de imagens de baixo preço, cujo "bom gosto" é variável, nos li mites do popular e do pitoresco." Por conseguinte, essas civilidades patrimoniais culminam em apropriações. A fruição do patrimônio corresponde a convenções de ordem moral 47 e historiográfica que deram lugar a uma abundante literatura ; desde o período moderno, esta incrementou-se a partir de questionamentos sobre os estágios da história, assim como de especulações sobre as mitologias, além de afirmações sobre os modelos e os valores. Assim, o imaginário social da genealogia marcou profundamente, durante o Antigo Regime, a ideia da transmissão." Na sequência, a apropriação de um patrimônio assumiu uma forma mais dinâmica, propícia a alimentar o senso cultural de coletividades, cuja definição ocorreu progressivamente em uma interação com os elementos estranhos e o respeito pela preocupação da perpetuação. Essas formas de apropriação passam por diferentes graus de entendimento social com o passado material, assim como por distribuições desiguais de "grandezas" — por exemplo, entre coleções e museus." Uma das questões centrais da história cultural do patrimônio na Europa contemporânea parece ser a seguinte: se e como o Antigo Regime dos objetos de memória e de suas civilidades desapareceu em benefício de 50 novas referências e de novas partilhas. De fato, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, numerosos amigos de objetos parecem desapossados, do 46. Rosemary Hill, "Cockney Connoisseurship: Keats and the Grecian Urn", in Things, vol. 6, 1997; e, de forma geral, uma grande parte dos artigos dessa revista, tais como os de Res no domínio antropológico. 47. Assim, Champfleury, L'Homme aux figures de cire, in Les Excentriques (1855), Paris: Le Promeneur, 2004; e Brigitte Louichon, "Champfleury: Du Bric-à-brac à la collection", in Jean-Louis Cabanès e Jean-Pierre Saïdah (orgs.), La Fantaisie post-romantique, Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2003, p. 293-314. 48. Renato Bizzocchi, em Genealogie incredibili: Scritti di storia nell'Europa moderna, Bolonha: Il Mulino, 1995, fornece pistas relevantes sobre este tema. 49. Entre raros artigos, cf. Gwendolyn Wright (org.), The Formation ofNational Collections of Art and Archaeology, Washington: National Gallery of Art, 1996, p. 29-39; Annie Coombes, "Museums and the Formation ofNational and Cultural Identities", in The Oxford Art Journal, vol. 11, n. 2, 1988, p. 58-68. 50. Michael Herzfeld, Cultural Intimacy: Social Poetics in the Nation-State, Londres/ Nova York: Routledge, 1997, p. 27; do mesmo modo, A Place in History: Social and Monumental Time in a Cretan Town, Princeton: Princeton University Press, 1991. 211

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ponto de vista material e simbólico, de suas disposições individuais à experiência histórica quando se elabora um movimento coletivo dedicado ao "patrimônio". A propósito da Alemanha, Susan A. Crane defende a tese de uma perda das capacidades particulares de experiência histórica quando da fusão dos interesses pessoais de colecionadores e de amadores de história no âmago de um movimento coletivo em prol do "patrimônio" alemão.51 Em outro plano, H. Glenn Penny esboça um quadro bastante semelhante dos efeitos da publicidade museal sobre a natureza dos objetos colecionados e sobre os discursos que animam seus colecionadores individuais.52 Entretanto, diferentes modos de viver a patrimonialidade chegaram a ser experimentados de maneira simultânea: assim, tal objeto que é da alçada de uma intensa patrimonialização pública e tal outro que participa de uma idiossincrasia vieram a trocar suas posições em uma geração ou a um ritmo mais rápido ou, ainda, coexistir em função de múltiplas identidades sociais. No decorrer do século XX, os dispositivos da conservação articulam-se, de maneira mais ou menos visível, às vicissitudes dos estereótipos nacionais, à construção das narrativas identitárias e à massificação dos públicos, em particular, através das mutações da museografia internacional." Simultaneamente, a abertura de museus, cada vez mais diversificados, multiplica o número de potenciais objetos de afinidade, sejam eles nacionais ou exóticos, introduzindo, por conseguinte, certa interação [jeu ] na contramão de uma instrumentalização unívoca." A proliferação dos objetos patrimonializados que se 51. Susan A. Crane, Collecting and Historical Consciousness in Early Nineteenth-Century Germany, Ithaca: Comell University Press, 2000. 52. H. Glenn Penny, Objects of Culture: Ethnology and Ethnographic Museums in Imperial Germany, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001. 53. Carol Duncan, Civilizing Rituais: Inside Public Art Museums. Londres: Routledge, 1995. 54. Alice von Plato, Prãsentierte Geschichte: Ausstellungskultur und Massenpublikum im Frankreich des 19. Jahrhunderts, Frankfurt/Nova York: Campus, 2001; Malcolm Baker e Brenda Richardson (orgs.), A Grand Design: The Art of the Victoria and Albert Museum, Baltimore Museum of Art, 1997 (Catálogo da exposição); Stephen Conn, Museums and American Intellectual Life, 1876-Ie926, Chicago: University of Chicago Press, 1998; Nicholas Thomas, Entangled Objects: Exchange, Material Culture, and Colonialism in the Pacific, Cambridge: Harvard University Press, 1991, cap. 4, "The European Appropriation of Indigenous Things", p. 125-185. 212

tornam motivo de fruição e de disputa — ou não — suscita, de forma totalmente inovadora, a questão da adesão dos cidadãos a um depósito de valores, a um interesse comum da imaginação e da arte. Tudo isso forma o que poderia ser designado por "moralidade" do patrimônio nas representações coletivas. Ora, tal moralidade pode adotar o partido de um programa de emancipação, ou de um conformismo social e cultural.

O ponto de vista da recepção A obra do historiador de arte Alois Riegl (1858-1905), Le Culte moderne des monuments, escrita em 1903, no momento em que ele havia sido incumbido de refletir sobre a conservação dos monumentos, constitui uma tentativa sem precedentes de pensar não a herança monumental, como tinha sido elaborada anteriormente nas histórias do vandalismo e da conservação, mas a relação que a cultura ocidental havia mantido, até então — e pode manter no futuro —, com tal herança. Por conseguinte, ele inventa um novo tema que tem ocupado, incessantemente, nossos interesses eruditos e políticos: o fenômeno de patrimonialização em sua relação com a história da arte. Trata-se de um exercício para pensar as relações entre o tempo inscrito nas obras de arte e o tempo percebido no seio das sociedades. De maneira mais precisa, Riegl procura analisar a democratização em ação no apego aos monumentos e na defesa de sua autenticidade. Em seu ensaio, esse autor identifica a instantaneidade visual e, por conseguinte, perfeitamente democrática, da relação com o monumento como a mola principal da próxima extensão do senso da herança: a época das massas será, de fato, dominada pelo sentimento (stimmung) e não pela consciência erudita associada, até então, ao monumento histórico. Do mesmo modo que Guizot havia dispensado as leituras maniqueístas do vandalismo revolucionário, assim também Riegl parece abandonar as leituras científicas sobre a proteção dos monumentos." Ambos propõem uma leitura que supera as considerações 55. Sobre o contexto vienense e as influências filosóficas, cf. Michael Gubser, "Time and History in Alois Riegl's Theory of Perception", in Journal of the History of Ideas, 213

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circunstanciais para recorrer a uma perspectiva muito mais ampla. Em Guizot, a modernidade identificava-se com o advento da imparcialidade na história, na memória e na herança; por sua vez, em Riegl, trata-se de uma modernidade do próprio presente.% Ao considerar a definição primeira do monumento, desde a mais recuada Antiguidade, ou seja, algo de intencional, Riegl sugere que ela será totalmente irrelevante no futuro. O horizonte de uma extinção do monumento intencional corresponde a um esgotamento das mobilizações coletivas, em benefício de um individualismo generalizado. De início desmentido amplamente pela primeira metade do século XX, o diagnóstico de Riegl deu a impressão, em seguida, de responder à situação europeia dos últimos decênios. A dominação tendencialmente esmagadora de monumentos não intencionais implica uma mudança radical do olhar: seu objetivo é definido não mais por seus autores, sócios comanditários, responsáveis e curadores, mas por seus observadores. Em suma, depois de Riegl, o espectador deixou de ser algo de exterior ao monumento, tornando-se participante de sua definição, em particular de sua patrimonialização: a posteridade dá o lugar ao imediatismo de uma recepção.57 2005, p. 451-474; e, sobretudo, Diana Reynolds, Alois Riegl and the Politics of Art History: Intellectual Traditions and Austrian Identity in Fin-de-Siecle Vienna, tese mimeografada, San Diego: University of California Press, 1997. A proposição de Max Dvorak, no sentido de reformar a legislação protetora de 1850, para além de um corpus limitado de monumentos, data de 1914, e seu Katechismus der Denkmalpflege é publicado em 1916. A lei, porém, foi revista apenas em 1923. Para um estudo mais aprofundado sobre a evolução das proteções relativas a Salzburgo, a partir de 1860, cf. Lester B. Rowntree e Margaret W. Conkey, "Symbolism and the Cultural Landscape", in Annals of the Association of American Geographers, vol. 70, n. 4, 1980, p. 459-474. 56. Para Hans-Georg Gadamer, essa consciência particular da historicidade aparece, precisamente, no final do século XIX e no início do século XX: Le Problème de la consciente historique, Paris: Le Seuil, 1996. 57. A. Riegl, Der moderne Denkmalkultus: Sein Wesen und seine Entstehung, Wien-Leipzig, 1903; Le Culte moderne des monuments, trad. de Jacques Boulet, Paris: L'Harmattan, 2003; Sandro Scarrochia, Alois Riegl: Teoria e prassi della conservazione dei monumenti: Antologia di scritti, discorsi, rapporti 1898-Ie905, con una scelta di saggi critici, Bolonha: Clueb, 1995. Não se pode desenvolver, aqui, tudo o que essa reviravolta fica devendo aos trabalhos anteriores de Riegl, desde seu estudo sobre o retrato de grupo flamengo, que integra a posição do espectador, ao ensaio sobre a arte romana, considerada na perspectiva não mais dos predecessores, mas dos sucessores. 214

O primado da não intencionalidade na nova definição do monumento, além de testemunhar dessa inclusão do espectador no processo, remete — para anulá-lo — à distinção, evocada nos primeiros capítulos deste livro, entre monumento e antiguidade. Ele tem a ver, sem dúvida, com a situação singular da história da arte no círculo universitário de Viena, intimamente associada ao mundo dos museus e inclinada a revisitar — assim, exemplarmente, em Julius von Schlosser — os domínios tradicionais do antiquário. Entretanto, ele dispõe de uma perfeita lógica intelectual: a partir do momento em que é a passagem do tempo que confere valor ao monumento, qualquer artefato, testemunha do passado, é suscetível de assumir uma significação monumental, independentemente de seu status de origem. No decorrer do século XX, a distinção entre grande arte e arte de massa, assim como entre obra e artefato, devem desaparecer em benefício de um ponto de vista "indiciário", capaz de valorizar qualquer vestígio. O interesse pelo monumento intencional vai forçosamente diminuir, uma vez que o objetivo dessa espécie de monumento consiste sempre em colocar o passado no presente, tornando-o, em cada instante, pertinente e atual. O distanciamento, ao contrário, encontra-se no cerne do interesse moderno pelo monumento não intencional que rejeita absolutamente participar de um passado presente, servir de memorial e, portanto, suprimir sua idade. Melhor ainda, se é que se pode falar assim, as ruínas de sua aparência ou de seu presságio — no mínimo, a interação com a ideia — estão na sua origem: trata-se do monumento de um passado concebido exclusivamente como duração. Sob esse aspecto, aliás, a atualidade do diagnóstico de Riegl é impressionante em matéria de artefatos etnológicos — a noção de "artes primeiras" sugere, de fato, um tempo incerto, mas marcado a priori pela longa duração, ao passo que a maioria dessas peças datam apenas do século XIX. A invenção do monumento não intencional incumbe inteiramente à modernidade: ela é o resultado da aparição, no século XIX, de uma disciplina científica permitindo que o historiador da arte inclua cada obra em um conjunto, segundo referências específicas. Todavia, e pela primeira vez na história do patrimônio, Riegl recorre exclusivamente aos valores que, eventualmente, tais monumentos evocam ou 215

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despertam em determinado público. A reflexão tanto do historiador como do conselheiro da administração dos monumentos históricos incide, desde então, sobre os valores em jogo no sentido em que eles mobilizam a opinião pública e podem determinar as atitudes e as políticas de conservação. A complexidade das implicações deve-se aos conflitos de alguns desses valores entre si, assim como às negociações consequentes a empreender. Em um monumento, Riegl distingue três formas possíveis de valor memorial: a forma intencional inicial, comemorativa; em seguida, o valor histórico, que surgiu com o Renascimento", tendo-se estabilizado no século XIX com um aparato de conservação-restauração destinado à manutenção do estado de origem; por último, o valor de ancianidade, que, por ironia, pode ser designado também por valor do futuro, e cuja relação com a restauração é eminentemente problemática. Em muitos aspectos, a prognosis de Riegl parece fazer eco à célebre fórmula de Chateaubriand, inscrita um século antes, em Génie du christianisme, segundo a qual "todos os homens experimentam uma secreta atração para as ruínas".59 Entretanto, nesse autor, o espetáculo do escoar do tempo deve ser entendido de maneira perfeitamente estranha a qualquer nostalgia: nesse aspecto, o discurso de Riegl difere

58. Sabine Forero-Mendoza, Le Temps des ruines: Le Goût des ruines et les formes de la conscience historique à la Renaissance, Seyssel: Champ Vallon, 2002. 59. "Todos os homens experimentam uma secreta atração para as ruínas. Tal sentimento deve-se à fragilidade da nossa natureza, a uma secreta conformidade entre esses monumentos destruídos e a brevidade da nossa existência. Além disso, acrescenta-se ainda uma ideia que lisonjeia nossa pequenez ao observar que povos inteiros e homens, às vezes bastante famosos, não conseguiram sobreviver ao reduzido período atribuído à nossa obscuridade. Assim, as ruínas são escolas de verdadeira moralidade entre as cenas da natureza: ao serem esboçadas em um quadro, procura-se inutilmente movimentar o olhar para outra parte; de fato, este retorna sempre para fixar-se nelas... Existem duas espécies de ruínas: uma é obra do tempo, enquanto a outra é obra dos homens. As primeiras são realmente agradáveis, porque a natureza trabalha ao lado dos anos: se o tempo as transforma em escombros, ela vem semear flores. Se vier entreabrir um túmulo, ela coloca aí o ninho de pomba: ocupada incessantemente em reproduzir, ela rodeia a morte com as mais ternas ilusões da vida. Por sua vez, as ruínas da segunda espécie são, de preferência, devastações: limitam-se a oferecer a i magem do nada, sem qualquer dinâmica de reparação." (Chateaubriand, Génie du christianisme, III, v, 3.) 216

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da postura de seu contemporâneo Georg Simmel, ao afirmar — em 1907, no ensaio Les ruines — que "a atração das ruínas (consiste em) permitir que uma obra humana seja quase percebida como um produto da natureza".60 De fato, com as ruínas, em Simmel, "a matéria prevalece em relação ao trabalho do homem. A oscilação entre a natureza e o espírito, cujo símbolo era o prédio, rompe-se em benefício da natureza. Esta ruptura torna-se uma tragédia cósmica." Nada parecido em Riegl, que nesse ponto não faz qualquer evocação ao trágico. O contemporâneo, porém, não é indicado, nesse autor, exclusivamente por sua predileção pelas manifestações de ancianidade: pelo contrário, ele conforma-se amplamente aos dois valores da atualidade, ou seja, o uso e a arte. O primeiro tem a ver com o uso prático do edifício, perfeitamente contraditório do valor de ancianidade, visto que tal uso exige uma eficácia continuada do prédio e, portanto, o respeito por sua intenção primeira; por sua vez, o segundo valor, mais complexo, remete à noção de kunstwollen, elaborada por Riegl como uma volição artística específica de cada época. Ora, diferentemente de outras, algumas obras do passado correspondem à nossa sensibilidade e, portanto, apresentam uma familiaridade para o espectador, em nome 6 dessa forma de estilo que é a "variável independente", o kunstwollen. 1 O valor relativo à arte postula uma integridade do monumento, ou sua total reconstrução, que pode eventualmente conciliar-se com o valor histórico, mas contradiz, de qualquer modo, absolutamente o valor de ancianidade. Por último, uma categoria particular do valor de arte, o de novidade, é também típico da modernidade de massa, uma vez que cada um pode apreciá-la sem ter recebido uma educação particular, considerando unicamente a coerência inédita do objeto novo. Nesse aspecto, a passagem do valor histórico para o valor de ancianidade significa o triunfo do ponto de vista do presente sobre o privilégio, ainda há pouco atribuído a determinada época da história e, a fortiori, sobre o momento de criação do monumento, que coincidia com sua 60. Georg Simmel, "Les Ruines: Un Essai d'esthétique", in La Parure et autres essais, Paris: MSH, 1998. 61. Cf. Roland Recht, "Pour une Historie critique des styles", in Annuaire du Coute de France, Paris, 2003, p. 993. 217

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intenção primeira. Além disso, a continuidade de tal processo pressuporia uma "suspensão" do tempo em um presente eternamente eficaz da comemoração. Desse modo, o moderno é percorrido por um importante antagonismo entre dois valores opostos, em que o da ancianidade, supostamente, prevaleceria no futuro sobre o outro, focalizado na força do novo. Mas, atualmente, quando as ruínas, como noção e fenômeno — de acordo com o ponto de vista de Marc Augé62 —, estão em via de desaparecer de nossas cidades ocidentais, que, em vez de vestígios, estão votadas a deixar detritos em grande número de terrenos baldios, Riegl parece ter assumido, em seu discurso, a figura de um profeta do passado; sua convicção a respeito do desaparecimento dos monumentos intencionais foi, como já afirmamos, amplamente desmentida — uma ilustração, em sua evidente performatividade, é o recente sucesso do Memorial da Guerra do Vietnã, em Washington, mesmo que se trate, sem qualquer dúvida, de um contramonumento heroico em relação ao que havia conhecido o século XIX." Em compensação, somos talvez mais sensíveis à carga utópica de seu discurso no sentido em que ele esboça o ideal de um culto universal aos monumentos, desvencilhado das fronteiras, comunidades e história, diretamente acessível pelo sentimento individual. Para além de tais considerações, porém, a demonstração enfatiza a necessidade de vislumbrar diferentes temporalidades, a saber: a ancianidade "em si" inscrita no monumento, objetivamente, pela pátina; os acidentes, até mesmo as ruínas parciais de sua estrutura; a historicidade, resultado de um modo de ver relativista sustentado por uma construção intelectual; e a intencionalidade original, cuja lembrança pode manterse na fidelidade de uma tradição. O espectador de um monumento é remetido a um sentido antropológico da duração, mas concebido do ponto de vista do presente. Essa tensão entre a obra passada — ou seja, o passado concretizado em um objeto — e o julgamento (estético) presente emerge no âmago das leituras sucessivas da obra. Deste modo, 62. Marc Augé, Le Temps en ruins, Paris: Galilée, 2003. 63. Robert Harrison, Les Morts, Paris, Le Pommier, 2003, p. 203-210. 218

incumbe ao historiador desempenhar um papel essencial. A oposição categórica ao essencialismo, preconizada em Le Culte moderne des monuments, enfatiza os valores de relação e de associação em matéria de patrimônio: a ancianidade, a posição no seio de uma sequência temporal, a integração a um "ritmo" ou a um desenvolvimento, bem como a significação histórica, aparecem, assim, amplamente determinantes em uma história sempre aberta. Nesse aspecto, o discurso de Riegl inaugura uma nova época da apreciação do monumento em sua relação com o tempo do espectador."

O caso do território-patrimônio Desde o final do século XIX, certa valorização do território tem mantido uma estreita relação com as ideias de determinismo, muito apreciadas pela Kultur alemã, ou seja, aquela que — se dermos crédito a E. Renan — arvorava em 1870 "a bandeira da política etnográfica e arqueológica". Mais tarde, os temas relativos ao folclore, à província e ao círculo restrito de relações foram associados sob diferentes reivindicações, em particular no início do século XX: em 1901, o Manifesto da Fédération Régionaliste Française, redigido por Charles Brun, tinha o objetivo, "por uma seleção inteligente das tradições, pelo ensino da história local e do folclore", de "vincular a criança a seus antepassados e despertar-lhe o orgulho do torrão natal, criando, assim o patrimônio a partir de realidades tangíveis". De acordo com essa visão, ou segundo perspectivas semelhantes, assistiu-se à multiplicação de iniciativas, quase sempre isoladas.65 Assim, Edmond Hugues — organizador do 64. Em sentido contrário, cf., por exemplo, Robert Klein, La Forme et l'intelligible: Écrits sur la Renaissance et l'art moderne, Paris: Gallimard, 1967, p. 410. 65. Cf. Anne-Marie Thiesse, Écrire la France: Le Mouvement régionaliste de langue française entre la Belle Époque et la libération, Paris: PUF, 1991; e Ils apprenaient la France: L'Exaltation des régions dans le discours patriotique, Paris: MSH, 1997; Julian Wright, The Regionalist movement en France 1890-1914, Oxford: Oxford University Press, 2003. E, em relação ao devir ulterior, cf. Pierre Barral, "Idéal et pratique du régionalisme dans le régime de Vichy", in Revue Française des Science: Politiques, n. 5, 1974, p. 911-939. 219

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Musée du Désert66, inaugurado em 1911 — sublinhava em 1913 como "a França inteira, à semelhança da Alemanha, da Suíça e da Suécia, havia fundado e funda, todos os dias, numerosos museus da tradição regional, em que são conservados usos antigos, costumes locais [...] ora, a Provence havia mostrado o caminho com seu Muséon Arlaten".67 Entretanto, a separação entre a Igreja e o Estado — promulgada pela lei de 1905 — acabou implicando a renegociação das clivagens anteriores, tendo evocado uma possível alternativa à patrimonialização republicana. Em 1912, a propósito das igrejas da França, Maurice Barrès — guia intelectual do movimento nacionalista — esboçava uma representação do patrimônio profundamente estranha à tradição intelectual, oriunda das Luzes e da Revolução, ou seja, à ideologia política francesa. Ele elogiava "as igrejas humildes, talvez sem estilo, mas repletas de encanto e de emocionantes lembranças que formam a fisionomia arquitetural, a figura física e moral do território francês". Ele defendia as igrejas "que são feias, desdenhadas, que não são rentáveis para as estradas de ferro, nem fazem viver os proprietários de estalagens [...], tampouco merecem o seguinte comentário: 'Que excelente espaço para um salão de baile ou para um museu!" Sua cruzada não só contra todas as formas do progressismo, mas também contra os cânones do gosto e da crítica erudita, não isentava os "tipos" legados por Viollet-le-Duc, ou seja, a ideia de exemplaridade com base científica que "se limita a conservar alguns espécimes que permitem fazer uma ideia, grosso modo, da nobre espécie desaparecida"68 66. Désert (Deserto) designa o período de 1685 a 1787, ou seja, entre a revogação do Edito de Nantes e o Edito da Tolerância; este museu, instalado em um vilarejo da região de Cévennes (vertente oriental do Maciço Central), faz reviver o passado dos protestantes calvinistas. [N.T.]

67. Apud Françoise Lautman, "Objets de religion objets de musée"; além de Isabelle Collet, "Les Premiers musées d'ethnographie en France" e "Le Monde rural aux expositions universelles", in Jean Cuisenier (org.), Muséologie et ethnologie, Paris: RMN, 1987; Jean-Noa Pelen, "Le Pays d'Arles: Sentiments d'appartenance et représentation de l'identité", in Terrain, n. 5, 1985. 68. Maurice Barrès, La Grande Pitié des églises de France, Paris, 1912, p. 82-83, 369. Sobre o contexto geral, cf. Claude Digeon, La Crise allemande de la pensée française (1870-Ie9Ie4), Paris: PUF, 1959, p. 384-450; e o balanço recente sobre um aspecto

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André Chastel, historiador de arte, tem razão em evocar, através da adesão sentimental, a promoção de uma verdadeira "consagração do ser vivo".69 Será que, nessa proposição, se deve reconhecer um simples "corretivo lógico ao que havia de insuficiente no dispositivo que se li mita a proteger os monumentos históricos" ou, por outras palavras, o suplemento anímico a um projeto, até então exclusivamente erudito e científico? De fato, essa nova construção intelectual inscrevia-se na tradição contrarrevolucionária, associada mais ou menos diretamente ao romantismo político, que incentiva a representação do patrimônio a definir-se, antes de tudo, como uma emoção compartilhada. No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, como foi sublinhado por Raoul Girardet, "a visão da nação, da terra e dos mortos, segundo Barrès, tende a esvaziar-se de seu conteúdo afetivo e moral, como ocorre também com a i magem apresentada a seu respeito por Renan, ou seja, a de um pacto permanente de cocidadania; além disso, desaparece ainda o sincretismo republicano que havia associado as ideias desses dois autores, isto é, a concordância entre vontade política, participação cidadã e comunidade de cultura"." Por conseguinte, são implementadas novas imagens do território-patrimônio. Uma das mais notáveis está diretamente relacionada a uma patrimonialização da paisagem natural no âmago de uma construção da identidade territorial. Um ponto de vista científico tinha se difundido nas narrativas de exploração das Luzes, nos relatórios de descobertas e 7 nas ilustrações de viagens. 1 Nesses textos, o olhar do cientista desenhava bem particular em Beate Gödde-Baumanns, "La Prusse et les Allemands dans l'historiographie française des années 1871 à 1914: Une Image inversée de la France", in Revue Historique, vol. CCLXXIX, n. 1, p. 51-72. 69. André Chastel, op. cit., 1981, p. 7-16. 70. Raoul Girardet, op. cit., 1991, p. 2. 71. Cf. Robert Lenoble, Esquisse d'une histoire de l'idée de nature, Paris: Albin Michel, 1969; e, sobretudo, a suma de Clarence J. Glacken, Traces on the Rhodian Shore: Nature and Culture in Western Thought from Ancient Times to the End of the Eighteenth Century, Berkeley/Los Angeles, 1967 e Paris, CTHS, 2000. Uma nova historiografia é bem representada por Carolyn Merchant, The Death of Nature: Women, Ecology and the Scientific Revolution, San Francisco: Harper, 1980. Para a demonstração a propósito do século XVIII, cf. Barbara Maria Stafford, Voyage into Substance: Art, Science, Nature and the Illustrated travel Account, 1760-1840, Cambridge: MIT Press, 1984. 221

UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

um território-patrimônio inédito que, às vezes, recebia a colaboração do sentido do sublime. No século XIX, paralelamente à instalação de diferentes arqueologias nacionais, a partir do modelo da arqueologia clássica, empenhadas no estudo das artes e da literatura de cada país e apoiadas nas cátedras universitárias e nas instituições de conservação, a Europa conheceu diversas iniciativas de museificação de uma paisagem natural.72 O território estético, ou seja, a coleção dos mirantes pitorescos e dos sítios turísticos, suscita a atenção dos guias e da literatura de viagem"; no início do século XX, surgem associações que, em particular, se dedicam à proteção das paisagens a partir do modelo da sociabilidade, há pouco mobilizada contra o vandalismo em relação aos monumentos. A invenção do curso sobre geografia e a evolução dos estudos folclóricos permitem enunciar, na França, o território em espaços individualizados: as regiões. O geógrafo P. Vidal de La Blache — aliás, reivindicado pelo movimento regionalista — manifestava seu apoio aos museus etnográficos nestes termos: "Do mesmo modo que o botânico ou o zoólogo conseguem discernir — pelo aspecto da folhagem e de outros componentes de uma planta, ou pela aparência da pelagem e dos órgãos de locomoção de um animal — as influências gerais de clima e relevo em que viveram esses seres, é possível que o geógrafo consiga descobrir, pela análise do material submetido a seu exame, as condições ambientais em que ele se formou. [...] E quanto às sociedades evoluídas, cujo acervo infinitamente abundante não poderia circunscrever-se às vitrines de um museu, ele vai conservar, pelo menos provisoriamente, um número suficiente de vestígios de usos e de costumes locais bastante instrutivos a respeito dos espécimes".74 Um saber aprofundado 72. Sobre o exemplo ímpar da Suíça, cf. os estudos de François Walter, desde "Attitudes Towards the Environment in Switzerland, 1880-1914", in Journal of Historical Geography, vol. 15, n. 3, 1989, p. 287-299, até "La Montagne alpine: Un Dispositif esthétique et idéologique à l'échelle de I'Europe", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, vol. 52, n. 2, 2005, p. 64-87. 73. Para uma visão panorâmica, cf. Judith Adler, "Travel as Performed Art", in American Journal of Sociology, vol. 94, n. 6, 1989, p. 1366-1391. 74. Paul Vidal de La Blache, Principes de géographie humaine (publiés par Emmanuel de Martonne), Paris, 1921, p. 119-121; Didier Gonzalez, "L'Idée de pays dans la géographie et la culture française au tournant du siècle", in Paul Claval (org.), Autour de 222

A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

conduz, daí em diante, por meio da investigação e do confronto de indícios condizentes, a uma consciência do território comprometida, se necessário for, com um regionalismo militante e, de qualquer modo, marcada pela convicção de participar da modernidade. No decorrer do século XX, assiste-se ao desaparecimento de "um modelo de leitura do espaço que era um modelo estético e, essencialmente, pictural"; em seu lugar, trata-se de aceitar "a diversidade das formas de expressão e (de) enfatizar os modelos inspiradores das paisagens comuns", situando-as "em um plano semelhante às paisagens elitistas e desvencilhando-as do peso dos mitos estéticos".75 No entanto, além do interesse manifestado, daí em diante, pelas paisagens "menores", que não deixam de ser verdadeiros territórios e, portanto, patrimônios", a tentativa entende apreender o território em sua invisibilidade, mostrando um 77 reconhecimento inédito do espaço vivenciado e dos territórios culturais. Vidal de La Blache: La Formation de l'école française de géographie, Paris: Éd. du CNRS, 1993, p. 123-129; Annie Bleton-Ruguet, "Les 'Pays" vidaliens: Aménagement du territoire et espaces ruraux, entre démarches savantes et enjeux politiques", in Annie Bleton-Ruguet, Pierre Bodineau e Jean-Pierre Sylvestre (orgs.), "Pays” et territories: De Vidal de la Blache aux lois d'aménagement et le développement du territoire, Dijon: Éd. Universitaires de Dijon, 2002, p. 27-37; e Pierre Bourdieu, "L'Identité et la représentation: Éléments pour une réflexion critique sur l'idée de région", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 35, nov. 1980. 75. Em uma abundante bibliografia, cf. Yves Luginbuhl, "Tableau chronologique des créations de procédures, organismes et institutions concernées par l'aménagement rural en France depuis les années 1950", in Strates, vol. 1, 1986, p. 125-140; "Paysage élitaire et paysages ordinaires", in Ethnologie Française, t. 19, 1989, e "Crise du paysage?", p. 227-238; Paysages: Textes et représentations du siècle der Lumières à nos jours, Paris: La Manufacture, 1989. Sobre a tradição marxista anglo-saxônica relativamente ao estudo da paisagem, cf. o clássico Raymond Williams, "Plaisantes perspectives: Invention du paysage et abolition du paysan", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 17-18, 1977, p. 22-36. E, entre estes, paradoxalmente, os territõrios de uma catástrofe: Giorgio Botta (org.), 76. Prodigi, paure, ragione: Eventi naturali oggi, Milão: Guerini, 1991. 77. A preocupação atual com o meio ambiente foi interpretada pelos geõgrafos — e, no primeiro plano, por Pierre George, Fin de Siècle en Occident: déclin ou métamorphose? Paris: PUF, 1982, p. 149-150 — como o reconhecimento de suas apreensões. E é verdade que essa tradição intelectual reivindica seu aporte na evolução contemporânea das definições patrimoniais: para o balanço relativo à primeira metade do século XX, cf. Michael Williams, "The End of Modern History?", in Geographical Revim vol. 88, n. 2, 1998, p. 275-300. 223

UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

Os valores da apropriação Em matéria de restauração, para além do princípio de reversibilidade relativamente a qualquer intervenção, o registro dos motivos perseguidos e dos métodos adotados leva a traçar novamente as vicissitudes de cada interpretação do objeto e as leituras — mistura de preconceitos e de obcecações — que orientam sua apropriação. "A uma visão unívoca, e às vezes redutora, seguiu-se uma concepção pluralista e, algumas vezes, confusa."78 Paralelamente, na história cultural, a ênfase é colocada, daí em diante, na legibilidade das vidas sucessivas do monumento, nas escolhas voluntárias de interpretação e na complexidade das formas de transmissão. Por último, a atual democratização do coreus de objetos de patrimônio implica um redobrado trabalho de perícia a fim de culminar em uma conveniente discriminação. Ao prevalecer o que Louis Dumont designa por "universalismo individualista", torna-se árduo distinguir entre o que é da esfera do privado — objetos de família, patrimônio de um colecionador — e o que é, legitimamente, da esfera pública e exige ser catalogado, preservado e acessível ao público. O patrimônio, atualmente, está marcado pelo duplo abandono do arrimo patriótico e da exclusividade da alta cultura. De fato, sua definição, por um lado, deixou de ser estreitamente nacional, tendendo a identificar-se com um espaço cultural amplamente fracionado — até a terra inteira. Por outro lado, daqui em diante, ele engloba, para além da herança monumental stricto sensu, um conjunto de figuras e de atividades da civilização e da humanidade consideradas como significativas." Se dermos crédito a uma recente Géographie de la France, "a melhor avaliação do patrimônio francês" exprime-se por várias rejeições. Recusa do volume de negócios por rejeitar submeter-se exclusivamente à materialidade: "O valor real desses patrimônios 78. Jean-Pierre Bady, "L'Évolution de la notion de patrimoine", in Monuments Historiques, vol. 161, jan./fev. 1989, p. 3. 79. André Leroi-Gourhan, Les Racines du monde: Entretiens, Paris: Belfond, 1982. 224

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acumulados não estará também e ainda mais no signo que nas cifras monetárias, ou seja, no símbolo para além do volume de negócios?" Recusa da identificação com uma herança em estoque: o patrimônio é "memória morta das raízes esquecidas que os museus reavivam, memória viva da cultura comprometida na polifonia das vozes do planeta". Jn fine, a amnésia "progressista" do acervo nacional culmina na reivindicação de universalismo, sem que deixe de manifestar-se uma forma patrimonial bem francesa: "A justa avaliação do patrimônio francês baseia-se nos bens que a França deixou de possuir de forma exclusiva e que, atualmente, fazem parte da cultura e da civilização mundiais."80 A fórmula remete ao importante fenômeno da evolução atual do patrimônio, ou seja, a substituição do patrimônio da civilização, no sentido das Luzes, por um patrimônio mundial das culturas. A crise de uma representação da universalidade identificada com a história nacional, ou europeia, traduziu-se pela impossibilidade de manter a i magem tradicional de um patrimônio normativo. Portanto, em vez de li mitar-se a estender consideravelmente a noção de monumentos ou a promover um diálogo internacional, trata-se, realmente, de abandonar a imagem de um patrimônio confundido com a leitura ocidental da história, em benefício de um inventário das variações dos artefatos 8 da humanidade no espaço e no tempo. 1 "A vocação do Patrimônio Mundial", escreve Michel Parent, "consiste em convencer os Estados a aceitar a noção de universalidade da cultura, através do respeito pe82 las culturas específicas." Assim, a perspectiva antropológica de um inventário das diferenças apareceria como a figura patrimonial plenamente democrática; considerando, porém, a sobreposição das fronteiras políticas e culturais, o confronto entre nacionalismos associados a movimentos de reivindicação comunitária, étnica ou religiosa, e entre 80. Denise Pumain e Thérèse Saint-Julien, "France", in Roger Brunet (org.), Géographie universelle, France, Europe du Sud, Paris: Hachette, 1990, p. 22-23. 81. Mas o terno "patrimônio" tem subsistido, apesar da diversidade cultural da noção de "propriedade". Cf. Norbert Rouland, Anthropologie juridique, Paris: PUF, 1988. 82. Michel Parent, "Le Patrimoine mondial et l'Icomos", in Icomos/Information, n. 4, 1987, p. 1-7. 225

A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

patriotismos exacerbados, deixa pairar a incerteza relativamente à sua adoção." Aliás, essa dificuldade é enfrentada também — apesar de não ser o único ponto comum — pelo conceito jurídico de "patrimônio comum da humanidade" aplicado, nos últimos vinte anos, à natureza. De fato, "balizas e cercas, resultantes de escolhas contratuais e de acasos atinentes a direitos de sucessão, correspondem apenas excepcionalmente às fronteiras naturais. Às divisões efetuadas pelo ser humano sobrepõem-se outros esquemas: biótopos, áreas de distribuição, bacias e declives constituem um verdadeiro cadastro da natureza; ora, levá-lo em consideração é uma condição prévia indispensável para qualquer proteção razoável"84. Na verdade, "a inadequação de qualquer quadro

à posteridade, mas os materiais de uma ancianidade, frequentemente privada de datas ou de nomes, além de todos os recursos do imaterial." Existe, portanto, um vínculo estreito entre a representação de um patrimônio, o caráter mais ou menos extensivo de sua definição e a necessidade de um trabalho de atualização, confundido com a intervenção social. A dinâmica do patrimônio entende-se, daqui em diante, como tomada de consciência da sociedade por si mesma, graças à revelação con88 tinuada (interminável) de suas "propriedades" . Tudo se passa como se a patrimonialização, concebida como o trabalho da memória de um lugar e de um grupo, se tornasse o principal fenômeno, em detrimento de uma patrimonialidade postulada, certamente, como a reserva em ouro

territorial, independentemente de seu tamanho" é manifesta nesta categoria de processos patrimoniais.85

servindo de garantia à circulação de papel-moeda, mas que, na maior 89 parte das vezes, está presente apenas no segundo plano. Além disso,

Por último, esse patrimônio é amplamente invisível quando o mo-

o avanço espetacular da construção social do patrimônio — graças a uma administração específica e à constituição progressiva de um coreus — coincide, às vezes, com um progressivo desprendimento dos

numento histórico era não só um indício visível, mas o signo por excelência de uma vontade de transmissão. Sua manifestação é, portanto, o resultado de uma política empenhada em configurar as culturas em pauta, construindo sua representação por um trabalho de interpretação. Ainda neste aspecto, o paralelo é evidente com a elaboração jurídica do "patrimônio comum", que revela uma abstração quase completa,

cidadãos em relação a seus patrimônios históricos e naturais, transferidos para o domínio turístico. Quando o patrimônio se "naturaliza" como comemoração da vitalidade de qualquer cultura, o território apresenta-se, assim, o lugar-comum dessa afirmação.90 Ainda há pouco

"visto que desapareceu o suporte material da propriedade, seja ela privada ou pública".86 Em suas representações banais e, ao mesmo

prestigiosos e de prédios "antigos" é que transformava o território em

tempo, científicas, o patrimônio já não evoca a inscrição vigorosa dos antepassados na memória coletiva, nem os monumentos a transmitir

83. Cf. Anthony D. Smith, The Ethnic Origins of Nations, Oxford: Blackwell, 1986, cap. 8, "Legends and Landscapes", p. 174-208. Cf. ainda as observações dispersas sobre esse ponto em Edward Shils, Tradition, Chicago: University of Chicago, 1981. 84. Martine Rèmond-Gouilloud, "Ressources naturelles et choses sans maître", p. 219237, in Bernard Edelman e Marie-Angêle Hermitte (orgs.), L'Homme, la nature et le droit, Paris: Bourgois, 1988. Cf. ainda Martine Rèmond-Gouilloud, Du Droit de détruire: Essai sur le droit de l'environnement, Paris: PUF, 1989. 85. Marie-Angèle Hermitte, "Les Concepts mous de la propriété industrielle: Passage du modèle de la propriété foncière au modèle du marché", in B. Edelman e M.-A. Hermitte, op. cit., p. 85-99. 86. Bernard Edelman, "Entre Personne humaine et matériau humain: Le Sujet de droit", in B. Edelman e M.-A. Hermitte, op. cit., p. 101-143.

tempo, a presença de monumentos de todas as ordens, de edifícios

87. Sobre o interesse manifestado pela arquitetura rural, cf. os artigos de Isac Chiva e Françoise Dubost, "L'Architecture sans architectes: Une Esthétique involontaire?", in Études Rurales, vol. 117, 1990, p. 9-38; além de Philippe Bonnin, "L'Utile et l'agréable: La Question de l'esthétique dans l'enquête d'architecture rurale du Musée national des arts et traditions populaires (1943-1947)", p. 39-72. Sobre as implicações, cf. Florence Weber, "Le Folklore, I'histoire et l'État en France (1937-1945)", in Revue de Synthèse, vol. 3-4, 2000, p. 453-467. 88. Freddy Raphaël e Georges Herberich-Marx, "Le Musée, provocation de la mémoire", in Ethnologie Française, vol. 17, n. 1, 1987, p. 87-95. 89. Do mesmo modo que, na vulgata pós-moderna, a memória prevalece em relação ao objeto da lembrança: Frank Ankersmit, "Historiography and Postmodernism", in History and Theory, vol. XXVIII, n.2, 1989, p. 137-153, e sua reflexão sobre a ruptura e a maneira de superá-la na Revolução Francesa, entre experiência e linguagem: Sublime Historical Experiente, Stanford: Stanford University Press, 2005. 90. Robert M. Newcomb, "Monuments Three Millenia Old —The Persistente of Place", in Landscape, vol. 17, 1967, p. 24-26. 227

UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

um patrimônio, ao passo que, atualmente, qualquer território pode ser declarado patrimônio91, de acordo com a nova perspectiva de uma ética que preconiza o reconhecimento mundial das culturas.92

Um patrimônio da significação Decorrido um século da reflexão de Riegl, a análise da situação pode partir da virada do decênio de 1980, que será abordada em dois níveis diferentes: através de um opúsculo circunstancial francês e através das novas convenções internacionais. Em seu relatório de 1982, Max Querrien resume, apropriadamente, as características utópicas e, ao mesmo tempo, orientadoras da reflexão promovida então na França; trata-se de "transmitir a nosso patrimônio o sopro da vida, além de pôr termo a uma visão demasiado difundida segundo a qual o patrimônio seria apenas um acervo de objetos inertes"". Por conseguinte, o discurso é singularmente semelhante ao de Ludovic Vitet ao retornar da inspeção das bibliotecas: o mesmo imperativo de revitalização percorre, no período de dois séculos, a literatura administrativa do patrimônio. A novidade da década de 1980 deve-se à ideia de que "a familiaridade com o patrimônio pode ser legitimamente incluída no número dos direitos humanos. [...] Cada cidadão tem o direito de dedicar-se a uma pesquisa de paternidade cultural que lhe permitirá conhecer-se de um modo que não se restrinja ao deserto das cidades-dormitórios, nem às tecnologias da evasão." A irrupção do povo como ator de seu patrimônio, impelido a conhecer-se e a libertar-se, é acompanhada pela recusa, em diferentes planos, dos "falsos prestígios de um passado erigido como referência absoluta" (p. 10). Para além da retomada de uma retórica que, dessa vez, parece reatar com 1789, 91. Isaac Joseph, "Le Musée, le territoire, la valeur", in Henri-Pierre Jeudy (org.), Patrimoines en folie, Paris: MSH, 1990, p. 259-268. 92. Eugene C. Hargrove, Foundations of Environmental Ethics, Nova York: Prentice-Hall, 1989. 93. Max Querrien, Pour une Nouvelle Politique du patrimoine, Paris: La Documentations Française, 1982, p. 5-7.

A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

evoca-se precisamente a utopia de uma comunhão e, sobretudo, a esperança, para não dizer um "culto" democrático, pelo menos uma atividade patrimonial acessível a todos. O Colóquio dedicado aos Monuments historiques demain, em 1984, assumiu a opção de um patrimônio em harmonia com os valores de uma sociedade, e não tanto com os valores de uma história da arte, cuja definição está subordinada a critérios externos." Simultaneamente, desta vez no horizonte mundial, o Comitê Australiano de International Council on Monuments and Sites (Icomos) redigiu, em 1979, a Carta de Burra, como reação às grandes convenções internacionais ou europeias baseadas em concepções tradicionais a respeito do monumento. Pela primeira vez, a carta australiana introduz a noção de "significação cultural", a fim de levar em conta os patrimônios natural e autóctone. Ela pretende ser essencialmente pragmática, em proveito dos encarregados da gestão dos bens patrimoniais e, por conseguinte, enuncia os valores que podem ser atribuídos aos objetos do patrimônio. Mais tarde, as categorias esboçadas — históricas, estéticas, comemorativas, etc. — serão repertoriadas com a preocupação de ampliar, ao mesmo tempo, o campo patrimonial e a população de atores — segundo os casos, aborígines ou primeiras nações. No âmago das instituições internacionais (Unesco, Icomos, Getty Conservation Institute), o imperativo de uma gestão do patrimônio pelos valores exige, então, que seja identificada precisamente a importância valorativa reconhecida a determinado patrimônio por suas comunidades de interpretação." Concretamente, em numerosos países do mundo, a gestão do patrimônio tenta estabelecer uma lista exaustiva dos valores que diferentes populações poderão reivindicar para determinado sítio ou objeto. Esse nivelamento valorativo permite a proteção dos bens ao reconciliar, em caso de necessidade, interesses divergentes, e ao manifestar a legitimidade da intervenção pública. Tal visão é, atualmente, cada vez mais 94. Maurice Agulhon, "Intervention", in Les Monuments historiques demain: Paris, Actes du coloque La Salpêtrière, Ie984, Paris, [19--], p. 268. 95. Getty Conservation Institute, Values and Heritage Conservation, 2000; Assessing the values of Cultural Heritage, 2002. 229

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holística ao integrar as exigências do desenvolvimento sustentável; entretanto, em todas as circunstâncias — o Serviço dos Parques nos Estados Unidos e no Canadá, a Comissão Australiana do Patrimônio, os experts do Getty Institute —, postula-se que o orgulho manifestado por um grupo deva ser validado pela humanidade inteira. Nesse aspecto, o patrimônio não deixa de ser — como havia sido desde sempre — o resultado de um processo consciente de seleção; mas, nessa perspectiva, é baseado em apreciações particulares. Para sua inclusão no patrimônio, monumentos ou sítios culturais devem ser marcados, em primeiro lugar, com um sinal positivo por indivíduos ou grupos, porque, de acordo com um recente relatório quebequense, "além de proteger objetos, trata-se de permitir que determinada população venha a interiorizar a riqueza cultural de que ela é depositária".96 De maneira acelerada, segundo os casos, pelas recomposições das fontes e dos processos de financiamento da conservação, tal perspectiva conduz a uma estreita integração dos valores comunitários às ações empreendidas. O desafio consiste, desde então, em saber quem, na comunidade, decide o que deve ser protegido e como legitimar as escolhas adotadas. Desse modo, voltam a ser formuladas as questões clássicas da sociologia política em relação aos poderes de nomear ou à capacidade de fabricar a coletividade, seja ela formada por famílias, grupos étnicos, regiões ou nações. É obvio que, contrariamente à reflexão elaborada por Guizot, o acúmulo natural dos saberes e da autoridade, atribuído à circunspeção do Estado, deixou de ser atual: nesse caso, orgulho e solidariedade são os valores que devem prevalecer relativamente à avaliação externa da idoneidade. Assim, desconsidera-se a confiança depositada na imparcialidade garantida pelo "estiolamento" inelutável das intenções atinentes aos monumentos.

96. Les Arts et la ville: La Création du patrimoine, mémoire déposé au Groupe-Conseil sur la politique du patrimoine culturel au Québec, Canadá, 14 abr. 2000.

CONCLUSÃO A época atual talvez seja, de preferência, a era do espaço. Estamos na época da simultaneidade, da justaposição, na época do perto e do longe, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que nossa experiência do mundo, creio eu, é não tanto a de uma vida longa que se desenvolvesse através do tempo, mas a de uma rede que liga pontos e procede a interseções em sua meada. Talvez fosse possível dizer que alguns conflitos ideolõgicos que animam a polêmica atual opõem os fiéis descendentes do tempo aos obstinados habitantes do espaço. Michel Foucault, "Des Espaces autres" (Conferência pronunciada no Cercle d'Êtudes Architecturales, em 14 de março de 1967), in Architecture, Mouvement, Continuité, n. 5, out. 1984, p. 46-49.

Uma definição orientada pelo futuro No final do século XVIII, parece ter existido um acordo perfeito entre o que poderia designar-se, respectivamente, memória do saber1 e patrimônio. Winckelmann ou Caylus empenharam-se em criar uma arqueologia e uma história da arte a partir de coleções de objetos2: o Museu de História Natural é um vasto laboratório, enquanto a antropologia nascente ou a etnologia encontram seu berço natural na Biblioteca Real e, em seguida, Nacional, no Museu dos Monumentos Franceses e nas investigações da Academia Céltica. Durante o período da Revolução Francesa, a luta contra o vandalismo, promovida pelo abbé Grégoire com o objetivo de conservar elementos materiais do Antigo Regime, é legitimada pelo trabalho dos historiadores contemporâneos 1. Sobre essa expressão, cf. Paolo Rossi (org.), La memoria del sapere, Roma/Bari: Laterza, 1990. 2. Thomas Da Costa Kaufmann, "Antiquarianism, the History of Objects, and the History of Art Before Winckelmann", in Journal of the History of Ideas, vol. 62, n. 3, 2001. 231

CONCLUSÃO

UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

e, sobretudo, futuros. O apelo ao futuro é que serve de justificativa para a preservação desses materiais, a partir da convicção de que, daí em diante, eles não terão a possibilidade de transmitir seu sentido, ou seja, serão incapazes de inspirar o ardor contrarrevolucionário dos sequazes do despotismo ou da superstição. Essa orientação para o trabalho da posteridade implica um projeto intelectual e político que associa nova legitimidade, utilidade científica e conservação ponderada. Na sequência, a patrimonialização ocidental inscreveu-se continuamente nas mesmas premissas. O National Register of Historic Places, nos Estados Unidos, afirma reconhecer, atualmente, lugares associados seja "a acontecimentos que deram uma contribuição relevante para a história geral", seja "a vidas de personalidades significativas do passado" ou "que encarnam características de um tipo, de um período ou de um método de construção, ou representam a obra de um mestre, ou possuem um grande valor artístico" ou, finalmente, "que contêm informações importantes para a história ou a pré-história". Ao ler essa enumeração, o apelo a uma investigação vindoura constitui a própria definição do patrimônio; semelhante constatação poderá ser confirmada com a leitura de numerosas listas de bens a conservar em outras nações. Sob uma forma, em parte, irrisória, a aparição dos time capsules — a partir de 1879, nos Estados Unidos, associadas ao projeto de transmitir um acervo de artefatos, lacrado por determinada duração, e que dão testemunho, ao mesmo tempo, de um narcisismo, de uma angústia e de uma expectativa utópica — confere uma espécie de patrimonialização a coisas banais, com a condição de estarem projetadas para o futuro.3 De qualquer modo, a partir do século XX, essa configuração foi tumultuada. Segundo Alois Riegl, os valores eruditos e baseados na ciência a respeito do monumento histórico serão eliminados no futuro diante do triunfo da sensibilidade suscitada pelo monumento antigo, simples indício da passagem do tempo. Nos Estados Unidos, ao deixar o American Museum of Natural History, em 1905, Franz Boas estava convencido de que era impossível representar convenientemente uma cultura através dos objetos materiais; aliás, Vidal de La Blache procedia 3. William E. Jarvis, Time Capsules: A Cultural History, Jefferson: McFarland, 2003. 232

implicitamente ao mesmo diagnóstico, como já vimos, em nome da geografia cultural. A marginalização dos museus efetua-se à medida da constituição da antropologia científica, tendo atingido seu apogeu provavelmente no decorrer da década de 1970. A análise das relações entre museus e historiadores, por menos caricatural que seja, manifesta também um lento desprendimento recíproco, a partir da proximidade laboriosa de um Michelet. Os museus e o patrimônio histórico em geral eram considerados instrumentos de vulgarização mais ou menos eficazes e bem concebidos, mas não certamente laboratórios no sentido pleno do termo. A constatação, no decorrer da década de 1960, do historiador inglês J. H. Plumb, anunciando a morte do passado, explicita a dissolução da configuração clássica, que, até então, havia organizado as relações entre passado, presente e futuro no âmago do trabalho do historiador.74 No mesmo espírito, David Lowenthal sugere um inventário das heranças em forma de topografia de "um outro país", sem 5 qualquer interesse para nós ; desse modo, ele enuncia um repertório das atitudes em relação ao passado material de acordo com uma escala de juízos, sejam eles de ordem moral ou profissional, desde a isenção do 6 cientista até o zelo partidário. O processo de patrimonialização parece suscitar as mais diversas — e às vezes estapafúrdias — reivindicações, mas sempre de acordo com uma espécie de neutralização geral dos desafios culturais claramente identificados, há pouco, com o culto ao passado e com o respeito por suas testemunhas. Apesar de ser, com toda a evidência, diferente, a situação da história da arte foi também marcada, de qualquer modo, por uma ruptura entre o que é designado, daqui em diante, como as duas histórias da arte: a pesquisa acadêmica e os estudos associados à tarefa da conservação. Existem múltiplas causas para a crise progressiva do binômio patrimônio e pesquisa. A investigação do que é comum em determinada 4. J. H. Plumb, The Death of the Past, Londres: Palgrave Macmillan, 2004; com um prefácio de Simon Schama que situa a obra no contexto histórico. 5. Em particular, David Lowenthal, The Past Is Another Country, Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 6. O programa estava resumido in David Lowenthal e Marcus Binney, Our Past before Us: Why do We Save It?, Londres: Temple Smith, 1981. 233

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época ou cultura, através de suas ferramentas e de suas mentalidades, descartou um coreus patrimonial classicamente definido de maneira normativa. A arqueologia orientou, aos poucos, seu interesse para os vestígios e não mais para os monumentos, a história investiu-se no arquivo e no documento, a antropologia deu preferência ao terreno e a suas práticas; sobretudo, a evolução recente da ciência social tende a transformar o patrimônio em um indício historiográfico. No texto "Éloge de la curiosité", Paul Veyne estabelece a distinção entre o "saber histórico", ou história científica, e "uma ampla realidade polimorfa, a memória coletiva de um passado nacional, a comemoração — por narrativas, monumentos ou ritos — de grandes acontecimentos políticos ou religiosos, lendários ou autênticos, que são muito apreciados por determinada sociedade". Esta é estranha ao passado como tal, votado ao puro e simples esquecimento: "A memória coletiva não passa de uma metáfora; convém diferenciar lembranças nacionais e historicidade radical dos homens. Essas lembranças são apenas representações, de preferência, institucionais e não espontâneas, mantidas no mínimo pela educação; em vez de serem lembranças autênticas, trata-se de lendas ou, pelo menos, verdades tendenciosas. Diferentemente da memória individual, as coletividades esquecem instantaneamente seu passado, salvo se um voluntarismo ou uma instituição se empenham em conservar ou elaborar uma bíblia selecionada a seu respeito, destinada a um uso específico." Portanto, na sequência de seu inventário, o autor repertoria a "historicidade radical", "a memorização individual", o "passado de uma sociedade (em geral, esquecido)", as "lembranças ou lendas instituídas", o "saber histórico, finalmente [...] fenômeno minúsculo, mas autônomo". Este último deve deixar de ser o que ele designa, em uma fórmula bastante característica, como "a memória das nações ou o museu das civilizações".7 Tal apresentação esboça o projeto de uma severa depuração da verdadeira história que descarta "a invocação dos antepassados, a exaltação das façanhas, a busca dos modelos e as pseudoteorias ou filosofias" (Raymond Aron). Uma formulação semelhante é a distinção 7. Paul Veyne, "Éloge de la curiosité", in Christian Descamps (org.), Philosophie et histoire, Paris: Centre Pompidou, 1987, p. 15-36.

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CONCLUSÃO

operada pelo filósofo inglês — e historiador de formação — Michael Oakeshott entre o passado histórico e o passado prático: de fato, este — aqui poderíamos designá-lo por patrimonial — é "composto por artefatos e por declarações que sobreviveram do passado e, para nós, são reconhecidos em termos de valor em nossos compromissos práticos presentes", enquanto o passado histórico é "composto por trechos de acontecimentos históricos que não sobreviveram, utilizados como outras tantas respostas às questões históricas a propósito do passado".8 De acordo com semelhante perspectiva, o patrimônio inscreve-se entre a história e a memória. De fato, ele evoca um conjunto de valores que, à semelhança da memória, dependem de um enraizamento mais ou menos profundo na dimensão "sensível" das identidades pessoais e sociais, das afinidades religiosas, das culturas populares e até mesmo das mitologias. Nesse aspecto, ele distingue-se de uma história profissional, cujos interesses são exclusivamente críticos, participando de uma espécie de reencantamento do passado material e, ao mesmo tempo, deixando o trabalho da história controlar sua configuração e validar sua autenticidade. De fato, o patrimônio não é, salvo exceção, antinômico da história — como é, frequentemente, o caso da memória. Ao contrário desta, ele participa de fato de uma historicidade reconhecida e muitas vezes reivindicada, sendo incapaz de representar, portanto, o papel que o apelo à memória desempenha, aleatoriamente, em nome de uma contra-história da modernidade.9

8. Michael Oakeshott, "The Activity of Being an Historian", in Rationalism in Politics and Other Essays, Londres: Methuen, 1962, p. 137-167, reeditado in On History and Other Essays, Londres: Blackwell, 1983. Será possível compará-lo com a abordagem sociológica de Pierre Bourdieu, "Le Mort saisit le vif: Les Relations entre l'histoire réifiée et l'histoire incorporée", in Acres de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 32-33, 1980, p. 3-14. 9. Mesmo que ocasionalmente determinados contrapatrimônios tenham assumido simbolicamente a causa de grupos sociais minoritários, ou marginalizados, além de formas de alteridade, eles permaneceram amplamente insignificantes em uma visão de conjunto.

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Um conjunto de releituras Um dos grandes historiadores e homens do patrimônio de nosso tempo, Henri-Jean Martin, descreveu sua iniciação nos acervos de bibliotecas nestes termos: "Por ter sido o conservador da Biblioteca de Lyon, célebre por seus manuscritos de épocas recuadas, lembro-me do verdadeiro choque que experimentei ao abrir o saltério do final do século V, escrito em letras maiúsculas, à razão de 15 a 25 signos por linha, sem qualquer espaço entre as sílabas ou entre as palavras, nem pontuação; ou tal outro manuscrito com iluminuras que teria pertencido a Carlos, o Calvo, e parecia ser oriundo de outro mundo, rudimentar e requintado; ou ainda outro, carolíngio, dispondo já de pontuação, cujas sílabas aparecem frequentemente separadas, mas não as palavras. E, finalmente, ao folhear uma Suma de são Tomás do século XIV — cuja escrita compacta e repleta de abreviações era legível para mim porque eu já havia aprendido a decifrá-la em fac-símiles —, compreendi como os referenciais coloridos podiam ajudar a entender a arquitetura do raciocínio escolástico. Graças a um dos mais antigos manuscritos de La Chanson de Roland, percebi igualmente que o livro constituía, no caso concreto, apenas o suporte de um discurso declamado."10 Este incipit de uma obra de historiador — que se inscreve em uma longa tradição, desde a cena primitiva de um Gibbon ao imaginar seu estudo, Declínio e queda do Império Romano, diante das ruínas romanas — revela algumas das características mais notáveis do ideal contemporâneo da relação com o patrimônio. Essa página manifesta, em primeiro lugar, a etnologização, se é que essa palavra existe, dos acervos de biblioteca que aparecem como diferentes e "rudimentares" em relação aos dos museus de antropologia; além disso, remete à ideia de que "atos de leitura" podem tornar-se outros tantos "lugares de memória" no mesmo plano de monumentos. A recente teoria do arquivo dá 10. Henri-Jean Martin, Le Livre français sous l'Ancien Régime, Paris: Promodis, 1987, p. 251-252. O livro de Armando Petrucci (Jeux de Lettres) constitui, de certa maneira, a vertente oposta dessa tentativa em prol da inscrição. 236

CONCLUSÃO

testemunho de semelhante evolução, que vai da identificação estática das peças até a organização em séries para diferentes usos e autores. A atenção desloca-se, assim, dos próprios documentos para as volições e práticas de seus autores, ou para a dinâmica das múltiplas leituras que se elaboram a partir dos mesmos, em busca de uma "profundidade"." A evolução recente dos museus de antropologia enfatiza, igualmente, as significações de suas coleções para as comunidades, em relação com suas atividades e tradições, às vezes contra os valores científicos da patrimonialização coletiva. A mais convincente justificativa do patrimônio é, nesse caso, a multiplicação de releituras, ou seja, leituras de leituras anteriores e, ao mesmo tempo, novas elaborações. Por um lado, a atitude patrimonial confessa a tentação de ter acesso, graças ao vestígio material, a uma relação original e única — a tentação proustiana, de acordo com este trecho de ÁFrançois la Recherche du temps perdu, a propósito do romance de Georges Sand, le Champi, lido em Combray: "Para mim, a primeira edição de um livro teria sido mais preciosa que as outras, mas eu a entenderia como a edição em que o li pela primeira vez. Eu haveria de procurar as edições originais, quero dizer, aquelas em que tive uma impressão original a respeito desse livro; com efeito, nas impressões seguintes, deixa de existir tal característica."12 Por outro lado, ela depende amplamente da história axiológica e, por conseguinte, não cessa de formular a questão 13 da "renovação das obras-primas". Um dos desafios da história do patrimônio é, portanto, o vínculo entre as patrimonialidades individuais ou comunitárias, em suas significações e intensidades, e as intencionalidades da patrimonialização coletiva. Eis um dos paradoxos de nosso tempo: sobrevalorizar a libertação

11. Terry Cook, "What is Past is Prologue: A History of Archival Ideas since 1898, and the Future Paradigm Shift", in Archivaria, vol. 43, 1997, p. 17-63, fornece um panorama bastante completo do tema. 12. Marcel Proust, À la Recherche du temps perdu, vol. 3. Paris: Gallimard, 1954, p. 887. 13. Paul Veyne, Comment on écrit l'Histoire, Paris: Le Seuil, p. 95 [ Como se escreve a história, trad. Alda Baltar e Maria A. Kneipp, Brasília: UnB, 1982]. Para um aprofundamento sobre esse tema, cf. Éric Méchoulan, Pour une Histoire esthétique de la littérature, Paris: PUF, 2004. 237

CONCLUSÃO

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dos indivíduos e, simultaneamente, a busca de identidade» Cada um torna-se intérprete, à sua maneira, do legado que ele reivindica; além disso, a decomposição das identificações coletivas e o eclipse das grandes narrativas suscitam uma infinidade de hermeneutas singulares que a publicidade dos acervos exime de qualquer restrição. A presente constatação refere-se, assim, a uma desvinculação da identidade e do patrimônio no sentido tradicional do termo, ou seja, "podemos perfeitamente pertencer a tradições diferentes e ser responsáveis pelo mesmo passado; podemos, também, deixar de nos reconhecer univocamente em uma tradição, sem termos a possibilidade de desligar-nos do passado".15 A relação de nosso patrimônio com tradições históricas desvia-se, nesse aspecto, do modelo elaborado no século XIX para fundir-se no panorama, como é resumido por Claude Lévi-Strauss, dos "arquivos da variabilidade, diversidade e criatividade culturais".16 Outra questão refere-se à relação variável entre a aparência dos monumentos, a amplitude dos indícios do passado e a profundidade que ela revela. O interesse de uma história das metamorfoses patrimoniais consiste em chamar nossa atenção para o aspecto evolutivo da significação dos objetos. E, para além da consideração exclusiva dessa "fortuna crítica", ela nos ensina, sobretudo, como nossos antepassados conferiram um sentido à sua herança: ou seja, que figuras da memória cultural haviam sido privilegiadas por eles em relação àquelas que, atualmente, são adotadas por nós. A experiência do patrimônio é tributária de uma longa duração das práticas de admiração e de apropriação; desde o século XIX, ela encarnou-se em uma série de dispositivos materiais, de rituais e, mais amplamente, de circunstâncias em que as noções de limiar e de contato são particularmente importantes. Seus usos simbólicos, em especial na relação entre sagrado e profano,

entre público e privado, desencadeiam, frequentemente — com o objetivo de ilustrar uma legitimidade —, reivindicações de identidades, negociações com os poderes constituídos, além de confrontos de classes, gênero e culturas. Esboça-se, desse modo, o princípio de uma propriedade patrimonial que, mantendo-se sempre relacionada com uma cultura, deve, daqui em diante, tanto — sobretudo? — afirmar-se "justa" quanto mostrar-se "verdadeira". De acordo com a demonstração de Elazar Barkan, três configurações históricas revelaram-se, nesse aspecto, estratégicas: a questão das pilhagens de objetos identificados com a alta cultura, desencadeada no momento das guerras da Revolução e do Império e, desde essa época, sempre pendente; a das culturas indígenas, surgida com a descolonização e os retornos eventuais de propriedade cultural; e, mais recentemente, a questão do direito de propriedade do patrimônio imaterial, desde as culturas populares até os saberes práticos, cujos aspectos comerciais podem ser relevantes." Daqui em diante, a noção do justo para retomar a fórmula de Paul Ricceur a propósito da "memória justa"18 — está, portanto, amplamente presente na reflexão política, assim como na investigação do historiador ou do sociólogo, abrindo assim uma nova era do patrimônio ético.

14. Marc Augé, Le Sens des autres: Actualité de l'anthropologie, Paris: Fayard, 1994, p. 163; Marc Augé, Non-lieux, Paris: Le Seuil, 1992, p. 148. 15. Jean-Michel Chaumont, "Introduction", in Hermès, vol. 10, 1991, p. 120-123; e Jean-Michel Chaumont, La Concurrence des victimes: Génocide, identité, reconnaissance, Paris: La Découverte, 1997. 16. Claude Lévi-Strauss, apud Marc Augé (org.), Territoires de la mémoire, Thonon-lesBains: L'Albaron, 1992, p. 70-71. 238

17. Elazar Balkan, The Guilt of Nations: Restitution and Negotiating Historical Injustices, Nova York: Norton, 2000. Um balanço da questão poderá ser encontrado no artigo de Valdimar Tr. Hafstein, "The Politics of Origins: Collective Creation Revisited", in Journal of American Folklore, vol. 117, 465, p. 300-315. 18. Paul Ricceur, La Mémoire, l'histoire, l'oubli, Paris: Le Seuil, 2000. 239

DOMINIQUE POULOT é professor de história da art na Sorbonne (Universidade Paris I) e vem desenvol

ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM ADOBE GARAMOND PRO CORPO 11,6 POR 15 E IMPRESSO SOBRE PAPEL OFF-SET 75 gim' NAS OFICINAS DA GRÁFICA ASSAHI, SÃO BERNARDO DO CAMPO-SP, EM OUTUBRO DE 2009

vendo importante pesquisa nas áreas de patrimônio e museologia. É membro do Instituto Interdiscipli nar de Antropologia do Contemporâneo, no Centr Nacional de Pesquisa Científica francês/Escola Su perior de Ciências Sociais (CNRS-EHESS). É autc ainda de Les lumières (2000) e Mudes en Europe: ur mutation inachevée (2004), além de dirigir a coleção Logiques historiques e codirigir a coleção Patrimone et sociétés nas edições L'Harmattan.

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Se o conceito de "patrimônio" conhece, atualmente, uma poularidade espetacular, associada aos investimentos de toda ordem política, financeira) suscitados por ele, a investigação a seu respeito Oscila

entre a evocação de algo inefável — os valores da civilização — e a atenção exclusiva prestada às instituições e aos profissionais

lo setor. Uma dificuldade particular refere-se ao fato de que o próio

patrimônio determina as condições concretas de sua aborda-

;em, comunicação e controle [...].

França.BR

Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira

2009

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ISBN 978 85 7448 170 8

11 9 788574 481708