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Selma Pantoja José Flávio Sombra Saraiva (organizadores)
ANGOLA E BRASIL NAS ROTAS DO ATLÂNTICO SUL
BERTRAND BRASIL
Copyright © 1998, Selma Pantoja Capa: Leonardo Carvalho Editoração: Art Line 1999
Impresso no Brasil Printed in Brazil
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ A598 Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul / Selma Pantoja, José Flávio Sombra Saraiva (organizadores). - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 256p.
ISBN 85-286-0689-9 1. Brasil - Relações - Angola. 2. Brasil - Comércio - Angola. 3. Escravos Tráfico - Brasil. I. Pantoja, Selma. II. Saraiva, José Flávio Sombra. CDD- 327.810673 98-1802 CDU - 327(81 )(673)
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Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.
Em Angola e Brasil nas Rolas do Atlântico Sul foram elaborados estudos originais sobre como se deu essa relação que ale hoje permeia a nossa identidade de brasileiros. Os fatos acerca das relações Brasil-África, em especial Brasil-Angola, vão muito além da história do Brasil-Colônia. Eles vinculam, de forma magistral, o passado ao presente. A história da África, ainda hoje uma grande lacuna nos meios acadêmicos dos setores das Ciências Humanas, vem abrindo novos espaços para um conhecimento maior da parte do continente africano de língua portuguesa.
Os estudos aqui apresentados visam trazer ao público em geral, e sobretudo universitário, textos dos maiores especialistas do país, professores e pesquisadores de longa data. Isso fora as contribuições de colegas estrangeiros, como é o caso de três historiadores: o norteamericano Joseph Miller, um dos maiores conhecedores de tráfico de escravos entre o Brasil e Angola; o canadense José Curto, especialista no estudo do comércio da cachaça entre Brasil e Angola, e Rosa Cruz e Silva, historiadora Angolana com especialidade na história de Benguela.
Capa: Leonardo Carvalho, *
Aquarelas de Jean Baptis (Col. Museu Castro Maya)
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Fotos de Marc Ferrez (Col. Min. das Relações Exteriores)
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Mapa de Sebastian Cabo
ISBN 85-286-0689-9
APRESENTAÇÃO
Um livro sobre a evolução das relações entre o Brasil e Angola faz parte de uma necessidade histórica que ninguém, hoje, ousa negar. Concretizar o projeto significa, portanto, um grande avanço. A obra que apresentamos é resultado da obstinada idéia de oferecer textos em português sobre estudos africanos como material para nossos alunos universitários e grande público interessado no tema. A presente coletânea nasce arejada pela idéia da reconstrução da História do Atlântico Sul como um espaço próprio de saber e de civilização. Nessa linha se desenvolvem, simultaneamente, os trabalhos coordenados pela UNESCO, sobre as rotas dos escravos, e os do Colégio do México com algumas universidades latino-americanas e africanas acerca dos intercâmbios e vinculações entre a África e a América ao longo dos últimos séculos. A oportunidade aberta pelos debates acadêmicos em tomo dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil também alimentou a construção deste livro. Tendo como ponto de referência inicial as relações do Brasil com Angola, os capítulos aqui apresentados obedecem, na sua disposição, à evolução cronológica. Mas abordam, na verdade, dois temas fundamentais: o novo tratamento ao tráfico de escravos (nos capítulos I, II, IV, V) e as modernas análises interculturais, demográficas, urbanísticas e das relações internacionais (nos capítulos III, VI, VII). Colaboram neste projeto africanistas brasileiros e estrangeiros. A amplitude e a qualidade de seus capítulos mostram a riqueza das relações das duas margens do Atlântico. Essas regiões estão aqui abordadas a partir
de várias temáticas que envolvem portugueses, africanos, brasileiros, bem como as mais diversas políticas dos Estados atlânticos. Se o ensaio de Joseph Miller apresenta ao leitor os conflitos de interesses, principalmente entre africanos, portugueses e brasileiros, situando as transações de mercadorias intercoloniais e sua dimensão Atlântica a partir da costa da África Central Ocidental, o capítulo de José Curto esclarece, em maior detalhe, a importância e a evolução do comércio da cachaça, a geribita brasileira, para o tráfico de escravos em Angola no século XVII. O estudo da historiadora angolana Rosa Cruz sobre Benguela, em disputa com Luanda pela hegemonia do comércio de escravos, exemplifica, tal como outros estudos nesta coletânea, a constituição de uma intensa conexão angolana com os portos brasileiros no século XVIII. Temas que perpassam às contribuições de Miller e Rosa Cruz são objetos de reflexão no texto de Roquinaldo Amaral, onde o significado do caráter ilegal do tráfico de escravos é discutido. Demonstra Amaral, para o século XIX, como se mesclavam os interesses nas diversas margens do Atlântico e a ambiguidade do comércio lícito e ilícito. Selma Pantoja examina as diversificadas e complexas relações interculturais e de gênero com as várias tonalidades étnicas e culturais, numa dimensão teórica e prática, para as cidades de Luanda e Rio de Janeiro. O capítulo de Fernando Mourão, igualmente sobre Luanda, faz uma análise demográfica da população relacionando a independência do Brasil à extinção do tráfico de escravos, adotando para isso um enfoque que acompanha as mutações nos aspectos físico e social da cidade. Finalmente, José Flávio Saraiva indica de forma diferente as continuidades e descontinuidades nas atuais relações dos dois Estados atlânticos, mostrando esse relacionamento desde o nascimento do moderno Estado angolano até os anos noventa. Para a construção de Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul foi preciso a montagem de uma rede transatlântica utilizando telefonemas, faxes e Internet para conectar as várias teias que se espalharam entre Montreal, Virgínia, Luanda, Rio de Janeiro e São Paulo em conexão direta com Brasília.
E como não poderia deixar de ser, o projeto envolveu mais pessoas do que as aqui citadas. Gostaríamos particularmente de agradecer a Sandra Cunha e Giovani Silva pelos seus preciosos préstimos. E o apoio de Rossana Gabriely Couto na tradução dos capítulos de Miller e Curto.
SELMA PANTOJA e JOSÉ FLÁVIO SARAIVA (organizadores)
I. A Economia Política do Tráfico Angolano de Escravos no Século XVIII Joseph C. Miller
Este capítulo foi traduzido por José Flávio Sombra Saraiva e Rossana Gabriely Couto. Este capítulo é uma versão revisada de um artigo originalmente escrito em 1988 e apresentado no “Congresso Internacional — Escravidão” (São Paulo, Brasil, 7-11 de junho de 1988). Foi publicado no Indian Historical Review, 15, 1-2 (1988-89), pp. 152-87. As revisões foram limitadas a esclarecimentos de expressões e ao complemento, em notas, de alguns dos muitos estudos relevantes que têm aparecido, particularmente no Brasil. Alguns desses, levados em conta, modificariam conclusões expostas aqui.
Os comerciantes portugueses que procuravam escravos em Luanda, porto principal de Angola, depois de 1770, enfrentaram grandes dificuldades (1). Animados pelas importantes descobertas de ouro em Minas Gerais, esses mercadores viram nos escravos africanos uma oportunidade ideal de dispor de excedentes de bens e mercadorias no Rio de Janeiro, especialmente a cachaça brasileira, e a possibilidade do aumento do fornecimento de escravos para os distritos da mineração. Os comerciantes
esperavam retorno na forma de metais preciosos, inflacionando os preços fora do Brasil e atraindo caçadores de fortuna dos arredores do Império português para o sul do Brasil (2). Na tentativa de adquirir escravos em Luanda, contudo, seus planos esbarraram nos obstáculos criados por pessoas influentes no governo militar da colônia, frequentemente ligados à plantação de cana-de-açúcar, e outros ligados às famílias de comerciantes nascidos na colônia, que moravam na cidade e no campo (3). As disputas pelos benefícios da compra de escravos em Angola, e de sua venda aos mineradores no Brasil, animaram a política na colônia africana e atraíram a atenção de Lisboa sobre sua possessão na África Central Ocidental por meio século (4). Os comerciantes portugueses controlaram os governadores de Angola e o tráfico de escravo em Luanda nas últimas décadas de tráfico legal, no início do século XIX, e antes dos tratados internacionais e das patrulhas navais britânicas enfrentarem o comércio já ilegal, a partir de 1830 (5). Isso ocorreu por meio de uma luta comercial e política contra as famílias coloniais e de traficantes concorrentes do Brasil. A vitória, contudo, seria de Pirro, uma vez que os comerciantes metropolitanos somente controlaram a colônia depois de concederem a ela certa autonomia econômica e permitirem a expansão do capital comercial britânico nas relações atlânticas de Angola com o Brasil. Entretanto, novas disputas pelo tráfico angolano de escravos no início do século XIX opuseram os comerciantes portugueses residentes no Rio de Janeiro, como refugiados da Guerra Peninsular, contra seus compatriotas de Lisboa e contra os comerciantes de escravos brasileiros ligados à expansão econômica colonial. Todos, assim, lutavam para ganhar com os altos preços dos escravos diante do novo quadro da pressão britânica pela supressão do comércio de escravos. As disputas contínuas entre as facções da península portuguesa, os colonos dos três maiores portos do Brasil (Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e os próprios angolanos divididos em facções localizadas em Luanda, no interior das colônias e numa pequena cidade ao sul de Angola (Benguela), revelam as divisões internas do Império português na África Central Ocidental e no Brasil no século XVIII. As estratégias econômicas que cada região lançou contra a outra também realçaram o aumento de tensões na
relativa autonomia das colônias assentadas em Angola e no Brasil por meio de uma verdadeira economia atlântica, centrada em Portugal, mas cada vez mais integrada aos mercados e empréstimos britânicos. Ao longo do século XVIII o tráfico de escravos angolanos desenvolveu-se em várias etapas, de confrontos armados a trocas mercantis relativamente pacíficas entre fornecedores britânicos no Brasil, portugueses encarregados das mercadorias dos navios que saíam do Rio de Janeiro e Pernambuco e chegavam a Luanda, prósperos comerciantes angolanos, príncipes comerciantes africanos e caravanas de ávidos comerciantes pequenos burgueses africanos — “Ambaquista”, Ovimbundu, Imbangala, Soso, Zombo, Bobangi e outros. Todos vasculhavam as florestas da África Central em busca de escravos e de outras mercadorias que fossem vantajosas aos mercados da costa.
1. A Conquista dos Governadores: Angola, 16501710 O comércio de escravos angolanos começou em uma pequena escala, em meados de século XVI (6), mas veio a se tornar fluxo substancial de seres humanos apenas por volta de 1600, depois de o açúcar em Pernambuco e na Bahia se tornar principal produto agrícola mundial (7). Ao mesmo tempo, as décadas de secas e guerras entre exércitos africanos e conquistadores portugueses por ilusórias minas de prata no interior, saques de africanos fugidos de instituições sociais e políticas arrasadas (8), e a reorganização da administração colonial durante a União Ibérica (15801640) ajudaram a elevar o tráfico para mais de 10.000 cativos por ano (9). Os carregamentos de escravos, quase todos próximos a Luanda, tornaramse o foco da inveja holandesa na década de 1620 e, durante algum tempo, foram controlados pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, durante sua ocupação do nordeste brasileiro e das possessões portuguesas na África, na década de 1640 (10). A restauração de Angola para a nominal soberania de Portugal ocorreu em 1648, mas a “restauração” veio do sul do Brasil, e não de Portugal (11). Sob a autoridade formal de Portugal, as exportações de escravos diminuíram em Angola durante a segunda metade
do século XVII, uma vez que os formuladores de política em Lisboa haviam consolidado uma aliança comercial com a Inglaterra e procuraram estimular reformas econômicas em todo Império Português, de forma a ressarcir os custos pesados da dominação espanhola, as três décadas de luta contra os holandeses, a perda do mercado asiático de especiarias, o declínio dos preços do açúcar e a competição acirrada com os britânicos nas Índias Ocidentais (12). Mas o tráfico de escravos no Atlântico Sul, nas décadas de 1660 e 1670, caiu sob o controle da elite produtora de açúcar de duas capitanias do nordeste do Brasil, especialmente Pernambuco (13). O tráfico de escravos partindo de Luanda entrou em declínio a partir de 1680 quando os senhores de escravos baianos abandonaram Luanda por Costa da Mina no oeste da África, no contexto de uma série de epidemias e perdas populacionais em Angola tão graves que os compradores brasileiros temiam a perda da capacidade daquela colônia para suprir mãode-obra a preços compatíveis com o valor depreciado do açúcar (14). Os baianos, ao explicarem a razão de terem abandonado Luanda nos anos de 1680, reclamaram da tirania do governador de Angola, que em época de extrema escassez havia monopolizado os suprimentos de alimentos necessários ao sustento das embarcações com escravos que deixavam os portos (15). A crítica dos baianos, apesar de extremamente discreta, fazia referências explícitas à animosidade e à crise de lealdade em Angola. No entanto, revelou a existência de um padrão geral então prevalecente: quase todos os poderosos governadores procuravam defender, em primeiro lugar, seus interesses particulares, e em segundo lugar, procuravam favorecer os comerciantes de Pernambuco além de trabalharem em aliança com as famílias crioulas angolanas, que cresceram graças ao suprimento de alimentos de Luanda e seu porto (16). Com Lisboa procurando meios de recuperar um império e uma nação, declinantes em relação ao século anterior, a atenção se voltou para o Brasil e para a descoberta do ouro em Minas Gerais em 1695, e não para o comércio arriscado de escravos em Angola. Apesar de a Coroa ter valorizado Luanda como uma importante fonte de mão-de-obra escrava necessária para a extração de metais preciosos na América, o poder local e a influência política dos comerciantes estabelecidos na Bahia, e suas fontes de mão-de-obra escrava africana na Costa da Mina, tornaram Angola periférica na economia do Atlântico Sul.
Apesar de o fluxo de produtos americanos ter se tornado fundamental para esses comerciantes e para a Monarquia, em toda a primeira metade do século XVIII, não permitiu o enriquecimento de todos da mesma forma. Entre aqueles interesses deixados de lado estavam prósperos lisboetas que definharam em seus acordos com a Ásia, agora não mais em especiarias, mas em tecidos de algodão chinês e indiano essenciais à aquisição de escravos em Angola (17).
2. A Era dos Contratadores Os comerciantes da Ásia, sem o apoio financeiro inglês que lhes daria acesso direto ao ouro brasileiro, acharam uma saída conveniente para a obtenção de fundos no Rio de Janeiro para o comércio de escravos em Angola. Aproveitando-se do que parecia ser uma demanda insaciável por algodão indiano na África, eles compraram escravos em Luanda e os venderam por ouro na América. Beneficiaram-se de uma taxa contratual vendida pela Coroa, que dava direitos de exportação de escravos que deixavam Angola e oferecia certas preferências comerciais. Bem relacionados no palácio, eles lideraram uma campanha, nas três primeiras décadas do século, para reduzir a proeminência dos baianos no comércio de escravos para Minas Gerais. Essa estratégia significou que eles teriam que desalojar os governantes angolanos de sua posição dominante no comércio para o Rio de Janeiro e substituir o suprimento da rede de trabalho no interior operado por meio dos crioulos angolanos — doravante denominados de “luso-africanos”, para enfatizar suas conexões com a economia da colônia, suas oposições ao controle metropolitano e, apesar da proficiência na língua portuguesa e do batismo como cristãos, fraca lealdade à Coroa. Os grupos de comerciantes brasileiros na Bahia, Rio de Janeiro e Luanda receberam diferentes quotas do suprimento de escravos para Minas Gerais. Os baianos receberam a maior parte até o intento de Lisboa de regular o assunto em 1715 (18). Ao mesmo tempo, Lisboa promoveu a substituição dos governadores que apoiavam abusos na caça de escravos com tropas governamentais e com soldados pagos pelo Tesouro Real em Angola (19). Os salários dos
governadores foram aumentados, como forma de compensação, no acordo feito com a Coroa de não mais comercializar escravos (20). Concedeu-se assim o comércio valioso para o Rio de Janeiro para mercadores por meio de contratos. Esses grandes comerciantes de Lisboa atuaram mais como financiadores do suprimento de têxteis que constituíam o capital comercial do tráfico do que como compradores diretos de escravos. Sua riqueza e contratos privilegiados permitiam que eles inundassem o mercado angolano com mercadorias, uma estratégia que visava à criação de agentes locais que garantissem o controle do suprimento de cativos que chegavam a Luanda (21). Eles ofereciam grandes remessas de mercadorias compradas em Lisboa por meio de crédito liberado a qualquer um na colônia. Esses últimos foram tachados de “judeus, egípcios, criminosos e negros dos pés descalços”, pelos orgulhosos mercadores locais de Luanda. Aos luso-africanos de Luanda, e aos aliados brasileiros, faltavam vantagens comerciais para desafiar o grande capital comercial metropolitano, que começou a substituir os métodos violentos de incursão na caça de escravos por novas táticas persuasivas e indiretas. Dessa forma, seus empréstimos de mercadorias importadas endividaram os mercadores angolanos em Luanda e seus fornecedores no interior da colônia, que passaram a liquidar seus débitos devolvendo escravos aos contratadores e seus agentes. Os últimos governadores de orientação brasileira nas décadas de 1720 e 1730, apoiados pelos luso-africanos, reclamaram muito contra o que eles chamaram de “abusos” perpetrados por intrusos que perambulavam pelos sertões, mas falharam em deter a força comercial de Lisboa. Em meados da década de 1740 um novo governo colonial, que respondia aos interesses de Lisboa, chegou para controlar as instituições coloniais em Luanda (22). Os luso-africanos, apesar de gradualmente terem se adaptado aos altos preços das mercadorias e às dificuldades a eles impostas em Luanda, procuraram desenvolver estratégias alternativas e buscar novos clientes em partes remotas de Angola. Uma parte deste grupo instalou-se em Benguela, pequeno porto ao sul de Angola, um poço de doenças para oficiais recém-chegados da metrópole. Contra as fortes correntes que fluem do norte da costa centro-ocidental da África, Benguela era quase inacessível pelo mar para as autoridades metropolitanas estabelecidas em Luanda. Lá, os luso-africanos criaram novas fontes de escravos,
promovendo uma série de ataques que chegaram às serras do leste de Benguela na década de 1720 (23). Eles vendiam os cativos que agruparam para as embarcações do Rio de Janeiro, cujo curso pelas altas latitudes do Atlântico Sul os levava para as partes baixas da costa africana, antes de chegar a Luanda (24). A partir de 1730, o crescimento do número de escravos registrados nos relatórios governamentais e o número de escravos deixando Benguela para o Rio de Janeiro indicam (25) uma conexão direta entre o sul da Angola luso-africana e o sul brasileiro, suplementando o mercado dos contratadores de Luanda para as minas da América portuguesa. Além do crescimento de Benguela, houve também uma dispersão do povoamento luso-africano sobre os planaltos centrais, já que os compradores de cativos foram envolvendo-se nos conflitos entre os guerreiros africanos, em processo de consolidação dos Estados que depois ficariam conhecidos como os reinos do “Ovimbundu”. Outros luso-africanos, geralmente com laços comerciais em Luanda, retiraram-se para as terras conquistadas a leste de Luanda, entre os rios Kwanza e Dande. Lá eles se uniram às antigas comunidades do século XVII, em tomo de Massangano, cidade comercial do rio Kwanza, e consolidaram posições como capitães-militares nas entradas dos planaltos dos distritos militares de Golungo, Ambaca e Pungo Adongo, lidando com suprimentos de escravos ao sul do Congo, no vale do Kwanza (Jinga, antigo Matamba) (26), e nos aclives do norte das montanhas centrais (27). Dessas posições do interior, e das plantações ao longo dos rios Bengo e Dande, os luso-africanos supriam de mandiocas e feijões às cidades e aos navios dos contratadores, além de imporem um bloqueio efetivo na movimentação de escravos por terra e por mar. Com organização apropriada junto aos comerciantes estabelecidos em Luanda, eles se beneficiaram do comércio português que passava por seus domínios. Impedidos de desenvolver o que consideravam ser seu direito, os lusoafricanos puderam frustrar qualquer iniciativa tomada pelos governadores, ou outros representantes do poder dos mercadores de Lisboa, na capital colonial (28). A vitória dos contratadores sobre os governadores de Luanda, nas décadas de 1730 e 1740, deslocou o conflito para outra esfera: o capital comercial metropolitano verso o militarismo angolano do porto para o interior da colônia. Mas a batalha ainda não havia terminado.
Os luso-africanos, a partir das suas novas bases em Golungo, em Benguela e nos planaltos centrais, conseguiram fácil acesso aos barcos estrangeiros, particularmente de europeus que procuravam por escravos em numerosas baías e rios fora da única posição defensiva de Portugal por duas mil milhas da costa ao sul do equador: Luanda (29). Portugal considerava esta área como seu negócio exclusivo a ser preservado mas mantida apenas uma espécie de “linha Maginot” ineficiente e velhos fortes, construídos pelos holandeses um século antes, para defender a bacia de Luanda. Holandeses haviam atuado em todos esses lugares desde a década de 1620, e os negociantes franceses e ingleses haviam se juntado a eles ao norte do estuário do rio Zaire, na construção de um negócio próspero ao longo da Costa de Loango, lá existente desde as décadas de 1670 e 1680 (30). No início do século XVIII, estrangeiros em Cabina, baía ao norte do Zaire, haviam explorado o Congo, o vale do Kwanza, e outras fontes remotas de escravos, servindo Luanda e movendo-se mais para o sul ao longo da costa para a captura de cativos nos rios Loje e Mbrije. Alguns começaram a atuar próximos de Luanda, em Dande, Bengo e outros rios nas imediações da capital da colônia. Outros até se deslocaram para portos portugueses sob o pretexto de tratar de questões de urgência. Os luso-africanos em Golungo e Ambaca tinham apenas que desviar suas caravanas de escravos um pouco para o norte para vendê-los aos estrangeiros, em troca de mercadorias de origens européia e asiática, a preços bem mais baixos do que o dos contratadores monopolistas oferecido em Luanda. Os britânicos, e cada vez mais os franceses, também contratavam os guerreiros do Ovimbundu e os colonos luso-africanos nos planaltos do sul. Mas nas décadas de 1740 e 1750, eles limitaram suas atividades do sul de Luanda, nas margens dos rios de Kuvo e Kikombo. Próximo a Benguela, preferiram trabalhar nas margens dos rios, ao sul e ao norte da baía, ao invés de tentar penetrar nos fortes laços estabelecidos na cidade entre os luso-africanos lá residentes e os compradores do Brasil. Estrangeiros que vendiam manufaturas européias e tecidos asiáticos desafiaram seriamente os contratadores em Luanda, uma vez que subfaturavam as mercadorias de Lisboa. Os ingleses e franceses que trabalhavam nas costas perto de Benguela, no entanto, tiveram sucesso porque seus tecidos complementavam a cachaça brasileira, geribita em angolano (31), e que constituía o maior volume na transação dos
comerciantes do Rio em suas trocas por escravos angolanos. O álcool americano constituiu um componente essencial do pacote complexo de mercadorias variadas que os fornecedores da África Central Ocidental trocavam por seus escravos. A relativa constância das demandas africanas por geribita garantia aos brasileiros, até mesmo aos negociantes relativamente humildes, um papel autônomo no tráfico angolano, quase intocável pelo poder do capital comercial metropolitano em Luanda. Os negociantes de Luanda tinham a vantagem em tecidos e em outras mercadorias, mas tinham apenas vinhos Madeira e licores portugueses, todos mais caros (32). Os comerciantes do Rio, assim, mantiveram uma posição dominante em Benguela e se prepararam para compartilhar o tráfico nos domínios de Luanda, em parte devido à incapacidade dos contratadores em comprar escravos sem geribita brasileira e, em parte, devido ao seu papel dominante como transportadores marítimos da maioria dos escravos destinados aos portos americanos. A venda de subprodutos semiprocessados da agricultura americana e a provisão de serviços nos barcos de escravos constituíam a essência do papel brasileiro no tráfico angolano na maior parte do século XVIII. O volume ocupado nos navios pelo algodão asiático, lãs inglesas, ferragens e outros importados de Lisboa era menor do que o volume do que se poderia comprar em escravos, água e comida necessários durante a travessia dos mares. Por outro lado, a geribita brasileira era tão barata que os barcos que chegavam do Rio de Janeiro tinham mais espaço para escravos nos compartimentos de seus navios do que o que poderiam comprar com a cachaça que descarregavam em Benguela ou Luanda (33). Entre os portos brasileiros, o Rio de Janeiro ganhou cedo a liderança em Angola sobre seus dois rivais, Bahia e Pernambuco, devido às estreitas conexões dos mercadores de escravos dos velhos portos de açúcar com Lisboa e devido à reorientação dos comerciantes baianos para as fontes de escravos na Costa da Mina, no oeste da África, desde a década de 1680. Com a longa depressão dos preços do açúcar brasileiro, que persistiu na maior parte do século XVIII, o tráfico baiano com a Costa da Mina tomouse a sua principal fonte de escravos na economia colonial em um sistema assemelhado ao uso da geribita pelos comerciantes do Rio na compra de escravos em Benguela e Luanda. Os baianos (34) compravam escravos no
ocidente da África com tabaco de rolo feito com a parte não vendida da colheita e resultante de um processamento inferior que o tomava um produto agrícola de baixo custo em relação à indústria do fumo orientada para mercados metropolitanos. A geribita do Rio era igualmente produzida a baixo custo quando comparada ao produto processado para os consumidores europeus. Em ambos os portos, os comerciantes locais usavam navios relativamente pequenos que, carregados com produtos menos valiosos da agricultura colonial, faziam a viagem através do Atlântico Sul. Vendiam cachaça e tabaco aos negociadores em terra, como faziam os luso-africanos em Angola, que organizavam a complexa variedade de mercadorias africanas na demanda por seus escravos, e retomavam ao Brasil com pouco trabalho realizado, mas também com uma operação de baixo custo financeiro (35). Essa estratégia brasileira permitiu a compra de escravos que foram de grande utilidade, e que, de outra forma, só estariam disponíveis mediante altos preços e pagamento, em dinheiro, com créditos de agentes comerciais metropolitanos, que somente vendiam mercadorias importadas de Portugal. A cachaça e o tabaco diminuíram a margem geral de débito da economia colonial. As tensões entre os altos preços dos importados e os baixos preços das mercadorias locais, diminuídas antes de 1760 pelo ouro de Minas Gerais, dividiram os colonos em credores e devedores durante o século XVIII de uma maneira que ainda não permitia a cristalização da distinção entre “brasileiros” e “portugueses”, mas que abriu uma fissura que se alargaria no século XIX. O comércio de escravos no Atlântico Sul sustentou, assim, o devedor protobrasileiro, como os comerciantes do Rio de Janeiro, e seus similares, relutantes devedores em Benguela e em outros lugares em Angola: estes, os luso-africanos.
3. Angola sob Pombal As disputas metropolitanas da primeira metade do século XVIII — entre os comerciantes lisboetas ricos e com ligações britânicas, à procura de minas de ouro no Rio de Janeiro, e os competidores portugueses, com conexões asiáticas e tentando abrir caminho na resistência luso-africana e
brasileira em Luanda para comprar escravos com os quais eles poderiam desafiar os seus competidores metropolitanos na América — voltaram-se contra os contratadores de Angola e os luso-africanos a partir de 1750. Os fornecedores de têxteis asiáticos e os crioulos angolanos viram-se marginalizados, já que eram herdeiros dos anacrônicos e militarizados estilos de comércio e conquista em Angola. Portugal e Brasil, sob a influência do crescimento da capacidade industrial e dos mercados para matéria-prima tropical para a Europa do Norte, mudaram as regras do jogo. O Marquês de Pombal, o dinâmico e poderoso primeiro-ministro de D. José I, instituiu um rigoroso regime de nacionalismo econômico em Portugal e no seu império, no contexto do desastroso terremoto de 1755. Essas políticas desnortearam os contratadores em Angola e provocaram os angolanos luso-africanos, que procuraram defender o tráfico a qualquer custo, contra toda uma nova onda do capital comercial metropolitano favorecido por Pombal. O fim da expansão do ciclo do ouro em Minas na década de 1750 reforçou a agricultura na reforma pombalina no Brasil. Essa estratégia chamava a atenção de Angola pela sua condição de fornecedora de mão-de-obra necessária ao aumento das exportações de açúcar e de outros produtos americanos. A crise no Brasil juntaram-se as dificuldades enfrentadas pelos angolanos, que tentavam reverter uma longa elevação dos preços de escravos que haviam facilitado, até então, as finanças luso-africanos e as redes de trabalho que tinham se desenvolvido na África Central Ocidental. O primeiro teste luso-africano da política de Pombal foi a chegada do governador indicado pelo novo regime, Antônio de Vasconcelos, em 1758. Vasconcelos foi para Angola administrar as políticas comerciais decretadas pelo “livre” mercado (36). Procurou restringir o sistema monopolista de contrato e os abusos dos contratadores que bloqueavam um mercado africano em Luanda. Vasconcelos chegou a Angola para desenvolver uma nova economia voltada para a indústria doméstica de algodão e de outras manufaturas que Pombal pretendia criar em Portugal. Nos trilhos dessa declaração de liberdade comercial, e sem o reconhecimento das evidentes contradições, vieram para Angola duas companhias comerciais de corte monopolista: a Companhia Geral de Pernambuco e da Paraíba e a Companhia Geral do Grão-Pará e do Maranhão. A última, convocada para a missão de desenvolver as
capitanias negligenciadas no norte do Brasil (37), obteve a maior parte de sua força de trabalho dos portos portugueses acessíveis no Atlântico, na Alta Guiné (38), e apenas ocasionalmente comprou escravos em Luanda (39). De qualquer modo, a Companhia de Pernambuco tornou-se a maior atuante em Luanda por volta de 1760 (40), o que levou à retomada de esforços de Lisboa no sentido de reencontrar seu caminho no tráfico angolano, disseminando generosos créditos para o comércio de mercadorias por meio da clara proteção do Governador Vasconcelos e seu sucessor, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1764-72) (41). Mas a Companhia de Pernambuco carecia de mercadorias de qualidade e de mais preços baixos que os produtos transacionados por ingleses e franceses. Ela teve êxito em curto espaço de tempo, quando seus competidores do norte da Europa estavam temporariamente distraídos com a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Quando reorganizaram suas ações nas costas angolanas, as companhias pombalinas em Angola passaram a recorrer aos generosos termos de crédito para continuar a atrair colaboradores luso-africanos e fornecedores africanos para Luanda. O financiamento das redes de comércio no interior, por meio de crédito, promoveu o mercado angolano a um nível superior em relação às suas origens no século XVII. O novo mercado passou a ser totalmente comercializado e conduzido por consumidores e camponeses africanos endividados. O “livre comércio” e o novo mercantilismo significaram também uma agressão direta à habitual falta de interesse dos luso-africanos em relação às políticas metropolitanas em Angola. O Governador Vasconcelos começou consolidando as relações comerciais de Luanda com um importante fornecedor de escravos, o reino de Kasanje, no extremo leste, no vale do Kwanza (42), e tentando cortar a principal rota comercial em funcionamento no nordeste, comandada por Kasanje e seus aliados lusoafricanos, Jinga (43). Comerciantes lisboetas passaram sobre os lusoafricanos, entraram nos distritos militares de Ambaca e Pungo Andongo, e vincularam-se a Kasanje. Vasconcelos tentou restringir as difusas redes de comércio luso-africanos alinhadas na orla da colônia de Jinga, Congo, nos estados do Ovimbundu. Deslocou o comércio dessas regiões para outras feiras nas quais os angolanos teriam mais dificuldade de contrabandear
produtos importados dos estrangeiros, o que ofendia a política de defesa do comércio livre e das manufaturas. A prosperidade de Angola, contudo, dependia desses contrabandos (44). As feiras comerciais também significavam a oferta de policiamento do governo a comerciantes que viajavam pelo interior com grandes quantidades de bens tomados por empréstimo de credores em Luanda e que retardavam o envio de escravos à capital. O Governador Sousa Coutinho levou ao extremo os esforços de policiamento e controle do seu antecessor, Antônio de Vasconcelos. Sua única determinação era recuperar Angola para as manufaturas domésticas portuguesas e para os monopólios das companhias comerciais de Lisboa (45). Entre as outras numerosas medidas, Sousa Coutinho tentou remover os capitães-mores luso-africanos dos seus controles de firmas comerciais no interior, estabeleceu monopólio governamental sobre o sal de Benguela — que constituía um importante meio de troca para eles —, condenou práticas religiosas africanas em Luanda, reformou as tropas do governo e da milícia colonial, nomeou um governador para Benguela subordinado a Luanda e elaborou planos para conter a expansão dos comerciantes lusoafricanos sobre os planaltos centrais. Se parte desses esforços tivesse surtido efeito, Sousa Coutinho teria eliminado o maior obstáculo aos planos mercantilistas em Angola. O governador, contudo, carecia de meios para realizar suas promessas. Além disso, suas visões tropeçaram em contradições ao ter procurado implementar políticas por intermédio dos soldados luso-africanos e baixos funcionários do governo. Ele também vacilou diante dos comerciantes mais próximos em Luanda, que temiam perder os empréstimos que haviam feito aos demais luso-africanos. Esses comerciantes fizeram ofertas desesperadas de produtos para os únicos que, na colônia, eram capazes de entregar os escravos para a Companhia de Pernambuco levar ao Brasil. Essas e outras iniciativas de Sousa Coutinho destruíram o devotado e dinâmico governador que, profundamente desencorajado, retomou à carreira em Portugal, em 1772, deixando Angola para seus residentes lusoafricanos.
O grande legado de Sousa Coutinho foi o de ter feito do tráfico em Angola uma organização comercial mais moderna no século XIX, com a eliminação dos contratadores. Os proprietários de contrato tinham combatido os intrusos da Companhia de Pernambuco ao negarem o tecido asiático, extremamente importante para a compra de escravos na África Central Ocidental. Mas Pombal os contrariou ao ter autorizado os navios da Ásia, que navegavam ao norte até a costa da África, a fazer escalas em Luanda, em casos de reparos e obtenção de provisões, satisfazendo, assim, às necessidades da Companhia por produtos de algodão para os senhores de escravos e escapando, desse modo, ao monopólio dos contratadores de Lisboa. Os navios brasileiros, também presentes em Luanda, levaram vantagem da oportunidade, mesmo ilegal, de comprar produtos têxteis mais baratos e escravos. Isso provocou uma nova imposição de proibições contra transações intercoloniais de mercadorias que não passassem por Portugal. Ainda sem ter percebido a ironia que se impunha contra essa complexa rede de restrições ao comércio mercantilista, Pombal encerrou o sistema de contrato, de uma vez por todas, em nome da “liberdade de mercado”. Uma confrontação direta traria sérios riscos, uma vez que os proprietários de contrato tinham uma parte substancial dos créditos que financiavam o tráfico lisboeta em Luanda. Caso ameaçados, esses poderiam simplesmente desmontar todo o sistema de exportação da colônia, simplesmente cobrando seus empréstimos. Depois de anos de preparação cuidadosa, Sousa Coutinho finalmente confiscou os bens dos contratadores em 1769, declarando o fim do sistema de contrato e iniciando uma reestruturação gradual das finanças da colônia. Até o final do século, Angola ainda não havia se recuperado em relação às décadas anteriores. O fim do contrato, seguido da aposentadoria de Sousa Coutinho e da ressonante falência da Companhia de Pernambuco — em parte devido ao seu próprio crédito demasiadamente extenso em Angola, e porque seus principais rivais haviam sido banidos de cena —, deixaram os lusoafricanos seguir suas próprias inclinações na década de 1770. A principal estratégia desses era a consolidação de seus negócios com os capitães dos barcos brasileiros que carregavam escravos. A década de 1770 foi uma época em que os comerciantes do Rio avançaram de Benguela para o porto de Luanda com sua geríbita, levando também um crescente conjunto de
mercadorias britânicas e outras, da metrópole, adquiridas legalmente no Brasil. Os baianos não tinham nenhuma vantagem sobre a cachaça do Rio de Janeiro, já que os angolanos haviam iniciado a plantação de seu próprio tabaco. Os comerciantes em Salvador, portanto, ficaram empatados com seus negócios no comércio da Costa da Mina, que supria parte das necessidades de trabalho escravo em Pernambuco. Poucos escravos deixaram Luanda sob os auspícios de companhias do nordeste do Brasil. As reclamações metropolitanas sobre o domínio absoluto do comércio angolano pelo Brasil, não apenas no transporte de escravos, mas também na importação e nos créditos que financiavam o tráfico, aparecem em muitas correspondências oficiais.
4. A Colônia Abandonada Com a reanimação da agricultura brasileira provocada pelas reformas pombalinas e com o aumento da demanda por escravos na década de 1760 — pela primeira vez desde o colapso do tráfico para Minas Gerais —, os luso-africanos também começaram a comprar entusiasticamente as mercadorias contrabandeadas da Inglaterra e da França em grandes quantidades, abarrotando Angola de têxteis asiáticos, antes indisponíveis pelo monopólio dos contratadores portugueses e pelas companhias pombalinas. Do ponto de vista dos luso-africanos, o novo comércio era o mais livre que conheceram, desde os decretos do “livre comércio” de 1758. Eles também se recobraram do colapso do crédito comercial provocado pelos últimos anos de governo de Sousa Coutinho. Na época do governador Coutinho eles tiveram que enfrentar grandes campanhas militares, especialmente a partir de 1720, na busca de escravos no interior. Mas a situação, para os luso-africanos, tornou-se mais uma vez tensa, já que a estratégia agressiva de captura de escravos terminou por matar a galinha dos ovos de ouro. Seus alvos militares na década de 1770 eram os guerreiros Ovimbundu, principalmente Mbailundu, e vários estados militares aliados, cujos cativos eram distribuídos a Pungo Andongo e Benguela (46). As vitórias esmagadoras e os ataques prolongados destruíram o poder militar da velha geração de reis- guerreiros do Ovimbundu. Ao mesmo tempo, parte dos comerciantes apoiados pelos
africanos preferiam comercializar escravos com caravanas financiadas da costa a comercializar com os luso-africanos, subfinanciados e propensos a guerras caras para a obtenção de cativos. Os ganhos militares enfraqueceram, a longo prazo, as estratégias militares luso-africanas. Os compradores brasileiros de escravos, no entanto, lucravam com o comércio em Angola diante da falta de significativa competição metropolitana. Embora Lisboa tenha quase que abandonado Angola durante a década de 1770, a Coroa, na década seguinte, decidiu renovar estratégias e desafiar as vantagens comerciais quase perdidas para os brasileiros (47). Adotando táticas de força, e utilizando estrangeiros ao invés de súditos do Brasil e de Angola, um esquadrão naval de Portugal chegou a Luanda em 1782 e lançou uma expedição para ocupar Cabinda, no norte do estuário do Zaire, como primeiro passo em direção ao corte do acesso luso-africano às mercadorias estrangeiras. Apesar de a França ter tentado retomar Cabinda após a Paz de Paris em 1783 e ter negociado a retirada das forças portuguesas capturadas para salvar as aparências, a expedição de fato fracassou porque os luso-africanos em Luanda se recusaram a fornecer comida de suas plantações do rio Bengo para Cabinda. O fracasso lisboeta na tentativa de redução da presença estrangeira em águas angolanas acelerou uma segunda falha de estratégia. Lisboa apertou as inspeções alfandegárias no Império em 1784 visando estancar a corrente de negócios não taxados, especialmente dos produtos manufaturados estrangeiros de boa qualidade que estavam entrando nos domínios portugueses. Em Luanda, as duras inspeções na entrada das mercadorias tinham o objetivo de aumentar os rendimentos do governo pela taxação da geribita brasileira e das mercadorias inglesas contrabandeadas por meio do Brasil e com pequeno custo para os comerciantes de Lisboa. Portugal teria, assim, seus súditos pagando para uma diminuta administração colonial em Angola, com poderes confinados à costa, deixando o interior aos luso-africanos para pilhar escravos pelos métodos mais variados. Essa radical reorientação da política colonial, de permissividade no interior e fiscalização dura na costa (explícita na documentação da década
de 1780), refletiria as lições aprendidas por Sousa Coutinho dez anos antes. Também explicaria as contradições de uma década na qual um forte governador, o Barão de Moçâmedes (1784-90), avançou a ocupação da costa nas regiões do extremo sul, associando- se aos traficantes franceses, levando Benguela para o controle de Luanda e retardando a implementação dos novos regimes aduaneiros na capital da colônia. Moçâmedes ofereceu solenes garantias aos luso-africanos e aos brasileiros que toleravam a ilegalidade do tráfico e cuja inspeção governamental apenas possuía propósito estatístico (48). Mas permitiu o governador, ao mesmo tempo, que um dos mais violentos e notório traficante de escravos da época, Antônio José da Costa, realizasse prolongadas pilhagens tanto ao norte quanto ao sul de Luanda. As objeções formais a um pretenso plano para a retirada das forças governamentais do interior do distrito militar de Pungo Adongo estão nos arquivos de Lisboa. A nomeação de um governador para Benguela em 1791, que deveria prestar obediência direta a Lisboa, preencheu a última lacuna formal na ocupação da costa ao sul do Dande (49). As iniciativas políticas e administrativas de Lisboa, muito mais que no passado, vieram anular a esmagadora força comercial dos brasileiros, que procuravam por escravos angolanos para trabalhar nas prósperas plantações de algodão e de açúcar por toda a colônia americana na década de 1790. No Rio de Janeiro, os navios britânicos contrabandeavam cada vez mais abertamente, ao longo da Costa de Loango, bem como, nas desembocaduras dos rios do norte de Luanda, compravam-se quantidades massivas de escravos. A França, antes da sua retirada do tráfico, diante da perda de São Domingos em 1791 e das guerras que se iniciam em 1793, liderou um descarado contrabando em Benguela aliando-se a um dos primeiros governadores metropolitanos lá colocado. Isso levou a muito mais independência do que Lisboa tinha permitido. O sul do Congo viu-se, assim, inundado de importados. Uma seca devastadora queimou o interior da África durante a década de 1790, criando milhares de refugiados e guerras entre africanos, ao mesmo tempo que a demanda por escravos no mercado americano de Buenos Aires a Baltimore aumentou como nunca, levando o tráfico angolano ao seu apogeu no que se refere ao número de escravos que chegavam à costa (50).
Os governadores angolanos da década de 1790 lentamente restauraram velhos métodos, não efetivos, na tentativa de controlar o comércio no interior, renegociando a aliança com os reis em Kasanje, retornando à política das feiras administradas pelo governo no interior, tentando registrar mercadorias que os comerciantes pegavam de Luanda para o interior, avisando os luso-africanos — mais uma vez — para não comercializarem com os estrangeiros e enviando expedições militares para sufocar os distúrbios no interior. Todas essas políticas visavam à recuperação do débito que Lisboa tinha criado anos antes nas redes de trabalho do interior, enquanto os luso-africanos compravam mercadorias de baixo custo e vendiam escravos caros, na parceria brasileira e britânica sem precedentes. Lisboa tinha tão pouco capital para investir que a única iniciativa que poderia tomar era estabelecer contato direto com a mais nova grande fonte de escravos, o Império de Lunda, milhares de quilômetros de distância no interior. Esse contato prolongou a velha estratégia das redes de trabalho luso-africanos perto da costa, tentada pela última vez, em Kasanje na década de 1750. No contato com Lunda estava a possibilidade da pressão que esta poderia fazer sobre os devedores africanos em Kasanje (51) e a promessa de que Lunda estaria em condições de enviar escravos à costa por própria conta, sem o estímulo comercial do crédito português (52).
5. Portugueses e Ingleses no Brasil Lisboa só se recuperou de sua posição periférica no comércio angolano quando se uniu às forças britânicas no Atlântico Sul. A ameaça francesa a Portugal durante a Guerra Peninsular, como é familiar aos leitores, forçou a corte portuguesa, e muitos comerciantes lisboetas com ligações aos fornecedores britânicos, a fugir, em 1807-08, para o Rio de Janeiro, a bordo de esquadra inglesa. Os portugueses, no Brasil, expressaram sua gratidão ao abrirem a colônia americana ao comércio de mercadorias britânicas sem o pagamento de taxas de importação (53). Como os ingleses tinham restringido seus próprios súditos ao proibir o comércio de escravos, ainda bastante ativo em 1808, e como os mercados alternativos para bens de exportação na África Central permaneciam em um estágio
primitivo de desenvolvimento, parte dos comerciantes ingleses redirecionaram seus negócios na África para o Brasil, principalmente na forma de disponibilidade do crédito aos comerciantes portugueses deslocados de Lisboa para o Rio de Janeiro (54). Com esses recursos financeiros, os portugueses no Rio estavam em condições de retomar seu comércio de escravos em Angola exatamente nas mesmas linhas que os comerciantes da capital brasileira tinham trabalhado em décadas anteriores, sem ter que se preocupar com os detalhes administrativos do tráfico no interior de Angola. A chegada dos portugueses pegou o mercado angolano em um momento bastante diverso do militarismo e do monopólio. O momento era de um novo capitalismo, mais avançado, que desalojaria os luso-africanos e os brasileiros por meios econômicos, já que as medidas administrativas tinham falhado. As duas últimas décadas de tráfico legal em Angola, de 1810 a 1830, presenciaram o declínio do comércio entre Benguela e o Rio de Janeiro, acelerado pela perda de importância gradativa dos têxteis indianos da França, que tinham alcançado o auge na década de 1780. Os brasileiros abandonaram Luanda para comprar escravos em uma série de portos que criaram ao norte da cidade, algumas vezes para atender luso-africanos ansiosos pela venda de seus cativos do Rio Mbrije, em Cabinda. Essa era a saída para não pagar altos preços por produtos importados e taxas governamentais a eles impostas em Luanda. Os luso-africanos, nos arredores da cidade, tornaram-se os fornecedores dos navios que iam para Cabinda, ao mesmo tempo que continuavam a exportar escravos. Os traficantes do Rio de Janeiro começaram a procurar, alternativamente, novas fontes de escravos em Moçambique. Os baianos, carentes de apoio dos mercadores britânicos concentrados no Rio, não tinham escolha senão prosseguir sua troca de tabaco por escravos na Costa da Mina. Mas lá tinham que escapar da perigosa esquadra britânica estacionada nas costas da África Ocidental voltada para impedir o tráfico dos seus súditos e das demais nações européias. Os portugueses no Rio — protegidos da interferência britânica por tratados que toleravam o comércio português de escravos ao sul da linha do equador e apoiando os lucros britânicos adquiridos por meio das mercadorias de origem inglesa, que vendiam por escravos em Angola —
ganharam o controle do comércio de escravos de Luanda pela primeira vez, desde o início do século XVII. Pernambuco, no entanto, desafiou os comerciantes do Rio de Janeiro em Luanda. No início do século XIX Pernambuco necessitava de escravos para as suas florescentes plantações de algodão. O algodão tinha sempre sido o principal fator brasileiro para o envolvimento indireto de Lisboa em Angola. Uma indústria têxtil reativada e de munições possibilitou o comércio via Pernambuco para Luanda por vários anos. Por outro lado, as iniciativas do comércio de escravos comandado pelos luso-africanos tinham mudado para a costa norte de Luanda, por meio de contínua parceria entre os brasileiros, antes de 1810, e os portugueses estabelecidos no Rio, livres da competição estrangeira na costa angolana. Tudo isso interferiu no comércio de escravos em Luanda, sem os créditos do auge da era dos contratadores, nas décadas de 1730 e 1740, para levá-lo à costa, na base exclusiva do dinheiro. Secas contínuas e distúrbios no interior contribuíram também para o desenvolvimento de um sistema de financiamento por conta própria, de africanos e luso-africanos, no comércio de escravos. Tal desenvolvimento preparou a cena para um comércio de bens controlado e transportado pelos africanos — em cera, marfim e finalmente em borracha —, que substituiria o comércio de escravos após 1850.
6. Conclusões Com os comerciantes metropolitanos instalados no Rio comprando cativos em Luanda no início do século XIX, o comércio de escravos angolanos criou imagens exitosas, como as de um espelho, que faziam lembrar o século XVIII. Os africanos tinham se tomado dependentes de bens importados, além de bastante deslocados das suas regiões de origem pelas secas nas décadas precedentes e pelas epidemias que ocorreram por volta de 1820. Dessa maneira, nem guerras nem dívidas foram necessárias para manter a saída de escravos. Luso-africanos, finalmente sujeitos à inspeção de seus importados em uma alfândega funcional em Luanda, e abandonados por seus compradores no Rio, procuravam outras saídas comerciais. Aqueles próximos a Luanda desviaram seus escravos para antigos aliados, os brasileiros, e para os norte-americanos e espanhóis que
apareceram para substituir os britânicos e franceses na costa norte de Luanda. Alguns começaram a abandonar o comércio escravista por bens, como os gêneros alimentícios em Luanda e a cera de Benguela. Mas tais concessões continham as sementes para o crescimento de mercadorias não apenas como a cera mas também o marfim e o látex, que substituiriam o comércio de escravos em Angola nos fins do século XIX. Os brasileiros, que tinham passado o século XVIII avançando seus interesses no monopólio dos contratadores até se tornarem os principais comerciantes em Luanda no início do século XIX, retiraram-se novamente para as periferias: Cabinda, o estuário do Zaire e a distante Moçambique. O militarismo em Angola foi eliminado pela redução da influência lusoafricana sobre a milícia colonial e a substituição das antigas famílias de suas capitanias militares por regentes civis e por reformas administrativas (55). O papel do capital comercial britânico no comércio de escravo em Angola cresceu sem cessar em todo o Império português desde o século XVII. Expandiu-se do seu foco inicial, o ouro brasileiro, passou pelos mercados da “British factory” em Lisboa e chegou aos bens contrabandeados para luso-africanos desesperados para escapar das pressões do mercantilismo pombalino em Angola. Envolveu-se no crescimento da agricultura brasileira e retornou aos portugueses expatriados depois de 1810. A economia política do tráfico de escravos no Atlântico Sul tinha se tomado, assim, um negócio altamente comercializado, e um objeto de clamor dos governadores brasileiros, que lideraram exércitos de mercenários africanos pelo interior de Angola em busca de escravos no final do século XVII. O tráfico angolano de escravos — apesar de seu aparente isolamento das dinâmicas econômicas francesas e inglesas no Caribe e do acelerado crescimento econômico do norte da Europa — foi marcado não só pelo intercâmbio comercial entre o Brasil e a África que não envolvia a participação direta da Europa, nem mesmo de Portugal, mas também pelo seu movimento nas mesmas direções das largas correntes da economia atlântica no século XVIII. O tráfico angolano do século XVII tinha em grande parte sido um negócio entre os cultivadores de cana brasileiros, ávidos por mão-de-obra, os caçadores de escravos militaristas da África — luso-africanos e guerreiros — que capturaram escravos com violência e foram abastecidos por comerciantes portugueses que ofereciam vinho da
Madeira, lãs britânicas e têxteis asiáticos, mas que dificilmente foram capazes de controlar o volume ou a direção do comércio. O século XVIII, no entanto, foi iniciado com as descobertas nas Minas Gerais, o que trouxe ameaça aos comerciantes asiáticos em Portugal, não apoiados pelos fornecedores britânicos, em busca de escravos angolanos para trocar pelo ouro disponível no Brasil. Eles tiveram força em Luanda de 1730 a 1750. Os comerciantes asiáticos em Portugal, na luta por mercados com os comerciantes asiáticos, deslocaram a aliança luso-africana com Pernambuco, no poder em Angola, empurraram os luso-africanos para o sul do Brasil e excluíram os compradores estrangeiros do círculo de favores do mercantilismo de Lisboa. Novas pressões mercantis de Lisboa, melhor capitalizadas por meio das companhias comerciais, menos ligadas ao antigo império asiático e mais integradas à Europa no novo contexto de revolução produtiva, desviaram uma porção de escravos de Angola para a tradicional base de Portugal, Pernambuco, nos anos de 1760 e 1770. Mas tudo isso feneceu assim que a atenção de Lisboa se voltou para a agricultura brasileira nos anos de 1780 e 1790, deixando as portas do comércio de escravos da África Central Ocidental abertas para os comerciantes do Rio de Janeiro. Observando-se toda a extensão do comércio de escravos ao longo da costa africana, desde Loango até o rio Kurene, durante o último terço do século XVIII, portugueses e brasileiros começaram a perder a mão-de-obra africana para os escravistas franceses e britânicos. Apenas o baixo custo da geribita brasileira e os ruinosos créditos em Luanda mantiveram o movimento de escravos para o Brasil em números que — graças à prosperidade do açúcar, ao módico contrabando de bens britânicos e à seca geral na África — alcançaram picos históricos, apesar do virtual abandono da colônia por parte de Lisboa e do retrocesso a uma política de simples manutenção de feitorias costeiras, como aquelas mantidas por seus rivais na Costa do Ouro e na Costa dos Escravos, na África Ocidental. Tivessem continuado os desenvolvimentos nesse sentido, as caravanas de Luanda teriam feito de Luanda, no século XIX, o mesmo que os mercadores do Daomé, ao trazerem cativos até Ajudá, e os comerciantes do Loango, ao apresentarem seus cativos aos escravistas europeus, nas praias do norte do Zaire.
A fraqueza de Portugal durante a era napoleônica e a abolição britânica do tráfico ao norte da linha do equador levaram Lisboa de volta a Luanda após 1810. Comerciantes portugueses se mudaram para o Rio de Janeiro e, com o apoio ampliado dos britânicos, que também entravam no Brasil, empurraram os pequenos comerciantes brasileiros para fora da capital colonial, para as margens do tráfico angolano e para as costas que os ingleses e franceses haviam abandonado no norte de Luanda, no Zaire, e no oceano Indico. Os luso-africanos no interior de Angola redirecionaram seu tráfico para seguir os passos dos seus tradicionais parceiros. Os que estavam perto de Luanda começaram a complementar a venda de escravos com outros bens de exportação. Não demorou muito para que os comerciantes africanos do Congo, do vale do Kwanza e dos planaltos centrais se juntassem a eles. Após 1830, apesar de uma reminiscência do comércio ilegal de escravos que durou até 1850, os africanos haviam levado a estrutura do comércio atlântico e do crédito para o interior das suas próprias instituições políticas, sociais e econômicas. Isso ocorreu com tanta profundidade que, mesmo sem determinação comercial da fraca monarquia constitucional portuguesa após 1821, os africanos estavam prontos para tomar iniciativas comerciais nas décadas de 1840 e 1850, desenvolvendo as exportações de cera, marfim e borracha da África Central Ocidental, especialmente quando a pressão britânica forçou a retirada do capital comercial português do tráfico angolano de escravos.
Notas Os trabalhos mais recentes e relevantes dos historiadores no Brasil incluem: Edval de S. Barros, “Escravidão, tráfico atlântico e preços de cativos: o caso da província do Rio de Janeiro, 17901830” (Niterói: Departamento de História Federal Fluminense, 1987) (Relatório não publicado, Centro Nacional de Pesquisas); Rui Duarte de Carvalho, “L’Interdiction de la Traité en Angola”, Lusíada (Porto: Universidade de Lusíada), n° 1 (1989), pp. 169219; Manolo Garcia Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico Atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX) (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995); João L. R. Fragoso, Homens de grossa aventura: acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830 (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992); João L. R. Fragoso e Manolo G. Florentino, Mercado e formas de acumulação: os comerciantes de grosso trato da praça do Rio de Janeiro, c. 1790 — c. 1830 (Rio de Janeiro: PNPE/IPEA, 1990); Riva Gorenstein, “O enraizamento de interesses mercantis portugueses na região centro-sul do Brasil (1808-1822)” (Dissertação de Mestrado, Departamento de História, Universidade de São Paulo, 1978); Carlos Alberto de Medeiros Lima, “Trabalho, negócios e escravidão: artífices na cidade do Rio de Janeiro, c. 1790 — c. 1808” (Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de História, 1993); João Pedro Marques, “A abolição do tráfico de escravos na imprensa portuguesa (1810-1840)”, Revista internacional de estudos africanos, n°.s 16-17 (1992-4), pp. 7-30; João Pedro Marques, “Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista: a diplomacia portuguesa (1809-1819)”, Revista internacional de estudos africanos, n°.s 10-11 (1989), pp. 7-30; Selma Alves Pantoja, “O encontro nas terras de além-mar: os espaços urbanos do Rio de Janeiro, Luanda, e ilha de Moçambique na era da ilustração” (Tese de doutoramento, Departamento de Sociologia [Faculdade de Letras e Ciências Humanas], Universidade de São Paulo, 1994); Corcino Medeiros dos Santos, O Rio de Janeiro e a conjuntura atlântica (São Paulo: Expressão e Cultura, 1993). Os leitores podem também consultar duas publicações minhas relevantes aos temas aqui desenvolvidos: Joseph C. Miller, “A Marginal Institution on the Margin of the Atlantic System: The Portuguese Southern Atlantic Slave Trade in the Eighteenth Century”, in Barbara Solow, ed., Slavery and the Rise of the Atlantic System (New York: Cambridge University Press, 1991), pp. 120150, e “The Numbers, Origins, and Destinations of Slaves in the Eighteenth-Century Angolan Slave Trade”, Social Science His- tory, 13, 4 (1989), pp. 381-419 (também em Joseph E. Inikori and Stanley L. Engerman, eds., The Atlantic Slave Trade: Effects on Economies, Societies, and Peoples in África, the Américas, and Europe [Durham: Duke University Press, 1992], pp. 77-115).
(1) Luís Lisanti, ed., Negócios coloniais (uma correspondência comercial do século XVIII) (5 vols.) (São Paulo: Visão Editorial, 1973), vol. 5, pp. 77, 79-80,91; também Joseph da Roza, certidão, 16 de setembro de 1715, Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) [daqui por diante AHU], Angola cx. 16. (2) Uma recente pesquisa sobre a “corrida do ouro” é a de A. J. R. RussellWood, “Colonial Brazil: The Gold Cycle, c. 1690-1750,” in Leslie Bethell, ed., Cambridge History ofLatin America (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), vol. 2, pp. 547-600; ver também John Monteiro, “The Transition from Indian to African Slavery in São Paulo” (Artigo não publicado, Annual Meeting of the American Historical Association, Washington, D.C., 1987), e Donald Ramos, “Community, Control and Acculturation: A Case Study of Slavery in Eighteenth Century Brazil”, Américas, 42, 4 (1986), pp. 419-51. Um resumo dos preços aparece em Joseph C. Miller, “Slave Price in the Por- tuguese Southern Atlantic, 16001830”, in Paul E. Lovejoy, ed„ Africans in Bondage: Studies in Slavery and the Slave Trade (Madison: African Studies Program, University of Wisconsin, 1986), pp. 43-77. Sobre preços em geral, Mircea Buescu, 300 anos de inflação (Rio de Janeiro: APEC, 1973). (3) Não há um trabalho detalhado sobre história política da colônia nesse período, mas ver, como complemento às fontes, Antônio de Oliveira de Cadornega, História geral das guerras angolanas (1680) (3 vols.) (ed. José Matias Delgado) (Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1940); Ralph Delgado, História de Angola (segunda edição revisada) (4 vols.) (Lobito: Gráfica da Livraria Magalhães, 1972); José Antônio Gonçalves de Mello, João Fernandes Vieira, Mestre de campo do terço de infantaria do Pernambuco (Recife: Universidade do Recife, 1956); Virgínia Rau, ‘‘O Livro da Razão" de Antônio Coelho Guerreiro” (Lisbon: DIAMANG, 1956), esp. p. 60; Anne W. Pardo, “A Comparative Study of the Portuguese Colonies of Angola and Brazil and their Interdependence from 1648-1825 (sic)” (Ph.D. diss., Boston University, 1977), pp. 90,94. (4) As interpretações nesse capítulo resumem argumentos desenvolvidos de maneira mais extensa em Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant
Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830 (Madison: University of Wisconsin Press, 1988). (5) A mais nova pesquisa sobre o fim da escravidão legal veio de historiadores de língua inglesa: Leslie Bethel, The Abolition of the Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil, and the Slave Trade Question, 1807-1869 (Cambridge: Cambridge University Press, 1970); Robert Edgar Conrad, World ofSorrow: The African Slave Trade to Brazil (Baton Rouge: Luisiana State University Press, 1986); David Eltis, Economic Growth and the Transatlantic Slave Trade (New York: Oxford University Press, 1987). (6) Interpretações recentes e divergentes desses eventos: John K. Thornton, The Kingdom of Kongo: Civil War and Transition, 1641-1718 (Madison: University of Wisconsin Press, 1983); Anne Hilton, The Kingdom of Kongo (Oxford: Claredon Press, 1985); Beatrix Heintze, “Die portugiesische Besiedlungs und Wirtschaftspolitik in Angola 1570-1607”, Aufsaize zur portugiesischen Kulturgeschichte, 17 (1981-82), pp. 200-19. (7) Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society (New York: Cambridge University Press, 1985). (8) Ver Joseph C. Miller, Kings and kinsmen: Early Mbundu States in Angola (Oxford: Claredon Press, 1976). Para mais detalhes, com a interpretação econômica revisada e resumida ver Joseph C. Miller, “The Paradoxes of Impoverishment in the Atlantic Zone”, in David Birmingham and Phyllis Martin, eds., History of Central África (London: Longmans, 1983), vol. 1, pp. 118-59; também Beatrix Heintze, “Angola nas garras do tráfico de escravos: as guerras do Ndongo (1611-1630)”, Revista Internacional de estudos africanos, 1 (1984), pp. 11-59. (9) Ver os numerosos trabalhos de Beatrix Heintze nesse período: “The Angolan Vassal Tributes of the 17th Century”, Revista de história econômica e social, 6 (1980), pp. 57-78; “Luso-African Feudalism in Angola? The Vassal Treaties of the 16th to the 18th Century”, Revista portuguesa de história, 18 (1980), pp. 111-31; “Das Endedes unabhangigen Staates Ndongo (Angola)”, Paideuma, 27 (1981), pp. 197-273; “Der portugiesisch-afrikanische Vasallenvertrag in Angola im 17. Jahrhundert”, Paideuma, 25 (1979), pp. 195-223; e especialmente Fontes para a história
de Angola do século XVII (2 vols.) (Wiesbaden: Franz Steiner Verlag, 1985, 1988). (10) Ch. Cornelis Golinga, The Dutch in the Carihbean and on the Wild Coast, 1580-1680 (Gainesville: University Presses of Florida, 1971); Charles R. Boxer, Jan Compagnies in War and Peace, 1602-1799 (London: Heinemann, 1979). (11) Charles R. Boxer, Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola, 1602-1686 (London: University of London Press, 1952); Sidney M. Greenfield, “Entrepreneurship and Dynasty Building in the Portuguese Empire in the Seventeenth Century: The Career of Salvador Correia de Sá e Benevides”, in idem, Arnold Strickson, e Robert T. Aubey, eds., Entrepreneurs in Cultural Context (Albuquerque: University of New México Press, 1979), pp. 21-63. (12) Carl A. Hanson, Economy and Society in Baroque Portugal, 16681703 (Minneapolis; University of Minnesota Press, 1981). (13) Para este período mais conhecido da história econômica de Angola e suas ligações com o Brasil, ver, por exemplo, Mello, João Fernandes Vieira, e em geral os excelentes estudos de José Gonçalves Salvador, Os Cristãos-Novos e o comércio no Atlântico meridional (com enfoque nas capitanias do sul 15301680) (São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1978), e Os magnatas do tráfico negreiro (séculos XVI e XVII) (São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1981). Examinei o relato detalhado de Antônio Coelho Guerreiro em “Capitalism and Slaving: The Financial and Commercial Organization of the Angolan Slave Trade, According to the Accounts of Antônio Coelho Guerreiro (1684-1692)”, International Journal of African Historical Studies, 17, 1 (1984), pp. 1-56. (14) Pierre Verger, Flux et reflux de la traité des nègres entre le golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos du XVIIe au XlXe siècle (Paris: Mouton, 1968), pp. 11,66-67. Sobre a história climática e epidemias em geral, Joseph C. Mil- ler, “The Significance of Drought, Disease, and Famine in the Agriculturally Marginal Zones of West-Central África”, Journal of African History, 23, 1 (1982), pp. 17-61; Dauril Alden e Joseph C. Miller, “Unwanted Cargoes: The Origins and Dissemination of
Smallpox Via Slave Trade from África to Brazil, c. 1560 -c.1830”, in Kenneth F. Kiple, ed., The African Exchange: To- ward a Biological History of the Black People (Durham NC: Duke University Press, 1988), pp. 35-109. Revisado como “Out of África: The Slave Trade and the Transmition of Smallpox to Brazil, ca. 1560-ca. 1830”, Journal of Interdisciplinary History, 18, 1(1987), pp. 195-224. (15) Sem mencionar o decreto de 1684, promulgado no contexto das angústias daquela década, que estabelecia limitações severas como quantidades mínimas de água e comida a serem levadas para os escravos. Ameaçados pelos custos adicionais do tráfico diante da regulação do governo nos portos de Luanda, os brasileiros mal poderiam suportar tais limitações. Para o estudo dessa questão, ver Joseph C. Miller, “Overcrowded and Undernourished: Techniques and Consequences of the Tight-Packing in the Portuguese Southern Atlantic Slave Trade”, condensado em Acts du Colloque International sur la Traité des Noirs (Nantes, 1985) (2 vols.) (Société Française d’Histoire d’Outre-Mer and Centre de Recherche sur l’Histoire du Monde Atlantique), vol. 1, pp. 1-33. Essa legislação controlando o escravismo no mar está publicada nos Arquivos de Angola, 2, 11 (1936), pp. 313-19; também em Joaquim Ignacio de Freitas, ed., Collecção chronológica de leis extravagantes: posteriores á nova compilação das ordenações do Reino, publicadas em 1603 (6 vols., em 5) (Coimbra: Real Imprensada Universidade, 1819), vol. 2, pp. 13645; Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 28 (1906), pp. 206-11; José Justino de Andrade e Silva, Collecção chronológica da legislação portuguesa (10 vols.) (Lisboa: Imprensa Nacional, 1859). (16) Os escassos decretos aplicados especificamente em Angola, a maioria instruções reais dadas a cada governador no início da sua nomeação, ou regimentos, denunciavam repetidamente os abusos de seus predecessores e dos capitães militares na condução das "guerras angolanas”. A fonte primária dessa dimensão militar nas regras coloniais está em Antônio de Oliveira de Cadornega, História geral das guerras angolanas (1680) (3 vols.) (ed. José Malias Delgado) (Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1940). Os regimentos de 1666 e 1676 estão publicados repetidamente em Andrade e Silva, Collecção chronológica, vol. (1657-74??), pp. 110-17 (e ??), no “Boletim do Conselho Ultramarino (legislação antiga), pp. 295-
307, 311-29, nos Arquivos de Angola, ser. 1, 5 (1936), n.p. (doc. 2), no Arquivo das Colônias, 3, 14 (1918), pp. 60-73; 3, 15(1918), pp. 124-36; 3 (1918), pp. 188-92; extraído de Antônio Brásio, ed., Monumento missionária africana — African Ocidental (1666-1685) (Lisboa: Academia Portuguesa da História), vol. 13, pp. 17-25, 397-99; estudada em termos gerais em Beatrix Heintze, “Probleme bei der Interpretation von Schriftquellen: Die portugiesischen Richtlinien zur Angola-Politik im 17. Jahrhundert ais Beispiel", em Rainer Vossen e Ulrike Claudi, eds., Sprache, Geschichte und Kultur in Afrika (Hamburg: 1983), pp. 461-80. (17) Ver Miller, “Capitalism and Slaving”, para uma lista de mercadorias dessa natureza nas contas de Coelho Guerreiro, 1684-92; ver também Lisanti, ed.. Negócios Coloniais. Discussão de tipos específicos de têxteis está em Joseph C. Miller, “Imports at Luanda, Angola: 1785-1823”, em Gerhard Liesegang, Helma Pasch e Adam Jones, eds., Figuring African Trade Proceeding ofthe Symposium on the Quantification and Structure of the Import and Export and Long Distance Trade of África inthe I9th Century(c. 1800-1913) (St. Augustin 3-6 January 1983) (Berlin: Dietrich Reimer Verlag, 1986) (Kolner Beitrage zur Afrikanistik, 11), pp. 165-246. (18) Ver Affonso Escragnolle de Taunay, Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil (São Paulo: Anais do Museu Paulista, 1941), pp. 179-87; ver também carta do Senado da Câmara de Luanda, 20 de setembro de 1711, publicada em Charles R. Boxer, Portuguese Society in the Tropics (Madison: University of Wisconsin Press, 1965), pp. 193-94. (19) Resolução de 18 de maio de 1709, Decreto de 18 de abril de 1720, e Alvará de 29 de agosto de 1720, Boletim do Conselho Ultramarino (legislação antiga), vol. 1 (1854-58), pp. 403-04; Charles R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire 1415-1825 (New York: Rnopf, 1969), pp. 324-25; Boxer, Portuguese Society in the Tropics, pp. 115-17; Carlos Couto, Os capitães-mores em Angola no século XVIII (subsídios para o estudo da sua actuação) (Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972), MS p. 110. (20) Uma proibição de 1703; Couto, Capitães-mores, p. 80.
(21) A documentação das décadas de 1710e 1720 está cheia de reclamações dos comerciantes locais desalojados por esses “agentes estrangeiros”, homens do mar de fora. Ver Miller, Way ofDeath, pp. 54651. (22) Mais precisamente João Jacques de Magalhães, que governou de 1738 a 1748. (23) Joseph C. Miller, “Central and Southern Angola”, in Franz-Wilhelm Heimer, ed., The Formation of Angola Society (a ser publicado). (24) Ver as licenças concedidas para transportar escravos diretamente de Benguela, sem paradas, para ganhar tempo dos proprietários de contratos, em Eduardo Castro e Almeida, Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar (8 vols.) (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1936); Miller, Way of Death, pp. 468-69. (25) Hebert S. Klein publicou esses dados originalmente em “The Portuguese Slave Trade from Angola in the Eighteenth Century”, Journal of Economic History, 32,4 (1972), pp. 894-918; refinamentos apareceram recentemente em José C. Curto, “The Legal Portuguese Slave Trade from Benguela, Angola, 1730-1828: A Quantitative Reappraisal”, África (Revista do Centro de Estudos Africanos, Universidade de São Paulo), 1617, 1 (1993-94), pp. 101-16. (26) Joseph C. Miller, “Nzinga of Matamba in a New Perspective”, Journal of African History, 16, 2 (1975), pp. 201-16. Uma abordagem mais recente está em John K. Thornton, “Legitimacy and Political Power: Queen Njinga, 1624-1663”, Journal of African History, 32, 1 (1991), pp. 25-40. (27) Miller, Way of Death, pp. 245-83. (28) Couto, Capitães-mores. (29) Para o crescimento do tráfico de escravos inglês e francês nesse período, ver Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census (Madison: University os Wisconsin Press, 1969), embora não grande parte
dos acadêmicos do ponto de vista europeu tenham sido bem-sucedidos em distinguir o oeste da África em relação às regiões centrais africanas. (30) Phyllis M. Martin, The Externai Trade of the Loango Coast, 15761870 (Oxford: Claredon Press, 1972); estimativas quantitativas podem ser encontradas em David Richardson, “Slave Exports from West and WestCentral África, 1700-1810: New Estimates of Volume and Distribution”, Journal of African History, 30, 1 (1989), pp. 1-22. (31) Miller, Way of Death, pp. 464-68; Luís da Câmara Cascudo, Prelúdio da Cachaça: Etnografia, História e Sociologia da Aguardente no Brasil (Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1968) (Coleção Canavieira n° 1). (32) Podemos antecipar a cobertura abrangente do comércio do álcool de José C. Curto na sua tese de doutorado na University of Califórnia — Los Angeles. (33) Ver Miller, “Overcrowded and Undernourished”, para o acesso aos volumes físicos das cargas, dos escravos e das provisões. (34) Verger, Flux et reflux. (35) De forma similar ao comércio do rum dos norte-americanos na Rhode Island, ver Jay Coughtry, The Notorious Triangle: Rhode Island and the African Slave Trade, 1700-1807 (Philadelphia: Temple University Press, 1981). (36) Ver os decretos de 1758, publicados nos Arquivos de Angola, 2, 14 (1936), pp. 531-35, e em vários outros lugares. Uma provisão ligeiramente anterior, de 30 de março de 1756, assegurou o princípio geral da abertura de todos os portos na África; Taunay, Subsídios, p. 142. (37) Manuel Nunes Dias, A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) (São Paulo: Universidade de São Paulo, 1971). (38) Dauril Alden, “Indian Versus Black Slavery in the State of Maranhão During the Seventeenth and Eighteenth Centuries”, Biblioteca Americana,
1, 3 (1983), pp. 91-142; Jean Mettas, “La traité portugaise en Hautes Guinées, 1758-1797: problèmes et méthodes”, Journal of African History, 16, 3 (1975), pp. 343-63. (39) Antônio Carreira, “As companhias pombalinas de navegação, comércio, e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro”. Boletim cultural da Guiné Portuguesa, 22 (n 89-90) (1967), pp. 5-88; 23 (n 91-92) (1968), pp. 301-454; 24 (n 93) (1969). pp. 59-188; 24 (n 94) (1969), pp. 284-474; também As companhias pombalinas de navegação... (Lisboa, 1969), e revisada como As companhias pombalinas de Grão-Pará e Maranhão e Pernambuco e Paraíba (Lisboa: Editorial Presença, 1983). (40) José Ribeiro Júnior, Colonização e monopólio do nordeste brasileiro: A Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759-1780) (São Paulo: Editorial HUCITEC. 1976); “Alguns aspectos do tráfico escravo para o Nordeste Brasileiro no século XVIII", Anais do VI Simpósio nacional dos professores universitários de história (Goiânia, 1971) (São Paulo, 1973), vol. 1, pp.385-404. (41) Ralph Delgado, “O Governo de Sousa Coutinho em Angola”, Studia 6 (1960), pp. 19-56; 7 (1961), pp. 49-86; 10 (1962), pp. 7-48; também Maria Tereza Amado Neves, D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho: aspecto moral da sua acção em Angola (Lisboa: Sociedade Nacional de Tipografia, 1938) (I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo). (42) Gastão Sousa Dias, ed., “Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 56, 1-2 (1938), pp. 330; Jean-Luc Vellut, “Relations intemationales du Moyenkwango et de l’Angola dans la deuxième moitié du XVIIIe.s.”, Etudes d'histoire africaine, 1 (1970), pp. 75-135, e especialmente “Le Royaume de Cassange et les réseaux luso-africains (ca. 1750-1810)”, Cahiers d’études africaines, 15, 1 (n 57) (3975), pp. 117-36. (43) A fortaleza do governo em Encoje, 1759; David Birmingham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and their Neighbours under the Influence of the Portuguese 1483-1790 (Oxford: Claredon Press, 1966), pp. 150ff.
(44) Couto, Capitães-Mores, reproduz algumas das documentações; Miller, Way of Death, pp. 582-89 et passim.
principais
(45) A seguinte interpretação minimiza o grande elogio pelas iniciativas de modernização alfandegária de Souza Coutinho nos estudos portugueses da era de Salazar, citada na nota 36 supra; ver Miller, Way of Death, pp. 584-97. (46) O famoso cronista das políticas angolanas do século XVIII, Elias Alexandre de Silva Corrêa, descreveu esses caminhos na sua História de Angola (2 vols.) (Introd. e notas por Dr. Manoel Múrias) (Lisboa: Editorial Ática, 1937); ver interpretação em Joseph C. Miller e John K. Thornton, “The Chronicle as Source, History, and Hagiography: The ‘Catálogo dos Governadores de Angola’”, Paideuma, 33 (1987), pp. 359-89. (47) Para esse período, ver Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808) (São Paulo: Editorial HUCITEC, 1979); Kenneth R. Maxwell, Conflicts and Conspiracies: Portugal and Brazil 17501808 (New York: Cambridge University Press, 1973); Dauril Alden, “Late Colonial Brazil, 1750-1808: Demographic, Economic, and political Aspects”, in Leslie Bethel, ed., The Cambridge History ofLatin America (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), vol. 2, pp. 60160. (48) Para as estatísticas e procedimentos seguidos, Miller, “Imports at Angola”. (49) Ralph Delgado, Ao sul do Cuanza (ocupação e aproveitamento do antigo reino de Benguela) (Lisbon: n.p., 1944); Ralph Delgado, A famosa e histórica Benguela: Catálogo dos governadores (1779-1940) (Lisboa: Edições Cosmos, 1940). (50) Miller, “Drought, Disease, and Famine”. (51) Sem mencionar o famoso diretor do governo da feira, Francisco Honorato da Costa, que, de fato, visitou Kasanje pela primeira vez como representante da Companhia de Pernambuco para reivindicar escravos
pertencentes à companhia de anos anteriores. Ver Miller, Way of Death, pp. 626-28. (52) Sobre essa celebrada iniciativa, mas valorizada apenas pelo fato de ter sido a primeira caravana comercial conhecida que atravessou o continente, de Angola a Moçambique, ver F. Bontinck, “Le voyage des pombeiros: essai de réinterpretation”, Cultures au Zaire et en Afrique, 5 (1974), pp. 39-70; Jean- Luc Vellut, “Notes sur le Luanda et la frontière luso-africaine (1700-1900)”, Etudes d’histoire africaine, 3 (1972), pp. 61166. (53) Alan K. Manchester, British Preeminence in Brazil: Its Rise and Decline: A Study in European Expansion (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1933). (54) Eltis, Economic Growth. (55) Sobre esse período, ver Jill R. Dias, “A sociedade colonial de Angola e o liberalismo português, c. 1820-1850”, em O liberalismo na península Ibérica na primeira metade do século XIX (Lisboa: Sá da Costa, 1982, 2 vols.), vol. 2 pp. 267-86; Mário Antônio Fernandes de Oliveira, Alguns aspectos da administração de Angola em época de reformas (1834-J851) (Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1981).
Apêndice I Exportação de Escravos de Angola com Destino ao Brasil
Os relatórios de Luanda oferecem estatísticas da exportação de escravos que refletem a diversidade dos interesses portugueses, brasileiros e angolanos no tráfico da África Central Ocidental. Computados exportadores, destinos e épocas, os relatórios são mais relevantes do que os totais anuais agregados compilados por décadas ou por outros períodos cronológicos que não refletem o desenvolvimento econômico e político do mercado. Registros das exportações de escravos de Angola no século XVIII começaram em 1710 (1), mais ou menos na época em que a Coroa começou a ter interesses mais diretos no tráfico angolano e conteve as taxas alfandegárias dos contratadores responsáveis pelo Tesouro Real Português (2). Os dados sobre os destinos no Brasil começam apenas em 1723. Os relatórios dessa série vão até 1772, com lacunas em 1716-17, 1729-30, e 1732-33. Esses relatórios contêm informações de embarcações individuais de apenas trinta e um desses cinquenta e um anos. As diferenças, em versões publicadas desses dados (3), resultam da variedade dos objetivos oficiais na montagem dos dados e dos arquivos dos quais eles vieram. Alguns relatórios eram contemporâneos, e muitas vezes documentos provisórios de final de ano. Outros eram totais revisados para períodos de seis anos de contrato. Outros, finalmente, eram resumos retrospectivos (4). Cada um desses pode incorporar erros de cópia e, mais frequentemente, refletir pequenas diferenças técnicas e definições legais nas categorias dos escravos a serem relacionados. Irregularidades nos dados quantitativos do tráfico refletem a política do tráfico em seus diversos períodos. O Tesouro Real, responsável pela coleta desses dados depois de 1772, aparentemente nunca conseguiu produzir cifras detalhadas similares, exceto por um breve período, começando em 1774 e 1775. O tesouro foi, aparentemente, negligente na década de 1770 e
início da de 1780, período no qual Lisboa quase abandonou Angola aos luso-africanos. Os últimos não eram exatamente letrados nem interessados em evidenciar o abandono da colônia. A responsabilidade da guarda do arquivo de exportação de escravos em Luanda passou para a administração da alfândega de Angola e tomou forma gradualmente entre a década de 1780 a 1790. Para estas últimas décadas do século, temos apenas retrospectivas anuais agregadas começando em 1785, um ano depois que o Governador Moçâmedes impôs novos regimes alfandegários sobre os relutantes luso-africanos (5). Séries mais detalhadas retiradas de registros alfandegários começam em 1802, o segundo ano depois do estabelecimento definitivo das inspeções regulares de importação e exportações em Luanda. Continua com consistência impressionante durante 1826, ano em que a Inglaterra reconhece a independência do Brasil de Portugal (6). O final das séries em 1826 marca o início de um período de limbo legal, no qual escravos angolanos cruzavam o Atlântico Sul sob menor atenção da autoridade nacional. Os acordos britânicos com Portugal na época toleravam o tráfico apenas dentro do Império português, mas quando a Inglaterra reconheceu a independência brasileira em 1826, colocando a nova nação fora daquele círculo imperial, os funcionários portugueses em Angola entenderam que deveriam produzir o mínimo de documentos oficiais sobre a continuidade do envio de escravos através do Atlântico Sul. Arquivos detalhados da exportação de escravos de Benguela começaram muito mais tarde do que em Luanda. O pequeno porto do sul permaneceu na obscuridade necessária aos luso-africanos responsáveis pelo comércio ilegal. A taxa de contrato dos arrendatários registrava escravos embarcando em Benguela e em Luanda até o fim de 1761, quando o primeiro livro de registro oficial alcançou o porto do sul. A cidade, sob a autoridade de um capitão-mor luso-africano até 1779, recebeu um governador subordinado ao governador-geral de Luanda apenas naquele ano. Governador Moçâmedes conseguiu obter dados detalhados de escravos exportados em 1784, ano inaugural do novo regime alfandegário, mas nenhum arquivo adicional de Benguela existe até 1791, ano em que Benguela adquiriu responsabilidade política e administrativa direta de Lisboa, com um governador da posição equivalente ao de Luanda. Mesmo
assim, arquivos detalhados de Benguela permaneceram relativamente irregulares. Existem apenas dezesseis dos trinta e cinco anos até 1826, com alguns dados isolados até 1828. Para a maior parte desses anos, os destinos dos navios estão disponíveis, embora a queda de exportação de escravos não tenha sobrevivido. Os escravos deixaram Cabinda e outros portos da costa de Loango sem a inspeção oficial ou registro, já que os portugueses nunca tentaram estabelecer a presença do governo lá depois do fracasso da expedição de 1783. Informações dos escravos enviados dos portos do norte de Luanda, incluindo locais nas desembocaduras dos rios Mbrije e Loje depois de 1810, são conhecidas apenas indiretamente pelos dados da chegada dos escravos no Brasil, quase todos no Rio de Janeiro. Dados brasileiros sobre os escravos angolanos que chegaram ao Rio vêm apenas de registro de entrada sobrevivente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, cobrindo os anos de 1795 até 1811 (7), e de reportagens de jornais dos movimentos de navios de 1825-30 (8). Além disso, os arquivos dos consulados britânicos, iniciados em 1811, espalhados pelo Brasil para relatar movimentos ilegais de escravos para as autoridades de Londres, determinaram a supressão transatlântica do tráfico no início da abolição de seu próprio mercado em 1808 (9). Esses, junto com informações espalhadas de outros portos brasileiros (10), permitem uma difícil reconstrução da exportação de escravos angolanos, já que o tráfico variou, ano a ano, graças à competição entre grupos brasileiros do Rio, Bahia, Pernambuco. A maior lacuna nos dados dos destinos brasileiros dos escravos enviados de Angola pode ser parcialmente preenchida usando números conhecidos dos navios de Luanda indo para cada porto brasileiro, substituindo-se pelo número de escravos que eles carregavam. Os resultados dessa compilação, organizada como porcentagens de navios em cada década para mostrar mudanças nas proporções relativas dos maiores portos, são mostrados na Tabela l (11). A dominância do Rio, estabelecida na década de 1730, é a característica mais marcante da distribuição dos escravos entre os portos brasileiros, com o declínio estável da Bahia na década de 1720 em diante. Pernambuco tendeu a aumentar seu papel em Luanda, especialmente na
década de 1810, com exceção da provavelmente atípica década de 1790, na qual poucos dados existem. A presença da Companhia do Maranhão nas décadas de 1750 e 1760 é evidente no breve surto de carregamento para as capitanias do norte brasileiro, como também no crescente uso de Luanda por parte dos cultivadores de algodão do extremo norte brasileiro, começando na década de 1790 e aumentando à medida que a pressão britânica os empurrou para o sul do equador, à procura de mão-de-obra nas décadas de 1810 e 1820. O aparecimento ocasional dos portos do sul do Brasil — Santos, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e outros — é, em grande parte, um artifício estatístico, pois o sul do Brasil (e as regiões hispânicas ao longo da região do estuário do Prata) normalmente recebeu a maior parte dos seus escravos através do Rio. Os navios começaram a tomar o rumo diretamente para os portos do sul do Brasil, apenas na década de 1790. As contabilidades das companhias comerciais pombalinas, com alvarás das décadas de 1760 e 1770, fornecem detalhes adicionais (12) para os escravos enviados de Luanda, e raramente de Benguela, para as capitanias do nordeste e norte brasileiro (13). Entretanto, são apenas registros de compra e venda e não incluem escravos nas contas dos outros proprietários. São mais completos para a década de 1760, um período coberto também pela documentação do governo de Luanda, mas se tomaram problemáticos nos anos de 1770, uma década também obscura nas estatísticas do governo devido à interrupção virtual da compra de escravos em Angola e à mudança de atitude da Companhia de Pernambuco. Ela deixou de transportar seus próprios escravos para transportar escravos pertencentes aos luso-africanos e outros proprietários de escravos, já que abandonou sua estratégia de investimento maciço inicialmente fracassada em favor de uma postura defensiva, com o objetivo de maximizar a renda, com o mínimo de comprometimento de suas próprias vantagens. Os dados mostram apenas a pequena e decrescente porção de escravos que a Companhia transportou para Pernambuco por sua própria conta e não a maioria das cargas que transportou de outros proprietários. Desses arquivos podem-se compor as seguintes tabelas mostrando o padrão das exportações de escravos de Angola, com destino ao Brasil (14).
(1) David Birmingham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and their Neighhours under the Influence of the Portuguese 1483-1790 (Oxford: Claredon Press, 1966), p.137. (2) Presume-se que alguns governadores anteriores possam ter retido muitos relatórios do tráfico que eram mais dirigidos como empresas privadas, como fez o primeiro governador do século dezessete, Fernão de Souza (1625-30), cuja volumosa coleção pessoal de papéis do seu período em Angola foi recentemente editada e publicada por Beatrix Heintze, Fontes para a história de Angola do século VXII (2 vols.) (Wiebsbaden: Franz Steiner Verlag, 1985, 1988). Não há nenhum estudo das origens dos papéis atualmente existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, mas para os arquivos de Luanda, que refletiram as origens das posses do AHU para Angola, ver Joseph C. Miller, “The Archives of Luanda, Angola”, International Journal of African Histórical Studies, 7,4 (1974), pp. 551-90; Carlos Couto, “Para história arquivística em Angola — o primeiro inventário documentário angolano (3.12.1754)”, Studia, 41-42 (1979). (3) Estes arquivos são a documentação da análise estatística de Herbert S. Klein, The Middle Passage: Comparative Studies in the Atlantic Slave Trade (Princeton: Princeton University Press, 1978), pp. 51-72, 254-55, revisada de uma versão anterior como "The Portuguese Slave Trade from Angola in the Eighteenth Century”, Journal of Economic History, 32, 4 (1972), pp. 894-918 (reeditada em Joseph E. Inikori, ed., Forced Migration: The Impact of the Export Slave Trade on African Societies [London: Hutchinson, 1981], pp. 221-41). Birmingham, Trade and Conflict, pp. 154-55, tem ocasionalmente variantes totais para a maior parte dos mesmos anos. Ver também a reformulação desses dados em Hebert S. Klein, “A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil”, Estudos econômicos, 17, 2 (1987), pp. 136, 139. (4) Discussão detalhada e recente das fontes podem ser encontradas em José C. Curto, “The Legal Portuguese Slave Trade from Benguela, Angola, 17301828: A quantitative Re-appraisal”, África (Revista do Centro de Estudos Africanos, Universidade de São Paulo), 16-17, 1 (1993-94), pp.
101-16; and “A quantitative Reassessment of the Legal Portuguese Slave Trade from Luanda, Angola, 1710-1830”, African Economic History, 20 (1992), pp. 1-25. (5) Joseph C. Miller, “Imports at Luanda, Angola: 1785-1823”, em Gerhard Liesegang, Helma Pasch, and Adam Jones, eds., Figuring African Trade: Proceedings of the Symposium on the Quantification and Structure of the Import and Export and Long Distance Trade of África in the 19th Century (c. 1800-1913) (St. Augustin 3-6 de janeiro de 1983) (Berlin: Dietrich Reimer Verlag, 1986) (Kölner Beitrage zur Afrikanistik, 11), pp. 165-246, e especialmente Tabela VI.9, p. 241, para exportação de escravos. (6) As duas exceções, 1806 e 1821, já têm explicações. Em 1806, nenhum governador era residente em Luanda, e contrabandistas luso-africanos, temporariamente responsáveis, não deixaram nenhum relatório do que deveria ser o boom dos contrabandos importados e taxas de exportação não-pagas. Os confusos anos de 1821 e 1822 assistiram à Coroa portuguesa voltar do Rio de Janeiro a Lisboa e à declaração de independência do Brasil de Portugal. Estes desenvolvimentos políticos dramáticos desviavam muita atenção do negócio administrativo, como de costume. (7) Klein, Middle Passage, pp. 51-72 (originalmente “The Trade in Slave to Rio de Janeiro, 1795-1811”, Journal of African History, 10,4 (1969), pp. 533-49, e traduzido como “O tráfico de escravos africanos para o Rio de Janeiro, 1795-1811”, em Iraci dei Nero da Costa, org., Brasil: história econômica e demográfica [São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1986], pp. 7794) estudada independentemente em Joseph C. Miller, “Legal Portuguese Slaving from Angola: Some Preliminary Indications of Volume and Direction, 1760-1830”, Revue française d’histoire d'outremer, 62, 1-2 (n°5 226-27) (1975), pp. 135-76 (reeditada como La Traité des Noirs par L’Atlantique: nouvelles approaches/The Atlantic Slave Trade: New Approaches [Paris: Société française d’histoire d’outre-mer, 1976]). (8) Klein, Middle Passage, pp. 73-94 (originalmente “O tráfico de escravos para o porto de Rio de Janeiro, 1825-1830”, Anais de história, 5 [1973], pp. 85101, e também com Stanley L. Engerman como “Shipping
Patterns and Morality in African Slave Trade to Rio de Janeiro, 18251830”, Cahiers d’études africaines, 15, 3 [n° 59] [1975], pp. 381-98, e traduzido como “Padrões de embarque e mortalidade no tráfico de escravos africanos ao Rio de Janeiro, 1825-1830”, em Carlos Manuel Paláez e Mircea Buesco, eds., Moderna história econômica [Rio de Janeiro: APEC, 1976], pp. 96-113). (9) Os dados de 1811-22 aparecem em Joseph C. Miller, “Sources and Knowledge of the Slave Trade in the Southern Atlantic” (Artigo nãopublicado apresentado no Western Branch of the American Historical Association, La Jolla, Califórnia, 1976), e —junto com outros dados britânicos da década de 1820 — têm sido extensivamente utilizados por David Eltis, em Economic Growth and the Ending ofthe Transaüantic Slave Trade (New York: Oxford University Press, 1987) e estudos de suporte técnico “Fluctuations in the Age and Sex Ratios of Slaves in the Nineteenth-Century Transatlantic Slave Traffic”, Slavery and Abolition, 7, 3 (1986), pp. 257-72; “Slave Departures from África, 1811-1867: An Annual Time Series”, African Economic History, 15 (1986), pp. 143-71, e “The Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade: An Annual Time Series of Imports into the Américas Broken Down by Region”, Hispanic American Historical Review, 67, 1 (1987), pp. 109-38, entre outros, assim como em Miller, “Legal Portuguese Slaving”. (10) Compilado em Miller, “Legal Portuguese Slaving”. (11) Caixas do Arquivo Histórico Ultramarino de Angola [Lisboa]; também Corcino Medeiros dos Santos, “Relações de Angola com o Rio de Janeiro (1737-1808)”, Estudos históricos (Marília), 12 (1973), pp. 7-68. (12) H. Klein, “Demografia do tráfico de escravos para o Brasil”, pp. 13940. (13) Para os dados que muitos acadêmicos têm usado, ver Antônio Carreira, “As companhias pombalinas de navegação, comércio, e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro”, Boletim cultural da Guiné portuguesa, 22 (n°5 89-90) (1967), pp. 5-88; 23 (n° 9192) (1968), pp. 301-454; 24 (n 93) (1969), pp. 59-188; 24 (n° 94) (1969),
pp. 284-474. Também As companhias pombalinas de navegação... (Lisbon, 1969). (14) Esta compilação dos relatórios estatísticos do Arquivo Histórico Ultramarino suplanta as estimativas preliminares, antes tentadas a partir de bases de inferência e de dados indiretos, ver o meu “Legal Portuguese Slaving”, especialmente no Apêndice II, pp. 169-73.
Apêndice II Exportações de Escravos da África Central Ocidental pelas Nações Européias — Estimativas Qualitativas
Os relatórios oficiais portugueses fornecem indicações quantitativas dos escravos que deixaram a África Central Ocidental, particularmente dos dois portos portugueses ao sul do Zaire, relativamente completas, embora sejam mais claras em Luanda do que em Benguela. Essa conclusão é contrária à premissa frequente na literatura secundária de que os interesses de Portugal de algum modo lá contrabandeavam grande número de cativos destinados ao Brasil fora do conhecimento das autoridades do governo. O contrabando no mercado de Angola, de fato, implicou grande escala de mercadorias importadas ilicitamente pelos luso-africanos dos britânicos e franceses ao longo da costa. As reclamações oficiais sobre o contrabando referiam-se mais a essas evasões do controle mercantilista português do que dos escravos enviados clandestinamente ao Brasil. Os escravos que os contrabandistas forneciam aos franceses e aos britânicos acharam seu caminho para o Caribe e para América do Norte em navios de outras nações (1). Lá chegavam em situação de legalidade e eram normalmente registrados como importados, uma vez que as autoridades coloniais da Europa do Norte não reconheciam as reivindicações portuguesas de defesa do comércio exclusivo ao longo das costas em Angola que os ingleses e britânicos conheciam como Angola. Os estudiosos do comércio da Angola com o Brasil não precisam adicionar estimativas de contrabando muito acima dos dados oficiais largamente disponíveis em forma de publicação. Dados independentes sobre chegada de escravos nas Ilhas Ocidentais, ou registros de exportações britânicos e franceses, assim como registros brasileiros, contabilizam a maioria — ou quase todos — de escravos que deixaram Angola sem pagar as taxas do governo português.
Os dados de exportação britânico e francês frequentemente especificavam “Angola” como toda a costa ao sul do equador nas suas estatísticas numéricas das atividades ao longo da costa de Loango, no estuário do Zaire, e perto de Luanda e Benguela (2). Entretanto, podem-se usar produtivamente esses dados quantitativos em conjunção com as estimativas de tendência geral, moderadas pelo conhecimento das circunstâncias políticas e econômicas da época (3). Essas inferências qualitativas, sujeitas à meticulosa cautela acadêmica, possibilitam precisão à incerteza dos dados quantitativos resultantes de sua imperfeição. Embora o resultado padrão esteja muito grosseiro para representação na forma de tabela, o que implicaria o uso de números enganosos (mesmo se arredondados perto dos milhares), é claro que os portugueses, franceses e britânicos tomavam escravos de fontes separadas e de portos da África Central Ocidental nas seguintes proporções aproximadas.
PROPORÇÕES ESTIMADAS DE ESCRAVOS DA ÁFRICA CENTRAL OCIDENTAL, 1650-1830
Benguela Brasileiros — Começo da década de 1710. Crescimento de aproximadamente 2.000 escravos por ano por volta de 1730, aumentando mais ao pico de 8.000-9.000 por ano entre 1784 e 1795, declinando, de forma estável, até o final da década de 1820, com a restauração do comércio ilegal nas décadas de 1830 el840. Franceses — Antes de 1756, até a Guerra dos Sete Anos, cerca de 1.000 escravos por ano nas desembocaduras dos rios Kuvo, Kuporolo, Kubal e Kurene — mercado retomado em 1763 e que cresceu, de forma equilibrada, na década de 1780, quando a França embarcou de 3.000 a 5.000 escravos a cada ano de Benguela e nas suas proximidades — até sua eliminação, depois de 1792, para os comerciantes brasileiros.
Britânicos — Relativamente inativos no sul de Kwanza, embora ocasional mente presentes, especialmente nas décadas de 1770 e 1780. Com os franceses, traficaram 10.000 escravos anualmente, por volta de 1790-92.
Luanda Portugueses, diversificando suas combinações comerciais com transportadores brasileiros — Volume relativamente estável de aproximadamente 10.000 escravos por ano durante o século XVIII, aumentando entre a década de 1790 e 1808 para a ordem de 13.000 a 15.000, em grande parte devido à demanda dos agricultores de algodão do Pará e Maranhão, antes da decadência como traficantes de escravos do extremo norte do Brasil e da ida para a África Central Ocidental após o fim do comércio britânico de escravos lá realizado. Aumentou-se novamente para 20.000 pelos esforços de Lisboa, por intermédio de Pernambuco, de 1816 a 1822, em seguida declinando até o fim do comércio legal.
Dande ao Zaire Britânicos e Franceses — Aumentando equilibradamente durante o século para um pico entre a década de 1780, até a retirada da França depois de 1792 e 1809. Brasileiros — Incapazes de competir com os estrangeiros até a abolição britânica de 1808, quando os brasileiros abandonaram Luanda para procurar por escravos em Ambriz e outros portos, crescendo equilibradamente durante a década de 1820. Era a maior área de embarque durante o tráfico comercial ilegal depois de meados da década de 1830. Portugueses — Incursões ocasionais, nenhuma bem-sucedida no longo prazo.
Costa do Loango Britânicos e Franceses — Com proporções variadas, com alguma presença holandesa no início. Cresceram durante o século alguns milhares, no início até a quantidade de 15.000, por volta da década de 1790, com uma mudança para o sul e prematura concentração no reino de Loango, bem como nos portos do norte, como Cabinda, perto do Zaire. Essa movimentação para o sul constituiu um acesso às fontes escravas africanas que exploravam a costa dos territórios portugueses no sul do Zaire (vale de Kwanza, Congo, Luanda), no estuário do Zaire e nas desembocaduras dos rios. No tempo do comércio ilegal o estuário do Zaire tornou-se um lugar confiável para escapar dos cruzadores britânicos. Portugueses — Completamente incapazes de competir, apesar de frequentes tentativas. Brasileiros — Nenhuma tentativa de comércio nessa área até que os comerciantes lisboetas assumissem o controle em Luanda na década de 1810 e Cabinda tornasse a maior atração desde o fim do comércio legal. Alguns navios do Rio e de Pernambuco cruzaram o norte da costa, parando em Benguela, Ambriz, a desembocadura do Zaire e Cabinda, antes de voltarem bruscamente para o Brasil.
TOTAL Tomando o tráfico no seu conjunto, portugueses e estrangeiros, por volta de 12.000 a 15.000 africanos deixaram a África Central Ocidental no início do século, a maioria deles para Luanda. Somando Loango e Benguela, que desenvolveram áreas de capturas independentes e também ganhavam da zona endividada do comércio do interior de Luanda, o total geral aumentou, apesar da estabilidade em Luanda, para 40.000 nas décadas de 1780 e 1790. O volume total diminuiu ligeiramente ao longo do tempo mas permaneceu, provavelmente, por volta de 30.000 a 35.000 até o final do tráfico legal.
A Tabela 2 esboça esses dados e mostra a revisão de Lovejoy das estimativas de Curtin para a região por comparação (4). A tendência em direção a grandes números nas minhas estimativas resulta em grande parte das dificuldades de Lovejoy que, trabalhando em bases de dados exclusivamente quantitativos, para indicar os traficantes de escravos franceses e ingleses para as áreas de Loango e sul da Angola, não percebeu que novas evidências qualitativas mostram que eles eram bem mais numerosos (5). Os dados, aparentemente altos para Angola, particularmente nas décadas de 1760 e 1770, incluem parte do tráfico francês e britânico que se imaginava havia se deslocado para a África Central Ocidental em Angola e que não aumentara o total do tráfico atlântico de escravos. Também incluí os novos dados de Eltis para o comércio do século XIX (6), sobrepondo àqueles de Lovejoy para a década de 1810 e apresentando um arranjo refinado do resto do tráfico. Minha estimativa para as Costas do Norte, Luanda e Benguela subdivide a “Angola” de Eltis e realoca parte da categoria estatística de Eltis referente à “Angola” norte de Luanda para o que ele consideraria “Congo Norte”, de acordo com as definições geográficas empregadas nos números das décadas anteriores (7).
(1) Ver a discussão sobre o contrabando, em Joseph C. Miller, “Overcrowded and Undernourished: Techniques and Consequences of Tight-Packig in the Portuguese Southern Atlantic Slave Trade”, condensado em Acres du Colloque International sur la Traité des Noirs (Nantes, 1985) (2 vols.) (Société Française d’Histoire d’Outre-Mer e Centre de Recherche sur 1’Histoire du Monde Atlantique, 1988), vol. 1, pp. 1-33. Versão completa também em preparação. (2) Paul E. Lovejoy, “The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis”, Journal of African History, 23, 4 (1982), esp. p. 493, reconhece a insuficiência de evidências numéricas. (3) Miller, Way of Death, pp. 226-34.
(4) Philip D. Curtin, em The Atlantic Slave Trade: A Census (Madison: University of Wisconsin Press, 1969), deixou Angola indistinta em sua categoria “não oeste da África” da outra “Centro e Sudeste da África”, mas Lovejoy, em “Volume of the Atlantic Slave Trade”, pp. 485, 490, resume seu entendimento dos dados para os séculos XVIII e XIX, sob um título de “África Central Ocidental” presumivelmente comparável à definição de costa usada aqui (sul do equador de Cabo Lopes à desembocadura do rio Kunene) enquanto reconhecidos os métodos impressionistas necessários para localizar relativamente as firmas totais entre regiões fornecedoras específicas. A Tabela 2 representa a minha aceitação ao convite de Lovejoy, p. 493, para “incumbir-se de um trabalho mais detalhado em cada década na região da costa”. (5) Desde a preparação desse apêndice, David Richardson, “Slave Exports from West and West-Central África, 1700-1810: New Estimates of Volume and Distribution”, Journal of African History, 30, 1 (1989), pp. 1-22, tem reformulado as evidências quantitativas para o escravismo britânico para mostrar uma tendência em direção ao centro-oeste africano geralmente alinhado com essas conclusões. (6) David Eltis, “Slave Departures from África, 1811-1867: An Annual Time Series”, African Economic History, 15(1986), pp. 168-69 (7) Os subtotais para as décadas de 1820 e 1830 incorporadas no novo trabalho de Eltis representa uma revisão das estimativas mais preliminares em um capítulo similar, Tabela 7.1, p. 233, em Way of Death.
II. Vinho verso Cachaça — A Luta Luso-Brasileira pelo Comércio do Álcool e de Escravos em Luanda, c. 1648-1703 José C. Curto
A importância da cachaça brasileira no tráfico de escravos de Luanda, a maior cidade na costa ocidental da África Central e centro fundamental na exportação de cativos das Américas, tem sido reconhecida há muito tempo. Do final de 1600 até a proibição do comércio de escravos ao sul do equador em 1830, a cachaça foi a mais importante bebida alcoólica importada pela capital colonial, permitindo aos comerciantes coloniais na terra de Vera Cruz adquirir, por meio dela, uma proporção significativa de cativos. Durante o século XVIII a cachaça foi o principal elemento das relações econômicas brasileiras com Angola. Mas ela nem sempre desfrutou dessa posição privilegiada. A cachaça foi originalmente introduzida em Luanda por volta de 1650 pelos comerciantes coloniais brasileiros que procuravam uma entrada no comércio de escravos no oeste da África Central. Mas ela se tornou, imediatamente, objeto de competição com o vinho, a única bebida alcoólica estrangeira usada antes da primeira metade de 1600, pelos comerciantes capitalistas portugueses, para obter escravos nos portos. Desenvolveu-se, assim, uma intensa luta que associaria o vinho e os comerciantes capitalistas em Portugal contra a cachaça e os comerciantes coloniais no Brasil, pela importação do álcool dominante, que permitiria a obtenção de escravos em Luanda. Esse
conflito, resolvido apenas no final do século XVII em favor da cachaça dos brasileiros, é o objeto do presente capitulo (1).
1. Cachaça, Vinho e o Tráfico de Escravos de Luanda A ocupação de Angola, capital colonial, pelos holandeses durante a década de 1640 perturbou seriamente o volume de escravos adquiridos pelos mercadores brasileiros aos comerciantes portugueses estabelecidos em Massangano e seus arredores (2), de onde fugiram para continuar suas operações com o comércio de escravos. Com uma das suas maiores fontes de trabalho escravo em mãos inimigas, os comerciantes da terra de Vera Cruz não poderiam suprir a crescente demanda por cativos para trabalhar nas plantações de açúcar e nos centros urbanos no Brasil. Isto levou-os rapidamente a perceber que, com o propósito de assegurar um fluxo mais regular e volumoso de escravos através do Atlântico Sul, tinham que obter controle sobre o comércio de escravos da maior cidade-porto da África Central Ocidental. Para realizar esse objetivo, os interesses comerciais brasileiros envolveram-se em dois tipos de ação: primeiro, eles proporcionaram muito do capital e do pessoal para as várias esquadras expedicionárias lusitanas que, de 1641 a 1648, foram periodicamente enviadas para expulsar os holandeses de Angola (3); segundo, depois que uma dessas esquadras trouxe, com sucesso, a colônia de volta à administração portuguesa em 1648, eles começaram a enviar seus próprios representantes comerciais para Luanda, para estabelecer casas comerciais brasileiras subsidiárias. Sozinhas, entretanto, essas ações não eram suficientes para quebrar o “quase-monopólio” sustentado antes de 1641 pelos comerciantes capitalistas portugueses sobre o mercado de escravos de Luanda. Uma condição adicional e necessária, infinitamente mais importante, para se atingir essa meta, era que os agentes comerciais brasileiros estabelecidos em Angola pudessem ser abundantemente supridos com produtos mais
vantajosos na troca do que aqueles utilizados pela comunidade de comerciantes portuguesa há muito estabelecida em Luanda. Os mercadores brasileiros voltaram-se principalmente para duas mercadorias de consumo barato, o tabaco de terceira categoria e a cachaça de baixa qualidade (4). Da perspectiva do interesses comerciais brasileiros, o tabaco e a cachaça eram produtos de troca bastante apropriados para o comércio escravo realizado em Luanda e interior. Primeiro, ambos estavam entre os poucos produtos coloniais que eram objeto de extensiva produção na terra de Vera Cruz, particularmente em plantações em toda parte do interior da Bahia e Pernambuco (5). Segundo, elegeram produzidos por trabalho escravo, o que reduzia substancialmente o custo de suas produções vis-à-vis o comércio de bens europeus e asiáticos, incluindo o vinho, utilizados para obter escravos na África Central Ocidental (6). Terceiro, o tempo de navegação bem menor entre o Brasil e a capital colonial angolana diminuía, em grande parte, os custos de transporte (7). Quarto, já que os mercadores brasileiros não tinham outros produtos locais de troca para oferecer, eles precisavam completar os navios com produtos a serem intercambiados com o tráfico de escravos em Angola. A cachaça, em especial, era volumosa como lastro para os navios em viagens (8). E, finalmente, nenhum desses produtos coloniais brasileiros eram encontrados entre os numerosos produtos de troca utilizados, antes de 1641, pelos comerciantes portugueses estabelecidos no centro urbano da costa da África Central Ocidental. O tabaco e a cachaça proporcionaram aos comerciantes da terra de Vera Cruz uma oportunidade nova para criar preços mais baixos nos produtos de troca. Com isso, tentavam os brasileiros ganhar o controle sobre o tráfico de escravos em Luanda e seu interior. A data precisa do início do envio da cachaça e do tabaco por parte dos comerciantes brasileiros para os seus representantes comerciais na capital colonial de Angola não foi satisfatoriamente estabelecida. No caso da cachaça, alguns estudiosos afirmaram que ela começou a chegar em algum momento do século XVII (9). Outros vêm sugerindo, de forma mais precisa, o ano de 1660. A data precisa está, em todo caso, fora de discussão (10). Concentrados os esforços para obter a liderança do tráfico de escravos de Luanda, é improvável que os comerciantes brasileiros
tenham esperado mais do que uma década sem utilizar a cachaça e o tabaco na aquisição de escravos. Proprietários de plantações na terra de Vera Cruz estavam bastante necessitados de grande número de escravos para reabastecer suas forças de trabalho escravo esgotadas (11). Além disso, a primeira referência à utilização da cachaça com o objetivo de adquirir cativos no interior da capital colonial vem de 1650 (12). O primeiro carregamento de cachaça e tabaco proveniente do Brasil provavelmente chegou por volta de 1650, quase imediatamente depois que os agentes dos mercadores brasileiros começaram a montar o tráfico em Luanda (13). Apesar de vantagens similares, a utilização do tabaco e da cachaça como produtos de troca no tráfico escravo em Luanda e no interior de Angola, após 1650, desenvolveu-se por linhas radicalmente diferentes. Consumidores da África Central Ocidental preferiram variedades de tabaco cultivadas localmente ao invés do novo tabaco de terceira categoria proveniente da Bahia e de Pernambuco (14). A demanda pelo tabaco brasileiro em Luanda não conseguiu, assim, crescer substancialmente. Isto é claramente confirmado pelo número de navios parcialmente carregados com rolos de tabaco que eram despachados da Bahia, no final do século XVIII e início do século XIX, para suprir o fraco mercado angolano. Apenas dezessete barcos estiveram envolvidos nesse tráfico, de 1681 a 1710 (15). Com a demanda em baixa e diante da depressão de produtos importados, o tabaco brasileiro não poderia emergir como um produto maior de troca no comércio escravo em Luanda e interior. Assim, a dimensão competitiva com a qual os mercadores brasileiros buscavam se incluir no tráfico não se materializou no caso do tabaco. A cachaça, por outro lado, saiu-se significativamente melhor. Além das vantagens já discutidas, a cachaça possuía dois outros atributos adicionais sobre seu maior rival, o vinho. Não havia apenas a novidade da cachaça e seu preço baixo em Luanda e no interior. Seu conteúdo alcoólico, que variava de dezoito a vinte e dois graus, na escala de Cartier, ou ainda quarenta e cinco a sessenta por cento (16), era consideravelmente alto. Numa região onde a troca de cativos por vinho importado havia crescido progressivamente desde a metade do século XVI, esse fator emergiu como uma variável significante e uma característica desejável. Ele ofereceu,
também, aos fornecedores de escravos africanos, a possibilidade de adquirir proporcionalmente maiores quantidades, da cachaça mais forte, pelos cativos que eles propunham trocar, do que no caso do vinho, mais caro e menos alcoólico. Além disso, justamente porque era uma bebida bastante alcoolizada e destilada, a cachaça resistia à deterioração na viagem através do Atlântico Sul e ao calor dos trópicos. O vinho, ao contrário, era propenso a se estragar (17). Isso permitiu, aos importadores na capital de Angola, baixar suas perdas nos transportes e permitiu, aos fornecedores de escravos africanos, uma maneira de manter grande suprimento de álcool dentro de seus domínios por um maior período de tempo. Pouco depois de a cachaça tornar-se disponível em Luanda, comerciantes de escravos lá estabelecidos começaram a enviá-la para as feiras ou mercados de escravos, que em 1648 foram restabelecidos, sob o controle formal dos portugueses no interior. A cachaça já era encontrada, no final da década de 1650, entre as mercadorias que os pombeiros ou contrabandistas no interior utilizavam para adquirir escravos diretamente do reino do Matamba (18). Não são conhecidas as formas com que a cachaça foi utilizada nessas transações comerciais. O certo é que cada vez mais africanos começaram a pedir cachaça como parte do comércio de seus cativos. Essa mudança permitiu aos representantes das casas comerciais brasileiras a aquisição de um número de escravos que variava de 10.000 a 12.000, anualmente exportados de Luanda na década de 1650 (19). Enquanto isso ocorria, o poder aquisitivo dos agentes dos comerciantes lisboetas começou a diminuir consideravelmente. Como a demanda por cativos continuou a aumentar no Brasil, e os negociantes no interior da capital colonial de Angola insistiam cada vez mais na cachaça como parte dos produtos oferecidos pelos seus escravos, os interesses comerciais na terra de Vera Cruz se projetaram por meio dos aumentos das quantidades cada vez maiores de cachaça remetida a Angola. Particularmente após 1665, o volume da geribita — como a cachaça tornou-se conhecida em toda África Central Ocidental — alcançou proporções apreciáveis (20). A maior parte da cachaça continuou a ser transacionada no tráfico de escravos, nas proximidades de Luanda.
A crescente importância obtida pela geribita no comércio escravo realizado em Luanda, e por todo seu interior no final da década de 1660, não escapou à atenção do Conselho Ultramarino, órgão consultivo da Coroa portuguesa para assuntos do Ultramar, em Lisboa. Ao assumir o governo da colônia, Francisco de Távora informou à metrópole que o desinteresse da população estabelecida na colônia, e a falta de lenha, não permitiam que as plantações de açúcar se instalassem lá. Ao receber a carta, o Conselho Ultramarino recomendou ao Príncipe de Portugal que pedisse a Távora que deixasse as coisas como estavam e, mais especificamente, não permitisse a produção da cachaça. A razão apresentada pelo Conselho Ultramarino para a Coroa portuguesa advinha do fato de que o vinho e a aguardente da metrópole, assim como a cachaça do Brasil, não teriam um mercado consumidor na colônia (21). Na acepção do Conselho esses eram os produtos que lideravam as exportações brasileiras e metropolitanas para o comércio com a colônia. A destruição do seus mercados prejudicaria exportações de Portugal e diminuiria o número de navios que eram enviados da Bahia e de Pernambuco para adquirir escravos em Angola. No último caso, os navios transportavam quase que exclusivamente cachaça em seus compartimentos (22). Não desejando que nenhum desses possíveis desfechos ocorressem, o Príncipe de Portugal agiu de acordo com a recomendação do Conselho Ultramarino. O aumento da importação da cachaça brasileira em Angola no final da década de 1660 e na primeira metade da década de 1670 bem como o aumento do seu uso na obtenção de cativos levou a cachaça, rapidamente, a objeto de ataque. Em 1678, o Governador Aires de Saldanha de Menezes e Souza escreveu para Pedro II informando-o de que, segundo seu ponto de vista, era essencial declarar ilegal a importação de cachaça da terra de Vera Cruz. Resumindo as várias razões que fizeram sua proibição imperativa, Menezes e Souza afirmou que a geribita era uma bebida alcoólica de qualidade muito baixa e, portanto, extremamente prejudicial à saúde de seus consumidores. Ele enfatizou que o consumo exagerado da geribita era o responsável direto pela morte de muitos soldados portugueses e escravos africanos em Luanda e em suas redondezas. Sem essa proibição, concluiu Menezes e Souza, os reforços militares regularmente enviados para Luanda, para a defesa e a expansão da conquista, eram simplesmente inúteis, ao mesmo tempo em que a
diminuição da força de trabalho africana escravizada colocaria em perigo o bem-estar econômico das colônias portuguesas (23). O que influenciou o Governador Menezes e Souza a formular esse pedido não é conhecido. Na década de 1670, a exportação de escravos caiu por volta de 8.000 a 10.000 cativos por ano (24). Talvez Menezes e Souza estivesse agindo em nome dos comerciantes de escravos estabelecidos no porto. Afinal, esses viveram a crise do monopólio do tráfico diante da chegada dos representantes dos mercadores brasileiros e da introdução da cachaça. O fato de o funcionário de posição mais alta do governo em Angola ter requerido a proibição da importação da cachaça — por causa dos seus supostos efeitos mortais sobre a população européia, luso-africana e africana da colônia — levou a Coroa portuguesa a considerar seriamente a questão. Pouco depois de receber a carta de Menezes e Souza, o Rei escreveu para o Procurador da Fazenda Real em Angola pedindo para que ele confirmasse ou repudiasse as alegações feitas pelo Governador. A Coroa portuguesa recebeu, no início de 1679, uma resposta de seus procuradores em Angola, que corroboraram todas as assertivas escritas por Menezes e Souza (25). O assunto foi, assim, enviado diretamente à avaliação do Conselho Ultramarino. Pelo veredicto de 1670, que se referia à produção de cachaça em Angola, as afirmações feitas pelo Governador Menezes e Souza, e confirmadas pelo Provedor da Fazenda Real, devem ter deixado o Conselho Ultramarino numa posição difícil. O Conselho concordou, finalmente, em recomendar à Coroa portuguesa que a importação da cachaça em Luanda deveria ser proibida (26). As razões dessa decisão não são totalmente claras. Como já comentado, a proibição da importação de cachaça do Brasil não era desejada pelos traficantes portugueses de escravos e seus fornecedores metropolitanos porque a cachaça era supostamente responsável pela morte de inúmeros soldados coloniais portugueses e escravos africanos. A proibição era, de fato, solicitada porque a geribita estava a ponto de causar o declínio do vinho, então principal álcool importado no porto e a bebida alcoólica mais importante na comercialização dos cativos no interior (27). Além disso, compondo o
quadro, estava o fato de que a metrópole sofria uma recessão econômica que criava dificuldades para o comércio doméstico do vinho (28). A recomendação do Conselho Ultramarino pode ser vista, assim, apenas como uma mudança na política econômica colonial, favorecendo os vinicultores metropolitanos, exportadores lisboetas de vinho e comerciantes de escravos portugueses em Angola, às custas dos interesses comerciais brasileiros e dos proprietários das plantações de açúcar. Apesar de representar a principal mudança na política econômica da metrópole no Atlântico Sul, Pedro II não hesitou em aceitar a recomendação do Conselho Ultramarino. Em 8 de abril de 1679, ele assinou a Provisão que não apenas tornou ilegal exportar cachaça do Brasil para Luanda, como também proibiu sua importação e sua utilização por todo interior angolano (29). Os comerciantes de escravos portugueses, e seus fornecedores metropolitanos, foram os vitoriosos no ataque à cachaça brasileira. Uma vez implementada em Luanda, a proibição da importação da cachaça teve uma série de repercussões importantes. No verão de 1679, como o volume da cachaça disponível começou a diminuir, os comerciantes metropolitanos aumentaram significativamente a quantidade de vinho e de aguardente exportada para seus agentes comerciais e consumidores privados em Luanda (30). Entretanto, embora grande volume de álcool importado de Lisboa tenha se tornado disponível, o vinho falhou em emergir novamente, e a aguardente não se expandiu como um produto importante na troca por escravos no interior. Por um lado, cada um desses importados da metrópole era mais caro do que a cachaça do Brasil. Em 1688, por exemplo, enquanto o valor do vinho menos alcoolizado e da aguardente mais forte era 6$800 e 7$600 réis, respectivamente, por barril chegado em Luanda, o mesmo recipiente de geribita custava mais ou menos 2$250 réis (31). A cachaça da terra de Vera Cruz era, assim, três vezes mais barata do que as duas bebidas alcoólicas importadas de Portugal. Além disso, o gosto amargo do vinho, e especialmente da aguardente, não satisfazia o paladar dos negociantes de escravos africanos, que já tinham se acostumado ao sabor doce da cachaça brasileira (32). Finalmente, e possivelmente a mais importante de todas, as grandes quantidades de vinho e aguardente começaram a chegar em um momento
que o volume de cativos exportados estava caindo consideravelmente devido à diminuição da demanda por trabalho escravo no Brasil, resultante do crescimento da competição pelas economias das plantações açucareiras no Caribe (33). Por causa de seus preços desfavoráveis e da baixa qualidade de mercado, assim como pela depressão que afetou o tráfico de escravo em Luanda, nem o vinho metropolitano nem a aguardente estavam aptos a substituir a geribita. O fracasso inesperado do vinho e da aguardente na tentativa de substituição da cachaça brasileira como principal mercadoria de troca no comércio escravo de Luanda, por sua vez, não ocorreu sem maiores ramificações. Como o volume da cachaça proibida disponível nesse porto da África Central Ocidental diminuiu, a demanda por geribita elevou-se. Isso forçou o preço, que aumentou dramaticamente, da cachaça brasileira. Em 1689, por exemplo, ela alcançou o preço impressionante de 50$000 a 60$000 réis por pipa e ainda mais no interior (34). Vinho e aguardente não parecem ter tido um aumento similar, embora seus preços permanecessem mais altos do que a geribita proibida (35). Já que o álcool metropolitano não se adequava ao mercado local, pelo sabor e preço, muitos fornecedores de escravos africanos simplesmente se recusaram a trocar seus cativos por um conjunto de mercadorias que não incluísse quantidades apreciáveis da cachaça da Bahia e de Pernambuco (36). Adicionado ao preço elevado da geribita e aos seus baixos estoques em Luanda, essas novas condições de mercado significaram, provavelmente, que menos escravos eram obtidos no interior em troca da cachaça brasileira, levando a um decréscimo adicional nos números de cativos exportados através do Atlântico, provenientes da capital colonial de Angola. A baixa demanda brasileira por trabalhadores escravos criou uma situação na qual qualquer um capaz de contrabandear a bebida proibida poderia conseguir altos lucros no tráfico. Em um ano ou mais depois da proibição da importação e da utilização da geribita em Luanda e seu interior, um comércio ilícito altamente rentável emergiu para explorar as vantagens econômicas oferecidas pela demanda local contínua e crescente por cachaça brasileira. Quase todos aqueles associados ao comércio de escravos estavam engajados no tráfico proibido, seja diretamente pela
importação da bebida alcoólica proibida, seja pela troca por cativos no interior, ou ainda pela combinação desses dois empreendimentos. Os primeiros grupos comerciais que talvez tenham se envolvido nesse comércio ilegal foram as firmas comerciais brasileiras na Bahia e Pernambuco. De 1680 em diante, elas passaram a enviar, de forma ativa, barcos carregados com cachaça para seus agentes comerciais em Luanda, em troca de escravos na costa norte e sul daquela cidade-porto (37). Pelo fato de que esses eram os interesses comerciais afetados pela Provisão de 1679, essa medida deve ter sido implementada não apenas para obter lucros elevados mas, simultaneamente, senão mais importante, para proteger a crescente parte do tráfico de escravos que as casas comerciais brasileiras tinham assegurado por meio da introdução da cachaça. Outro grupo comercial fortemente engajado nesse empreendimento econômico proibido foi o dos comerciantes portugueses de escravos que tinham lutado para conseguir a proibição da importação da cachaça brasileira. Diante do fato de o vinho e de a aguardente metropolitanos não terem alcançado êxito em substituir a geribita, eles perceberam rapidamente que as vantagens oferecidas pela Provisão de 1679 não se materializaram. Sempre procurando por mais rentabilidade comercial nos empreendimentos e, especialmente, aspirando competir em pé de igualdade com os mercadores brasileiros de escravos, eles logo se envolveram no negócio que tinham declarado ilegal. Os prósperos traficantes portugueses de escravos recorriam à importação da cachaça diretamente dos agentes comerciais de Lisboa na Bahia e em Pernambuco. Como no caso dos seus competidores brasileiros, eles introduziram grande quantidade da cachaça proibida por meio de enclaves costeiros perto da capital colonial de Angola (38). Entretanto, muito era contrabandeado através da própria costa de Luanda. Assim, ao final de 1684, as cargas de cachaça de quatro barcos foram descarregadas e vendidas abertamente aos clientes na doca de Luanda (39). Da mesma forma, em 1689, Manoel de Sousa e Benevides, comerciante local de escravos bem-sucedido, recebeu um carregamento completo da bebida proibida (40). Outro próspero comerciante português, que também participava desse comércio ilegal, João Macedo de Claris, recebeu pelo menos vinte barris de cachaça da Bahia em 1689 (41). Os comerciantes de escravos portugueses menos
afortunados, por outro lado, não se envolveram diretamente no contrabando de bebidas alcoólicas do Brasil. Eles não possuíam nem capital necessário à compra de barcos para conseguir a cachaça na Bahia ou Pernambuco e nem contatos na terra de Vera Cruz para a consignação da cachaça. Como substituto, os comerciantes de escravos portugueses menos prósperos adquiriam a cachaça de que eles precisavam para continuar suas operações comerciais dos prósperos comerciantes concorrentes que importavam cachaça brasileira ilegal. Muito frequentemente, isso era feito às expensas de preços exorbitantes (42). A importação ilícita da cachaça brasileira em Luanda não poderia ter acontecido sem a concordância do baixo, médio e alto escalões do governo colonial, responsáveis pela aplicação da proibição. Sabendo da chegada dos cargueiros transportando cachaça para Sousa e Benevides, em 1689, o então governador da colônia, João de Lencastre, teve seu navio e sua carga imediatamente confiscados (43). Apesar dessa ação, o carregamento ilegal foi descarregado e transportado para as casas comerciais de Sousa e Benevides. Com a ajuda do Ouvidor-Geral e Provedor-Geral da Fazenda, e em resposta a um certo pagamento ou parte dos lucros, os traficantes portugueses de escravos foram bem-sucedidos no suborno dos soldados destacados para a liberação da carga do navio (44). Como Macedo Claris conseguia ter sua carga de cachaça livre do confisco não se sabe. Mas ele deve ter usado método similar, já que também teve a oportunidade de ser o Ouvidor-Geral e Provedor-Geral da Fazenda em Luanda (45). Finalmente, igualmente importante, há o caso de João da Silva e Sousa, que governou a colônia de 1680 a 1684. Depois de deixar o governo de Angola e assumir o de Pernambuco, Silva e Sousa começou a exportar quantidades significativas de cachaça para o porto principal da cidade na África Central Ocidental. Em pelo menos uma ocasião, um de seus carregamentos foi capturado e sua carga ilegal destruída, seguindo as ordens do então Governador de Angola, Luís Lobo da Silva (46). A partir de 1681, quantidades significativas de cachaça continuaram a ser importadas em Angola por meio de vários mecanismos ilegais. Uma vez descarregado no porto de Luanda ou em enclaves nas costas vizinhas, o volume da cachaça era aumentado com uma mistura de água do mar e pimenta que, embora diminuindo seu conteúdo alcoólico, aumentava os já
altos lucros envolvidos no comércio proibido (47). Depois disso, a cachaça era dividida em duas “frasqueiras”, com capacidade de apenas trinta e um litros e transportadas para o interior do mercado, nas costas de escravos ou de carregadores recrutados à força. No final da década de 1680, pelo menos, a geribita proibida já era encontrada na feira de Kasanje, o mercado de escravo mais ao leste ao qual os comerciantes portugueses estabelecidos na costa tinham acesso (48). Ali ela era utilizada como referência para o comércio de escravos e como elemento de troca por cativos. Embora esse novo comércio ilegal pudesse ter gerado altas margens de lucro superiores ao tráfico antes da década de 1670, a importação da cachaça brasileira não aconteceu sem uma série de inconvenientes. O primeiro consistia na ilegalidade do próprio mercado, visto que os importadores corriam o risco de ter seus carregamentos de cachaça apreendidos e destruídos pelos funcionários do governo colonial (49). O segundo adveio do fato de a proibição ter aumentado significativamente o preço. Assim, menos cativos poderiam ser adquiridos e exportados para o Brasil em troca da geribita (50). Um terceiro inconveniente fundamenta-se no fato de que, proibindo a importação da cachaça, a Provisão de 1679 eliminou uma das taxas de importação e alguns impostos recolhidos pelo governo colonial de Angola e pelo Conselho Municipal de Luanda (51). Quarto, os grandes lucros e subornos associados a esse comércio internacional tornaram a proibição impossível de acontecer na prática (52). Como essas questões econômicas tomaram-se mais evidentes durante a década de 1680, para todos aqueles afetados pela Provisão de 1679, administradores coloniais, funcionários municipais e comerciantes de escravos portugueses em Angola juntaram forças aos interesses comerciais, municipais e governamentais brasileiros para ter a anacrônica lei anulada. Em 1687, a Coroa portuguesa começou a receber periodicamente representações pedindo o fim da proibição da comercialização da cachaça. Algumas dessas petições foram escritas por comerciantes, individualmente, nos dois lados do Atlântico Sul (53). Mas a maioria foi escrita sob o amparo dos Conselhos Municipais da Bahia e de Luanda, como fez João Furtado de Mendonça (governador do Rio de Janeiro) e o
Governador Lencastre (54). Na elaboração dos seus argumentos, as entidades governamentais coloniais e os comerciantes enfatizaram as várias desvantagens trazidas pela Provisão de 1679: os riscos do contrabando, o pequeno número de cativos exportados para o Brasil, a diminuição das taxas públicas municipais e governamentais e a impossibilidade de se interromper o comércio proibido. Além do mais, sugeriam que a alta taxa de mortalidade na colônia não era devido ao consumo de geribita, mas ao clima insalubre e às doenças provocadas pelo ambiente da região. O Rei, contudo, achou fracos os argumentos dessas reclamações e insuficientes para justificar a reabertura do caso. Não apenas a proibição foi mantida, mas foram enviadas ordens à administração colonial em Angola para que se mantivesse firme na sua implementação (55). O primeiro contratempo não colocou um fim à campanha liderada pelos traficantes de escravos, representados nos interesses comerciais, municipais e governamentais oficiais em Luanda e no Brasil. Todos insistiam em que a Provisão de 1679 fosse suspensa. E a pressão aumentou ainda mais. Durante o início da década de 1690, continuaram a enviar petições para a Coroa portuguesa denunciando os vários constrangimentos causados pela promulgação da proibição (56). Além do mais, para aumentar a pressão, eles também recrutaram, com êxito, membros da classe governante em Lisboa para agirem em seu favor junto ao governo metropolitano (57). Mais uma vez, entretanto, nem suas representações nem o intenso lobby convenceram o Rei de que existiam novos argumentos suficientes para o reexame da questão (58). Apesar de incorrer um contratempo após outro, o governo luso-brasileiro bem como as forças municipais e comerciais buscavam à revogação da Provisão de 1679, e a trataram como objeto de uma verdadeira cruzada. No final de 1694, os conselhos municipais de Luanda escreveram ainda outra longa petição à Coroa portuguesa. Como no caso das representações anteriores, esta também não falhou em apontar os inconvenientes trazidos pela lei anacrônica. No entanto, e ainda mais importante, foi a inclusão do argumento sugerido no final da década de 1680 e agora sustentado por três médicos-oficiais, com longa experiência na capital colonial de Angola, os quais tinham sido contratados para analisar o conteúdo da geribita e o
modo como ela era feita. De acordo com os médicos, a alta mortalidade encontrada entre africanos, luso-africanos e populações européias na colônia não estava relacionada, de modo algum, ao consumo da cachaça brasileira de baixa qualidade, como foi sustentado no final da década de 1670, para impedir sua importação. Eles afirmaram que:
... nós achamos que a qualidade (da geribità) não é prejudicial como tem sido afirmado, mas quantidades excessivas dela podem realmente causar prejuízos, assim como beber muita água, o que é tão comum (aqui) pode resultar em várias “thydropezias”. Tendo usado (geribità) por muitos anos nessa terra, dentro e fora do hospital, nunca vimos que ela provoca doenças. Ao contrário, nós a utilizamos em várias ocasiões como remédio para algumas enfermidades, como... “hyrizypellas”, com a qual podemos inferir que ela resulta mais em bem do que em dano (59).
Apoiada nessa análise dos experientes médicos profissionais, o principal argumento dos conselheiros municipais foi o de tentar mostrar que a geribità não constituía um empecilho à saúde da população, não havendo nenhuma razão para continuar banindo sua importação (60). Quase ao mesmo tempo, o governador de Angola, Henrique Jacques de Magalhães, também escreveu para o Rei apoiando integralmente a representação feita pelo Conselho Municipal de Luanda e informando que, desde a Provisão de 1679, o rendimento obtido das taxas de importação diminuíra drasticamente, o que tomava indispensável a imposição de impostos adicionais em Angola (61). As novas questões forçaram, finalmente, a Coroa portuguesa a retomar, após quase uma década de petições similares, o assunto da importação da cachaça. Após receber tais informações, o Rei perguntou, mais uma vez, ao Provedor da Fazenda em Angola, sua opinião acerca da afirmação feita pelos médicos-oficiais sobre os efeitos da geribita. O provedor rapidamente respondeu que:
A cachaça brasileira é, de fato, prejudicial, mas nem tanto pela sua qualidade mas pela quantidade, e pela mesma razão a aguardente, o vinho e até a água são prejudiciais para os consumidores. Se a aguardente não é proibida evidencia-se que a importação da geribita deveria ser permitida, embora com uma pesada taxa de importação, com o objetivo de desencorajar o consumo em alta escala (62).
Com uma resposta clara, a Coroa portuguesa enviou a questão ao Conselho Ultramarino para uma reconsideração final. O Conselho Ultramarino reuniu-se no começo de agosto de 1695 para reavaliar a proibição da importação da cachaça brasileira em Luanda. Todas as condições que resultaram na Provisão de 1679 foram alteradas radicalmente. Primeiro, o vinho metropolitano e a aguardente haviam falhado na substituição da geribita, tanto na quantidade importada quanto nos papéis comerciais que foram lançados. Segundo, os comerciantes portugueses de escravos e funcionários do governo colonial nesse centro urbano juntaram forças com a Câmara Municipal local com os interesses comerciais, municipais e governamentais brasileiros contra a proibição. E terceiro, os supostos efeitos mortais da bebida alcoólica proibida foram percebidos como não piores do que aqueles causados pelo consumo da aguardente e do vinho. Além disso, existia o fato de que a Provisão de 1679 criara certos problemas que não puderam ser previstos pelos legisladores em Lisboa. A proibição mostrou-se ineficaz na suspensão da importação da cachaça, diminuiu as transações comerciais na costa e no interior, e reduziu o rendimento de que o governo colonial de Angola e o Conselho Municipal de Luanda necessitavam para financiar suas operações quotidianas e para pagar os impostos metropolitanos. Finalmente, e talvez mais significativo, a situação econômica no Brasil estava submetida a um processo de transformação. Durante o verão de 1695, a capital de Portugal foi alvoroçada por relatórios sobre ricas minas de ouro e diamantes que tinham sido descobertas em Minas Gerais. Isto criou uma demanda sem precedentes na terra de Vera Cruz por escravos africanos para extração dos metais preciosos e das pedras (63). Com a sua maior mercadoria proibida no maior porto exportador de escravos da África Central Ocidental, os mercadores brasileiros não conseguiam adquirir o número necessário de
cativos para suprir a rápida expansão da necessidade de trabalho escravo de Minas Gerais. À luz dessas novas condições, o Conselho Ultramarino unanimemente concordou em recomendar à Coroa portuguesa que a proibição da importação da cachaça deveria ser revogada (64). Depois que o Conselho Ultramarino concluiu sua reavaliação, o Rei perdeu pouco tempo para aceitar a recomendação proposta pelo seu conselho consultivo. No final do verão ou no início do outono de 1695, uma nova Provisão foi aprovada para anular a de 1679 (65). Daí por diante a cachaça pôde mais uma vez ser legalmente exportada do Brasil para Luanda. Embora os interesses dos portugueses e brasileiros comerciantes de escravos estivessem à frente da campanha contra a proibição da importação da cachaça, a retirada da Provisão dos códigos legislativos favoreceu claramente aos brasileiros. As casas comerciais brasileiras estavam, mais uma vez, legalmente aptas a utilizar essa mercadoria de baixo consumo, produzida em larga escala em seu próprio quintal e muito procurada no interior de Luanda, para adquirir o maior número de cativos necessários ao trabalho escravo requerido nas plantações de açúcar, no interior da Bahia e de Pernambuco, assim como na nascente indústria de mineração em Minas Gerais. Suspendendo a proibição da exportação da cachaça do Brasil para a capital colonial de Angola, a Coroa portuguesa não apenas incentivou cada vez mais a importação de grandes quantidades dessa bebida alcoólica, mas também estimulou os interesses comerciais brasileiros diante da oportunidade de fortalecer ainda mais sua presença no comércio de escravos. Os interesses comerciais brasileiros não perderam muito tempo para aproveitar a vantagem oferecida a eles pela revogação da proibição de 1679. Depois de 1679 a exportação de cachaça para Luanda atingiu níveis do final da década de 1660 e 1670. De 1699 a 1703, um total de 3.447 pipas de cachaça do Brasil foram descarregadas na capital colonial de Angola (66). O volume do vinho e da aguardente importados da metrópole, por outro lado, chegou a apenas 775,8 e 191 pipas, respectivamente (67). A cachaça chegou para dominar, rapidamente, 78,4% da importação de álcool de Luanda, um predomínio que continuaria até o século XIX. Nesse
processo, o percentual do vinho diminuiu em 17,2%, e o da aguardente, em menos de 4,4%.
2. Conclusão Poucos anos após a abolição da Provisão de 1679, a importação de cachaça na capital colonial de Angola subiu consideravelmente. Muito dessa bebida alcoólica destilada continuou a ser enviada aos mercados de escravos ao longo do rio Kwanza, onde era trocada por cativos (68). Na falta de dados seguros, é razoável supor que os interesses comerciais na terra de Vera Cruz obtiveram uma grande parte do crescente número de escravos, que eram exportados de Luanda, após o final da década de 1690, diante da diminuição do volume de cativos adquiridos por comerciantes portugueses de escravos em troca de vinho e aguardente da metrópole. Uma séria brecha do “quase-monopólio”, antes controlado pelos mercadores capitalistas de Portugal, sobre o comércio de escravos em Luanda, tinha sido aberta. O cenário foi se definindo ao longo do século XVIII, quando os comerciantes coloniais brasileiros asseguraram diretamente uma parte substancial dos escravos exportados da capital colonial de Angola por meio do domínio do comércio da cachaça.
(1) Uma versão deste capítulo foi originalmente apresentada nos seminários sobre o passado angolano realizados no Aimual Meeting of the Canadian Association ofAfrican Studies, em Montreal, em maio de 1992. (2) Charles R. Boxer, Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola, 1602-1688. London, 1952, pp. 171, 176-177, 199, 222, 225 e 279; Maria L. Esteves, “Os Holandeses em Angola: Decadência do Comércio Externo e Soluções Locais Adotadas”, Studia, n° 52, 1994, pp. 62-64; Joseph C. Miller, “The Slave Trade in Congo and Angola”, in Martin L. Kilson and Robert I. Rotberg, eds., The African Diaspora: Interpretative Essays. Cambridge, 1976, p. 91; David Birmingham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and their Neighbours under the Influence of the
Portuguese, 1483-1790. Oxford, 1966, pp. 104-110; e José Gonçalves Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional (Com Enfoque nas Capitanias do Sul, 1530-1680). São Paulo, 1978, pp. 314-329. (3) Essas expedições são cuidadosamente discutidas em Boxer, Salvador de Sá. Os habitantes do Rio de Janeiro sozinhos forneceram 55.000 cruzados para equipar a esquadra que expulsou os holandeses da capital colonial de Angola em 1648. Ver Gastão Souza Dias, “S. Tomé e Angola”, in A Restauração e o Império Colonial Português. Lisboa, 1940, p. 312. (4) Joseph C. Miller, “The Paradoxes of Imporverishment in the Atlantic Zone”, em David Birmingham e Phyllis M. Martin, eds., History of Central África. London, 1983. Vol. I, pp. 134-135; idem, ‘The Number, Origins, and Destina- tions of Slaves, in the Eighteenth Century Angolan Slave Trade”, in Joseph. E Inikori and Stanley L. Engerman, eds., The Atlantic Slave Trade: Effects on Economies, Societies, and Peoples in África, the Américas, and Europe. Durham, 1992, p. 87; e Anne W. Pardo, “A Comparative Study of the Portuguese Colonies of Angola and Brazil and their Interdependence from 1648-1825”, Dissertação de Ph. D. não publicada, Boston University, 1977, p. 103. (5) Ver Roberto C. Simonsen, História Econômica do Brasil (1500- 1820). São Paulo, 1978, pp. 95-124 e 367-369; Caio Prado Jr., The Colonial Background of Modern Brazil. Berkeley, 1971, pp. 170-171 e 177-178; e E. Bradford Bums, A History of Brazil. New York, 1980, pp. 73-75 e 82. (6) O preço da cachaça brasileira sugere claramente que o seu custo de produção era bem menor do que o das bebidas alcoólicas portuguesas, principalmente o vinho. (7) Lisboa estava a meses de distância de Angola, o que aumentava substancialmente os custos de transporte das mercadorias despachadas pelos comerciantes metropolitanos. Para qualquer lugar eram necessários de 90 a 120 dias para navegar de Lisboa a Benguela antes da década de 1790. Ver Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison, 1988, p. 322. Mais tempo era requerido no caso dos navios que deixavam Lisboa em direção a Luanda. Na década de 1690, o tempo de navegação entre Lisboa e Benguela
reduziu-se para mais ou menos 70 dias. No caso dos portos brasileiros, por outro lado, o tempo de viagem de Luanda e Benguela oscilava em torno de 35 dias para Pernambuco, 40 dias para Bahia, e 50 dias para o Rio de Janeiro. Ver A. J. R. Russell, “Ports of Colonial Brazil”, Franklin W. Knight and Peggy K. Liss, eds., Atlantic Ports Cities: Economy, Culture, and Society in the Atlantic World. Knoxville, 1991, p. 201. (8) Miller, Way of Death, p. 329. (9) Ver, por exemplo: David Birmingham, “The African Response to Early Portuguese Activities in Angola”, in R. H. Chilcote, ed., Protest and Resistance in Angola and Brazil. Berkeley, 1972, p. 24; e José Honório Rodrigues, “The Influence of África on Brazil and of Brazil on África”, Journal of African History. Vol. III, 1962, p. 53. (10) Ver Douglas Wheeler e René Pélissier, Angola. London, 1971, p. 48; e Gerald J. Bender, Angola under the Portuguese: Myth and Reality. Berkeley, 1978, p. 356. (11) Boxer, Salvador de Sá, pp. 176-177, 199, 222 e 255; José Capela, Escravatura: Conceitos; A Empresa de Saque. Lisboa, 1974, p. 140; Esteves, “Os holandeses em Angola”, pp. 62-64; e Selma A. Pantoja, “Nzinga Mbandi: Comércio e Escravidão no Litoral Angolano no Século XVII", tese de mestrado não publicada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987, pp. 77-78. (12) Veja David Birmingham, Central África to 1870: Zambezia, Zaire, and the South Atlantic. Cambridge, 1981, p. 78. (13) Como deduzido do uso da cachaça brasileira no Reino de Matamba no final da década de 1650. Ver nossa discussão abaixo. (14) Pièrre Verger, Trade Relations Between the Right of Benin and Bahia from the 17th to the 19th Century. Ibadan, 1976, p. 12; Joseph C. Miller, “Imports at Luanda, Angola, 1785-1823”, in G. Liesegang, l. Pasch, e A. Jones, eds., Figuring African Trade: Proceedings of the Symposium on the Quantification and Structure ofthe Import and Export and Long Distance Trade of África in the 19th Century (c. 1800-1913). Berlim, 1986, p. 194, e
idem, “Capitalism and Slaving: The Financial and Commercial Organization of the Angolan Slave Trade, According to the Accounts of Antonio Coelho Guerreiro (1684-1692)”, International Journal of African Historical Studies. Vol. 17, 1984, p. 39. (15) Verger, Trade Relations, pp. 4 e 578-580. (16) O teor alcoólico em graus de Cartier é fornecido por Luís da Câmara Cascudo, Prelúdio da Cachaça: Etnografia, História e Sociologia da Aguardente no Brasil. Rio de Janeiro, 1968, p. 12. Sua percentagem de equivalência foi extraída de Yves Renouil, Dictionaire du Vin. Bordeaux, 1962, p. 495. (17) Sobre a baixa resistência dos vinhos portugueses frente ao transporte e ao calor, ver Carl A. Hanson, Economy and Society in Baroque Portugal, 1668-1703. Minneapolis, 1981, p. 197. Mais da metade do vinho importado em Luanda por Antônio Coelho Guerreiro entre 1684 e 1692 chegou estragado ou azedou enquanto armazenado. Ver a contabilidade do comércio do álcool, em Virgínia Rau, O “Livro de Razão" de Antônio Coelho Guerreiro. Lisboa, 1956, fls. 14v, 15v, 20v, 21v e 25v. Da mesma forma, no final do século XVII, um missionário que trabalhava no Reino do Congo reclamou sobre a rapidez com que o vinho, que ele e seus colegas importavam de Lisboa através da capital de Angola, estragava. Veja a carta de 19.03.1692 e o relatório datado de 24.05.1962 por Francesco de Monteleone, em E. de Jonghe e Th. Simar, Archives Congolaises. Brussels, 1919, pp. 165 e 169 respectivamente. Sobre vinhos estragados que chegaram em Luanda durante o início do século XVII, ver o embarque e os controles de venda de Francisco Pinheiro, em Luis Lisanti, ed., Negócios Coloniais: Uma Correspondência Comercial do Século XVIII. São Paulo, 1973, Vol. IV, 431, 445-446, e 500. Apenas os vinhos Madeira, que eram encorpados (como são hoje), escaparam desse problema. Veja T. Bently Duncan, Atlantic Islands: Madeira, the Azores and the Cape Verdes in Seventeenth-Century Commerce and Navigation. Chicago, 1972, p. 38. (18) Birmingham, Central África, p. 78
(19) Essa estimativa de exportação de escravos é extraída de Miller, “Slave Trade from Congo and Angola”, p. 101. (20) Governador Aires de Saldanha de Menezes e Souza ao Rei, 10.07.1678, Arquivo Histórico Ultramarino, Angola, Caixa 11, Documento 107. O crescimento da exportação de cachaça para Luanda tornou-se possível pelo fato de a sua produção no Brasil aumentar consideravelmente durante a década de 1660. Veja Vitorino de Magalhães Godinho, ‘‘Portugal and Her Empire. 1680-1720”, in New Cambridge Modern History. Vol. IV, 1970, p. 510. [Daqui por diante, o Arquivo Histórico Ultramarino é referido como AHU, Caixa como Cx., Documento como Doc., e Código como Cód.] (21) Antônio de Oliveira de Cadornega, História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa, 1972, Vol. II, p. 544. Esta é a primeira vez que a aguardente da metrópole aparece na documentação existente como uma bebida importada em Luanda. A data da sua introdução não pode ser estabelecida. Mas dado o seu alto conteúdo alcoólico, maior do que o do vinho, pode bem ter sido introduzida depois de 1650 com o objetivo de concorrer com a cachaça. (22) Veja Cadornega, História Geral das Guerras, Vol. II, p. 544. (23) Governador Aires de Saldanha Menezes e Souza ao Rei, 10.07.1678, AHU, Cód. 554, fl. 21-21v. (24) Miller, Slave Trade in Congo and Angola, p. 101. (25) “Parecer” do Conselho Ultramarino datado de 31.01.1679, AHU, Cód. 554, fls. 21-21 v [uma versão resumida desse documento também é encontrada no AHU. Angola, Cx. 11, Doc. 107]; e “Provisão” de 08.04.1679, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. (26) “Parecer” do Conselho Ultramarino datado em 31.01.1679, AHU, Cód. 554, tts. 21-21v. (27) Sobre esse ponto, ver Antônio Pacheco de Almeida (Ouvidor Geral de Angola) ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; e o “Traslado
da Proposta feita ao Governador D. João de Lencastre pelos Oficiais da Câmara” de 09.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. (28) Durante o final da década de 1660, a produção do vinho expandiu-se notavelmente no continente. Ver A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal. Lisbon, 1978, Vol. I, pp. 518-519. Mas, por volta de 1678, de acordo com Damião Perez, ed., História de Portugal, Barcelos, 1929-1935, Vol. VI, p. 403, vinicultores dos arredores de Lisboa reclamaram da dura competição não apenas entre os vinhos regionais, mas também dos estrangeiros. Outra fonte para a década de 1670, como uma década de recessão para os vinicultores portugueses, é David Birmingham, A Concise History of Portugal, Cambridge, 1933, p. 59. (29) “Provisão” de 08.04.1679, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. Uma cópia mais legível dessa lei é encontrada no AHU, Cód. 545, fls. 20-20v. (30) Traslado da proposta feita ao Governador Dom João de Lencastre pelos Oficiais da Câmara” de 12.07.1682, AHU, Angola, Cx. 12, Doc. 49, e Senado da Câmara ao Rei, 12.07.1681, AHU, Angola, Cx. 12, Doc. 49. Entretanto, o mercado de Luanda permaneceu extremamente pequeno para os vinicultores portugueses em comparação aos mercados muito maiores no Brasil e na Europa. Como resultado, o aumento de exportação de vinho para a capital colonial de Angola dificilmente poderia ter sido o maior fator do restabelecimento da produção de vinho que ocorreu em Portugal durante a década de 1680. Sobre esse restabelecimento, ver Birmingham, A Concise History of Portugal, p. 59. (31) Contabilidade de Antônio Coelho Guerreiro como reproduzido em Rau, “Livro da Razão”, fls. 14v, 20v e 21v. Esses registros mostram um total de vinte barris de cachaça avaliados em 45$000 réis, um barril de aguardente avaliado em 7S600 réis, e onze pipas de vinho com um valor combinado de 750S500 réis. Vale a pena notar aqui que Miller, Way of Death, p. 465, erra ao indicar que a avaliação da cachaça e da aguardente encontradas na contabilidade de Guerreiro era em pipas, ao invés de barris. A última continha oitenta e cinco litros do líquido (ibid., p. 709) ou aproximadamente um sexto dos 500 litros normalmente encontrados em cada pipa. Miller, consequentemente, reduziu o valor da importação da pipa de cachaça e da aguardente. Seguindo a equivalência barril-pipa
fornecida pelo próprio Miller, o preço de 1688, para cada Container de 500 litros de cachaça e aguardente, deveria estar por volta de 13S000 e 45$000 réis, respectivamente. (32) Antônio Pacheco de Almeida ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx.13, Doc. 97. (33) Stuart B. Schwartz, “Plantations and Peripheries, c. 1580-c. 1750”, in Les- lie Bethell, ed., Colonial Brazil. Cambridge, 1987, pp. 83 e 97. (34) Traslado da proposta feita ao Governador Dom João de Lencastre pelos Oficiais da Câmara” de 09.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Antônio Pacheco de Almeida ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Governador João de Lencastre ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; e Senado da Câmara ao Rei, 07.03.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. O preço da unidade da pipa de cachaça brasileira em Luanda durante o final da década de 1680 não era muito menor do que um Container de 500 litros de vinho na metade da década de 1660, vendida por 60S000 réis. Ver Diogini de Carli da Piacenza e Michel Ângelo da Reggio, “A Curious and Exact Account of a Voyage to Congo in the Years 1666 e 1667”, in John Churchill, ed., Collection ofVoyages and Traveis. London, 1732, Vol. I, p. 491. (35) Existem poucas informações sobre o preço das bebidas alcoólicas importadas da metrópole durante o início da década de 1690. A contabilidade de Guerreiro mostra 4 pipas de vinho avaliadas em um total de 1935000 réis em 1691, que converte-se em 48$250 réis por unidade. Ver Rau, “Livro da Razão", fl. 25v. Este era menos do que o preço de um Container de 500 litros da cachaça de cana-de-açúcar. Mas, por elas, Guerreiro estava preparando a sua volta a Portugal, e suas mercadorias estavam sendo vendidas a preços com desconto. Ver Miller, “Capitalism and Slaving”, p. 13. Isso sugere que o preço de envio das bebidas alcoólicas metropolitanas era de fato maior do que o da geribita. (36) “Traslado da Proposta feita ao Governador Dom João de Lencastre pelos oficiais da Câmara”, 09.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Governador João de Lencastre ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Antônio Pacheco de Almeida ao Rei; 23.02.1689, AHU, Angola,
Cx. 13, Doc. 97; e Governador Henrique Jacques de Magalhães ao Rei, 13.12.1694, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 35. (37) Governador João de Lencastre ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; e “Parecer” do Conselho Ultramarino, 20.10.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. (38) "Traslado da Proposta feita ao Governador Dom João de Lencastre pelos Oficiais da Câmara”, 09.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Antônio Pacheco de Almeida ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Senado da Câmara ao Rei, 07.03.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; e do Rei ao Governador João de Lencastre. 04.12.1689, AHU, Cód. 545, fl. 48. (39) Bento Teixeira de Saldanha ao Rei, 13.01.1687, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 36. (40) Governador João de Lencastre ao Rei, 02.12.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 102. (41) Rau, O “Livro da Razão’’, fl. 14v. (42) Jerónimo da Veiga Cabral (Provedor da Fazenda de Angola) ao Rei, 07.11.1684, AHU, Angola, Cx. 12, Doc. 158; Governador João de Lencastre ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; e “Parecer” do Conselho Ultramarino, 20.10.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. (43) Jerónimo da Veiga Cabral ao Rei, 07.11.1684, AHU, Angola, Cx. 12, Doc. 158. (44) Governador João de Lencastre ao Rei, 06.11.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 99. A pessoa em questão não era outra senão João Macedo de Claris, que, além de dedicar-se ao comércio, também ocupou essa importante posição no governo colonial de Angola. Ver Frédéric Mauro, “Pour une histoire de la comptibilité au Portugal: ‘Le livre de Raison’ de Coelho Guerreiro”, Ca- ravelle. Vol. 1, 1963, p. 110.
(45) Esse carregamento, em particular, foi enviado por Pedro de Barros Maciel, principal conexão comercial na Bahia de Antônio Coelho Guerreiro, que tinha fortes laços com administradores de alto nível em Luanda. Marcelo Claris não apenas trocou serviços financeiros com Coelho Guerreiro, mas também era um consumidor desses bens. Ver Miller, “Capitalism and Slaving”, p. 15. (46) Jerónimo da Veiga Cabral ao Rei, 07.11.1684, AHU, Angola, Cx. 12, Doc. 158; Governador Luís Lobo da Silva ao Rei, 25.11.1684, in Antônio Brásio, ed., Monumento Missionária Africana. Lisbon, 1st series, vol. XIII, pp. 584585; Rei ao Governador Luís Lobo da Silva, 04.04.1686, AHU, Cód. 545, fl. 36v; e Bento Teixeira de Saldanha ao Rei, 13.01.1687, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 36. (47) Um comerciante de escravos português com grande experiência em Angola relata que essa prática ocorreu apenas antes da proibição de 1679. Ver José Barbosa Leal ao Rei, 10.10.1690, in Virgínia Rau e Maria F. G. da Silva, eds., Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval Respeitantes ao Brasil. Coimbra, 1955, Vol. I, pp. 289-291. Todavia, em 1688, Jaga (Rei de Kasanje) escreveu ao Governador de Angola informando que a geribita enviada ao reino pelos comerciantes de escravos portugueses era de uma qualidade tão baixa que estava matando seus súditos. Isto sugere que a cachaça brasileira continuava a ser adulterada em Luanda e nas suas redondezas. Ver o “Parecer” do Conselho Ultramarino datado em 20.10.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97, ou AHU, Cód. 554, fls. 60v-61. (48) “Parecer” do Conselho Ultramarino datado de 20.10.1689, AHU, Cód. 554, fls. 60v-61, ou AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. (49) Governador João de Lencastre ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Rei ao Governador João de Lencastre, 04.12.1689, AHU, Cód. 545, fl. 48. (50) Ver Governador João de Lencastre ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; “Parecer” do Conselho Ultramarino, 20.10.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; José Barbosa Leal ao Rei, 10.10.1690, in Rau e Silva, eds.. Os Manuscritos, Vol. I, pp. 289-291; e Governador Henrique Jacques de Magalhães ao Rei, 13.12.1694, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 35.
(51) Senado da Câmara ao Rei, 07.03.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; e o “Parecer” do Conselho Ultramarino datado de 20.10.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97. (52) Governador João de Lencastre ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Antônio Pacheco de Almeida ao Rei, 23.02.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Senado da Câmara ao Rei, 07.03.1689, AHU, Angola, Cx. 13, Doc. 97; Senado da Câmara ao Rei, 11.12.1694, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 37; e Governador Henrique Jacques de Magalhães ao Rei, 13.12.1694, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 35. (53) Ver, por exemplo, José Barbosa Leal ao Rei, 10.10.1690, in Raue Silva, Os Manuscritos, Vol. I, pp. 289-291. (54) Charles R. Boxer, Portuguese Society in the Tropics: The Municipal Councils of Goa, Macau, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Madison, 1965, pp. 123124; Governador João de Lencastre ao Rei, n.d., in Rau e Silva, Os Manuscritos, p. 449; Balthazar da Silva Lisboa, Annaes do Rio de Janeiro Contendo a Descoberta e Conquista deste Paiz, a Fundação da Cidade com a Historia Civil e Eclesiástica, até a Chegada d'El-Rei Dom João VI; Além de Noticias Topographicas, Zoologicas e Botanicas. Rio de Janeiro, 1835, Vol. 5, p. 27; e Senado da Câmara de Bahia ao Rei, 12.08.1687, in Boxer, Portuguese Society in the Tropics, pp. 186-188. (55) Rei ao Governador João de Lencastre, 04.l2.1689, AHU, Angola, Cód. 545, fl. 48. (56) Boxer, Portuguese Society in the Tropics, p. 124; e Rei aos Oficiais da Câmara, 17.11.1692, AHU, Angola, Cód. 545, fl. 67v. (57) Boxer, Portuguese Society in the Tropics, p. 124. (58) Rei aos Funcionários da Câmara, 17.11.1692, AHU, Cód. 545, fl. 67v. (59) “Certidão” dos três médicos em questão, 16.12.1694, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 37. Como na maioria dos casos de avaliação das condições de saúde antes do final do século XIX, é impossível achar um equivalente moderno específico para as “thydropezias” e “hyrizypellas” referidas
nesse documento. Numa comunicação pessoal, 22.05.1995, Joseph C. Miller informa que o primeiro é aparentemente alguma forma de “hidropisia” e a última, provavelmente, um problema de pele. (60) Senado da Câmara ao Rei, 11.12.1694, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 37. (61) Governador Henrique Jacques de Magalhães ao Rei, 12.11.1694, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 35. (62) “Parecer” do Conselho Ultramarino datado de 17.08.1695, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 37. (63) Charles R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695-1750. Berkley, 1962, pp. 39-60. (64) “Parecer” do Conselho Ultramarino datado de 17.08.1695, AHU, Angola, Cx. 15, Doc. 37, ou AHU, Cód. 554, fls. 85-85v. (65) A data das novas instruções não é conhecida. Foi promulgada em algum momento entre o fim de agosto e o início de dezembro de 1695. Ver Rei aos Funcionários da Câmara, 09.12.1965, AHU, Cód. 545, fls. 94v-95. Esse episódio, por coincidência, ocorreu logo após João de Lencastre, que insistiu em ter a proibição suspensa enquanto Governador de Angola, ter assumido o governo do Brasil em 1694. Ver Ross L. Bardwell, “The Governors of Portugal’s South Atlantic Empire in the Seventeenth Century: Social Background, Qualifications, Selections, Reward”. Dissertação de Ph. D. não publicada, University of Califórnia at Santa Barbara, 1974, p. 72. (66) “Contrato de 1699-1702” e “Contrato de 1703”, n.d. e n.s., in AHU, Angola, Cx. 17, Doc. 55. (67) “Contrato de 1699-1702” e “Contrato de 1703”, n.d. e n.s., in AHU, Angola, Cx. 17, Doc. 55. (68) Jean Barbot, “An Abstract of a Voyage to the Congo River or the Zaire in the year 1700”, in Churchill, Voyages and Travels, vol. V, p. 519.
Barbot também lista o vinho como uma outra bebida alcoólica utilizada para obter escravos nas várias feiras encontradas no interior de Luanda.
III. Três Leituras e Duas Cidades: Luanda e Rio de Janeiro nos Setecentos Selma Pantoja
I. Introdução No final do século XVIII um arguto observador ao descrever Luanda usa o termo ‘miscelânea’ para definir aquela mistura de religião, gentes, atitudes, modo de ser. E opondo-se a ‘miscelânea’, dizia, que predominava nos arredores e fora da cidade ‘o mais puro paganismo’. Aquele fino analista sempre acentuava no seu texto, ao descrever os costumes da terra, o par: ‘miscelânea’/paganismo. O ilustrado autor luso-afro-brasileiro (1), Silva Corrêa, escreveu História de Angola a partir da sua experiência ao servir como militar naquela região angolana (2). Em recente artigo os africanistas Thorton e Miller (1990) definiram o estilo de Silva Corrêa como neoclassicista e caracterizaram o seu texto como a saga de uma ‘epopeia militar’, uma obra nostálgica dos valores antigos da época áurea do Império português. Qualquer que seja o qualificativo, trata-se de um livro bastante conhecido daqueles que se dedicaram ao estudo quantitativo da transferência da mãode-obra africana, ou sobre a essência da escravidão africana. Importa acentuar que fui buscar nessa fabulosa obra essencialidades mais difusas. E assim passei a me interessar pelo que o autor chamou de ‘miscelânea’, a mistura de cultos, coisas, gentes e idéias no espaço urbano de Luanda. No
entanto, decidi estender a outros espaços urbanos a minha análise da ‘miscelânea’. Desse interesse resultou o meu trabalho de pesquisa para a tese de doutorado (3), cabendo, aqui, neste texto, apenas a discussão das diferenças sociais e de gênero nas respectivas cidades, com suas manifestações de poder e prestígio local. Pretendo analisar a representação desses papéis definidores de prestígio e poder no seu cotidiano e o significado que essas atividades adquirem através de uma interação social concreta. O recorte cronológico situa Rio de Janeiro e Luanda, na era pombalina, a partir da administração de dois governadores, considerados ‘esclarecidos’, procurando nas suas trajetórias recobrir a relação com as populações locais. Nos respectivos casos trata-se de Luanda, sob o governo de Sousa Coutinho, e do Rio de Janeiro, na época do Marquês do Lavradio. Pretendo, além disso, me introduzir no debate de uma Luanda que foi predominantemente mestiça e deixou de sêlo e de um Rio que se manteve mestiço. Problematizando para isso a interface da mesma questão: a política de povoamento de brancos por parte da Coroa portuguesa com seus resultados para as duas regiões e a disponibilidade de mulheres africanas para os brancos.
2. As Cidades: Rio e Luanda Mas o que seria a ocupação da história dessa configuração espacial e social que chamamos centro urbano em rei a ao a Angola e Brasil nos Setecentos? Uma modalidade do que chamamos de cidade em termos de hoje mas que situado no século XVIII se definiria como um espaço de certa forma importante e com um número também significativo de população sem a intenção aqui de um trabalho de história urbanística. Mas na tentativa de escapar ao modelo ocidental de urbanização, aquele predominante a partir do século XIX na Europa, mas considerando épocas e civilizações produzindo fenômeno de urbanização diferente (CoqueryVidrovitch, 1986). Uma leitura espaço-social com raminhos do traçado histórico que permite vislumbrar as aparências das cidades no tempo.
A noção de urbanização chega ao Brasil dentro da nova era de reformas do governo pombalino. A capital da colônia muda-se para o Rio de Janeiro. O governo luso se encontrava preocupado com a questão de limites territoriais disputados pelos espanhóis. Essa política urbanizadora planejada se traduz em fundação de vilas, liberdade dos índios, retomada de territórios, fixação de povoamento e sua defesa, porém faltava gente e não podia se contar com os índios (Flexor, 1995). O domínio português em Angola, por sua vez, por essa época, limitava-se a algumas regiões, e Luanda era o centro administrativo e o maior povoamento de branco, no geral pouco numeroso como pode ser visto no Capítulo VI deste livro. Por esse período a Câmara da cidade tinha como membros os comerciantes, sendo majoritários os luso-africanos. Na Luanda setecentista proliferavam as lojas, na sua maioria de secos e molhados. Segundo Silva Corrêa, mais e de molhados do que de secos, graças ao lucro da venda da geribita, aguardente do Brasil, que estimulava a chegada de “homens propensos a taberneiros” e que faziam todos os tipos de trapaças para “...adquirir qualquer excesso ao seu pequeno cabedal” (4). Era na miragem de fácil enriquecimento que chegavam do Reino e, principalmente do Brasil, os dispostos a qualquer sacrifício em suas vidas:
Arrancados do Brasil pelos estímulos da cobiça, multidão e grosseira gente dispostas a sofrer em taberneiros os desconcertos dos vis contribuidores da sua riqueza, transformam em tabernas as duas terças partes dos edifícios da cidade (Silva Corrêa, 1937, p. 40).
Uma década depois do governo de Sousa Coutinho, Luanda foi descrita como uma cidade demarcada pela constante ‘corrupção do ar’ devido à decadência e às construções em ruína. Um mercado ou a quitanda, no centro da cidade, vendia quinquilharias, fubás, frutas, verduras, peixes, etc. ajudando ainda mais a ‘desordenar os estômagos mais robustos e sadios’ com os cheiros que exalavam, principalmente à noite. Por suas vias públicas circulavam os muitos escravos dos lojistas. Bastava
acumular um parco capital e todos já aspiravam a ter meia dúzia de escravos — assim agiam soldados ou funcionários da administração lusa. O espaço Luandense foi construído a partir de diferentes espaços que coexistiam na cidade. A ocupação desses espaços pode servir de base de uma leitura das muitas imagens da cidade no tempo (5). A cidade do Rio de Janeiro, ao final do período pombalino, passou de periferia a centro. O século XVIII conturbado politicamente na Europa pelas guerras napoleônicas impeliu o governo português em 1808 a transferir a corte portuguesa para o Rio de Janeiro, sediando esta cidade a monarquia portuguesa. Um dos fatores que preparou a cidade para esta mudança foi a transformação do porto da cidade como ponto obrigatório no comércio com a África. Navios de menor porte, construídos em estaleiros do Rio, faziam o intercâmbio direto com o continente africano. Ainda outros fatores dão contorno de centralidade à cidade em relação à colônia. Servia de entreposto para toda a região centro-sul, e mantinha um ativo comércio com a região espanhola, sob a forma de contrabando. Enquanto para toda a província do Rio de Janeiro contavam-se 215.678 habitantes, o espaço urbano da cidade possuía 43.376 habitantes, sendo mais da metade desse total de negros escravos e forros (Almanaque do RJ, 1779). Pelas descrições da época as condições urbanas do Rio era de uma cidade infecta de doenças e epidemias, com ar apodrecido. São os ‘males físicos do Rio de Janeiro’, a localização da cidade à superfície do mar; a pouca circulação do ar devido a edifícios e ruas estreitas e a morros que criam obstáculos aos ventos (Pizzaro, 1948, v.7, p.72). Para os observadores contemporâneos, o Rio dos Setecentos era um lugar ‘malfazejo’ e ‘inabitável’, que só terá seus problemas urbanos resolvidos quando da chegada da família real. O olhar do Vice-Rei não foi menos complacente ao descrever para amigos e parentes a capital como ‘terra de moléstias não agudas, mas achaques’, ou ‘um pântano cercado de montes inacessíveis’. Mas se as ruas do Rio ‘eram pastos para cabritos, carneiros, porcos e galinhas’ e ‘cheiravam mal’, também eram habitadas por soldados do Regimento dos Pretos Forros, os capoeiras, negros escravos, padres, mendigos e comerciantes a varejo. As ruelas do Rio mostravam-se repletas
de negros que perambulavam por elas na busca de ganhos do dia ou levando recados a mando de seus senhores. As epidemias devastavam as vidas nessas cidades e comprometiam a atividade econômica. O ‘mal-de-Luanda’ (o escorbuto), nos dois lados do Atlântico, assinalava a ausência total de condições sanitárias. A aglomeração desordenada sem condições sanitárias é característica dos setecentos. A travessia Rio-Luanda durava uma média de dois meses e acontecia em condições fabulosamente precárias, tanto para os escravos que iam amontoados nos porões, como para um viajante de condição livre, como bem o descreveu o próprio Silva Corrêa na sua viagem do Rio para Luanda.
3. O Lugar das Trocas: ‘O Vício do Comércio’ Nesta época Luanda estava ligada ao Rio de Janeiro pelo tráfico de escravos, e através desses contatos circulavam mercadorias e idéias. A integração comercial e as diferenças sociais marcavam nitidamente os limites desses centros. Na imagem criada por Silva Corrêa o comércio era uma das colunas que sustentava a monarquia lusa sendo que os outros pilares da Monarquia, agricultura, gado, pesca, fábricas e contratos, não tinham base na região de Angola; nesta o objeto principal era o comércio. O chamado mundo ultramarino, enquadrando-se na história de além-mar (Wasseling, 1992) no seu conceito de história dos europeus e dos nãoeuropeus nos mais diversos níveis de suas abordagens, pode ser lido aqui nos quadrantes que nos interessam, para a região africana centro-ocidental e América do Sul. Aproximar-se desses espaços urbanos é entrar no mundo das trocas em que circulavam mercadorias dos mais variados significados simbólicos, ou não, com embates pelo contato com o outro.
As tramas do comércio, atividade predominante que permeava toda a vida das populações, tomavam todo o corpo social. O ‘vício do comércio’, como foi chamado por um dos administradores, suscitava novos comportamentos; combatido em seu excesso pelos ilustrados administradores através de leis que visavam a sua correta racionalização. Os recém-chegados nas terras de além-mar se viam instados a abandonar suas profissões e se dedicarem inteiramente a atividade das trocas. As formas de atuação no fluxo das trocas estruturavam modos de vidas que permitiam uma nova prática indicadora de um status. O ‘ser civilizado’ mediava- se pela aparência, no modo de vestir, abrangendo toda gama de habitantes, dos mais ricos ao mais pobre, como, por exemplo, um escravo. Configuram-se as várias categorias específicas de habitantes distinguidos pela dedicação ao comércio gerador de formas de ascensão social, garantindo mecanismos de mobilidade social em que modelos de comportamentos e de valores eram testados pela aparência. A ostentação no modo de se vestir assegurava prestígio local àqueles destacados na atividade comercial nesses centros urbanos. Em comunidades distintas como Rio e Luanda, os papéis sociais definiamse a partir da densidade das trocas que funcionavam como parâmetro no julgamento de valor do outro. O comércio de escravos era a atividade central em torno da qual giravam as vidas e as trocas. No fluxo de homens e mercadorias aspirava-se a um maior ‘cabedal’ e à participação no grande tráfico. No movimento das trocas — ou ‘seduzidos’ por elas — circulavam por espaços diferenciados povos que a princípio estariam presos pelas fronteiras de uma inserção social, condicionados por pertencer a um grupo étnico ou qualquer outra expressão cultural que os delimitassem. A participação no comércio local permitia a mobilidade social e a ocupação de certas posições de prestígio, garantindo privilégios com relação aos demais grupos no cenário desses espaços urbanos específicos. Preocupavam-se, então, os governadores com o ‘vício’ do comércio que parecia contaminar a todos os que chegavam nessas terras de além-mar. Para evitar que ao chegarem os oficiais deixassem os seus ‘ministérios’, era necessário obrigá-los a se fixarem nas suas profissões (6). Através de leis, chegou-se então a proibir os oficiais, portugueses, de se dedicarem ao
comércio (7). Apesar de a atividade comercial já ter sido reabilitada pela Coroa portuguesa, o comércio, central nesse mundo ultramarino, era então nos espaços europeus considerado uma atividade inferior, e por isso mesmo em épocas de reformas foi declarada, em 1770, em todo o Império português, como uma “profissão nobre, necessária e proveitosa”. Em 1773 o Marquês de Pombal faz abolir a ‘limpeza de sangue’, um passo dado em direção à modernidade, na tentativa de cortar as diferenças juntamente com os preconceitos tradicionais do reino. Os pequenos negociantes, que faziam tudo para acrescentar mais algum ao seu ‘cabedal’, eram desprezados e a princípio considerados desonestos. No Rio de Janeiro o vice-rei, Marquês do Lavradio, mostrou o seu profundo desprezo pelos taberneiros e pelos donos de boticas, indeferindo todas as suas petições, uma delas pedindo, por exemplo, que as tavernas ficassem abertas todas as noites; a petição foi recusada, pois sabia o vice-rei que as tavernas eram os lugares das trocas ilícitas, onde o submundo tomava espaço. Lavradio deu provas de maior preconceito, ao justificar a demissão de um soldado da milícia simplesmente por este ser neto de taberneiro (Apud, Alden, 1968, p. 485). Muitos desses pequenos negociantes “viriam apolentar-se em cabedais” e no futuro seriam grandes comerciantes, como bem exemplifica o caso de Luanda. No processo que condena o escravo Salvador, em 1771, algumas das testemunhas são citadas e se identificam como pequenos comerciantes (lojistas, taberneiros) que reaparecem numa lista dos mais abastados comerciantes daquela cidade, em 1810 (Pantoja, 1994, p. 206). A antipatia desses administradores por aquelas profissões traz em si a qualificação de outras tantas funções, que no geral mostravam-se como dignificadas, que seriam o caso da agricultura e dos ofícios em geral. Em Luanda permitia-se, pelas leis e cargos surgidos na administração portuguesa, a ascensão social de mestiços. Por falta de ‘gente católica e portuguesa’, essas funções eram preenchidas por ‘mistos’. Eram cargos que ofereciam privilégios, mas só com o comércio era possível juntar riqueza e prestígio. Distinto do mulato livre que tem acesso aos cargos, na falta de uma mão-de-obra branca, a figura do ‘mulato cativo’ circulava pelas ruas de Luanda apresentados nos textos de época como aqueles que vivem na fronteira dos dois mundos, são tidos como preguiçosos nos
serviços para seus senhores e escapam à sina de soldados pela condição de escravos. Outros, mulatos ricos, eram um tipo investido da administração dos bens do pai branco quando esse morria (8). A questão do prestígio social, naqueles centros urbanos, pode ser vista através de dois termos que nas suas ocorrências demonstram o quanto o comércio era atraente e o quanto os grupos locais aspiravam à condição de ‘homens de bem’ (9) ou ‘homens distintos’. Essas categorias de habitantes — existentes uma para Luanda e a outra para o Rio de Janeiro — transcendiam a condição de africano, mestiço ou branco pobre. Trocavamse os papéis de mestiço, africano ou branco pobre e passava-se a ser ‘homens de bens’ ou ‘homens distintos’. São lugares de prestígio na comunidade local, adquiridos através do bom desempenho no comércio, reafirmado com as devidas formas de ostentação na maneira de viver. Demarcados como privilegiados, os ‘homens de bem’ trajavam-se como fidalgos ou outro exemplo qualquer de civilizado. Em Luanda os lusoafricanos passavam a ‘homem de bem’ depois de obterem um lugar na Câmara com o prévio enriquecimento na intermediação do tráfico entre sertão e litoral. Os brasileiros, como eram chamados, chegam como taberneiros em Luanda para vender geribita, mas a ambição era galgar a Câmara, ‘a exemplo de outros, que dão leis a República deste país’ e antes disso tinham que passar pelo negócio da venda de escravos. No Rio de Janeiro, divergia o Vice-Rei, Lavradio, da Câmara local que escolhia por ‘homens distintos’ (10), os mais pobres da cidade, porém distintos só na origem. Foi com essa intenção que o Vice-Rei reabilitou os comerciantes locais (11): estes, sim, pareciam-lhe ser ‘homens distintos’, embora não fossem os ‘verdadeiros negociantes’, pois faltava aos comerciantes daquela praça, do ponto de vista desse governante, ‘lisura no trato dos negócios’. Das posições que garantiam ascensão social a mais visada era a de ‘homens bons’, além de cargos como vereador, juiz, altas patentes da milícia e procurador da Coroa (12). Os caminhos de ascensão social mais comuns eram as ordens honoríficas ou patentes militares, mas através da posse de grandes riquezas ou da educação universitária conseguiam-se patentes militares ou ingressava-se na vida eclesiástica (13). Vítimas da maior discriminação racial, os negros, os mulatos e os
‘cristãos-novos’ viam-se interditados às posições consideradas de ascensão social. No discurso de Lavradio os ‘filhos da terra’ se opõem aos reinóis. Portanto, compreende-se que todos aqueles nascidos na América, mestiços ou não, apesar de indolentes sejam de caráter submisso, afirmava aquele vice-rei (Lavradio, 1834, p. 449); diferenciando-se dos ‘habitantes naturais’, que eram os índios; e um outro termo profundamente genérico nos seus textos, ‘aquelas gentes’, onde se integrava uma massa de desclassificados como os mestiços, os negros e os brancos pobres. O outro polo do termo ‘homens de bem’ corresponderia a expressão ‘cafrealizado’ no sentido usado nas situações ocorridas mais comumente em Luanda, onde a perda de civilização era atribuída aos sertanejos, àqueles que embrenhados no interior ‘cafrealizavam-se’, adquirindo todos os hábitos dos ‘calfes’ que no geral significava adesão à poligamia, adoração aos deuses africanos e à prática dos ritos além da adoção da alimentação dos povos locais. Para o sertanejo cafrealizado Luanda era o cenário ideal para adquirir e exibir os seus ostensivos adornos, como descreveu Correa: ‘adota para o seu vestuário o uso de custosas alfaias e ricas joias, faz garbo do desperdício’. E o cariboca no Rio de Janeiro, no sentido pejorativo de mestiço de índio e negro (Silva, 1854, p. 198-9, doc. XXXV), significava a perda de uma condição social reabilitada pelas leis reais. O índio apesar de não estar na condição de civilizado tinha do ponto de vista da Coroa, potencial para chegar a cultura, desde que não se misturasse com os negros. No cumprimento da legislação que interditava o casamento entre índios e negros, Lavradio foi profundamente incisivo. Essas uniões eram consideradas regressões na escala social onde o índio fora elevado pela legislação pombalina. O documento que regia estas normas, o Diretório, deixava claro que nenhum índio deveria ser chamado de ‘negro’, por isto os nivelariam com o mais baixo grau da escala social e, agora que estes foram nobilitados pelo rei, tal ‘abuso’ era cometido por aqueles que tencionavam escravizá-los, subentende-se do texto, do que não cogitavam as Reais Leis. Recomendava a lei que todo índio tivesse um sobrenome, para assim ‘conhecer os índios com toda a evidência’. Os ditos
sobrenomes seriam portugueses, as casas iguais às de brancos, língua, vestes e religião. Uma percepção redutora do outro, trazendo-o para ser um eu imperfeito, já que o rei não deixava de recomendar que não devem faltar ‘os meios de os honrar e tratar, como se fossem brancos’. Num ato de restrito cumprimento das diretrizes pombalinas o Vice-Rei do Brasil demitiu do cargo o índio José Dias Quaresma, capitão-mor no aldeamento de Ipuca, por ter este se casado com uma negra, com filhos cativos (Silva, 1854, p. 220). O Vice-Rei não deixava de enfatizar a utilidade que os indígenas tinham para a Coroa: prestando serviços em portos, impedindo a fuga de desertores dos regimentos, servindo de correios na Província, e na captura de escravos fugidos no que, ressaltava Lavradio, eram muito bons, pois conheciam a região como ninguém. Apesar de sua visão de funcionalidade da população indígena, Lavradio acreditava na recuperação da alma do índio, e a perda do aldeamento significava a perda do índio para a civilização, mesmo que se tratasse de um civilizado inferior, para serviços subalternos, indispensável à Coroa. O discurso sobre o índio, na política pombalina, estabelece uma relação direta com o Estado na qual são apagadas as diferenças: resgata-se o diverso fundamentado na igualdade e na desqualificação das suas diferenças, recuperando a homogeneidade. Correspondente à figura dos ‘homens bons’, do Rio de Janeiro, é possível caracterizar no mesmo período em Luanda os ‘homens de bem’, segundo um observador da época:
“O público adereço, com que nas ruas se anunciam os homens de bem, é rede, guarda-sol, ou tipoia. Quando deixam de passear sobre os pés dos escravos, estes os precedem com a viatura. Estes homens de bem, elevados a esta classe a favor dos seus cabedais aspiram à honra de distintas bengalas de quiméricas patentes militares; mas tem desculpa por ser balda geral em toda a América, África e Ásia portuguesa, para concorrerem a aumentar a Corte nos dias dela.” (Silva Corrêa, 1937, p. 84).
A aparência e o modo de se vestir tomam lugar de definidor dos papéis e muitas vezes a ostentação nos trajes era a forma de ser reconhecido numa determinada categoria. Como também os “homens de sapatos” e os “pretos brancos” (14) de Luanda eram formas de representar a ascensão social, pela aparência, o modo de se vestir, neste caso, exemplificava comportamentos recorrentes por parte dos luso-africanos. Não bastava ser rico nas terras de além-mar: para ascender socialmente era preciso perder a condição de africano, mestiço, ou branco pobre e passar à de ‘homens bons’ ou ‘homens de bem’. Em Luanda, na categoria dos livres aparecem como das mais baixas os soldados, brancos e mestiços, que apesar de livres estavam nivelados aos negros, pois ambos eram enterrados no cemitério dos escravos (Nazaré). Numa avaliação da utilização dos mulatos livres para as tropas, o soldado representava um nível do extrato mais baixo. Para muitos negros significava ganhos de fardas e às vezes de soldos, como bem mostram as muitas petições direcionadas ao governador. Além dos soldados, outros tipos como o ‘negro casco’ eram considerados mais hábeis, em comparação com os negros rudes do sertão, utilizados para os serviços na cidade.
4. O Lugar de Gênero nos Mundos de Além-Mar Ao longo da obra de Silva Corrêa é possível fazer uma leitura sob a perspectiva das relações de gênero. O autor na descrição das mulheres negras, mestiças e brancas as identifica sempre com uma prática de ociosidade e luxo ostensivo. Assim como as negras que vivem no sertão vestidas e mantidas por brancos ou mestiços, cafrealizados, são denominadas de ‘negras sultãs’. Uma diferente observação pode ser captada ao descrever a figura das quitandeiras de Luanda responsáveis pelo ‘pequeno, pobre e fedorento comércio’. O autor se torna mais cauteloso ao descrever as senhoras de Luanda, as mulheres brancas ou
aquelas com ‘esta alcunha’, acrescenta ironicamente. Mas se havia espaço para a dúvida, se são ou não brancas, pensamos tratava-se de mestiças que o autor não quis nomeá-las como tais. Silva Corrêa faz referência aqui a um grupo de mulheres que brancas ou não, mas com certeza são pessoas integrantes de uma elite da cidade. Devido, supõe-se, a este status social elevado, essas senhoras da sociedade luandense não eram nomeadas de mestiças. Essas ‘brancas’ são apresentadas como cópias das mulheres européias, e seus hábitos, portanto, têm sempre formas ridículas como o fato de elas estarem sempre acompanhadas de comitivas de escravas. Enquanto essas mesmas escravas por estarem sob um controle por demais ‘relaxados’ das senhoras levavam vidas ‘licenciosas’, entendendo-se daí que contribuíam para o aumento da prostituição na cidade de Luanda. Mas, por outro lado, as senhoras brancas ou tidas como tais são acusadas de terem boa desenvoltura na ‘língua ambundu’ e não saberem se expressar adequadamente em português. Os motivos dessa ‘cafrealização’ das mulheres na cidade seriam: por viverem encerradas em casa e em convívio constante com as africanas. Essas senhoras, por conta disso, ‘são velozes nas conversações familiares e mudas nas polidas assembleias’. Em outros termos o autor cobra das ditas senhoras uma atuação mais ‘civilizada’ em público. Pelo que consta do texto, são poucas as que assim sabem se comportar em Luanda. Em compensação, os homens, entendam-se brancos de verdade (?), são eloquentes no português e ‘elegantes no ambundu’ (Corrêa, p. 83). Por essas pequenas menções aos papéis masculino e feminino percebe-se o confinamento, ao ambiente familiar, privado que cabia às mulheres brancas ou da elite luandense. Mas as mulheres ‘brancas’ em Luanda também não atuavam como boas cristãs, já que ‘se isentavam’ de ouvir missa, a não ser que tivessem em casa suas próprias capelas, acrescenta com ironia o autor. Mas apesar disso as igrejas eram frequentadas por multidões em épocas de casamentos, batizados e funerais. Nessas ocasiões os rituais cristãos e africanos andam juntos, quando a miscelânea mais ostensivamente podia ser vista. Na denúncia desse tipo de sacrilégio Silva Corrêa gasta páginas e pés-depágina, e o Governador Sousa Coutinho já tinha ordenado alguns bandos proibindo as afrontas.
Em uma especial situação o autor não se nega a tecer elogios às mulheres ‘brancas’ em Luanda. Considera que a terra africana por causa do clima apresenta-se perigosa para a natureza humana, especialmente para o sexo masculino. Opinião compartilhada, na época, pelo governador de Moçambique, Pereira do Lago, que achava aquela terra ‘mortífera para os varões e generosa para as mulheres’. Para Sousa Coutinho, apesar da ‘malignidade do clima’ que devorava e enlouquecia os seus oficiais da fábrica de ferro, ‘a terra era para aqueles que sabiam resistir aos cantos das cigarras que são as sereias desses mares’ (15). Evidência enfatizada também, em época mais recente, pelo historiador Boxer ao assinalar o caráter de ‘tumba do homem branco’ numa referência à cidade de Luanda (Boxer, 1977, p. 29). O clima das terras africanas, além de trazer a morte, afeta o homem branco em outras dimensões: para muitos dissolve a razão. Traz a loucura. Nas terras africanas o ‘fogo da sensualidade atiçado pela ardência do clima devora a natureza humana’. Silva Corrêa faz referência aqui aos ‘atos libertinos de europeus que têm concubinas e muitas vezes são apresentadas às próprias esposas (16). Estas sim, senhoras brancas que merecem elogios do autor pelo seu cumprimento dos votos conjugais. A exceção fica por conta de algumas esposas que agem do mesmo modo dos homens, ‘que sendo público para estranhos é sigiloso para o ímpio marido’. A virtual incidência de mortes dos homens brancos em terras africanas chega a criar o fenômeno das mulheres que se enviuvam por mais de cinco vezes e das viúvas ricas que administram os seus próprios bens. Esse fato foi motivo de apreensão por parte de Sousa Coutinho como bem expõe em carta ao Rei em 1770 (17). De resto, a ‘inclemência do clima’ serve de justificativa para outras tantas coisas. A representação simbólica invocada no caso do ‘clima das terras africanas’ permite uma criação social sobre os papéis apropriados para mulher e homem. Numa ordem onde o maior valor dado está na condição masculina e não na feminina, o que faz a transgressão do homem branco é o clima que destrói a razão. O mito do clima das terras africanas pertence à categoria dos símbolos culturais no mundo ocidental que, apesar da perda da visão ptolomaica do mundo, ainda perpassava no imaginário
social a idéia de pecado e tentação a que o homem branco estará exposto em terras tórridas e distantes. Apesar de a natureza da terra africana ser ‘benigna para o sexo feminino’ ela não poupa as mulheres durante os partos e isto é visto por Silva Corrêa como a justificativa da preocupação desse povo com a procriação. Por isso mesmo, ela está sempre presente nos seus rituais garantindo as cerimonias mas para um bom parto no ato de iniciação das meninas. No quadro da exceção, algumas mulheres parecem não se dedicar somente ao luxo e ócio; são as proprietárias de ‘arrimos’ (grande propriedade rústica). Mas essas por não possuírem um forte controle dos escravos permitem que estes mantenham seus usos (poligamia e ‘paganismo’) em suas propriedades. Essas mulheres, geralmente, viúvas, precisam da autorização dos seus escravos para se casar novamente, ou seja, que estes aprovem sua escolha. Segundo Silva Corrêa, os escravos fogem das propriedades por temerem o futuro marido da proprietária. Quando as mulheres aparecem, como neste caso, em lugares de proprietárias são consideradas de controle muito ‘relaxado’. Em comparação com as brancas ou chamadas senhoras no Rio de Janeiro, o confinamento é o traço comum entre elas. A descrição mais conhecida dessas cariocas dos Setecentos era que saíam de casa em apenas três ocasiões: casamento, missa, funeral. No Rio, o Vice-Rei sugere, para que as mulheres pobres não caíssem na prostituição, a criação de fábricas que as acolhessem. Na colônia brasileira a contrapartida da mãe abnegada e piedosa será a construção da figura da prostituta, que vigorará como a da mulher de vida ‘dissoluta’, responsável por uma prole de pai desconhecido, dando origem ao alto número de crianças abandonadas no Rio de Janeiro (Del Priore, 1993, p. 83). A figura da mulher chefe de família também campeava na capital nos Setecentos — mãe e filhas constituíam o ‘arranjo familiar’ que dava origem à imagem da mulher transgressora, ‘desregrada’. Para o período do final do século as pesquisas apontam a posição da mulher em que a ilegitimidade do nascimento e da situação matrimonial eram predominantes. Pelos dados das paróquias mais populosas no Rio setecentista tem-se o percentual de 30% de nascimentos de filhos naturais, na sua maioria dentre mulheres
forras, negras e mestiças, porém sem invalidar a presença de brancas pobres (Venâncio, 1986, p. 118). A construção de uma forma de conduta da mulher no novo mundo obedeceu aos ditames do modelo do que seria o tipo ideal para o sexo feminino (18). Juntos Igreja e Estado colonial português no Brasil, na política de preparação social da população, vinham ao longo do século XVIII na tentativa de estabelecer diretrizes para o enquadramento das mulheres, fator central nas preocupações do Estado, num momento de mudança do contingente demográfico, eixo da mobilidade social na colônia, em especial na Região Sudeste (RJ, MG). No início do século, a Coroa tinha feito uma verdadeira intervenção com sua política de tentar equilibrar o número de brancos de ambos os sexos na colônia (Russel-Wood, 1978). Dentre esses atos se contabiliza o estímulo de vindas de mulheres brancas, o impedimento de que as aqui residentes entrassem para os conventos, entraves aos cargos públicos para os solteiros ou não-casados com brancas, foram alguns desses atos. Coroa e Igreja viam como sério dano moral a constante concubinagem de brancos com índias e negras, a crescente mestiçagem da população. Depois de uma série de leis para estimular os casamentos entre brancos, na metade do século, a situação se modifica, pois foi o momento de maior entrada de migrantes. Apesar da política da Coroa portuguesa de enviar ‘órfãs e donzelas’ para Angola, com intuito de aumentar o número de casamentos entre os brancos, o resultado não foi aquele desejado por Sousa Coutinho, de ‘multiplicação das gentes’ (19). Numa primeira leitura, aparentemente, temos uma série de iniciativas do Estado português nos Setecentos que determina a política de coloração da população, preocupado que estava em estabelecer uma população branca na África. Na ausência ou insucesso dessa política surge a população mestiça aparentando ser consequência unicamente da determinação dos homens brancos. A convergência de que resultou os luso-africanos, enquanto um tipo de população implicou o movimento de duas partes. A invisibilidade da mulher africana é patente em textos que tratam das mestiças em Luanda, ou Angola. Seria o caso de aprofundar questões como: a mestiçagem foi apenas uma contingência demográfica do decréscimo da população masculina africana resultante da pressão do tráfico transatlântico nos Setecentos (20)?; considerar a
importância para os africanos de cederem suas mulheres como parte de uma estratégia de unir-se aos brancos (21); ou, ainda, qual seria a demanda sexual e afetiva por parte das africanas nessa relação? Estudar os vários componentes dessas questões significa tentar estabelecer as noções de gênero que serviram para validar novas situações.
5. O Lugar das Diferenças: a Construção do Outro Nesses espaços urbanos compartilhados por cafres, gentios, caribocas e mulatos nomeados como tais por vontades cortantes de conquista e domínio, a meta a atingir era a construção da imagem do civilizado, pelas roupas e calçados, estilos próprios daqueles que poderiam ser considerados cristãos. Numa comparação entre a trajetória do mestiço e formação de uma estratificada camada intermediária, entre Rio e Luanda, teríamos resultantes diferentes. Para Luanda a inserção dos mulatos no meio urbano significou que eles foram de certa maneira absorvidos e integrados nos postos burocráticos, militares e nas funções de pequenos comerciantes. Mesmo assim Sousa Coutinho deplorava o fato de que em muitos casos os mestiços, já integrados aos valores europeus, quando da morte do pai acompanhava a mãe e se embrenhava no mato impregnando-se do mundo africano (22). Quanto às comparações entre o caso do mulato no Rio e Luanda, poderíamos dar voz a Silva Corrêa que nos informa de como nesta cidade eram tidos os mestiços, pardos, que por ser um país de ‘imensos negros, não ofuscam o brilhantismo das funções públicas’. Quer seja pela ausência de uma mão-de-obra qualificada, fato tantas vezes apontado por Sousa Coutinho, ou pela ocasional oferta de mestiços naquela altura. Em Luanda os pardos ‘atravessavam as ‘Salas dos Dosséis’, bastando para isso suas funções militares, enquanto no Rio de Janeiro, Lavradio permitia aos pardos com cargos militares somente “chegarem à porta da Sala do Dossel e dali fazerem um por um o seu cumprimento” (Silva Correa, p. 84, 1937).
Na administração portuguesa em Luanda são os mestiços que ascendem socialmente pelos cargos públicos, como no já citado exemplo de Corrêa. Um documento do final do século (23) faz uma listagem detalhada dos ofícios civis (justiça, fazenda, economia pública e política), de seus ocupantes, salário, cor e caráter do cargo. Sobre as 36 profissões listadas referentes à cidade de Luanda, o documento fornece os seguintes dados: 12 pardos, 10 brancos e o restante sem discriminar a cor, demonstrando a influência dos mestiços nos serviços públicos e também nos pequenos negócios. Na virada do século XVIII para o XIX, Luanda segue sendo uma cidade de mestiços. O pequeno comércio e boa parte dos cargos inferiores e intermediários da administração estavam nas mãos de mestiços. Na segunda metade do século XIX florescia um estrato médio de mestiços e negros ligado por laços de parentesco a pequenos e médios proprietários situados no comércio de Luanda. Nas últimas décadas do século XIX, Luanda passa por uma fase dinamizadora da sua vida cultural expressa pelo surgimento de vários jornais e movimento literário que se estende até as três décadas do nosso século, quando foi quebrado esse renascimento cultural. A política colonialista aplicada, a partir de então, impulsiona a criação de núcleos brancos chegando ao equilíbrio numérico de mulheres e homens brancos (24). Retoma-se ao fenômeno que Cadornega chamara a atenção no século XVII: - “Aqui onde o filho é fuso e quase negro o neto, e todo negro o bisneto, é tudo escuro” (Cadornega, 1972, III, p. 384). No Rio de Janeiro o processo da constituição do mestiço e de uma estratificada camada intermediária foi profundamente peculiar ao caso da origem dos luso-brasileiros, na interação entre os da terra, reinóis, índios aldeados, negros escravos e forros. A proximidade da cidade do Rio com a região das Minas, que funcionou ao longo do século como polo de atração pela ‘miragem do ouro’, trouxe à região alto índice de imigrantes da metrópole. A intensificação da vida urbana na região propiciou a configuração de uma cidade negra e mestiça no século XIX. Na virada do século XVIII para o XIX, preocupava-se a administração com a população negra e mestiça da cidade. Um documento do Ouvidor- Geral do Crime do Rio de Janeiro (1795) apresenta uma relação de 238 presos que deveriam
ser condenados à morte. Deste total os pardos escravos e forros constituíam 61%, sendo os restantes de índios, negros e brancos (25). No caso angolano as situações são específicas nos seus contextos. Para os mestiços, fora dos centros como Luanda, os efeitos da ‘miscelânea’ foram diferenciados segundo o contexto das relações entre portugueses e negros. Para além dos espaços urbanos esses estratos eram integrados pela sociedade negro-africana, como no exemplo dos sertanejos em Angola, cafrealizados. Já nos centros urbanos a miscelânea impunha o modelo de ‘civilizados’, ou, como no caso das mulheres de altos estratos da sociedade luandense, cafrealizam-se, mesmo alocadas no coração da configuração espacial e social dos brancos. Nas regiões onde dominava o ‘paganismo’, os brancos pobres e os mulatos ‘cafrealizavam-se’; porém, onde se impunha a ‘miscelânea’, esses grupos ‘civilizavam-se’. Das similitudes recorrentes às duas respectivas admirações pode-se inferir que a desconfiança por algum grupo local era a norma. No caso do Rio de Janeiro o Marques do Lavradio sentia-se profundamente desconfiado da lisura dos negociantes locais dizendo mesmo não tratar-se de ‘verdadeiros negociantes’ e dispensando qualquer ascendente de taberneiros; em Luanda o confronto se deu entre governados e o poder dos luso-africanos. Às voltas com os luso-africanos, em Luanda, Sousa Coutinho contornou o conflito de imediato ao relegar para aqueles o papel secundário no comércio, deixando livres os privilégios para os comerciantes da metrópole, cumprindo magistralmente as diretrizes pombalinas. As duas percepções direcionavam-se a ignorar, desalojar e sempre que possível manter sob controle ‘essas gentes’. Os papéis privilegiados, como ‘homens bons’, ou ‘homens de bem’ suplantavam em parte a condição de africano, mestiço, ou de cafre, pela fluidez do contexto político-histórico da região e não por conta das chamadas administrações ‘ilustradas’. No final do período outros refluxos vão direcionar o ‘vício’ do comércio para outras praças, mais atraentes em termos de capitais. Em Luanda as derradeiras crises levaram o comércio precário de então à ruína. Muitas fortunas vão buscar direções como Rio de Janeiro.
Os africanos, encobertos por várias nomenclaturas, como ‘cafres’, ‘naturais da terra’, ‘nacionais’, fuscos, mulatos civilizados, gentios, pardos, mulato cativo, negro casco, despontam nos textos como se um amplo manto encobrisse essa realidade, e na tentativa de desvendá-la as categorias como ‘cafres’ aparecem muitas vezes difusas sem aparente sentido, guardando um único significado, de ser o Outro. Ou então, como afirma Sousa Coutinho (códice 2139, Angola, AHU), em suas memórias sobre a fábrica de ferro, era necessário “enraizar aquela arte nos naturais do país e nos negros”, usando a expressão aqui com sentido diferenciador, numa referência direta de que os naturais da terra são os brancos nascidos na África, e os negros, bem, os negros são os outros.
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(1) Designação usada por Mário Antônio, em Reler África (1990), pelo fato de Silva Corrêa ter nascido no Brasil, Rio de Janeiro, de pais portugueses e ter vivido em Angola e Lisboa. (2) Ao descrever Luanda o autor constrói seu texto pontuando-o com a comparação entre Rio e Luanda nos seus costumes, no cotidiano das duas cidades no final do século.
(3) “O Encontro nas Terras de Além-Mar: os Espaços Urbanos do Rio de Janeiro, Luanda e Ilha de Moçambique na Era da Ilustração”. USP, 1994. (4) Por exemplo, falsificavam a aguardente, acrescentando água salgada, pimenta e outras coisas para que as pipas de geribitas rendessem mais (Silva Corrêa, 1937, pp. 40-42). (5) Como, por exemplo, defini-la como cidade ‘estrativista’ e exportadora com sua visão de ocupação predominantemente militar, civil e religiosa para o setecentos (Nelson Gonçalves de Lima Junior, “Leitura EspaçoSocial da Cidade de Luanda através de Mapas e Planos Urbanísticos do Século XVI ao XX”. USP, FFLCH, 1995, dissertação de mestrado). (6) Em carta de 1769, Sousa Coutinho lamenta o insucesso dos mestres oficiais fundidores que mandou vir de Portugal para sua fábrica. A perda de seus oficiais aqui era por conta da ‘malignidade do clima’ que ‘enlouquece os homens’. (7) “Na monção de 68 facilitou um morador por erro a felicidade de virem de Goa para esta terra alguns homens fabricantes de azeite, e os que trabalham na extração de licores de palmeiras, mas como desses mesmos oficiais já aqui tinham vindo parar alguns que nos meus antecedentes tempos logo se fizeram fidalgos no desprezo geral dos seus próprios ofícios, os quais logo fiz assinarem termo nesta Câmara, com combinação de penas rigorosas para nunca exercitarem mais que os seus legítimos ministérios” (Instruções que Baltazar Manuel Pereira do Lago deixou ao seu sucessor. 1766, códice Moç. AHU). (8) Como bem ilustra o caso do Coronel Custódio S. Silva, morador em Luanda há 52 anos, solteiro, proprietário de bens, sem herdeiros legítimos e os seus filhos bastardos não podiam herdar diretamente seus bens. O coronel estabelece um morgadio administrado por um dos seus filhos (doc. 12, cx. 51, Ang. AHU). (9) Para século XVIII, o estudo de Laima Mesgraveis sobre os estamentos da sociedade do Brasil-Colônia caracteriza o poder local, nas Câmaras municipais alojado na supremacia dos ‘homens bons’ categoria social tanto na metrópole como na colônia. Seriam, eles, os homens mais ricos,
os mais notáveis e respeitados de cada povoado. Na colônia exigia-se para os candidatos ao reconhecimento e classificação como ‘homens bons’: a prova de que não possuíam sangue de ‘cristão-novo’, negro ou mulatos. Eram excluídos , também, os casados com os negros ou mulatos (Mesgraveis,1983, p. 800). (10) Ao que Lavradio chamou de ‘homens distintos’, pensamos tratar-se dos homens bons’, que escolhiam os eleitores e esses elegiam os vereadores, juízes, procuradores, escrivães, almotacéis e demais cargos da Câmara. Deviam reunir-se e fazer a lista dos que entrariam para o rol dos ‘homens bons’ e excluía outros. A tendência na colônia foi de desencorajar a participação dos comerciantes no rol dos ‘homens bons’ (Mesgraveis, 1983, p. 801). (11) Cumpre aqui assinalar que além das diferenças entre os grupos urbanos no Rio de Janeiro, do final do século, os comerciantes constituíam um segmento com várias nuanças; a princípio seriam: os pequenos mercadores das vendas (velas, fumos, cordas, aguardentes, etc.); donos de lojas de secos e molhados (artigos importados); negociantes de grosso trato (comissários das casas portuguesas); caixeiros (início da carreira de comerciantes); mascates (economizavam sem tréguas, emprestavam a juros até enriquecerem). No processo de ascensão social era importante tornar-se um comerciante de “grosso trato” deixando de servir os fregueses no balcão (Mesgraveis, 1983, p. 805; Saint- Hilaire, 1974, p. 113; Luccock, 1975, p. 73). (12) No período pombalino a Junta de Comércio exigia provas de conhecimentos de contabilidade e uma renda mínima para ocupar cargos como o de vereador. (13) Na correspondência com Pombal o Conde da Cunha, primeiro ViceRei no Rio de Janeiro, 1767, lamentava-se da falta de homens para as tropas, “os cariocas são moles e faltosos” e os filhos das famílias mais abastadas e brancas eram cooptados para a carreira clerical (Correspondência do Conde da Cunha, RIHGB, vol. 245, 1962, p. 241). (14) “Nos sertões de Angola apelidam brancos aqueles negros cujo hábito e distinção os põem ao alcance de andar calçados”. Silva Corrêa, 1937, p.
120. (15) A opinião do governador era de que se eles (os mestres dos ofícios) soubessem vencer as primeiras doenças e dificuldades, sobreviveriam, mas “estes homens deveriam morrer e não poderiam durar neste clima, a pobreza nas suas terras ...(de origem) a riqueza a que passaram por força dos jornais extraordinários, os enlouqueceram... de forma que a rudeza da sua índole e a propensão à voluptuosidade eram absolutamente incompatíveis com a malignidade do clima...” (Doc.18, cx. 53, AHU, Ang.). (16) Esses libertinos ainda não são aqueles que aderem às crenças africanas e rejeitam a religião católica praticando a poligamia, os cafrealizados. Contra esses males dentro de Luanda o Governador Sousa Coutinho em vão estabeleceu bandos punindo esses atos no perímetro urbano (doc. 1, cx. 53, AHU, Angola, 1769). (17) “O clima acaba de fazer roubos tiranos em homens, e as viúvas são muitas e ricas não acham quem lhes governe seus bens” (doc. 20, cx. 54, AHU, 1770). (18) O tipo ideal do sexo feminino corresponde ao padrão predominante na sociedade portuguesa da época e européia por extensão, expresso no esquema religioso-doméstico, por excelência. (T. Bernardino. Sociedade e Atitudes Mentais em Portugal — 1777-1810. Imprensa Nacional, 1985; M. A. Lopes. Mulheres, Espaço e Sociabilidade. Horizonte, 1989; I. A. Magalhães. O Tempo das Mulheres. Imprensa Nacional, 1987.) (19) O envio de órfãs para casarem com brancos por várias vezes não resultou em casamentos entre os brancos; os tutores roubavam os bens impedindo os casamentos, situação que Sousa Coutinho chamou de ‘abismo de trapaça’. (20) Quanto à controvérsia da questão do impacto do tráfico de escravos na população de Luanda, ver textos de José Curto e Raymond Gervais; P. Manning; J. Thornton, e J. Miller.
(21) Seria o caso da importância das estratégias africanas, que cedem as suas mulheres para disporem de agentes intermediárias. Como no período dos primeiros contatos como sugere Isabel Castro Henriques, “As Outras Africanas; As Reais e As Inventadas”, Oceanos, n° 21, jan/mar, Lisboa, 1995. (22) “Extrema falta de gente não há soldados capazes para defesa e para os quadros ordinários tem sido necessário introduzir alguns pequenos mulatinhos de nenhum uso” (doc. 26, cx. 54, AHU, 1770). (23) A listagem é sobre Angola em geral e retiramos somente dados sobre a cidade de Luanda. "Angola no Final do Século XVIII”. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n° 5, 1886. (24) Para o início do século XIX a proporção entre mulheres e homens brancos era de 1/10 chegando em 1930 com a proporção de 1/1. Entre 1925 a 1940 os dados da população são de 6.000 brancos; 5.500 mestiços; 39.000 negros. (Mourão, F. 1978, p. 24.) (25) Doc. 65, cx. 160, AHU, RJ. Apud Corcino Medeiros dos Santos. “A Violência na Sociedade Colonial: O Crime no Rio de Janeiro, no Final do Século XVIII”, Revista da SBPH, n° 3, SP, 1986/7, pp. 87-95.
IV. Benguela e o Brasil no Final do Século XVIII: Relações Comerciais e Políticas Rosa da Cruz e Silva
I. Introdução Para este capítulo do livro propus o tratamento do itinerário BenguelaBrasil, que de uma forma muito regular se repetiu anualmente no período compreendido entre 1762 e 1795. Pretende-se a partir de um quadro que integra o conjunto das nossas fontes, e produzido pelas entidades do então governo de Benguela, com alguma exatidão encontrar as razões que explicam o ritmo que conheceu o movimento marítimo nele registrado, que conduziu de Benguela em direção aos portos brasileiros, milhares e milhares de homens, feitos embarcar para um novo mundo, para responder em primeira instância às solicitações de uma economia para a qual a mãode-obra barata resgatada em África constituía a pedra basilar para o seu desenvolvimento. Tentaremos a reconstituição do percurso no interior do continente de onde são originários os homens que depois de uma série de vicissitudes alcançam o porto de Benguela, onde os aguardam os navios que os embarcarão para as Américas. O tema que se restringe ao período que decorre entre o terceiro quartel do século XVIII e o final do mesmo pode , ser recriado a sul do vasto Oceano
Atlântico, mas, quer desta como da outra margem, ele transpõe os limites dos mares e encerra-se nas profundezas possíveis dos continentes. Aí as histórias completam-se e as culturas interpenetram-se. Porque acreditamos que esta abordagem só se tornará profícua caso se adote o método da complementariedade das fontes, para o que os interessados pesquisadores deverão contar com o apoio necessário para retomar hoje o trajeto total, de uma a outra margem sem esquecer naturalmente os continentes, os sertões, da partida e os da chegada. Aí, sim, talvez se recupere o mais possível da história comum aqui tão brevemente explanada num itinerário de sentido único. Temos consciência das lacunas do texto que hoje lhes apresentamos, pela ausência involuntária das fontes da outra margem. A informação que se guarda seguramente nos arquivos brasileiros permitiria uma visão mais global do fenômeno em estudo. A cumprir-se tal desiderato, a explorar-se como convém os materiais em questão, reconstituiríamos ao certo os novos cotidianos dos escravos desembarcados nos diferentes portos do Brasil, para este caso, seguindo-se o roteiro dos povos vindos do sertão de Benguela para com eles também percorrermos as vastas plantações de açúcar, do tabaco, ou os subterrâneos das minas de ouro. Esta situação decorre exclusivamente das dificuldades (materiais e financeiras) que se colocam a qualquer pesquisador que opte por esta metodologia. Para suprir esta lacuna impõe-se uma maior concertação dos meios indispensáveis para uma abordagem complementar, a partir das fontes de uma e outra margem. A partir das fontes dos missionários que acompanharam Paulo Dias de Novais à corte do NGola, ficamos em posse de informações que com alguma precisão se referem a estrutura das sociedades africanas précoloniais, com as quais os conquistadores se puseram em contato na sequência dos vários regimentos que trouxeram a estas terras, capitães e posteriormente governadores, depois da ocupação gradual dos domínios africanos. Os relatos do Padre Jesuíta Antônio Mendes são um exemplo clarividente de como se pode reconstituir o passado, ainda que as informações prestadas, porque preciosas pelo seu conteúdo, venham dispersas,
lacunares ao longo das suas cartas. Foi justamente no interior do seu texto que o Irmão Mendes deixou escapar a notícia sobre a existência de outras entidades políticas para além do Kwanza, das quais se moviam frequentemente contra o rei do Ndongo investidas militares. “(...) porque tiene muchos otros Reys a el comarcanos que continuamente le haze guerra, como son él Rey de Quitango, él rey de Banguela y outros muchos Senores grandes le haze guerra, (...)” (1). É o caso do Rei de Benguela, sobre o qual Beatrix Heintze produziu um texto intitulado “Quem era o ‘rei’ de Benguela?” para tentar deslindar as dúvidas que se levantam sobre a eventual relação entre o dito “rei” de que se não conhecem os limites da sua soberania, e a localidade de Benguela, a Velha, assim nomeada a partir de 1578, e a cidade de S. Filipe de Benguela fundada em 1617, com o Capitão Cerveira Pereira que dirige a ocupação das terras litorâneas ao sul do Kwanza. Pelas observações pertinentes que Heintze introduz neste debate fica claro que o termo que iria dar o nome, à cidade de Benguela, estranho à primeira vista, pois nada o associa às línguas bantu em Angola. Longe de ser uma invenção das autoridades coloniais, é algo que se aproxima de uma realidade da sociedade pré-colonial que a existir a data do documento do Padre Antônio Mendes, pouco mais se soube a seu respeito e do que se teria passado para que não ficassem mais vestígios da sua organização, da sua estrutura. Benguela que vamos tratar ao longo do texto para avaliar a incidência das relações comerciais e políticas que manteve com o Brasil enquanto unidade política sob a tutela dos governadores que se foram alternando no decorrer dessa vigência colonial. O poder das armas portuguesas foi-se assenhorando gradualmente dos domínios africanos para além da cidade erguida no litoral, já no planalto de Benguela de onde vinham os escravos que embarcavam para as Américas, para o que se fez reforçar militarmente com a construção dos presídios no sertão, onde, através da força sobretudo, se submetiam os sobas dos diferentes domínios do interior. Tal prática era tão-só o continuar de uma política que se vinha protagonizando desde os primórdios da conquista. Desta feita, propunham-se tão-só encontrar um mercado mais vasto, porque a principal divisa dos governadores para além de se constituir na preocupação da implantação gradual da estruturas governativas, adaptadas ao sistema econômico vigente, tal não se compreendia sem o reforço da atividade comercial que tinha no escravo a
principal mercadoria feita exportar para as Américas. Daí que durante muito tempo o pequeno corpo administrativo colonial que se instalara em Benguela cumpria as funções de uma Feitoria, gozando de alguma autonomia relativamente ao poder central sediado em Luanda. No decorrer do século XVII, o poder militar português iniciava a sua exploração para zonas bem afastadas da cidade, tendo logrado no ano de 1682 a construção do presídio de Caconda, que abriu os caminhos do sertão, já que a feitoria de Benguela chamada sempre e cada vez mais a desempenhar o papel quase que exclusivo de angariadora de escravos respondia de qualquer forma à demanda do mercado do tráfico dirigido para o Brasil. A disputa dos mares navegados e das respectivas terras conhecidas pelas principais potências européias, movimento iniciado a partir das primeiras décadas de quatrocentos pelos países ibéricos, levou a que estas, ao longo dos tempos, se dessem ao luxo de concorrer entre si, para o controle dos ditos domínios territoriais em África onde buscavam desenfreadamente riqueza, a possibilidade de exploração dos recursos existentes e no caso de África o aproveitamento de mão-de-obra barata. A partir de 1640, o adversário holandês fortemente municiado toma de assalto as praças portuguesas de Luanda e Benguela, deixando os portugueses exilados no interior na região de Massangano, entregues à sua própria sorte. As tentativas de recuperação das praças perdidas, oito anos volvidos após o desaire militar, contam com o socorro proveniente do Brasil, que tendo à frente das tropas, Salvador Correia de Sá, em 1648, põe fim ao domínio holandês em Angola. Não se estranha portanto que as relações Benguela e Brasil conheçam daí para a frente uma outra dinâmica. Tal movimento trouxe inclusivamente ao sertão de Benguela alguns comerciantes brasileiros. É o caso do inconfidente mineiro Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes (2). Em consequência das necessidades de mão-de-obra escrava que se podia obter do interior do sertão, das terras que paulatinamente iam sendo integradas no espaço da conquista, a atuação governativa portuguesa procurou sempre pautar a sua intervenção, no que diz respeito às relações
com as autoridades africanas, pela manutenção de uma política que garantisse em paz o desenvolvimento da política comercial em voga. Este período é ainda caracterizado em Benguela como de luta pela observância de uma política pacífica nas relações que se deveriam manter com as autoridades locais africanas de quem dependia também o sucesso ou não das operações de resgate, sob pena de verem comprometidos os objetivos que se animavam ainda por esta altura com o negócio do tráfico, apesar de circularem outras mercadorias como o marfim e a cera. A generalização dos contratos de vassalagem, prática que vigorava desde o início da conquista, para manter sob tutela as chefias locais, nem sempre foi bem-sucedida. Beatrix Heintze, no seu trabalho “O Contrato de Vassalagem Afro-Português em Angola, no Século XVII”, refere que “as relações de dependência entre os estados foram criadas pelos portugueses, sempre que estes não apareciam apenas como mercadores pacíficos, mas sim como conquistadores e ocupantes de territórios habitados e organizados em estados, onde lhes negavam alianças de amizade, e onde os portugueses insistiam na criação de pontos fortificados no controle das terras ou das vias comerciais” (3). Para garantir o movimento comercial, não restava outra alternativa que não fosse a adoção das duas variantes “vassalos voluntários” e “vassalos conquistados” (4). A urgência na tomada de atitudes e outras normas reguladoras na prática administrativa, ao intervirem as autoridades ao nível do poder central na capitania de Benguela, para enfrentar a realidade dura vivida no interior, sobretudo nas localidades onde a sua influência não era totalmente garantida, não por falta de iniciativa dos chefes dos presídios ou até dos governadores, mas antes de mais, devido às insuficiências de meios, postos à sua disposição para lograr a conquista do território, redunda que, a despeito dos interesses comerciais que animavam os ditos sobas a concorrer com as suas mercadorias nas feiras, estes batem-se a todo o custo para impedir a perda do poder nos seus domínios. Para o período que decorre ao longo do século XVIII, julgamos que os esforços empreendidos pela governação de Benguela, neste caso, a partir dos seus representantes já fixados no interior, designadamente em Caconda, Quilengues e posteriormente em Novo Redondo, onde os
respectivos capitães-mores ou regentes são confrontados com ações punitivas protagonizadas pelos chefes africanos. Os exemplos que trazemos de Caconda e Quilengues são, quanto a nós, bastante elucidativos para perceber como se teria chegado aos níveis estatísticos dos navios acostados no porto de Benguela e dos escravos transportados. Julgamos que existe uma relação direta entre essa atuação governativa oficial portuguesa. Nos últimos anos da década de 90 o governador em funções Adriano Botelho de Vasconcelos tinha como principal divisa do seu governo o reforço do poder administrativo e consequente intervenção militar para tornar extensivo o seu poder para áreas mais afastadas do núcleo colonial de Benguela (5). As propostas para uma intervenção militar, com a criação de duas Companhias com o título de “Ordenanças Aventureiras das Províncias do Huambo, Quilengues e Bailundo, são a demonstração clara do móbil das autoridades portuguesas nesta região (6).
2. Uma Interpretação do Mapa de Escravos Exportados da Capitania de Benguela para o Brasil 1762-1795 (7). Através do mapa descritivo do movimento marítimo Benguela—Brasil (Ver Anexo) para assinalar os dados estatísticos dos navios acostados e os números de escravos exportados, podemos aferir que, no decorrer dos trinta e dois anos, há uma saída regular por navio de um número também regular, mínimo, que se situa entre 300 a 450 escravos por embarcação. Para os períodos de menor afluência de escravaria ao litoral, eram só enviados os números possíveis, neste caso nunca inferiores a 200 por navio. Não se pode dizer que no decorrer deste período tenha havido qualquer espécie de discrepância. Tais termos de referência são igualmente válidos para uma leitura cuidada dos escravos transportados. Se avaliarmos a média de escravos que cada barco transporta desde os primeiros anos até
1795, podemos aferir que tais níveis correspondem às características específicas das embarcações. Caso estas não violassem as regras estabelecidas, podemos dizer que tais embarcações poderiam albergar a cifra de 400 escravos por média e nunca ultrapassar os 450 como se pode igualmente verificar a partir do quadro. Constatamos que no decorrer do tráfego no período em referência há uma ligeira subida de cerca de 1.000 escravos, por ano. Em 1765 acostaram no porto de Benguela 18 navios que transportaram 6 mil escravos; em 1784, 20 navios transportaram 7 mil escravos. É de salientar que os últimos anos da década de 90 assiste-se também a uma subida dos números dos navios acostados, o que corresponde igualmente a uma subida do número de escravos transportados. Porém esta subida é notoriamente mais visível porque pela primeira vez no mapa, durante um período de quatro anos consecutivos, 1792-1795, atingem-se os números recorde de navios acostados (21; 24; 22; 23) bem como de mercadoria transportada (8.000; 11.000; 9.000; 10.000) — escravos. Julgamos que tal registro não pode ser de forma alguma dissociado do caráter das relações até então estabelecidas entre o governo de Benguela e as autoridades africanas, de quem dependia naturalmente o bom sucesso das operações de resgate, caso estas tivessem que ter lugar não só nas áreas sob a influência portuguesa, como nas áreas do poder dos sobas soberanos. Se por um lado estes últimos níveis informam que existiu uma demanda externa maior dos contratadores, por outro não deixam de revelar que tais números não podem ser conseguidos somente nas áreas de jurisdição dos presídios. Os espaços que integram a soberania das chefias locais foram naturalmente submetidos a pressões militares e outras, para responder às solicitações do mercado cada vez mais acrescidas. A verificar-se esta última vertente é mais do que certo, e registrando-se tais cifras, que o poder dos sobas se viu seguramente mais diminuído. O exemplo acabado desta situação é descrita no ano de 1796 por ocasião dos conflitos que opuseram o capitão-mor de Quilengues, Vieira de Andrade, e o soba de Socoval (8). Atente-se aos problemas que afligiam em Caconda, precisamente em 1795-96, onde os sobas de Caconda, Socoval e Cacombo tiveram que fazer recurso aos mecanismos da justiça para fazer valer os direitos que lhe conferiam os ditos “contratos de vassalagem”. Sabemos
também que o capitão-mor, Vieira de Andrade, extravasou as suas competências provocando a maior desordem nos domínios do soba do Socoval. Parece-nos que a prática governativa, mais marcada neste caso com a atitude dos capitães-mores ou chefes dos presídios que na maioria das vezes não cumpriam com as regras de conduta previamente estabelecidas, não se compadecia com a política comercial sempre exigente nos seus números de navios ou de escravos. Por esse fato e visando impedir que os caminhos do comércio do sertão fechassem, o capitão-mor de Quilengues, Vieira de Andrade, é demitido e preso na sequência dos desmandos por ele praticados junto das populações nos domínios do Socoval e de Cacombo (9). Ralph Delgado dizia a propósito do soba do Socoval que este “(...) constituiu sempre um quebra-cabeça para a governação desta província, já por ser refratário à vassalagem, já porque se não amoldava a espoliações praticadas, de quando em quando, pela respectiva autoridade”. O soba do Socoval, pelo que se pode aferir da documentação que se refere às reclamações por este levadas às autoridades em Benguela, é o exemplo acabado do vassalo voluntário que mais tarde se tornará, talvez, no vassalo conquistado, pois esta era a única forma de ver garantida a permanência dos sertanejos no sertão, de onde chegavam os escravos tão necessários ao desenvolvimento da economia brasileira. Esta prática violenta de represálias às chefias locais como resultado da negação ao estabelecimento de relações de amizade com as autoridades portuguesas, apesar de não ser recomendada nos regimentos enviados aos governadores, toma-se a alternativa dos capitães-mores ou mesmo dos governadores para atingir o objetivo maior: a escravaria necessária para preencher os porões dos navios negreiros. Os números totais dos navios acostados e os escravos transportados no período em referência indicam que 599 (quinhentos e noventa e nove) navios fizeram transportar uma cifra de 209.253 (duzentos e nove mil duzentos e cinquenta e três) escravos. No que se refere aos direitos que a fazenda Real cobrava por cada escravo embarcado e às respectivas crias, sendo que estas pagavam somente a metade dos direitos, para este caso, fica igualmente claro que a fazenda
arrecadava rendimento bastante, cuja proveniência era o comércio do tráfico. Um milhão oitocentos e vinte e dois mil trezentos e sessenta e dois réis (1.822.362$00) somavam as receitas da Capitania de Benguela num período de 32 anos.
3. Conclusão A relação estreita que se foi mantendo entre o Brasil, carente de mão-deobra para as suas plantações de cana sacarina, de tabaco ou para as minas de ouro, e Benguela transformada na principal fonte fornecedora de escravos, vem justificada no documento-base, a partir do qual construímos o nosso texto. As necessidades exteriores por que foram sendo ao longo das três décadas em estudo fortemente acrescidas explicam por si a prática governativa, que tinha como uma das prioridades da sua intervenção o fortalecimento das estruturas administrativas e militares, visando à extensão das redes comerciais que garantiam o curso normal do negócio do tráfico. Assim se compreendem igualmente os esforços empreendidos principalmente no final da década de 90, por Adriano Botelho de Vasconcelos, cujo governo produziu o mapa que vimos interpretando ao longo do texto. A desintegração das sociedades africanas, na sequência das guerras injustas que lhes foram movidas no período em análise, como o exemplo que nos ficou demonstrado pelos sobas do interior, Socoval e Cacombo entre outros, foi um dos aspectos que não escapou a nossa atenção. Se até aí o poder das chefias locais se foi mantendo de alguma forma intata, à medida que se reforçam militarmente os presídios, toma-se cada vez mais difícil preservar a soberania dos domínios africanos. Embora no final do século XVIII o governo de Benguela sentisse a necessidade de reforçar a sua capacidade militar, tendo inclusivamente tomado algumas iniciativas para estender a sua influência ao planalto central, a concretização deste projeto levaria ainda algum tempo. Isto é, o século XVIII não fecha este ciclo. O tráfico de escravos prosseguirá no século seguinte.
A supremacia brasileira aqui retratada no movimento marítimo de 32 anos que ligou o Brasil a Benguela é, antes de tudo, a única razão da política colonial portuguesa, até aí ainda voltada quase que exclusivamente para uma economia baseada no tráfico negreiro.
Bibliografia A. C. de C. M. Saundus, História Social dos Escravos Libertos em Portugal (1441-1555). Título original A Society History of Lack Slaves and Freedmen in Portugal (1441-1555), 1994. BRÁSIO, Antônio, Monumenta Missionária Africana, 9 vols. Lisboa, Agência Geral do Ultramar. 1952-1960. CASTELBRANCO, Francisco, História de Angola desde o Descobrimento até à Implantação da República, (1482-1910), Luanda, 1932. CADORNEGA, Antônio. História Geral das Guerras Angolanas, 3 vols., Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1942. CORRÊA, Elias Alexandre. História de Angola, Lisboa, 1937. CORDEIRO, Luciano. Explorações e conquistas dos Portugueses 15741620. Lisboa, Imprensa Nacional, 1881. CARLOS COUTO. Os Capitães-Mores em Angola, Luanda, Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972. DELGADO, Ralph, Ao Sul do Cuanza, Lisboa, 1944. Idem. O Reino de Benguela (Do Descobrimento à Criação do Governo Subalterno), Lisboa, 1944. Idem. História de Angola (Terceiro período, 1648 a 1836), vol. IV, Lobito, 1955.
Idem, A Famosa e Histórica Benguela — Catálogo dos Governadores. DIAS, Gastão. Os Portugueses em Angola, Lisboa, Agência do Ultramar, 1959. FELNER, Albuquerque. Angola — Apontamentos sobre a Colonização dos Planaltos e Litoral do Sul de Angola. Coimbra, Imprensa Universitária, 1940. HEINTZE, Beatrix. “O Contrato de Vassalagem Afro-Português em Angola no Século XVII”, in Paideuma 25, 1979, Tradução do alemão por L. Pfluzer. LOPES, Lima. Ensaio sobre as Estatísticas e suas Dependências na Costa Occidental d’África ao Sul do Equador. Lisboa, Imprensa Nacional, 1846. LOPES, A Escravatura. Subsídios para a sua História. Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1944. MARTINS, Oliveira. O Brasil e as Colônias Portuguesas, Lisboa, Guimarães, 1953. REGO, A. da Silva. A Dupla Restauração de Angola (1641-1648). Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1948. Idem. O Ultramar Português no Século XVIII. Lisboa, Agência Geral do Ultramar. POMBO, Ruela. Angola-Antiga (1630-1635). Lisboa, 1935.
(1) BRÁSIO, Antônio, Monumenta Missionária Africana, Vol. III, p. 509. (2) RALPH, Delgado, A Famosa e Histórica Benguela, p. 21. (3) HEINTZE, Beatrix, “O Contrato de Vassalagem Afro-Português em Angola, no Século XVII”, Paideuma 25, 1979. (Traduzido por L. Pfugler,
texto datilografado.) (4) Op. cit., 1979, p. 4. (5) Op. cit., 1940, pp. 25-38. Ralph Delgado, com o seu Catálogo dos Governadores de Benguela, faz uma demonstração interessante da atuação do Governador Adriano Botelho de Vasconcelos, em que se torna evidente a vontade de fazer crescer as fronteiras territoriais do governo de Benguela. (6) Idem, 1940, p. 27. (7) AHN Códice n° 440 — Mapa dos Escravos Exportados desta Capitania de Benguela para o Brasil, fl. 15. (8) FONTES & ESTUDOS n° 2, novembro 1995, p. 54. (9) Idem, p. 54.
ANEXO I
Mapa dos escravos exportados desta capitania de Benguela para o Brasil, desde o ano de 1762 até 1795. Com os direitos de cada um são 8$700 réis, e subsídios 300 réis, mas as crias de pé pagam metade
Fonte: Códice 440, Arquivo Histórico Nacional — Angola, folha 15.
Desde 1° de janeiro até 27 de julho do corrente ano de 1796, têm saído de Benguela para o Brasil 12 navios com 4.981 escravos e crias de pé, de que os seus direitos importam 42:369$500 réis e os subsídios 1:495$500 réis. Além dos referidos, vão todos os anos muitos escravos para Angola sem que nesta paguem os direitos. A cidade de Benguela é antiga e feita pouco depois de Angola, segundo se diz, e governada por capitães-mores até novembro de 1779, em que tomou posse o primeiro governador Antônio José Pimentel Castro e Mesquita, e desde seus princípios saíram navios com escravos para a América que iam despachar Angola, porém nos fins do ano de 1761 vem daquela capital um livro e um para no dito porto de Benguela se despacharem os escravos, o que teve princípio no ano de acima se vê. Governador Alexandre José Botelho de Vasconcelos
V. Brasil e Angola no Tráfico Ilegal de Escravos, 1830-1860 (*) Roquinaldo do Amaral
I. Repressão e Dispersão do Tráfico Ilegal de Escravos em Angola O tráfico de escravos pelo Atlântico Sul passou por grandes transformações entre 1830 e 1860. Essas transformações aconteceram nas duas regiões que dele mais participaram desde o século XVIII: Brasil e Angola. Só entre 1831 e 1855, entraram no Brasil cerca de 718.000 escravos. O número mostra o quanto o tráfico ilegal foi importante se comparado com o período total de tráfico atlântico para o Brasil. Quase 20% dos escravos trazidos para o Brasil em 300 anos de tráfico atlântico chegaram nesses pouco mais de 20 anos entre 1831 e 1855 (1). É plausível que cerca de 60% dos escravos trazidos durante o tráfico ilegal tenham vindo do Congo-Angola. Eram brasileiras 59% das embarcações com identificação que foram apresadas nas águas da costa de Angola entre 1845 e 1850. Tais números não são surpreendentes, se observarmos o tráfico de escravos no século XVIII. Apenas entre 1701 e 1810, 68% dos escravos trazidos para cá foram embarcados em Angola. E quando se observam as origens dos escravos africanos entre 1833 e 1849, constata-se que 68,3% deles vieram do Congo-Angola. Por esta razão, quando o tráfico se tomou ilegal aqui no Brasil, a partir de 1830, os efeitos da ilegalidade logo se fizeram sentir também do lado africano do oceano (2).
Desde que se anunciou que seria proibida a entrada de escravos no Brasil, criou-se uma crescente inquietação. Os números cada vez maiores na entrada de escravos no Brasil a partir de 1826 dão indícios do quanto os plantadores brasileiros temiam o fim do tráfico de escravos. E também em Angola temia-se o que poderia advir com o fim dos embarques de escravos para as Américas. Em Benguela, ao lado de Luanda o mais importante porto angolano no tráfico, as autoridades militares chegaram a pedir, em 1827, que não fosse divulgado abertamente que o tráfico acabaria em apenas 3 anos. Dizia-se que tal notícia poderia provocar um “levante geral e seriam assassinados todos os feirantes” (3). Tinha-se de fato a noção de que o tráfico de escravos acabaria em 1830. Aqui no Brasil, cartas pessoais da época revelam isto com exatidão, mostrando a que ponto chegou o medo dos proprietários de terra brasileiros. Muitos deles se endividaram comprando escravos, não conseguiram saldar os débitos com os traficantes e viviam com a mesma “feição”:
O Simão está na sua fazenda e eu tenho receio que não (sic) vão lhe tirar 24 escravos que o ano passado comprou fiado, e que este ano não tem com que pagar. O receio dos proprietários de terra com a abolição da escravatura (sic) pôs a todos empenhados com os vendedores de escravos, e Simão foi um destes. Ele vive sempre com a mesma feição (4).
Quanto mais se aproximava o ano de 1830, mais o declarado fim do tráfico de escravos produzia reações. Faltando apenas 70 dias para que a proibição vigorasse, as chefias tradicionais dos sertões, que já tinham prendido vários feirantes, ameaçaram invadir e destruir Benguela. Com isto, os portugueses foram obrigados a construir um novo forte e reforçar as tropas que defendiam a cidade. Mesmo bem mais tarde, quando a feira do Bié foi nos anos quarenta fechada pelos portugueses para coibir o tráfico ilegal, mais uma vez aconteceram conflitos, e vários portugueses foram atacados (5).
Apesar das reações, o ano de 1830 chegou e a ilegalidade deu características completamente novas ao tráfico de escravos em Angola. Basta lembrar que Luanda, o grande porto do tráfico legal, cada vez mais perdeu expressão como porto de embarque de escravos durante o tráfico ilegal. Reservou-se então para a cidade o papel estratégico mas limitado de um importante depósito e entreposto de escravos. Até 1845, era de lá que saía boa parte dos escravos que eram embarcados pelos vários pontos da costa de Angola. Dizia o vice-cônsul inglês Brand, em 1846: “Although slaves have not heen shipped in the port of Loanda for several years, yet the city continued an important slave market and depôt.” (6) Com a ilegalidade, que, na prática, se iniciou ainda em 1830, ou seja, antes do decreto de 1836 pelo qual Portugal oficialmente aboliu o tráfico em suas colônias, os embarques de escravos foram feitos cada vez mais por regiões fora de Luanda — por pontos que se espalhavam pela costa de Angola. E foram ruins e imediatos os efeitos deste deslocamento para Luanda. Como os navios negreiros desapareceram do porto da cidade no início da ilegalidade, em 1830, logo sentiram-se os efeitos de uma grave crise de abastecimento. Isto porque era através de tais navios que Luanda conseguia parte dos gêneros de primeira necessidade consumidos por sua população. Não é equivocado supor que tenha havido também uma crise creditícia na cidade, como ocorreu entre 1810 e 1830, quando o tráfico pela primeira vez se deslocou para o norte de Angola (7). Estes primeiros deslocamentos pela costa de Angola, aliás, explicam algo da capacidade de resistência do tráfico ilegal entre 1830 e 1860. Assim como durante o tráfico ilegal, os traficantes saíram de Luanda entre 1810 e 1830 para não pagar os altos impostos que lá eram cobrados pelas mercadorias levadas do Brasil. A diferença foi que, entre 1810 e 1830, Portugal praticava um forte protecionismo em benefício dos comerciantes portugueses, só deixando como alternativa para brasileiros e crioulos angolanos contrabandear escravos pelo norte de Angola. Por esta razão, quando a ilegalidade chegou, em 1830, os traficantes já sabiam como burlála. Ou seja, eles já conheciam as rotas do norte de Angola que fariam o tráfico ilegal quase independente de Luanda (8). Sair de Luanda era vantajoso porque se pagavam menos impostos no desembarque de mercadorias, além de fugir da repressão mais forte no porto da cidade. Mas havia uma desvantagem: fora de lá o tráfico ilegal era
mais perigoso. Os traficantes podiam ser atacados não só pelos cruzadores, mas também pelos povos gentios, que viviam praticamente independentes e também cobravam impostos para permtir o tráfico em suas terras. Algumas vezes acontecia embates até mesmo entre os próprios navios negreiros que vagavam pela costa de Angola à espera da oportunidade de embarcar escravos (9). Boa parte das dificuldades para combater o tráfico ilegal vinha da dispersão pela costa de Angola. E se no início o norte foi mais procurado, pouco a pouco, passou-se também, aí já nos anos quarenta, a buscar pontos mais ao sul. Como Benguela Velha, entre as cidades de Luanda e Benguela, ou a Ponta dos Tigres, na extremidade meridional de Angola (10). Os traficantes eram ágeis e se adequavam rapidamente à necessidade maior de fugir dos navios de guerra que combatiam os navios negreiros pela costa de Angola. Um combate que foi cada vez maior entre 1845 e 1860, reunindo forças navais não só da Inglaterra, como logo se imagina, mas também da França, dos Estados Unidos e de Portugal.
São muitos os números que comprovam o empenho e a eficiência dos navios de guerra que combateram o tráfico ilegal pela costa de Angola. Pelas estimativas do então Governador-Geral de Angola, Pedro Alexandrino da Cunha, era a seguinte a distribuição das forças estrangeiras em 1846: A Inglaterra tinha 3.014 homens e 243 peças de fogo, e a França, 2.583 homens e 180 peças de fogo na costa de Angola (11). Tem-se idéia do poder de fogo da repressão ao tráfico ilegal quando se nota que quase 40% dos navios que passaram pelo porto de Luanda entre 1845 e 1860 eram navios de guerra ingleses, franceses, portugueses e americanos. Somente entre 1 de abril de 1844 e 15 de janeiro de 1846, os cruzadores ingleses apresaram ou destruíram 112 navios negreiros. Antes disso, números também bem expressivos foram assinalados por George Tams, o viajante que foi a Angola em 1841:
“Não obstante todas as maquinações dos negociantes da escravatura para iludirem a vigilância dos ingleses, nada menos que 33 navios foram apreendidos em 1841, na costa de Angola, durante cerca de seis meses de cruzamento (...). O número de escravos libertados subiu a 3.427.” (12)
O principal êxito dos cruzadores franceses e ingleses foi acabar com os grandes embarques de escravos pelo porto de Luanda. Durante os anos
quarenta, o tráfico ilegal por Luanda só era feito através de pequenas canoas apinhadas de escravos que à noite saíam furtivamente pelas praias da cidade. Os navios negreiros que iam a Luanda se limitavam a descarregar as mercadorias levadas do Brasil. De lá, eles saíam em lastro, isto é, carregando apenas madeira, areia ou água, para garantir condições mínimas de navegabilidade. Por esta razão, os armazéns da alfândega de Luanda viviam abarrotados de mercadorias (fazendas) que só encontravam 20% de consumo lá ou eram permutados por miseráveis porções de goma copai ou urzela, os produtos do comércio licito angolano (13). Para embarcar os escravos, eram procuradas regiões ao norte que estavam fora da jurisdição portuguesa, como o Ambriz, Ambrizete e o Rio Zaire, ou o sul de Angola:
When vessels are freighted as they open are, to bring over cargoes to the consignees of the Brazilian slave dealers, the freights are almost always paid in bilis and the vessels often leave in ballast, the slaves being shipped in the fírst opportunity, from some convenient part of coast, on account of the owners of these cargoes by their agents. (14)
A maior incidência de saídas de navios em lastro (e em viagens de longo curso) pelo porto de Luanda deu-se entre 1846 e 1851. Em 1847, por exemplo, 40,7% das saídas de navios que cruzariam o Atlântico foram em lastro. E este foi também o período auge do tráfico ilegal para o Brasil. Cerca de 60.000 escravos entraram por ano no Brasil no final da década de quarenta (ver gráfico 8). Uma das causas disso pode ser vista pela movimentação do porto de Luanda. O destino final de boa parte dos navios que saíram de Luanda em lastro para furtivamente embarcar escravos pela costa de Angola entre 1846 e 1851 foi o Brasil. Uma relação direta entre os desembarques de escravos no Brasil e as saídas de navios em lastro por Luanda é demonstrada pelos números. Houve uma primeira queda nas saídas de navios em lastro em 1850, em boa medida pela lei brasileira que aboliu o tráfico ilegal neste ano. E, a partir de 1853, constata-se uma queda imediata nas saídas em lastro. A redução delas a partir de então é uma prova de que as derradeiras tentativas de tráfico ilegal para o Brasil nos
anos cinquenta foram feitas por navios que sequer iam a Luanda. Já para os fins dos anos cinquenta, tem-se uma retomada das saídas em lastro de Luanda. Era o tráfico ilegal em Angola que revivia, direcionado então para Cuba, mas preservando algo do extinto tráfico ilegal com o Brasil: a saída de navios em lastro de Luanda. A movimentação do porto de Luanda mostra também para qual cidade vinham os navios que zarpavam para o Brasil. Os dados começam em 1840 e vão até 1860. Mas vamos nos ater principalmente ao período auge do tráfico ilegal para o Brasil. Os dados do porto de Luanda não deixam dúvida da proeminência do Rio de Janeiro no tráfico ilegal com Angola. E esta era uma antiga herança do tráfico legal. Uma variável de longa duração que, pode-se dizer, contribuiu para a resistência do tráfico em Angola a partir de 1830, quando pela primeira vez foi proibida a entrada de escravos no Brasil. Esta proeminência do Rio de Janeiro no tráfico entre Angola e Brasil começou ainda na primeira metade do século XVIII, a partir de 1730. Tem-se idéia do peso dela durante o tráfico ilegal ao se lembrar que 80%, 90% ou até mais dos navios negreiros que saíam de Benguela entre 1796 e 1832 vieram para o Rio de Janeiro (15).
Foram 127 saídas de navios em direção ao Rio de Janeiro pelo porto de Luanda entre 1840 e 1860. O grosso delas no auge do tráfico ilegal para o Brasil durante os anos quarenta. Mais uma vez fica provado o quanto a lei brasileira de 1850 interferiu na movimentação do porto de Luanda. A partir de 1853, houve uma queda brutal nas saídas de navios em direção ao Rio de Janeiro, o que não deixa dúvidas da finalidade dos navios que saíam de Luanda declarando oficialmente que vinham para cá. Apenas 17,2% dos navios que declararam que viriam para o Rio de Janeiro entre 1840 e 1860 o fizeram depois de 1853. Por Luanda saíram também navios para Pernambuco e Bahia neste período. Mas só uma vez, em 1840, o Rio de Janeiro não foi predominante entre os navios que vieram para o Brasil. E
quando as saídas de Luanda para o Rio de Janeiro cresceram novamente, em fins dos anos cinquenta, foi talvez por conta do tráfico ilegal entre Angola e Cuba.
O tráfico ilegal só foi efetivamente combatido pelas autoridades administrativas de Angola a partir de 1845. Antes disso, a conivência com os traficantes era quase total. Um governador-geral que tentou combater o tráfico foi de tal forma repelido que teve de voltar para Lisboa (17). Tal quadro mudou apenas na gestão do Governador-Geral Pedro Alexandrino
da Cunha (entre 1845 e 1848). Foi aí que se tomaram medidas para impedir que escravos que não tivessem permissão do governo fossem transportados pelos distritos de Angola. É nesta época também que se dão casos de apreensões de escravos sem autorização para circular por Angola. Existem exemplos concretos não só de punição para os condutores de escravos para o tráfico como também de destituição e punição dos chefes de distritos que pecavam por omissão ou conivência no tráfico ilegal (18). Podem-se medir os efeitos da repressão ao tráfico em Luanda a partir das ações e processos judiciais. São números tímidos, é verdade, mas que revelam que a tolerância com o tráfico ilegal pela cidade já não era mais irrestrita. Entre 20 de outubro de 1845 e 30 de junho de 1847, houve em Luanda um total de 110 causas criminais — ações judiciais com um autor que formula um pedido que deverá ser satisfeito pelo réu considerado responsável. Deste total, 8 (7,3%) foram intentadas contra indivíduos que exportavam ilegalmente escravos. Já entre 1 de setembro de 1846 e 30 de junho de 1848, também em Luanda, houve um total de 156 processos criminais. Deste total, 14 casos (9,0%) foram motivados por tráfico ilegal (19). Um bom índice para medir os efeitos da repressão ao tráfico ilegal são os impostos cobrados por escravo que entrava em Luanda proveniente do interior. São números incontestáveis. Primeiro, eles mostram que a repressão só começou mesmo a partir de 1845. Antes disso, a vigilância dos cruzadores era único empecilho que evitava que os traficantes embarcassem escravos pelo próprio porto de Luanda. Os cruzadores evitavam os embarques mas não evitavam que Luanda fosse ainda um grande depósito e entreposto de escravos. E mais: a partir de 1845, o tráfico ilegal foi de tal forma combatido que Luanda perdeu até mesmo essa última condição. Cobravam-se 9.000 réis por cada escravo que lá entrava. Basta dividir os valores arrecadados com os impostos por este valor unitário. Obtém-se então a declinante variação anual na entrada de escravos em Luanda entre 1833 e 1849. Foi também durante os fins dos anos quarenta que mais aumentou a vigilância dos navios de guerra pela costa de Angola. Entre 1846 e 1852, a cada 3 dias entrava ou saía um navio de guerra pelo porto de Luanda. Instalou-se um quadro de verdadeira guerra naval na costa de Angola. E
mais uma vez o porto de Luanda é um excelente termômetro para avaliar o que aconteceu. Tomada como critério de avaliação, vê-se pela movimentação de navios de guerra pelo porto da cidade que, em alguns anos, os franceses foram tão ou mais importantes que os ingleses no combate ao tráfico ilegal em Angola. Em 1846, os navios de guerra ingleses e franceses entraram e saíram pelo porto de Luanda num igual número de vezes (39), enquanto que, em 1847, as entradas e saídas dos navios franceses (48) superaram às dos navios de guerra ingleses (26). O combate ao tráfico ilegal deu características completamente atípicas ao porto de Luanda entre 1846 e 1853. Quase sempre as saídas de navios de guerra superaram as saídas dos navios mercantes que faziam viagens de longo curso nestes anos. Só em 1854 diminuíram as saídas de navios de guerra, quando ficou claro que o tráfico para o Brasil não mais retomaria. Aqui tem-se uma resposta para a abrupta queda nas saídas totais de navios mercantes em 1850. Um efeito da predominante e inibidora presença de navios de guerra em Luanda, que alcançou o maior índice exatamente em 1850. Podem-se mais uma vez usar as saídas em lastro de navios como critério para analisar o tráfico ilegal. Já se viu que sair em lastro era um artifício de rotina dos navios negreiros que iam a Luanda. E a relação entre saídas de navios de guerra e saídas de navios em lastro é direta. Foi porque as saídas em lastro diminuíram que a frequência de navios de guerra caiu no porto de Luanda, a partir de 1853 (20). Só em fins dos anos cinquenta as saídas de navios de guerra se tornariam novamente expressivas, para combater o tráfico ilegal de escravos para Cuba. E com uma frequência de saídas muito maior que revela que, pelo menos em 1860, os Estados Unidos o combateram com muito mais empenho que a Inglaterra.
Nota metodológica: A segunda coluna da tabela (p. 160) foi extraída da tabela (”Net Revenue of the Customs of St. Paul de Loanda”) que está na página 475 de Missionary Travels and Researches in South África” (o nome da coluna usada é “Duties on Slaves”). Livingstone diz que estes números foram copiados “from the ippendix to a dispatch sent by Mr. Gabriel to Viscount Palmerston, dated the 5th of August, 1850”. A terceira coluna foi obtida dividindo o total de valores dos Impostos pagos em cada ano pelo valor unitário de cada escravo (9.000 réis). O valor unitário de 9.000 réis por escravo pode ser encontrado em BRAND, George, General Return of the Trade of the Port of St. Paul de Loanda in the Province of Angola for the Year 1846. Este valor unitário pode ser visto também em “Rendimento(s) da Alfândega de Loanda” nos anos de 1838-1839 e 18391840, Correspondência dos Governadores, Angola, pasta 4-A, AHU.
O aumento da repressão em Angola é vital para entender por que a abolição do tráfico no Brasil, em 1850, teve sucesso. O tráfico de escravos, afinal, não era um problema só para o Brasil. O Brasil se livrou dos traficantes, perseguindo-os durante os anos cinquenta com métodos tão clandestinos quanto o próprio tráfico ilegal. Mas o tráfico era um problema também para Portugal, que ensaiava novas opções econômicas e pretendia podar o poder que os grupos nativos que emergiram com o tráfico tinham em Angola. Os navios de guerra ingleses e franceses provocavam também receios em Portugal quanto ao destino de suas colônias africanas. Daí o empenho tantas vezes frustrado com que os portugueses tentaram impedir o tráfico a partir de suas colônias (22).
2. Investir no Tráfico Ilegal e Comércio Lícito: O Padrão de Investimento do Traficante E é porque os portugueses efetivamente o combateram que se têm registros do tráfico ilegal em Angola. Uma das tentativas de tráfico desbaratada durante a fase mais forte de repressão teve como figura principal um antigo degredado em Angola chamado Manuel José Constantino. Em 1848, Constantino foi preso porque uma lancha de sua propriedade foi apreendida quando tentava chegar a Benguela Velha, ao sul de Luanda, carregando mais de 20 escravos para serem embarcados num navio negreiro. Este era um traficante já conhecido das autoridades administrativas de Angola. Um caso anterior de tráfico ilegal com o mesmo Constantino, em 1847, quando vários africanos morreram depois de jogados ao mar para eliminar as provas de tráfico, fez com que se reconhecesse que despistar a repressão com saídas noturnas de canoas com escravos pelas praias de Luanda era um novo método dos traficantes (23).
A lancha e tripulação foram condenadas, mas Constantino conseguiu fugir para o Rio de Janeiro. E fugir para cá não revela nenhuma peculiaridade no comportamento deste traficante. Constantino, afinal, era um degredado “por toda a vida” em Angola que investia no tráfico, isto é, um típico “crioulo” angolano. Como tal, não surpreendem os laços que ele mantinha com os comerciantes brasileiros. Muitos “crioulos” angolanos se ligavam ao Brasil não só pelo comércio como também por laços de parentesco ou até por terem nascido aqui. No caso de Constantino, os escravos seriam
enviados em consignação provavelmente para uma casa comercial do Rio de Janeiro que pertencia ao traficante brasileiro José Fortunado da Cunha (24). Através de Manuel José Constantino, podemos saber algo a respeito dos investimentos que os traficantes angolanos faziam. Pelo menos 3 consignações de navios que entraram ou saíram pelo porto de Luanda entre 1847 e 1848 pertenceram a este traficante. Características que só eram encontradas nos navios do tráfico ilegal indicam que todos os navios consignados por Constantino eram navios negreiros. Um deles foi o patacho Bom Sucesso, que entrou em Luanda em 2 de agosto de 1848 levando aguardente, farinha e miudezas. O outro, o patacho União, entrou em Luanda com açúcar, aguardente e sola em 28 de setembro de 1847. O União partiu de Pernambuco, entrou em Luanda arribado, sem água ou mantimentos, e não chegou ao seu destino previsto, Benguela. Em 24 de outubro de 1847, o navio zarpou de Luanda apenas em lastro, declarando que voltaria para Pernambuco. Mas não parece que o União tenha retornado diretamente para o Brasil. Como já foi visto, sair em lastro de Luanda, como o União declarou oficialmente, era algo que só os navios negreiros faziam. Entre 1846 e 1850, foi exatamente no ano de 1847 que mais saíram navios em lastro pelo porto de Luanda. De um total de 54 saídas neste ano, 22 (40%) foram de navios em lastro. É certo que o destino do União foi o mesmo dos outros navios que saíam em lastro de Luanda: embarcar escravos pela costa de Angola. E é provável que ele tenha ido para Benguela Velha, onde, como se descobriu mais tarde, Constantino mantinha um barracão de escravos (25). Mas os negócios de Constantino também se voltavam para os sertões de Angola. Em 1853, o que prova que ele pode ter voltado a Angola, Constantino recebeu 1.703$339 de um total de 1,724$968 que havia emprestado a um comerciante, Custódio d’Araújo Bello, que falecera nos sertões de Novo Redondo. Bello mantinha negócios no interior a partir de mercadorias (fazendas) emprestadas por comerciantes de Luanda. Um esquema secular de comércio no interior de Angola que não sofreu grandes transformações com o advento do tráfico ilegal. E os créditos com Bello mostram que Constantino tinha uma capacidade de investimento que não era vulgar. Seus créditos superavam os de qualquer outro comerciante de
Luanda com créditos junto a Bello. Chegavam a ser quase 20 vezes maiores que os de Ana Joaquina dos Santos Silva, talvez a mais rica negociante de Luanda na primeira metade do século XIX.
Não seria surpresa se Constantino tivesse investimentos no Brasil que não se limitassem aos escravos enviados para cá. Sabe-se que a própria Ana Joaquina dos Santos Silva teve pelo menos uma fazenda aqui. Também aconteciam investimentos diretos de traficantes brasileiros em Angla. Possuindo, por exemplo, navios que faziam o comércio de cabotagem pela costa de Angola, claramente com o propósito de utilizá-los no tráfico
ilegal. Mas estes exemplos são pequenos e não esgotam a quantidade de investidores que atuavam tanto no Brasil quanto em Angola. Um desses investidores, o brasileiro Francisco Antônio Flores, tem uma trajetória que permite compreender como se operou a própria transição de Angola para o comércio lícito entre 1830 e 1860 (26). Flores foi um dos expoentes no tráfico ilegal e chegou a Angola nos anos quarenta, como agente da casa comercial do Rio de Janeiro de Amaral & Bastos, a terceira mais importante no tráfico de escravos. Sua trajetória é bastante reveladora e o coloca como um dos grandes organizadores do tráfico em Angola. Um dos notáveis de Luanda, o que pode ser medido pela quantidade de vezes que teve o nome nas listas de grandes doadores da época, Flores se integrou com perfeição ao grupo “crioulo” de Luanda. Foi conhecido e respeitado por viajantes europeus que foram a Angola, e seus investimentos mostram o quanto o tráfico ilegal conviveu com o comércio lícito entre 1845 e 1860 (27). Através de algo indissociável de Flores, seu próprio nome, é possível reunir vários elementos sobre o tráfico ilegal e o comércio lícito em Angola. Usando o nome do traficante, vê-se que havia uma linha de continuidade entre o tráfico ilegal e as atividades lícitas que começavam a prosperar em Angola (28). Um padrão de investimento que, na verdade, não pertencia só a Flores o colocava como um investidor tanto do tráfico ilegal quanto do comércio lícito. Diversificar era a palavra-chave deste padrão de investimento. A partir dele, tinha-se o comércio lícito como uma atividade menos portentosa, mas não desprezível, quando comparado ao tráfico ilegal de escravos. Além de subterfúgio para o tráfico ilegal, que servia para despistar a repressão, os traficantes viam no comércio lícito uma alternativa de investimento até para saldar débitos acumulados entre eles. Um traficante do Rio de Janeiro poderia receber seus créditos com os traficantes angolanos em mercadorias do comércio lícito angolano, como marfim, urzela, goma copai, azeite de dendê. Um traficante angolano, por sua vez, poderia receber os créditos advindos da venda dos escravos no Brasil em mercadorias como o açúcar, aguardente e mantimentos. São vários os registros do nome Francisco Antônio Flores entre 1846 e 1862. Flores se destacou nos anos quarenta adquirindo diretamente com os americanos os gêneros usados no tráfico. Sua atividade no tráfico ilegal em
Angola era regionalizada. Era no Ambriz, no norte de Angola e onde possuía três barracões de escravos em 1854, que Flores atuava. Seu nome talvez seja o que mais aparece nas listas de traficantes que a polícia da corte do Rio de Janeiro preparou entre 1841 e 1864: Flores é citado como traficante em 1851, 1853, 1854, e uma vez no período entre 1858, 1859 e 1860. Sob sua responsabilidade, a barca americana Eunomus partiu do Rio de Janeiro e aportou no porto de Luanda, em 1848, preparada para carregar escravos, o que foi feito depois no Ambriz. Mas o caso dele é peculiar por representar um exemplo de traficante que também investiu nas atividades lícitas que começavam a prosperar em Angola. Daí à primeira vista ser estranho citar Flores, como a polícia do Rio de Janeiro fez, como um traficante atuante entre 1858 e 1860: numa altura em que o tráfico ilegal para o Brasil já fazia parte do passado e que Flores era um reconhecido investidor do comércio lícito em Angola (29). Várias vezes durante os anos quarenta, Flores foi o consignatário em Luanda do barco General Rego, um notório negreiro. Este navio pertenceu ao grande traficante do Mio de Janeiro José Antônio de Souza Bastos (o Bastos da firma do Rio de Janeiro Amaral & Bastos). O General Rego mirou e saiu do porto de Luanda 11 vezes entre 1847 e 1851. Só uma vez o navio saiu em lastro de Luanda. Todas as outras 5 cinco vezes que partiu de Luanda em direção ao Rio de Janeiro o General Rego carregou algum tipo de mercadoria. É certo que o navio zarpava de Luanda e ia carregar escravos nos barracões que Flores mantinha no Ambriz. Mas, além de escravos, o General Rego também trazia para o Brasil produtos como azeite de palma, ginguba (amendoim) e cera: uma primeira evidência que investir ao mesmo tempo no tráfico ilegal e no comércio lícito nem sempre era algo muito distante para os traficantes (30). Como outros traficantes da época, algumas vezes o próprio Flores viajava nos navios negreiros — como em 1851, quando chegou a Luanda a bordo do navio negreiro Africano. O Africano saiu do Rio de Janeiro e chegou a Luanda em 14 de junho de 1851, transportando principalmente aguardente, o produto brasileiro mais empregado no tráfico de escravos em Angola. Atuar principalmente no Ambriz, que só foi ocupado por Portugal em 1855 e, em tese, estava fora da jurisdição e fora do alcance das leis portuguesas, não impediu que Flores sofresse com a repressão ao tráfico ilegal em
Angola. Pelo menos uma vez seus barracões foram destruídos pelos cruzadores portugueses, em 1849 (31). Mais de uma vez, Flores foi obrigado a abandonar Luanda. Uma vez, no início dos anos cinquenta, seu refúgio foi no Ambriz, longe da jurisdição portuguesa. Em 1855, um dos vapores por ele consignado de Londres foi apreendido pelos cruzadores, levado para Santa Helena e condenado pelo almirantado inglês. Neste mesmo ano, Flores foi novamente obrigado a deixar Luanda — desta vez indo para Lisboa. Seus negócios em Luanda foram então deixados sob a administração de outro conhecido traficante luandense, Augusto Garrido (32). Tem-se uma constante na trajetória de Flores: diversificar investimentos. E os exemplos disso são vários. O tráfico ilegal foi o mais importante mas não o único dos investimentos dele. E o mais interessante: Flores não esperou o tráfico ilegal acabar para só então entrar nas atividades lícitas. Evidências indicam que, ainda antes do fim do tráfico ilegal, ele já investia no comércio lícito. É claro que seus grandes investimentos só aconteceram a partir de 1855. Apesar disso, o caso dele permite especular se o comércio era um mero subterfúgio, como diz Anne Stamm, ou uma menos lucrativa mas não desprezada alternativa de investimento para os traficantes. Duas hipóteses que não se excluem, como veremos mais adiante. E é para testálas que faremos um quadro mais amplo dos investimentos de Flores até 1862 (33). Alguns indícios apontam que Flores desempenhou um importante papel como financista em Luanda durante os anos cinquenta. Pelo menos dois comerciantes da cidade foram executados judicialmente por conta das dívidas que tinham com ele. O primeiro caso foi em 1852 e envolveu um comerciante chamado José Maria de Carvalho. Embargado por Flores com tudo que tinha em sua loja, e não podendo pagar os outros credores que tinha, Carvalho pediu falência e foi julgado quebrado pela justiça de Angola. Um outro caso aconteceu em 1859, quando uma execução movida por Flores fez com que Antônio José Lopes Soeiro fosse sentenciado pela segunda comarca (34). Flores era também proprietário de pequenas embarcações que faziam o comércio de cabotagem por Angola. Pelo menos é o que se deduz do “Auto
de Propriedade de Embarcações entre 1848-1854”, onde constam duas embarcações de propriedade dele. Uma delas era a lancha Teresa, provavelmente usada no tráfico ilegal, para carregar mantimentos e escravos para os navios negreiros. A outra embarcação é por si mesma mais um indício de que Flores investia tanto no comércio lícito quanto no tráfico ilegal. Era uma baleeira, a Audaz, construída no Rio de Janeiro e registrada em Luanda em 1850, quando o tráfico ilegal para o Brasil ainda estava ativo (35). Ser procurador de comerciantes brasileiros e angolanos foi algo bastante comum para Flores. E daí podem-se tirar várias pistas dos investimentos e relações comerciais mantidas por ele. Flores assinou documentos na condição de procurador dos verdadeiros donos, que estavam fora de Luanda, de 5 embarcações registradas no “Auto de Propriedade de Embarcações entre 1848-1854”. Uma das embarcações foi a lancha Isabel, de Manuel José da Costa Lima, um grande comerciante angolano, que foi construída no Rio de Janeiro e registrada em Luanda em 25 de janeiro de 1850. Todas as outras embarcações, uma delas também construída no Rio de Janeiro, pertenciam a um comerciante chamado Manuel Henriques da Silva. São duas as possibilidades. Ou Flores era o responsável por todos os negócios que estes comerciantes possuíam em Luanda. E assinar o registro das lanchas teria sido então apenas uma de suas incumbências enquanto procurador dos verdadeiros donos das lanchas. Ou então, uma hipótese mais plausível: estes comerciantes nada mais eram que alguns dos agentes comerciais que Flores mantinha espalhados por Angola. Esta hipótese, que só se aplica a Manuel Henriques da Silva, é reforçada por dois indícios. Primeiro, as embarcações sabidamente eram de pequeno porte, ou seja, exatamente as mais usadas para carregar escravos e mantimentos para os navios negreiros. Além disso, e mais importante, Flores foi procurador em outras ocasiões, quando então respondeu por todos os negócios dos comerciantes que o nomeavam como tal. Nestas outras ocasiões, não apareceram os nomes dos comerciantes que antes o haviam nomeado como procurador das lanchas registradas no “Auto de Propriedade de Embarcações entre 1848-1854”.
Todas as pessoas que nomearam Flores procurador universal de seus negócios estavam saindo de Angola. E também daí é possível extrair algumas informações sobre as atividades de Flores. Apenas um dos quatro comerciantes que saíram de Luanda e o deixaram como procurador não veio para o Rio de Janeiro. E pelo menos três deles tinham envolvimento no tráfico ilegal de escravos. O único que não veio para o Rio de Janeiro foi Joaquim Cordeiro Feio, que partiu para Portugal em 1849. No mesmo ano, Flores foi declarado procurador de José Botelho de Sampaio, que, segundo informações da polícia da corte do Rio de Janeiro, além de irmão, era o correspondente em Luanda de um traficante do Rio de Janeiro (36). Um dos outros comerciantes que deixou Flores com procurador foi Manuel Francisco Alves de Brito, um importante investidor no tráfico ilegal e no comércio lícito de Angola. O nome de Brito consta na relação de grande negociantes angolanos numa requisição que foi feita em 1847 pedindo ao governo português para aumentar o limite para exportar a urzela, um dos produtos do comércio lícito angolano. Flores foi ainda publicamente declarado procurador por João Diogo Bastos — que além disso suspeitosamente se ofereceu para trabalhar aqui no Rio para os comerciantes de Luanda. Bastos, que morou em Benguela e provavelmente era parente do grande traficante do Rio de Janeiro, José Antônio de Souza Bastos, também é citado no “Auto de Propriedade de Embarcações entre 1848-1854 como dono de duas lanchas (37). Até aqui, temos três indícios dos investimentos lícito de Flores. Suas atividades como financista, a propriedade de uma baleeira e as cargas constituídas não só de escravo que os navios consignados por ele traziam para o Brasil, a partir de 1855, no entanto, os investimentos lícitos de Flores tornaram-se mais fartos. E a trajetória dele reproduz um movimento que se operava em toda a economia de Angola. Foi a partir de 1855 que se consolidou a transição para o comercio lícito. Pertencia a Flores, por exemplo, a maior parte das ações de uma empresa que foi criada em 1857 para construir uma estrada até o Golungo-Alto. Chama a atenção a contribuição de Flores para este empreendimento, muito maior que a de vários outros importantes comerciantes de Luanda. Era dele ainda o contrato de abastecimento de gêneros básicos para Luanda. Razão pela qual, em 1857, numa das crises de abastecimento de Luanda, o governador-
geral de Angola solicitou que Flores adquirisse gêneros básicos em São Tomé e Príncipe (38).
Foi entre 1855 e 1860 que Flores realizou seus investimentos mais pesados em atividades lícitas. Um destes investimentos foi a exploração de minas em Angola. Em 1857, foi contemplado com uma concessão por tempo ilimitado para explorar “minas de cobre e outros minerais e substâncias úteis com ele associados no mesmo depósito, existente nas terras do Dembo Ambuella, distrito do Encoge (no Ambriz), na província de Angola”. Ao obter a concessão, Flores assumiu uma série de compromissos, como construir “uma estrada carreteira desde o estabelecimento que se fizer para minerar na Serra do Bembe até a cidade de Luanda, ou até um ponto cômodo de embarque no Rio Dande”. Seria dele a responsabilidade pela construção e manutenção da estrada, que deveria ficar pronta em 3 anos e na qual teria livre trânsito tudo que interessasse ao serviço público de Angola (39).
Mas esta não foi a única mina de cobre explorada por Flores. No total, ele tinha a concessão de 3 minas de cobre. Nem todas se localizavam no Ambriz, a região privilegiada para seus investimentos. Algumas delas se localizavam em Benguela, ao sul de Luanda. Em julho de 1857, Flores detinha quase 40% das concessões para a exploração de minas em Angola. John Monteiro diz que Flores, em 1858, repassou as concessões das minas para uma companhia inglesa. Na visão de Monteiro, Flores era um grande empreendedor que investia em atividades lícitas o que havia amealhado no tráfico ilegal. O que parece é que seus investimentos nas minas de cobre cessaram antes do fracasso dos anos sessenta. Pois é isto que se deduz de Monteiro, que trabalhou na companhia de mineração inglesa e atribuiu aos próprios ingleses o fracasso nas explorações minerais em Angola (40). Flores ostentou ainda a invejável posição de consignatário exclusivo dos vapores mercantes da linha Luanda-Lisboa depois de 1857. Era através destes vapores que era escoada a produção de urzela, goma copal e marfim, as mercadorias do comércio lícito que substituíram os escravos nas exportações de Angola. Até mesmo vapores mercantes que aportaram em Luanda provenientes de Londres foram consignados por Flores. Um pouco da capacidade administrativa dele é ilustrada pelas cargas destes vapores. Explorar minas de cobre e consignar navios eram atividades articuladas para ele. As cargas dos vapores revelam o que muitas vezes exportavam os vapores consignados por Flores: o cobre extraído das minas do Ambriz.
Mesmo na fase dos grandes investimentos lícitos há indícios de que Flores não abandonou por inteiro o tráfico ilegal. Seria então o contrário do que diz John Monteir que conheceu Flores (41). E seria também uma evidência de que entre 1846 e 1860, ou seja, durante a transição para o comercio lícito, a economia de Angola funcionou dentro de um mesmo padrão: diversificar investimentos. Um padrão que atribuiu menor peso ao comércio lícito durante a fase áurea do tráfico ilegal, quando o mais lucrativo era embarcar escravos para o Brasil ou Cuba. Sem, no entanto, descartar comércio lícito como uma alternativa de investimento. Mas o que, depois, quando se consumou a transição da economia de Angola para o comércio lícito, vigorou de forma investida. Não mais atribuindo ao tráfico, mas sim ao comércio licito, maior peso nos investimentos. E sem
descartar eventuais investimentos no tráfico ilegal para São Tomé, que, assim como Cuba, se tornou o destino dos escravos embarcados por Angola. Um episódio em 1862 dá pistas de que Flores estava envolvido neste tráfico para São Tomé. Flores era nesta época o representante em Luanda da Companhia União Mercantil de Lisboa, a dona dos vapores que ele consignava. Em 1862, uma carta do escritório central da companhia, em Lisboa, chegou a Luanda e expressamente o avisava de que o transporte de africanos para São Tomé não era interessante porque os fretes eram baixos. Era um alerta para os prejuízos que poderiam advir se fosse cometida a aventura de transportar escravos para São Tomé. E é exatamente a isto que tinha se reduzido o tráfico em Angola durante os anos sessenta: uma aventura só praticada por criminosos. Mas num zelo excessivo e suspeito, Flores exibiu a carta para as autoridades inglesas, procurando se esquivar de qualquer acusação. Deixava-se bem claro que o tráfico de escravos para São Tomé era desaconselhado pelo escritório central da companhia a partir de um argumento indestrutível: os fretes não compensavam (42). Este episódio não é conclusivo; é apenas suspeito. Não há como comprovar por inteiro o envolvimento de Flores no tráfico para São Tomé. Há só a suspeita, a partir da atitude dele ao se adiantar às acusações. Mas não seria descabido se Flores continuasse seus investimentos a partir do mesmo padrão anterior. Atuando tanto no tráfico ilegal quanto no comércio lícito. Exatamente, aliás, como vários outros traficantes angolanos, como Ana Joaquina do Santos Silva, Augusto Garrido e outros grandes investidores angolanos que mantiveram uma mesma estratégia entre 1846 e 1860: diversificar investimentos. Algo que só foi abandonado quando o tráfico ilegal em Angola foi completamente abolido. O comércio lícito cumpriu um papel específico durante a fase áurea do tráfico ilegal em Angola. Era uma estratégia para saldar débitos e trocar créditos usada não apenas entre traficantes cariocas e traficantes africanos. Pois também os traficantes que estavam espalhados na costa de Angola trocavam créditos e saldavam débitos uns com os outros através do comércio lícito: na forma de marfim, aguardente, urzela ou ginguba, os produtos que substituíram os escravos na pauta de exportações de Angola.
Numa época de crescente repressão e escasso numerário, era assim que os traficantes colocavam em funcionamento as redes do tráfico ilegal.
3. Os Brasileiros, a Organização e a Opção Imediata do Tráfico em Angola: Cuba Os investidores brasileiros tiveram grande participação na organização do tráfico ilegal de escravos em Angola. E, assim como a dispersão pela costa, que começou em 1810 e se aprofundou em 1830, tal participação é outro dos traços de continuidade entre o tráfico legal e o tráfico ilegal de escravos em Angola. E é também a partir dele que se deve interpretar a resistência do tráfico ilegal entre 1830 e 1868. Sem os laços que os brasileiros mantinham com os crioulos angolanos desde os tempos da legalidade, talvez tivesse sido impossível a resistência durante tanto tempo do tráfico ilegal aos navios de guerra que o combateram na costa de Angola. As principais casas comerciais de Luanda durante o tráfico ilegal ou eram formadas por correspondentes de traficantes brasileiros ou por crioulos angolanos que dependiam dos contatos no Brasil para fazer seus negócios. Isso foi provado com os casos de Manuel José Constantino e Francisco Antônio Flores. Segundo Brand, o vice-cônsul inglês, “5 ou 6 das maiores casas comerciais de Luanda nada mais eram do que agências de traficantes de escravos brasileiros” (43). Mas, além dos traços de continuidade com o período legal, o tráfico ilegal tinha características específicas, criadas como resposta à conjuntura de crescente abolicionismo entre 1830 e 1860. O tráfico ilegal foi um empreendimento realizado em escala atlântica. Para fazê-lo, os traficantes se espalhavam por várias cidades: Rio de Janeiro, Nova Iorque, Havana, Luanda e Lisboa. Ainda assim, é bem claro que, enquanto foi possível, era do Rio de Janeiro e de Luanda que os traficantes o organizavam. Montadas para dirigir os negócios dos traficantes, as firmas familiares comuns durante o tráfico ilegal eram uma outra herança do tráfico legal. Como se vivia numa época de repressão e o sucesso nos negócios do tráfico sobretudo era sinônimo de segredo bem guardado, foi
conveniente mantê-las. Um dos traficantes mais ativos no período, Antônio Severino de Avellar, preso no Rio de Janeiro em 1855 sob acusação de tentar desembarcar em Pernambuco escravos embarcados no Zaire, tinha seus negócios dirigidos com ajuda dos primos, Silvério e Manuel Severino de Avellar. O caso de Avellar ilustra muito bem importantes aspectos do funcionamento do tráfico ilegal. A firma desse traficante tinha ramificações e agentes por várias cidades no Atlântico. Um negócio pulverizado, sem concentração num só lugar — enfim, reunindo características indispensáveis para superar a repressão. E era para fazer seus negócios que o próprio Avellar se deslocava constantemente por várias cidades do Atlântico. Um extrato de seu interrogatório a polícia da corte do Rio de Janeiro mostra que, apenas nos anos de 1854 e 1855, Avellar percorreu cidades por três continentes:
(Avellar fora) a Nova Iorque para ajustar contas com João Alberto Machado, negociante ali e cidadão americano; (onde) se demorou até julho, seguindo a vinte e nove deste mês para Mont Real, em Niágara, e de lá para Charleston e Nova Orleans, onde passou o inverno do ano próximo passado. E Nova Orleans regressou para Nova Iorque, em maio do presente ano. Desta última cidade passou-se a Liverpool a bordo do vapor Atlante em junho, demorando-se na Inglaterra até ao primeiro de setembro, e dali seguiu para Paris por Bolonha, saindo de Paris a onze do dito mês para vir a (ilegível) e paquete Hiberia para Lisboa, onde embarcou no dia treze de outubro no vapor Tamar para esta corte. (44)
Ir aos Estados Unidos era uma providência necessária. Vários traficantes que residiam aqui no Rio de Janeiro fugiram para lá quando aumentou a repressão ao tráfico ilegal no Brasil. João Alberto Machado, com quem Avellar foi acertar contas, certamente era um dos contatos mantidos por Avellar em Nova Iorque. Já em relação à Inglaterra, ir até lá poderia significar para Avellar uma oportunidade para adquirir as fazendas que eram trocadas por escravos na cosia da África. Sabe-se que alguns
traficantes cometiam a ousadia de visitar fábricas têxteis na própria Inglaterra, em Southampton, e escolher pessoalmente os tecidos que compravam. Avellar admitiu que, antes de 1844, havia morado por cinco anos em Angola. Veio para o Rio de Janeiro, morou aqui entre 1844 e 1846 e depois retornou a Angola, onde ficou por mais quatro anos (entre 1846 e 1850). Sua condição de traficante não era negada. A estratégia dele para se livrar da polícia era inteligente: reconhecer a participação no tráfico ilegal somente até o ano de 1850. Além das várias revelações, como a que em 1855 morava em Niterói, um dos pontos de destaque do interrogatório de Avellar é a percepção dele a respeito do comércio legal angolano. O comércio licito do marfim, da goma, da cera e do azeite de palma não aparecia como um subterfúgio para o tráfico ilegal. Vê-se no interrogatório de Avellar, que não tinha motivos para mentir porque se falava de uma época em que o tráfico era “consentido”, em que o comércio lícito estava ao lado do comércio de escravos. Certamente como uma menos lucrativa opção de investimento que também atraía os traficantes.
(Avellar) respondeu que depois que deixou a vida marítima fixou-se em Angola, onde permaneceu durante cinco anos, fazendo profissão do comércio em objetos próprios daquele país, como marfim, goma, cera, escravos, azeite e etecetera, e onde também exerceu o posto de major de milícia daquela província portuguesa, e por vários serviços condecorado com o hábito da Ordem de Conceição pelo seu referido governo. Posteriormente a esse tempo deixou a cita Angola para vir a esta corte no ano de 1844, demorando-se ate 1846 no qual regressou para a mesma Angola, onde destinou-se exercer a mesma profissão de outrora até o ano de 1850, a que novamente veio para esta corte, fixando desde então sua residência em Niterói, seu atual domicílio. (45)
Apesar dos vários detalhes revelados, Avellar omitiu informação mais importante para a polícia. Além das vária cidades da Europa e da América do Norte e Central que visitou, o traficante comandou ele próprio um
embarque no rio Zaire de escravos que seriam desembarcados em Pernambuco. Não se sabia ao certo para onde iria o navio negreiro carregado por Avellar no rio Zaire, se para o Brasil o para Cuba. E é necessário fazer um parênteses aqui: Cuba substituiu ao Brasil como destino dos navios negreiros que partiam de Angola. Não saber ao certo para onde o navio negreiro de Avellar se dirigiria é uma dúvida que mostra quanto os traficantes brasileiros estavam também metido no tráfico ilegal de escravos entre Angola e Cuba.
Consta que o conhecido traficante de escravos Antônio Severino de Avellar tinha partido para o rio Zaire com dois palhabotes, a fim de carregá-los de escravos com destino ostensivamente à Havana, suspeitando-se porém que o que ele pretende é tentar um desembarque dos mesmos entre a Bahia e Campos onde o dito Avellar tem numerosas relações. (46)
Os anos cinquenta no Brasil são marcados pelo forte combate ao tráfico ilegal. Uma efetiva mobilização do Estado imperial brasileiro não deixa dúvidas de que o tráfico ilegal não foi mais tolerado. E o movimento anti tráfico brasileiro tem como uma de suas principais características o emprego de métodos tão clandestinos quanto o próprio tráfico ilegal. Redes particulares e clandestinas de espionagem foram montadas para combater os traficantes. Promessas de alforria foram feitas aos escravos que oferecessem informações sobre os traficantes. E aqueles que eram presos ou eram suspeitos de tráfico ilegal sofriam interrogatórios inclementes, além de terem suas correspondências pessoais violadas. Cartas pessoais dos traficantes apreendidas nos anos cinquenta dão excelentes subsídios para entender a organização do tráfico ilegal em Angola. Muitas delas pertenceram ao traficante brasileiro Guilherme José da Silva Corrêa e foram enviadas de Luanda para seu sócio em Nova Iorque João José Vianna. Quem as encontrou foi a polícia do Rio de Janeiro, após elas terem sido jogadas ao mar quando um navio negreiro, o brigue americano Mary Smith, foi apreendido em 20 de janeiro de 1856 na costa do Espírito Santo. O Mary Smith partiu de Boston, se dirigiu à região da
Cabeça das Cobras, no norte de Angola, e lá recebeu 450 africanos para serem desembarcados no Brasil (47). O navio tinha três sócios: o próprio Guilherme José da Silva Corrêa, João José Vianna, que vinha para o Brasil no Mary Smith e foi preso, além do português Manuel Bazílio da Cunha, o contato em Nova Iorque que deu o sinal a Luanda para o início do negócio. As cartas revelam que Guilherme José da Silva Corrêa comandava uma rede de traficantes que se ramificava por vários pontos do Atlântico. Era de Luanda que o traficante (também conhecido como “Guilherme do Zaire”), e que antes já havia morado no Rio de Janeiro, expedia ordem, determinando quando os negreiros deveriam chegar a Angola e qual destino que eles tomariam para desembarcar os escravos. Optar entre o Brasil ou Cuba dependia de fatores como preços de escravos ou níveis de repressão. E Silva Corrêa era minucioso nas suas ordens. Suas cartas revelam claramente que o tráfico para Cuba foi uma opção quase imediata para os traficantes brasileiros que atuavam no tráfico com Angola após 1850. Barracões de escravos e correspondentes espalhados pelo Atlântico foram alguns dos elementos herdados pelo tráfico ilegal para Cuba do tráfico ilegal que se fazia antes para o Brasil. Uma das cartas não deixa dúvidas do poder que Guilherme José Corrêa da Silva tinha sobre sua rede de traficantes. Comprar “um patacho ou palhabote de lote de quatrocentos volumes (escravos)” foi uma das muitas ordens que Corrêa da Silva expediu para seu sócio em Nova Iorque. E como muitas vezes os navios eram queimados pelos próprios traficantes ou pelos cruzadores, era recomendado que se comprasse um navio “que seja bom de vela, embora seja velho”. Era de Luanda que se decidia se o navio seria comprado nos Estados Unidos, quem seria o capitão, além da região de Angola para qual o navio iria. Era preciso grande entrosamento porque só assim os volumes, ou “gentes”, como os escravos eram chamados pelos traficantes, poderiam estar prontos para serem imediatamente embarcados quando os navios tocassem na costa da África. Rígidos controles de gastos decidiam quantos cascos com água potável seriam comprados assim como o que os escravos comeriam durante a travessia do Atlântico.
À vista disso tenho pensado que vsme logo que esta receba compre um patacho ou palhabote de lote de quatrocentos volumes (escravos), que seja bom de vela, embora seja velho. É o mesmo: dando uma viagem é bastante. E depois dele comprado apronte-o de um todo, menos carne, porque peixe aqui (em Luanda) se arranja. Vsme bem sabe que as viagens do Rio diversas vezes regulam mais de trinta dias e menos. Com quarenta e cinco pipas de água a cinquenta se carregam quatrocentos a quatrocentos e cinquenta volumes (escravos). Por isso, vsme calculará o necessário para quatrocentos a quatrocentos e cinquenta (escravos). Não preciso recomendar-lhe a boa compra porque vsme bem sabe o que deve fazer (48).
Além de cartas que revelam como era organizado o tráfico ilegal, os navios negreiros transportavam outro elemento fundamental para as redes de traficantes: os créditos que as financiavam. Era através das cartas que os traficantes sabiam se já era possível empenhar recursos em novas transações. Os créditos podiam ser na forma de letras, de mercadorias (aguardente, escravos, cera, marfim e etc.), que passavam de uns traficantes para os outros. Sua correspondência revela que Silva Corrêa sabia com antecedência quais seriam os movimentos do tráfico. Revela também que a capacidade de acumular créditos do traficante era baixa. Meses, ou até anos, se passavam até que os traficantes que estavam em Angola recebessem o que lhes cabia. Os ganhos eram imediatamente reinvestidos no próprio tráfico, pelo menos no caso de Silva Corrêa, ou comprando e armando navios negreiros nos Estados Unidos ou comprando escravos na costa de Angola:
Em virtude das notícias que chegaram do Rio, sei que para aquele lugar se vai principiar algum negócio. O Bernardino “Chorão” deve chegar aqui breve no brigue Progresso, e vem arranjar carregamentos. O sócio do falecido José Fortunato da Cunha diz que este navio vai mandar alguns pagamentos. (Sobre a tentativa que se tramava em Nova Iorque.) Eu deliberei isto porque julgo faremos muito bom negócio. O restante que nos ficar dos nossos volumes (escravos), vsme me mandará via Salém ou Nova Iorque para Ambriz a entregar a Junqueira para comprarmos gente
(escravos) de nossa conta. Vsme verá um barco e seguirá nele para o Brasil. Espero me avise com certeza o dia de sua recallada para ter o carregamento pronto. (49)
Um dos eixos principais do tráfico em Angola eram os “carregadores” dos navios. Os carregadores eram os verdadeiros donos dos escravos embarcados para as Américas. Um padrão que atravessou o tráfico legal e ilegal de escravos para o Brasil, o carregamento de navios por traficantes que estavam na própria África não se alterou com tráfico ilegal para Cuba. E o caso do navio negreiro Dolores serve para ilustrá-lo. Vários carregadores eram os donos dos escravos transportados pelo Dolores para Cuba. Alguns possuíam até 109 mas a maioria dos carregadores tinha cada um 30 dos escravos. Os escravos eram enviados em consignação aos países de destino para os chamados recebedores, geralmente casas comerciais especializadas na venda de escravos. No caso do Dolores, os recebedores foram Zulueta e irmãos, Salvador de Castro e Carlos Zabanera. Todos da ilha de Cuba (50). Há indícios de que os traficantes brasileiros já faziam o tráfico ilegal para Cuba, mesmo antes do fim do tráfico para o Brasil em 1850 (51). Isto explicaria, aliás, a facilidade com que os traficantes brasileiros passaram a fazer o tráfico para Cuba após 1850. Sabe-se que o tráfico de escravos entre 1830 e 1860 foi majoritariamente feito do Congo-Angola. Havia ainda a participação da África Oriental (Moçambique). Mas os principais embarques de escravos aconteciam pelo Congo-Angola. E eram só dois os mercados para escravos nas Américas: Brasil e Cuba. Os números mostram que, mesmo antes do fim do tráfico para o Brasil em 1850, os desembarques em Cuba tomaram um novo ritmo. Tirando o próprio ano de 1850, e talvez por conta da repressão na África, as importações de escravos em Cuba foram sempre ascendentes entre 1848 e 1853.
A explosão do tráfico ilegal para Cuba aconteceu a partir de 1858. Não é por coincidência que Cuba recebeu mais escravos exatamente quando os embarques mais aumentaram no Congo. O tráfico ilegal experimentou então o ápice de um movimento de dispersão que começou no início do século XIX e se expandiu para fora de Angola. Os embarques de escravos se espalharam então por regiões ao norte do Ambriz, se estendendo para a costa do Loango. E foi direta e imediata a correlação entre os embarques feitos nestas regiões e os desembarques de escravos em Cuba. Mais ao sul, em Angola propriamente, uma transição que já se completara em 1860 colocou a economia angolana em novas bases. Por conta dela, os
agricultores de urzela do sul de Benguela formalmente repudiaram as tentativas de tráfico que lançavam o medo entre seus escravos. Isto não impediu no entanto, a revivescência do tráfico ilegal ao norte a partir de níveis de embarques de escravos até maiores que o dos fins dos anos quarenta.
Não são apenas os interrogatórios da polícia do Rio de Janeiro que mostram que os traficantes brasileiros estavam envolvidos no tráfico ilegal entre o Congo-Angola e Cuba. Pode-se calcular o quanto o Rio de Janeiro foi importante para o tráfico ilegal em Angola pelos movimentos tendenciais das importações de Luanda entre 1846 e 1860. Sabe-se que Luanda tinha um papel ativo na organização do tráfico ilegal, apesar de não terem mais acontecido embarques de escravos por lá a partir de 1845. Uma média das importações de Luanda neste período coloca a participação brasileira em
19,8%. Um número que não é muito diferente do dos anos entre 1785 e 1823, quando a participação de 20,9% na importações de Luanda refletia o inegável peso do Rio de Janeiro e dos brasileiros no tráfico de escravos em Angola Os números de que dispomos para os anos entre 1861 e 1862 são absolutos. Números em dólar que mostram que Luanda importava muito mais do que exportava para o Brasil. Tais números revelam as mudanças profundas e estruturais que haviam sido operadas pela transição da economia de Angola para o comércio lícito. Com todos os corolários disto: um peso maior de Portugal no movimento comercial de Luanda e uma significativa participação dos Estados Unidos. Mas o que nos interessa neste momento é o movimento das importações que Luanda fazia do Brasil. Um movimento comercial de importações que se fazia principalmente a partir da mercadoria brasileira tradicional no tráfico de escravos em Angola, a aguardente. E, além disso, um movimento de importações sensivelmente maior que o das exportações de Luanda para o Rio de Janeiro. Tais números mostram que a participação do Rio de Janeiro nas importações de Luanda entre 1846 e 1860 foi uma variável de longa duração. Pois transpôs o tráfico legal e entrou pelo período da ilegalidade do tráfico de escravos em Angola. As importações médias de Luanda entre 1846 e 1860 não chegam a encobrir o ocaso que o Brasil, e o Rio de Janeiro em particular, enfrentou nas relações com Angola a partir de 1860. Esta decadência aparece quando se observa o movimento de navios entre o Brasil e Luanda nos anos cinquenta (ver gráfico 4). Mas pelas importações médias de Luanda vê-se que nem sequer o fim do tráfico para o Brasil conseguiu destruir de imediato a participação de brasileiros na organização do tráfico de escravos em Angola, seja para o Brasil ou seja para Cuba.
Nota metodológica: E com objetivo apenas sugestivo que se confronta a coluna montada com informações de Joseph Miller (“Imports at Luanda”, p. 239) com a coluna para os anos entre 1846 e 1860. Embora as médias aqui apresentadas tenham sido calculadas com os valores percentuais, o que as toma aproximadas, as cifras de Miller para os anos entre 1785 e 1823 foram construídas a partir de números em réis. Já as cifras para os anos entre 1846 e 1860 foram construídas a partir da tonelagem média e da procedência dos navios aportados no porto de Luanda neste período. São cifras, portanto, sem o grau de fidedignidade das de Miller e no máximo indicativas do movimento tendencial no período entre 1846 e 1860.
(*) Este texto sintetiza três dos capítulos da dissertação de mestrado “Tráfico Ilegal de Escravos e Comércio Lícito em Angola, 1830-1860”. Abreviaturas: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ) Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) Arquivo Histórico Nacional de Luanda (AHNL) Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola (BOGGPA) Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) Journal of African History (JAH) United National Archives (UNA)
(1) Deste total, 563.600 (78,4%) foram desembarcados no Rio de Janeiro, 100.500 (13,9%) na Bahia e 54.700 (7,6%) em regiões ao norte da Bahia. Ver ELT1S, David. Economic Growth and lhe Ending of the Transatlantic Slave Trade. New York, Oxford University Press, 1987, p. 245. (2) A cifra de 68% escravos trazidos de Angola durante o século XVIII foi tirada de ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Le Commerce des Vivants: Traité d’Esclaves et ‘Pax Lusitania’ dans l’Atlantique Sud”. Paris, Université de Paris X, 1985 (tese de doutorado inédita), p. 220, vol. 2. A cifra para os anos entre 1833 e 1849 foi tirada de KARASH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton, Princeton, University Press, 1987, p. 15. Klein mostra para os anos entre 1825 e 1830 números que colocam o Congo-Angola como origem de cerca de 70% dos escravos trazidos para o Brasil. Ver KLEIN, Herbert. The Middle Passage: Comparative Studies in lhe Atlantic Slave Trade. New Jersey, Princeton University Press, 1978, p. 77. Os números de Curtin, por sua vez, são para os anos entre 1817 e 1843 e colocam a participação do Congo-Angola no tráfico com o Brasil em 67,3%. Ver CUR- TIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: A Census. Madison, University of Wisconsin Press, 1969, p. 240. A mais recente estimativa do número de escravos que entraram pelo porto do Rio de Janeiro comprova que a posição do Congo-Angola se manteve constante e majoritária como fonte dos escravos trazidos para o Brasil entre 1795 e 1830. Ver FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: Uma História do Tráfico Atlântico de Escravos entre a África e o Rio de Janeiro (sécs. XVIII e XIX). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, pp. 87-89. Com relação aos navios apresados na costa de Angola, ver o Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola entre 1845 e 1850. Além disso, através dos navios apresados no porto do Rio de Janeiro, tem-se também uma amostragem da procedência dos escravos que entraram no Brasil durante o tráfico ilegal. Entre Io de maio e 15 de julho de 1837, foram apresados 9 navios negreiros aqui no porto do Rio de Janeiro. Todos vieram de Angola. Ver nota do Ministério da Marinha e Ultramar de Portugal, de 17 de março de 1838 (Sala 12-Livros de Angola, Livro 1, 1835-1837, AHU, p. 4). (3) Quanto ao aumento desenfreado na entrada de escravos no Brasil, ver FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit., p. 50. Os receios das autoridades militares de Angola podem ser vistos no ofício de 1° de dezembro de 1829,
dirigido de Benguela para o Governador-Geral de Angola, Nicolau de Abreu Castelo Branco, pelo General Joaquim Aurélio d’Oliveira (Caixa 164, Angola, 1830, doc. n° 75, AHU). (4) Carta que João Loureiro escreveu a seu tio, o conselheiro Manuel José Gomes Loureiro, no Rio de Janeiro, em 5 de maio de 1830 (Códice 86.20, A8, IEB). (5) Ofício de 1 de dezembro de 1829 dirigido de Benguela para o Governador- Geral, Nicolau de Abreu Castelo Branco, pelo General Joaquim Aurélio d’01iveira (Caixa 164, Angola, 1830, doc. n° 75, AHU). Sobre os conflitos depois do fechamento da feira do Bié, ver HEYWOOD, Linda M. “Slavery and Forced Labor in the Changing Political Economy of Central Angola, 1850-1949”. In: MIERS, Suzanne & ROBERTS, Richard. The End of the Slavery in África. Madison, The University of Wisconsin Press, 1988, p. 417. Joseph Miller diz que os conflitos previstos em Benguela com o fim do tráfico em 1830 acabaram por não acontecer. Ver MILLER, Joseph. “Central and Southern Angola to ca. 1840”. Texto Inédito, p. 58, 1992. (6) BRAND, George. A General Reium of the Trade of the Port of St. Paul de Loanda in the Province of Angola for the Year 1846. Relatório do vicecônsul inglês em Luanda, transcrito em OLIVEIRA, Mário Antônio Fernandes de. Alguns Aspectos da Administração de Angola em Época de Reforma (1834-1851). Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1981, p. 293. (7) Caixa 164, doc. 24, Angola, 1830, AHU. Ver também na mesma caixa documento datado de 17 de dezembro de 1826 mencionando que a crise de crédito em 1826 aconteceu porque o tráfico se deslocou para Cabinda, Ambriz e o rio Zaire. Por causa da inexistência de direitos de importação e exportação, e fugindo dos credores da cidade de Luanda, os traficantes preferiam aquelas regiões, em detrimento de Luanda, onde passou a haver então uma crise de crédito. Segundo o documento, havia grande dificuldade dos “homens volantes em achar fiadores que bem possam satisfazer seu fim”. Porque tinham poucos laços com a cidade, os habitantes de Luanda eram chamados de volantes. Ver LOBO, Manuel da Costa. Subsídios para a História de Luanda. Lisboa, Edição do Autor, 1967, p. 192. Vasconcellos diz ainda que o termo “volante” ainda continuava sendo usado nos anos
cinquenta. Ver VASCONCELLOS, Antônio Augusto Teixeira de. Carta acerca do Tráfico dos Escravos na Província de Angola Dirigida ao Ilm° e Exm° Visconde de Athoguia (Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e do Ultramar). Lisboa, Imprensa de J. J. A. Silva, 1853, p. 4. Florentino analisou os deslocamentos do tráfico na África através dos registros de entrada de navios negreiros no porto do Rio de Janeiro. Ele diz que: “Uma comparação do movimento de negreiros provenientes daqueles portos (Luanda e Benguela) para o Rio de Janeiro indica uma queda de participação de 96%, antes de 1811, para 48% depois desse ano.” Ver FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit., p. 89 e também p. 263. Ver também MILLER, Joseph. “Legal Portuguese Slaving from Angola. Some Preliminary Indications of Volume and Direction, 1760-1830. Revue Française d’Histoire d’Outre-Mer, n° 226-227, 1975, p. 153. (8) MILLER, Joseph. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830". Wisconsin, The University of Wisconsin Press, 1988, p. 525. Ver também MILLER, Joseph. “The Numbers, Origins, and Destinations of Slaves in the Eighteenth-Century Angolan Slave Trade”. Social Science History, 1989, pp. 410-411. Ver ainda HARMS, Robert. River of Wealth, River of Sorrow: The Central Zaire Basin in the Era of the Slave and Ivory Trade, 1500-1891. New Haven, Yale University Press, 1981, pp. 28-29. (9) Há vários relatos que mostram o quanto o tráfico ilegal era perigoso para os próprios traficantes. Num deles, A. Oaksmitch, que era mestre do navio, relata o ataque por 1.500 africanos que o navio negreiro americano Mary Adeline sofreu perto do rio Zaire. É certo que os escravos que este navio pretendia embarcar seriam trazidos para o Brasil. Há vários documentos que mostram que o Mary Adeline, e mais dois outros navios negreiros, fazia parte de um empreendimento de traficantes. Mas nenhum deles é tão sugestivo quanto o fato de Oaksmitch ter se justificado pelo fracasso do Mary Adeline enviando uma carta para o cônsul americano em Salvador, um notório traficante. Ver carta de Oaksmitch para o cônsul americano em Salvador, em 26 de julho de 1852 (UNA, Diplomatic Despatches, Brazil, T331:1). Alguns autores afirmam que, após ter se tornado cônsul americano, Gilmer aderiu ao abolicionismo e contribuiu para o fim do tráfico para o Brasil, o que é desmentido por esta comprometedora carta. Ver RIDINGS, Eugene. Business Interest Groups in
Nineteenth-Century Brazil. New York, Cambridge University Press, 1994, p. 158. Em relação aos embates entre os navios negreiros, há pelo menos um registro: "(O Simpa) tendo ido a Ambriz para carregar de pretos cometeu o atentado de lançar fogo a um ramacho espanhol que estava igualmente fazendo o comércio da escravatura e em cujo incêndio morreram cento e tantos negros.” Ver ofício do encarregado de negócios da legação portuguesa no Rio de Janeiro, Joaquim Barrozo Pereira, para o Governador-Geral de Angola Barão de Santa Comba Dão (Ministério dos Assuntos Estrangeiros. Correspondência das Legações Portuguesas, Rio de Janeiro, Caixa 535, 1830-1834, ANTT, Lisboa). (10) Miller sugere que o tráfico por Benguela se esvaiu nos anos quarenta, enquanto Mary Karash afirma o contrário. Ver MILLER, Joseph. “Central and Southern Angola to ca. 1840”, p. 59, e KARASH, Mary. “The Brazilian Slavers and the Illegal Slave Trade, 1836-1851”. University of Wisconsin, Thesis of Masters of Arts, 1967, p. 38. Mas o próprio Miller, em outro momento, sugere que o tráfico em Benguela reviveu durante os anos quarenta: “Benguela’s trade, accordingly, declined steadily until the late 1820s. Understandably, given the residual semi-illicit flavor of slaving there, illegalization of the trade after 1830 brought a revival of its fortunes in the 1830s and 1840s.” Ver MILLER, Joseph. “The Numbers, Origins, and Destinations of Slaves in the Eighteenth-Century Angolan Slave Trade”, pp. 410-411. Eltis diz que 90 navios negreiros partiram de Benguela entre 1841 e 1850. Ver ELTIS, David. Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade. New York, Oxford University Press, 1987, p. 253. John Monteiro, que percorreu o sul e o norte de Angola nos anos setenta, afirma ter pessoalmente visto em apenas uma caravana 1.000 escravos que desciam do Bié em direção a Benguela nos anos sessenta. Ver MONTEIRO, John. Angola and the River Congo. Londres, MacMillan & Co., 1875, pp. 67-68. Pelo que diz Bouet-Williaumez é possível que os escravos não fossem diretamente para Benguela mas sim para pontos mais ao sul da cidade. Ver BOUET-WILLIAUMEZ, E. Commerce et Traité des Noires aux Côtes Occidentales d’Afrique. Paris, Imprimerie Nationale, 1848, pp. 177-178. (11) Ofício n 99, de Pedro Alexandrino da Cunha, em 5 de março de 1846 (Sala 12 Maços de Angola, Maço 874, Embarcações Apresadas nas Aguas Territoriais, 1841-1848, AHU).
(12) Para as apreensões de navios negreiros entre 1844 e 1846, ver o suplemento tio BOGGPA, n° 23, 18 de fevereiro de 1846. Os números relativos ao ano de 1841 estão em TAMS, George. Visita às Possessões Portuguesas na Costa Ocidental da África. Porto, Typographia da Revista, 1850, p. 250. O número de escravos que os ingleses libertaram em apenas seis meses (3.427) chama a atenção quando se lembra que as estimativas mais recentes variam entre 160.000 e 200.000 escravos libertados dos porões dos navios negreiros em 60 anos de abolicionismo. O primeiro número está em LEVEEN, Phillip. British Slave Trade Suppression Policies, 1821-1865. New York, Amo Press, 1977, p. 2. O segundo número pode ser visto em Eltis, David. “Impact of Abolition on the Atlantic Slave Trade”. In: Eltis, David & Walvin, James. The Abolition of Atlantic Slave Trade: Origins and Effects in Eitrope, África, atui the Américas. Wisconsin, University of Wisconsin Press, 1981, p. 155. (13) Ver cópia da ata da sessão, de 12 de setembro de 1837, em que o conselho da província de Angola se reuniu para discutir o decreto abolicionista português de 10 de setembro de 1836 (2 Seção, Correspondência dos Governadores de Angola, Pasta 2, 1836-1837, AHU). (14) BRAND, George. A General Return ofthe Trade of the Port of St. Paul de Loanda in the Province of Angola for the Year 1846. In: OLIVEIRA, Op. cit., p. 290. (15) MILLER, Joseph. “Legal Portuguese Slaving from Angola. Some Preliminary Indications...”, p. 145. Ver também MILLER, Way of Death, pp. 468-69. (16) As cifras para o ano de 1845 estão incompletas. Não cobrem todo este ano porque o BOGGPA só começou a circular a partir de meados de 1845. (17) Isto aconteceu em 1839. Ver LIMA, José Joaquim Lopes de. Ensaios sobre a Statistica das Possessões Portuguezas na África Occidental e Oriental; na Asia Occidental; na China e na Oceania. Lisboa, Imprensa Nacional, 1846, pp. 133. Antes disso, o viajante Tito Omboni, que esteve em Luanda ou em 1836 ou em 1837, afirmou que o governador-geral de então cobrava 13.000 réis por escravo embarcado em Luanda, o que era mais um motivo para que os traficantes procurassem o Ambriz ou o sul de
Angola para embarcar escravos. OMBONI, Tito. Viaggi nell’África Occidentale. Milano, Stabilimento di Civelli e Comp., MDCCCXLV, p. 107. (18) As medidas contra a circulação indiscriminada de escravos foram expedidas cm circular aos chefes de Calumbo, Barra do Bengo, Barra do Bande, Dande e Libongo, em 11 de outubro de 1845 (BOGGPA, n° 9, de 8 de novembro de 1845). Foi enviado ao administrador da alfândega de Luanda, em 3 de novembro de 1846, um ofício para “anunciar", convocando os proprietários de 15 escravos sem guia do governo-geral apreendidos na Barra do Bengo (BOGGPA, n° 10, de 15 de novembro de 1846). As punições contra os condutores de escravos foram pedidas no ofício ao delegado do procurador da Coroa e Fazenda, em 3 de novembro de 1846, requerendo “com urgência” procedimentos judiciais contra Domingos Ferreira Bastos, José Marques de Carvalho c João de Abreu, “que conduziam escravos a caminho d’exportação para a raia do norte” (BOGGPA, n° 10, de 15 de novembro de 1846). Quanto às destituições e punições dos chefes de distrito, ver ofício ao major e chefe do Colungo Alto, em 23 de outubro de 1845, determinando sua ida “ao Calumbo tirar uma devassa sobre o fato de uma embarcação (de escravos), a bordo do brigue Albanez, em Io de março deste ano, a fim de servir de esclarecimentos ao Conselho de Investigação a que se acha respondendo o tenente do batalhão de linha Christiano José de Gouveia, que foi chefe do dito distrito” (BOGGPA, n° 9, de 8 de novembro de 1845). Os desdobramentos do caso do tenente Christiano José de Gouveia estão no ofício (n° 381) que pedia que o juiz de direito remetesse para a Junta de Justiça os autos do Conselho de Guerra que respondeu o Tenente de linha Christiano José de Gouveia, quando chefe do Calumbo, por conivência em comércio de escravos (BOGGPA, n° 32, de 18 de abril de 1846). O combate ao tráfico ilegal a partir de 1845 é ainda atestado por BOUETWILUAUMEZ, E. Commerce et Traité des Noires aux Côtes Occidentales d'Afrique. p. 170. As transformações operadas em Angola a partir de 1845 são analisadas por Anne Stamm. Ver STAMM, Anne. “L’Angola a un Tournant de son Histoire, 1838-1848”, Paris, Université de Paris I, 1971 (tese de doutorado inédita). (19) BOGGPA n° 56, de 3 de outubro de 1846, e BOGGPA n” 99, de 31 de julho de 1847. BOGGPA n° 121, de 1 de janeiro de 1848, e BOGGPA n°
144, de 1 de outubro de 1848. Até mesmo antigas pendências de traficantes com os tribunais de Angola foram retomadas durante a administração de Pedro Alexandrino da Cunha. Foi o caso do mestre de um navio negreiro apresado em 1840, que teve seu processo retomado quando, em 1846, preso também por tráfico ilegal, subornou o chefe da guarda, fugiu da fortaleza de São Miguel e tentou viajar para o Brasil a bordo do brigue brasileiro Flor da América (Ofício do governador-geral para o procurador da Coroa e Fazenda, em 2 de julho de 1846, no BOGGPA n° 43, de 4 de julho de 1846). (20) Dos cinco navios que saíram em lastro de Luanda em 1854, quatro eram insuspeitos. Navios que tinham ido até lá carregando carvão de pedra exatamente para os cruzadores. (21) Não foi incluído nesta tabela, mas o viajante Tito Omboni menciona que durante apenas seis meses em Luanda, ou em 1836 ou em 1837, soube que 13.000 escravos haviam entrado na cidade. Ver OMBONI, Tito, op. cit., p. 107. (22) Suzanne Miers afirma que Portugal trocou o reconhecimento de territórios pelo combate ao tráfico ilegal: “When Portugal condemned vessels caught in this area for slaving in her dominious Britain protested that she did not recognise Portuguese territorial claims. Portugal offered to take vigorous action against the traffic in retum for such recognition ...” Ver MIERS, Suzanne. Britain and the Ending of the Slave Trade. New York, African Publishing Company, 1977, p. 24. Portugal temia tanto a diplomacia militar quanto os métodos nada convencionais da Inglaterra. Como o usado por um capitão inglês para obrigar um chefe africano a assinar um tratado em 1856: “(Os régulos) participaram também que o Capitão Wilmot conseguira que o mambuco de Cabinda fizesse uma cruz no papel que lhe apresentara depois de o ter embriagado com aguardente.” Ver BOGGPA, n° 564, p. 6, de 17 de julho de 1856. (23) Sobre a prisão de Constantino, ver ofício n 509 de Pedro Alexandrino da Cunha, em 5 de março de 1848 (Sala 12, Maços de Angola, Maço 874, Embarcações Apresadas nas Aguas Territoriais, 1841-1848, AHU). Sobre as saídas de lanchas por Luanda, ver ofício n 407 de Pedro Alexandrino da Cunha, em 6 de setembro de 1847, Idem, ibidem. As mortes de africanos são mencionadas no relato do comandante da lancha que apresou a lancha,
em 6 de junho de 1847 (Sala 12, Maços de Angola, Maço 874, Embarcações Apresadas nas Águas Territoriais, 1841-1848, AHU). (24) Mais detalhes sobre a prisão de Constantino podem ser encontrados no relatório que o juiz de direito da comarca de Luanda, Luiz José Mendes Affonso, fez em 18 de dezembro de 1849 (2a Seção, Correspondência dos Governadores de Angola, Pasta 16, 1850, AHU). A informação de que os escravos embarcados por Constantino em Angola eram consignados à casa comercia] administrada pelo traficante José Fortunado foi obtida pela polícia do Rio de Janeiro quando interrogou Antônio Francisco Guimarães Pinheiro, em 14 de dezembro de 1855 (IJ6 468, ANRJ). Sobre os crioulos angolanos, que também são chamados de luso-africanos ou euro-africanos, ver “Casualties ol Merchant Capital: The Luso Africans in Angola”. In: MILLER, Joseph. Way of Death, pp. 245-284. Ver também os textos de Jill Dias. DIAS, Jill. “A Sociedade Colonial de Angola e o Liberalismo Português (c. 1820-1850)". Lisboa, Colóquio o Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Metade do século XIX, 1981; DIAS, Jill. “Uma Questão de Identidade: Respostas Intelectuais às Transformações Econômicas no Seio da Elite Crioula de Angola entre 1870 e 1930”. Lisboa, Revista Internacional de Estudos Africanos, 1983. Ver ainda PACHECO, Carlos. José da Silva Maia Ferreira: O Homem e sua Época. Luanda, União dos Escritores Angolanos, 1990; PACHECO, Carlos. José da Silva Maia Ferreira: Novas Achegas para a sua Biografia. Luanda, União dos Escritores Angolanos, 1992. (25) O barracão de Constantino tinha “oitenta pés e quarenta e cinco de largura, continha dentro grande quantidade de feijão, milho, esteiras, vinte espingardas e grande porção de gargalheiras para escravos” e foi queimado pelos portugueses. Ver ofício (n 323) encaminhado pelo comandante da estação naval portuguesa em Luanda para o Governador-Geral da Angola, Pedro Alexandrino da Cunha, em 19 de abril de 1848 (BGGPA, n° 138, 27 de abril de 1848). (26) A informação sobre Ana Joaquina dos Santos Silva está em PACHECO, Carlos. José da Silva Maia Ferreira: O Homem e sua Época. Luanda, União dos Escritores Angolanos, 1990, p. 41. Ver também o inventário de José Maria Fragoso, incluído na lista de envolvidos no tráfico ilegal da polícia da Corte do Rio de Janeiro. É dito no inventário deste
comerciante brasileiro que ele (Fragoso) havia sido depositário judicial da fazenda que Ana Joaquina dos Santos Silva possuía no Brasil (Inventário de José Maria Fragoso, cx. 4.128, n° 2.036, ANRJ). (27) Sobre a ida de Flores para Angola, ver KARASH, Mary. “The Brazilian Slavers and the Illegal Slave Trade”, p. 18. São inúmeros os exemplos de filantropia praticados por Flores. Num deles a tropa que guarnecia Luanda foi beneficiada com mantimentos doados por Flores. Ver ofício de 15 de julho de 1856 do chefe da tropa de guarnição de Luanda (BOGGPA, n 563, p. 11, de 12 de julho de 1856). Mais tarde, Flores faria ainda pelo menos mais uma doação de mantimentos para a tropa de guarnição de Luanda (BOGGPA, n° 50, 12 de dezembro de 1863). (28) O nome de Flores é usado como um fio condutor para explorar e desvendar um padrão mais geral do funcionamento do tráfico ilegal. Ver “O Nome e o Como”. In: GINZBURG, Cario. A Micro-História e Outros Ensaios. Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 1989, pp. 169-179. (29) Podem-se ver quantas vezes Flores foi citado pela polícia da corte no IJ6 468, ANRJ. A partir do caso da barca Eunomus, o governador-geral de Angola foi acusado de conivência com o tráfico ilegal. Ver o relatório do juiz de direito da comarca de Luanda Luiz José Mendes Affonso, em 18 de dezembro de 1849 (pasta 16, 1850, AHU). (30) Para as várias consignações que Flores fez do navio General Rego, ver BOGGPA, número de fins dos anos quarenta. Para a sua chegada a Luanda a bordo do brigue Africano, ver BOGGPA, n° 299, de 14 de junho de 1851. (31) Para a invasão militar do Ambriz, em 1855, ver BROADHEAD, Susan. “Beyond Decline: The Kingdom of the Kongo in the Eighteenth and Nineteenth Centuries”. Boston, The International Journal of African Historical Studies, n 12, vol. 12, 1979, p. 648. Ver também MONTEIRO, Joachim John. Angola and the River Congo. London, MacMillan and Co. 1875, pp. 152-53. Sobre a destruição dos barracões de Flores, ver KARASH, Mary. “The Brazilian Slavers and the Ulegal Slave Trade”, p. 18. (32) As informações sobre as pressões sofridas por Flores, sua saída de Luanda e a participação de Augusto Garrido como seu consignatário estão
nas cartas pessoais de outro traficante, Antônio Severino Avellar, apreendidas, em 1855, pela polícia do Rio de Janeiro. Ver extrato da carta n° 15 de G. J. da Motta, em Lisboa, para Anthony Silvestre (o nome fictício de Antônio Severino de Avellar), em Trindade, em 8 de janeiro de 1855, e o extrato da carta n° 28 de G. J. da Motta, em Lisboa, para Anthony Silvestre, em Havana, em 28 de maio de 1855 (IJ6, ANRJ). (33) Ver STAMM, Anne. “La Société Créole à Saint-Paul de Loanda dans les Années 1838-1848”. Paris, Revue Française d’Histoire d'Outre Mer, n° 217, 1972, p. 600. (34) Ver sentença proferida em 31 de março de 1852 (BOGGPA, n° 340, p. 4, de 3 de abril de 1852). Ver ainda sobre este caso o BOGGPA, n° 347, p. 4, de 22 de maio de 1852. Sobre o caso de Soeiro, ver o BOGGPA, n° 702, de 12 de março de 1859. (35) Auto de Registo de Propriedade entre 1848 e 1854 (registro n° 1.250, cota 4-2-31, AHNL). (36) Sobre Feio, ver anúncio do BOGGPA, n° 196, p. 4, de 30 de junho de 1849. Ver o caso de Botelho no BOGGPA, n° 219, p. 4, de 8 de dezembro de 1849. A implicação de Botelho no tráfico ilegal está na carta de Joaquim de Paula Guedes Alcoforado, de 16 de fevereiro de 1853 (IJ6 468, ANRJ). Botelho foi pelo menos uma vez consignatário do General Rego, um navio que era comumente consignado por Flores. Ver BOGGPA, n° 129, 26 d fevereiro de 1848. (37) Manuel Francisco Alves de Brito publicou anúncio declarando que Flores seria seu procurador no BOGGPA, n° 377, p. 4, 18 de dezembro de 1852. Ele é citado como um importante traficante angolano por KARASH, Mary. Pode se ver o nome de Brito na lista de grandes negociantes angolanos que requisitaram ao governo português o aumento no limite de urzela exportada por negociante. Ver correspondência dos Governadores de Angola, Pasta 14(1848 AHU. O anúncio de Bastos foi publicado no BOGGPA, n° 648, p. 827, d fevereiro de 1858. Para ver onde Bastos morava e as informações dando conta das duas lanchas, conferir o Auto de Registo de Propriedade entre 1848 1854 (registro n° 1.250, cota 4-2-31, AHNL).
(38) Sobre o contrato de fornecimento de gêneros, ver suplemento do BOGGPA, n° 593, 12 de fevereiro de 1857. Para as crises de abastecimento em Luanda, ver DIAS, Jill. “Famine and Disease in the History of Angola c. 1830-1930”. Journal of African History, n° 3, Londres, 1981. (39) Relação das Participações de Descobertas de Jazidas Minerais nesta Província, que existem registradas no livro competente da Secretaria do Governo-Geral respectivo (BOGGPA, n° 615, 11 de julho de 1857). Valentim Alexandre chega a dizer que foi Flores que levou o governo português a ocupar o Ambriz. Em troca das concessões para explorar as minas que já se sabia que lá existiam, Flores teria não só arcado com parte dos custos da expedição militar que ocupou o Ambriz como também prometido colonizá-lo. Ver ALEXANDRE, Valentim. Origens do Colonialismo Português Moderno. Lisboa, Sá da Costa Editora, 1979, p. 52. (40) BOGGPA, n° 594, 14 de fevereiro de 1857, Parte Oficial: Ministério da Marinha e Ultramar. Isaacman subestima Flores, dizendo que sua participação na exploração de minas em Angola comprova o desinteresse dos comerciantes portugueses que operavam no comércio lícito por tal atividade. Segundo Isaacman, que não consegue vê-lo como um investidor que tinha interesses que iam além do tráfico ilegal, Flores foi obrigado pelo contrato de concessão a proporcionar casa e emprego para 30 famílias de imigrantes europeus mas recebeu isenção de impostos sobre os produtos necessários para operar a mina. Ver ISAACMAN. Allen. “An Economic History of Angola, 1835-1867”. Thesis Master of Arts, University of Wisconsin, 1966, pp. 41-42. (41) MONTEIRO, Joachim John. Angola and the River Congo. London MacMillan and Co. 1875, p. 159. (42) MENEZES, Sebastião Lopes de Calheiros e. Relatório do GovernadorGeral da Província de Angola. Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 304. (43) BRAND, George. A General Retum of the Trade of the St. Paul de Loanda in lhe Province of Angola for the Year 1846. In: Oliveira, Mário Antônio. Op. cit.
(44) Ver interrogatório de Antônio Severino de Avellar em 17 de novembro de 1855 na Secretaria de Polícia da Corte do Rio de Janeiro (IJ6 522, ANRJ). (45) Idem, ibidem. (46) Nota da Legação Britânica no Rio de Janeiro, em 20 de setembro de 185 (IJ6 522, ANRJ). (47) Ofício n° 454 da Secretaria de Polícia da Bahia, em 14 de fevereiro de 1856 (IJ6 472, ANRJ). (48) IJ6 472, ANRJ. (49) Idem, ibidem. (50) Livro de carga do navio negreiro Dolores apreendido nos papéis de João José Vianna (IJ6 472, ANRJ). Para o carregamento de navios por investidores nativos, ver MILLER, Joseph. Way of Death. (51) Murray se preocupa mais com os aspectos diplomáticos e desconhece a participação dos brasileiros no tráfico ilegal para Cuba. Ele diz que os traficantes brasileiros só se voltaram para Cuba depois de 1851, quando deram um “scope” muito mais internacional para o tráfico de escravos em Cuba: “From the summer of 1851 when the trade to Brazil had been shutt off, a few slavers from Brazilian ports like Bahia or Montevideo in neighbouring Uruguay had sailed for África and landed slave cargoes in Cuba.” Ver MURRAY, David R. Odious Commerce: Brilain, Spain and the Abolition of the Cuban Slave Trade. New York, Cambridge University Press, p. 248. Sobre o tráfico ilegal em Cuba, ver também FRANCO, José Luciano. Comércio Clandestino de Esclavos. Havana, Editorial de Ciências Sociales, 1980.
VI. A Evolução de Luanda: Aspectos Sócio-demográficos em Relação à Independência do Brasil e ao Fim do Tráfico Fernando Augusto Albuquerque Mourão
A análise demográfica da população de Luanda, assim como os dados referentes à distribuição das profissões e à construção civil mostram, os primeiros, uma certa relação com a independência do Brasil e, os segundos, com a extinção do tráfico. Verificadas as principais fontes de registro demográfico sobre a população de Angola, passaremos à análise dos dados disponíveis relativos à população de Luanda, confrontando a consistência das fontes (Tabelas 1 e 2). Os dados mais organizados foram levantados por José Joaquim Lopes de Lima (1846). O primeiro registro de que dispomos — 300 ‘brancos’ em 1607 — mostra que a população ‘branca’ praticamente não varia até 1823, quando já ultrapassa a casa do milhar, para fixar-se em 1.601 pessoas em 1845. É conveniente registrar que os dados relativos à população ‘branca’ em Luanda sofrem alterações periódicas em virtude da movimentação de tropas ‘brancas’ para o interior da colônia, ora substituídas por ‘mestiços’ e degredados. A tropa, estacionada em Luanda, é chamada periodicamente a intervir em diversos pontos, ora de penetração, ora em apoio de um potentado africano aliado do rei de Portugal, ora de ‘pacificação’, diminuindo sua contribuição ao cálculo da população ‘branca’ da cidade.
A elevada taxa de mortalidade entre os militares e os degredados, estes últimos com uma esperança de vida bastante baixa (31 anos), responde em parte pelas oscilações numéricas do computo demográfico. Apesar de todos os problemas advindos da inconsistência dos dados, o procedimento adotado possibilitou-nos a obtenção de uma série numérica com datas mais próximas e, consequentemente, a descoberta de pistas interessantes. Procedemos ao levantamento de alguns documentos num sem-número de obras e estatísticas, confrontando os mesmos, sempre que possível, o que nos permitiu construir uma tabela histórica e indicar em notas as inconsistências encontradas. Os resultados estampados nessas tabelas são os resultados desses levantamentos. Segundo os dados de D. Antônio de Lencastre (1772-1779), nos mapas de população que enviou à Coroa (COUTO, 1972:110), a população de Luanda, em 1773, era de 1.519 pessoas, das quais 983 escravos espalhados pelas duas freguesias, a da Sé e a de N.Sr.a dos Remédios, e 612 militares (1). Os ‘brancos’ da primeira classe, 251 (H. — 214, e M. — 37), ‘com’ 787 escravos, 80,0%; os ‘mestiços’, da segunda classe chamados de ‘pardos’, 138 (H. — 106, e M. — 32), ‘com’ 187 escravos, 19,0%; e, finalmente, os ‘negros’, os chamados ‘pretos livres’, da terceira classe, 147 (H. — 143, e M.— 4), com 9 escravos, 0,9%. Uma primeira leitura das Tabelas 1 e 2 relativas à população de Luanda, segundo os grupos somáticos e sexo, mostra que a cidade era habitada principalmente por ‘mestiços’ após 1850, situação que se inverteria a partir dos anos quarenta do século seguinte. Nos anos trinta, a população mestiça’ já começava a perder posição em virtude da chegada de numerosas mulheres ‘brancas’ (em 1925), dentre as quais grande número de artistas que se fixaram em Luanda c casaram-se rapidamente. Alguns documentos da época e entrevistas que realizamos dão-nos conta da importância relativa desse contingente humano que chegou em Luanda, curiosamente numa época em que já se prenunciava a crise econômica internacional com consequências diretas para a população ‘branca’ da colônia; esta, em grande número, voltou à metrópole, ou se transferiu para
a África do Sul; outros, em número menor, para o então vizinho Congo Belga. Os ‘mestiços’ são assinalados em numerosos documentos referentes a várias épocas, como o importante papel do regimento de ‘mestiços’ que ajudou Salvador Correia de Sá e Benevides na reconquista da cidade aos holandeses. Um terço da infantaria, em 1666, era igualmente constituído por ‘mestiços’. De certo modo, coube aos ‘mestiços’, durante um longo período, a penetração no interior da colônia, a partir de M’banza Congo, após o interdito da Coroa em 1661, proibição que vai até 1758. A proibição aos comerciantes ‘brancos’ de entrarem no interior decorria das razias que faziam e, principalmente, dos problemas que criavam com os sobas da região (2). A documentação dá conta de que o mestiçamento já ocorrera anteriormente em M’banza Congo, quando comerciantes portugueses, juntamente com os frades capuchinhos, entre outros, aí se haviam estabelecido, no primeiro período do contato com os africanos que habitavam abaixo do equador. As fases de isolamento em relação ao território metropolitano contribuíram também para o aumento não só da população ‘mestiça’, do ponto de vista demográfico, como ainda de sua importância relativa no quadro social da colônia. O isolamento em relação aos interesses da Coroa permitiu o desenvolvimento de uma sociedade local com interesses próprios. Ao longo do tempo, verificamos ora uma aproximação de interesses de ‘mestiços’ com os da população ‘branca’, ora um afastamento; ora uma aproximação com os interesses da Coroa, ora um afastamento, gerando contradições várias num processo que esteve longe de ser linear. Todas essas contradições estão na raiz do conceito de angolanidade. Numa primeira observação das Tabelas 1 e 2 — população de Luanda de 1607 a 1970 —, verificamos que, até 1823, o número de ‘mestiços’ é superior ao de ‘brancos’, quando nesse ano os ‘brancos’ passam da casa de algumas centenas, 443 em 1821, para 1.480, sendo as mulheres, 160 (MESQUITA, 1972:30-31). Ocorre que, em 1823, Cristóvão Avelino Dias chegou em Luanda acompanhado por forças militares (de elementos ‘brancos’) que haviam
sido pedidas pela Junta Provisória de Governo da colônia (1822-1823), na ocasião da independência do Brasil. Em 1822, o então governador Joaquim Inácio Lima (1821-1822) foi deposto por um motim e subiu à Junta, tendo à sua frente o bispo D. João Damasceno Póvoas. Parte dos membros da Junta eram favoráveis à independência de Angola. O próprio bispo havia já criado um clero angolano. Nessa ocasião, um dos regimentos de infantaria revoltou-se contra a Junta. A situação era extremamente ambígua entre os partidários de uma independência, de uma junção com o Brasil e da permanência dos vínculos com Portugal. Vários deputados foram eleitos e embarcaram via Rio de Janeiro; mas as cortes convocadas para Lisboa não chegaram a se reunir. Entre esses deputados estava Amaral Gurgel, que era favorável à ligação com o Brasil. Nessa ocasião, enquanto as exportações de Angola para o Brasil representavam quatro quintos, para Portugal era de apenas um quinto. Quanto às importações, 16% vinham de Portugal; e o restante, do Brasil. A revolta do regimento de infantaria contra a Junta deveria, por princípio, ser debelada; a par disso, seria preciso garantir uma presença ‘branca’ metropolitana, em face dos ‘brancos’ locais favoráveis à autonomia, ou à ligação com o Brasil. Com as devidas reservas e levando em conta que, em 1821, registram-se 443 ‘brancos’ em Luanda, a ação da Coroa cria uma relação de dois metropolitanos para um ‘branco’ local. Já em 1846, a situação inverte-se novamente com 1.000 ‘brancos’ para 2.000 ‘mestiços’, número este que outras fontes aumentam para 5.570. Em 1851, o número de ‘brancos’ baixa para 830, enquanto que o de ‘mestiços’ é de 2.400. Em Benguela, em 1821, registram-se 151 ‘mestiços’, 35 ‘brancos’, 2.071 ‘negros’. Dos 35 ‘brancos’, 22 são europeus, 10 americanos e 1 africano. A maioria dos ‘brancos’ está registrada como ‘militar’, sendo dois clérigos e um oleiro. Do ponto de vista demográfico, o século XIX registra alterações profundas. Nos primeiros vinte anos a população ‘branca’ mantém o mesmo ritmo anterior. O aumento da população ‘branca’ em 1823, como já tivemos ocasião de verificar, é resultado do envio de tropas para Angola. Em virtude da independência do Brasil, ocorrida no ano anterior, desejavase evitar a anexação de Angola ao novo país (como alguns moradores de Luanda e Benguela desejavam) ou então sua possível autonomia. A influência da Coroa fazia-se sentir nos arredores de Luanda e de seus presídios e ainda no reino de Benguela e em seus presídios.
Retomando a análise demográfica da população de Luanda, verificamos que na passagem de 1845 para 1850, segundo os dados das Tabelas 1, 2 e 4, ocorre uma queda da população ‘branca’ de 1.601 indivíduos para 1.240, caindo ainda mais em 1851 para 830, voltando a subir em 1861, com 930 indivíduos, número que só começa efetivamente a aumentar a partir de 1869, quando se registram 1.368 ‘brancos’. Se a queda da população ‘branca’ está ligada ao término do tráfico da escravatura, possivelmente com o desaparecimento de uma população ‘branca’ flutuante (de que vários textos dão conta), um fato merece ser posto em relevo: o número de mulheres ‘brancas’ em 1845 passa de 135 para 420 em 1850, o que revela um certo amadurecimento da população ‘branca’ que tende a uma maior estabilização, embora diminuam os flutuantes. Se os dados referentes ao aumento de mulheres ‘brancas’ em Luanda a partir de 1850 são mais significativos, eles têm, no entanto, de ser levados em conta uma vez que esta relação se mantém mais ou menos constante, com exceção dos dados referentes a 1900, quando o número de mulheres decresce momentaneamente. Os dados da Tabela 3 indicam para os anos de 1781 e 1799 uma sex ratio, onde se registra um número de mulheres ‘brancas’ extremamente alto, e que não corresponde à tendência manifestada nas séries históricas que aparecem nas Tabelas 1 e 2, onde o número de mulheres é sempre bem inferior aos dados registrados na Tabela 4. Em relação aos ‘mestiços’, registram-se 491 em 1845 e 474 em 1850, passando a 2.400 em 1851. Contudo, na Tabela 4, o número de ‘mestiços’ registrado em 1850 é de 2.055, portanto, bem superior àquele das primeiras tabelas; aproximando-se dos dados de 1851. No que toca à população ‘negra’, passou de 3.513 para 3.530, segundo as primeiras tabelas, enquanto os dados da Tabela 4 registram 9.270, resultado próximo dos 9.000 registrados para 1851 nas tabelas anteriores. Os dados da Tabela 4, de 1850, que incluem os moradores dos subúrbios da cidade, são apresentados de forma cuidadosa, compreendendo o sexo, o estado civil e uma curiosa divisão por faixas de idade (0-7,07-14,14-25 e maiores de 25 anos). Esta estatística ainda nos oferece indicações relativas à população africana segundo livres e escravos: para a população ‘negra’, temos 63,6% de escravos e, para os ‘mestiços’, 5,7%. Embora os
intervalos de idade utilizados na estatística de 1850, em termos de grupos de idade, não permitam a comparação com dados posteriores e mesmo uma análise, oferecem, contudo, a visão de que se trata de populações migrantes dos três grupos somáticos, refletindo o choque entre a população que já habitava a cidade e os recém-chegados. Os ‘mestiços’ voltam a Luanda com a interrupção do tráfico e, como segmento populacional, passam a ocupar uma posição relevante até os anos trinta do nosso século. Os ‘negros’, independentemente da manutenção da escravatura, sentem-se possivelmente mais seguros na cidade, e isto em comparação aos outros espaços já afetados pelo sistema colonial. A construção civil em Luanda, cresce nesse período em que os ‘brancos’ flutuantes saem da cidade; as estatísticas referentes a profissões, salvo as mais sofisticadas, não apresentam quedas. Pelos dados relativos a 1850 (do mapa estatístico publicado no Boletim Oficial n 303, de 19 de julho de 1851), e constantes na Tabela 4, verificamos que o número de ‘mestiços’ e ‘negros’ aumenta substancialmente. Como já vimos, em decorrência da proibição oficial do tráfico, uma parte dos ‘mestiços’ que vivia na área dos presídios e dos distritos deslocou-se para Luanda. Nessa ocasião, o número de ‘negros’ também aumentou substancialmente. Contudo, é importante ressaltar que a partir de 1850 a população ‘mestiça’ retorna a Luanda, voltando a ter a importância que teve nos primeiros séculos e que irá manter até meados da década dos anos trinta do nosso século. Os dados referentes à população para 1830 e 1831 mostram que o número total de ‘mestiços’ em Angola era, na ocasião, de 3.870, dos quais 1.500 mulheres, sendo que apenas 17% moravam em Luanda. Nessa ocasião, a maioria dos ‘mestiços’ localizavam-se nas áreas dos presídios e dos distritos, ocupando-se fundamentalmente do comércio com o interior. O próprio corpo militar dos presídios tinha mais ‘mestiços’ do que ‘brancos’. Mário Antônio, sem tirar maior partido da informação, numa rápida passagem, ao tratar da relação com o interior, critica R.C. Boxer, que minimiza a “extensão do processo ao interior”. Munido de dados fornecidos por Lopes de Lima, Mário Antônio informa que “maior do que em Luanda (...) um elevado número de habitantes pardos encontra-se em
Caconda (...)” (OLIVEIRA, 1981:35). Com a interrupção do comércio de escravos, além de outros motivos, o percentual relativo de ‘mestiços’ em Luanda volta a elevar-se, até que o mestiçamento entra em declínio após as primeiras décadas do nosso século. O corte sincrônico a que a maior parte dos autores procede quando estudam a sociedade de Luanda, a ‘sociedade mestiça’, por excelência, precisa ser confrontado com uma visão do processo, em diacronia, conjugando-se a evolução e análise estrutural dos dados demográficos com a economia e, mais precisamente, com os mecanismos do chamado comércio com o sertão. A cidade, que há longos anos não se beneficiava com obras públicas de vulto, no governo de Pedro Alexandrino da Cunha (1845-1848) registra uma série de medidas que fazem lembrar a ação de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1764-1772). Além de uma série de medidas de natureza urbanística, do plantio sistemático de árvores no espaço urbano, a cidade passa a ter um novo referencial toponímico a partir de uma nomenclatura aprovada em 1844. Um levantamento estatístico dos prédios da cidade de Luanda, organizado especificamente para fins de natureza fiscal, relativo ao ano econômico de 1846 a 1847, permite-nos um conhecimento objetivo de Luanda, de suas ruas e bairros. Esta relação, em primeiro lugar, permite-nos estabelecer uma diferença fundamental entre o conceito de rua e o de bairro. A designação bairro aplicava-se fundamentalmente para designar os espaços ocupados preferencialmente pela população africana. A grande maioria ou é designada por nomes em kimbundo (ou com origem nessa língua), ou por designações de natureza geográfica; uns poucos relacionam-se com a toponímia religiosa, como, por exemplo, o bairro de Nazareth e do Rosário. De um total de 1.539 moradias (3) africanas — cubatas —, 893 localizavam-se nos bairros, ou seja, 58,0%, percentual que sobe para 64,9%, no caso de excluirmos as moradias africanas localizadas na ilha de Luanda. As habitações africanas espalhadas pelas ruas concentram-se na ‘cidade baixa’, embora também apareçam na ‘cidade alta’, ou nos seus acessos, como no caso da rua da Misericórdia. A distinção, segundo a
volumetria, entre casas de sobrado e casas térreas, mostra também uma concentração no centro da Baixa. A rua Diogo Cão, que vai do largo do Palácio até a antiga ponte Diogo Cão, englobando parte da antiga rua da Cadeia, registra a presença de 11 habitações africanas, seis sobrados e cinco casas térreas; isto, até certo ponto, mostra que a expansão da ‘cidade alta’, do ponto de vista social, foi de certo modo interrompida. A distinção, segundo a volumetria, entre casas de sobrado e casas térreas, mostra uma concentração destas últimas no centro da Baixa, onde as ruas e os largos passavam a dar sentido à cidade; as casas térreas caracterizam mais as áreas fora do eixo central. Nesta ocasião, as construções de tipo sobrado representavam já 34,0% das casas de pedra e cal. A área dos sobrados corresponde, grosso modo, à área onde o governador Sousa Coutinho (1764 1772) determinou a construção de uma série de armamentos. Ele mandou abrir um armamento em direção à fortaleza do Penedo, onde mais tarde, no governo de Luiz da Mota Feo e Torres (1816-1819), foram plantadas 570 árvores. Este governador plantou ainda 434 árvores na zona do Terreiro Público. A obra de Souza Coutinho, no que toca à urbanização da cidade, teve prosseguimento e, em 1779, a ‘cidade alta’ teve melhorados os seus acessos, com a construção da Calçada do Baltazar Aragão e da Calçada do Pelourinho. Confrontando os nomes das ruas (19), das travessas (12), das praças e dos largos (11), das calçadas (3) e dos becos (3) da relação publicada em 1848 (4) com a planta de 1775 (AMARAL, 1961:411-413), verificamos uma mudança na toponímia urbana, o que aliás foi uma constante em Luanda. Na planta de 1775, com exceção das construções religiosas e militares, que começavam a emprestar o nome ao local, os caminhos, os acidentes, os cursos de água e os bairros tinham nomes em língua kimbundo. O avanço da cidade-feitoria leva a uma apropriação do espaço em sentido amplo, passando a toponímia a registrar designações em português, embora a denominação dos bairros em kimbundo tenha resistido até tardiamente. As ruas, calçadas e becos, a par de nomes de personalidades de relevo, registram uma memória limitada pelas ondas de urbanização, pontilhada por nomes de antigos moradores da área. As alterações na toponímia variam na relação direta da apropriação do espaço luandense pela ideologia oficial do país colonizador.
O crescimento das construções em Luanda, entre 1846 e 1850, casas térreas, sobrados e cubatas, é acompanhado pelo crescimento das atividades artesanais. Se compararmos a tabela registrada na nota 18 (LIMA, 1846, livro III, parte 1:52) com a estatística de oficinas estampada no final da nota 22, relativa ao ano de 1850 (SANTOS, 1970: 167-169), verificamos um crescimento real das atividades artesanais. Comparando os dados de 1832 com os de 1850, temos um acréscimo: alfaiates, 16; barbeiros, 22; ferradores, 16; marceneiros, 4; pedreiros, 47; pintores, 2; tanoeiros, 8. Registramos também um decréscimo: sapateiros, 76; ferreiros, 14; carpinteiros, 35; ourives, 11; torneiros, 7. A comparação entre as estatísticas — a estatística de 1850 oferece os totais discriminados entre mestres, oficiais e aprendizes — mostra, grosso modo, que o aumento de pedreiros, por exemplo, está diretamente relacionado com o acréscimo que a construção sofreu neste período; atividades mais sofisticadas, como, por exemplo, a ourivesaria, tiveram uma queda; pintores, um acréscimo mínimo. A título de hipótese, podemos dizer que as atividades sofisticadas não cresceram na razão do crescimento dos ofícios, ligados a um surto de construção menos sofisticado. Embora estes dados sejam relativos, são, no mínimo, indicadores. O aumento das construções, entre 1845 e 1850 (em cinco anos foram edificados 34 sobrados, 113 casas térreas e 1.618 casas cobertas com teto de palha); o aumento do número de artesãos entre 1832 e 1850, embora este número tenha decrescido em relação a atividades mais sofisticadas; a diminuição da população ‘branca’ e o aumento da população ‘mestiça’ e ‘negra’; todos esses elementos são, de per si, e correlacionados, ainda mais significativos. Uma boa parte dessas construções, se não a quasetotalidade, está relacionada com a volta para Luanda dos antigos intermediários comerciais ‘mestiços’ e ‘negros’. O aumento do número de mulheres ‘brancas’, numa ocasião em que a população ‘branca’ como um todo diminui, pode ser tomado como um fator de amadurecimento social dessa população, isto é, no sentido de já se admitir Luanda como morada permanente. A grande maioria dos artesãos era constituída por africanos, estimados em oito décimos por Lopes de Lima. Enquanto que na Luanda seiscentista e
setecentista as principais olarias pertenciam aos conventos — os jesuítas, por exemplo, chegaram a ter fornos de cal e fabricação de tijolos que não só usavam nas suas obras, como também comercializavam — no século XIX, as olarias localizadas no bairro do Sangandombe — onde mais tarde foi construído o bairro dos Ferreiras — eram de africanos que trabalhavam o barro preto para o fabrico de bilhas, muito usadas numa cidade, que ainda não contava com água encanada. A maioria dos artesãos vivia nos velhos bairros africanos que tomavam os nomes da nomenclatura kimbundo e que se localizavam ora na ‘cidade baixa’, contígua à Baixa, isto é, no centro comercial, ora no plateau. O velho bairro do Cafaco, já no nosso século, deu origem a um bairro de classe média branca: o bairro do Cafaco, que ia até a Luís de Camões. Na ‘cidade baixa’, tínhamos: Kaponta, onde depois se edificou o mercado municipal da Baixa; Mutamba, onde surgiu o largo do mesmo nome; Bungo, a zona que ia da ermida de N.Sr.a de Nazaré até o mercado da Kaponta; Quipacas, no início da encosta das barrocas, onde, mais tarde, surgem a estação da estrada de ferro e a estação principal; Katari, perto do atual largo do Pelourinho (largo Kataadi); e Quitanda, na área da Quitanda Grande, zona de comércio de víveres, onde foi construído o largo de Luís Lopes Sequeira (Largo do Atlético — homenagem a um clube tradicional de Luanda, muito popular, que está ligado à formação do nacionalismo angolano). Entre os logradouros de nomenclatura de origem religiosa (o ponto de referência foi um templo), temos: Nazaré, perto da ermida; Remédios, na zona da igreja de N. Sr.a dos Remédios; S. Miguel, próximo à fortaleza. Ainda na Baixa, temos: o Terreiro, perto do antigo Terreiro, a zona de comércio de víveres, onde depois surge o largo do Infante D. Henrique; o velho bairro dos Coqueiros, bordeando a cumeada das barrocas interiores da ‘cidade alta’. Na zona intermediária entre a Baixa e o plateau, temos: Mazuika, perto da igreja do Carmo; Kafaco, Maculusso e Ingombotas. Não aparecem menções ao antigo bairro de Santa Efigênia. Em direção ao Sul, temos: Sangandombe; Quibando, onde depois foi construído o Cine Teatro. No plateau, na mesma direção, localiza-se Maianga. Não há referências ao velho bairro do Rosário, no alto da Maianga. O bairro da Misericórdia ficava próximo à área da nova igreja de N. Sr.a da Conceição.
A população africana encontra-se espalhada ora em bairros (a maioria) com nomes derivados da língua kimbundo, ou de origem religiosa, ora em áreas contíguas às zonas de comércio. No passado, os escravos destinados ao tráfico moravam em habitações de tipo provisório, construídas nos quintais das casas erguidas ao longo da linha litorânea, fora de qualquer visão urbana; os escravos domésticos residiam na casa dos ‘senhores’, como era o caso da ‘cidade alta’, e no núcleo comercial da ‘cidade baixa’. Aos poucos começam a surgir os bairros africanos, ora tipicamente africanos, como o do Sangandombe, ora mistos, como o dos Coqueiros (embora predominantemente africano). Ainda com a designação de bairro, aparece mais tarde o bairro das Ingombotas, onde habitava a classe média africana, em parte transferida, já em nosso século, para o antigo bairro Operário, localizado depois do Alto das Cruzes (cemitério mandado construir pela Câmara, que substitui o antigo cemitério africano do Maculusso; este nome significa cruzes em Kimbundo). O termo bairro, que era dado tradicionalmente às áreas de habitação africana, enquanto os ‘brancos’ moravam em casas situadas em ruas, foi substituído pelo termo musseques, evolução semântica digna de registro. Os bairros tradicionais que abrigavam as massas populares africanas passam a musseques e os bairros de classe média africana, como o das Ingombotas, são evacuados, dão lugar ao bairro Operário. Mais tarde surgem os chamados bairros indígenas. Como vemos, a própria nomenclatura mostra uma involução na relação com os africanos, caminhando a passos largos para a divisão entre a ‘cidade branca’ e a ‘cidade negra, ou, mais usualmente, a ‘cidade do asfalto’ e a ‘cidade dos musseques’, designações de natureza técnica, que não escondem a ruptura social e racial. A população africana, artesãos ou criados, a par da classe média africana, todos são obrigados a uma migração ao longo dos tempos dentro da cidade de Luanda. O núcleo africano que vivia no antigo bairro dos Coqueiros foi um dos primeiros a ser expulso. As sucessivas epidemias de varíola, em 1856 e 1864, justificaram toda uma série de medidas de natureza dita higiênica que redundaram na expulsão da população africana desse bairro tradicional. A cidade foi dividida em dez zonas, tendo sido criadas
comissões sanitárias para cada uma delas (5). “(...) a Câmara Municipal promoveu a demolição das cubatas dos Coqueiros, desaparecendo, assim, este bairro.” (6) Esta informação, que consta de um documento inédito que se deve a Manuel Alberto Bento Ribeiro (integrante do Conselho Legislativo da Colônia e membro de uma família africana de tradição em Luanda), chegou-nos às mãos graças à gentileza de seu filho, o tenentecoronel do exército angolano, Alberto Bento Ribeiro — Kabulo. O documento esclarece que parte da população africana do bairro dos Coqueiros foi transferida para o Alto das Cruzes: “Pelos anos adiante, veio também a desaparecer o bairro de Sangandombe, sacrificado às conveniências urbanísticas. Ficou apenas a Ingombota para habitação dos ‘nativos’, com outros dois núcleos populacionais: o bairro dos Cabindas, no Bungo, o dos pescadores na Quinanga, junto à praia do Bispo, local onde se erguem as casas construídas pelo Fundo dos Bairros Operários. Em seguida à peste bubônica, que infestou a cidade no governo do General Norton de Matos, foram destruídos o bairro dos Cabindas e o da Quitanda e começou-se, aí por 1922, a mudança das Ingombotas para os musseques. Passou a fazer-se ali o centro residencial dos nativos” (Manuel Bento Ribeiro). Na metade do século passado, a partir das estatísticas de 1850, verificamos que o número de construções cresceu — quer as de pedra e cal, quer as de adobe, e as cubatas. Houve um aumento da população ‘mestiça’ e ‘negra’; a população ‘branca’ diminuiu, embora haja crescido o número de mulheres ‘brancas’. Tal fato é bastante indicativo: Luanda não é mais a feitoria, mas a capital administrativa de uma colônia onde o comércio e a agricultura, praticados pelos africanos, garantiram a passagem do período do tráfico para o desenvolvimento de um comércio, sem que tenha ocorrido uma ruptura. No entanto, a partir desse período, apesar de a população ‘branca’ ter sofrido uma pequena queda nos primeiros anos após o término legal do tráfico, as famílias ‘brancas’ apresentaram-se de forma mais estruturada com a entrada de um número substantivo de mulheres ‘brancas’, do que resultou um aumento de casais ‘brancos’ presentes. A população ‘mestiça’ e ‘negra’ aumentou. O comércio geral tomou o lugar do tráfico. A construção civil cresceu. É curioso assinalar que a queda da população ‘branca’, acompanhada pelo aumento dos ‘mestiços’ e dos ‘negros’ em Luanda, na virada do século, refletiu-se na
construção de casas. Numerosos ‘mestiços’ e alguns ‘negros’, ligados de forma direta ou indireta ao tráfico, ao comércio em geral, ou proprietários no interior, próximos à capital, transferiram-se para Luanda. Lá construíram moradias (casas térreas e sobrados), em contraposição a africanos que, em virtude de ocuparem posição econômica inferior, foram responsáveis pelo aumento, nesse período, de construções cobertas de palha. Embora não contemos com dados referentes à vida econômica da época, em que o comércio geral aumenta, tomando o lugar do tráfico, acreditamos que a população ‘mestiça’ e ‘negra’ economicamente diferenciada não se localizou no setor de negócios, mas sim preferencialmente na área de serviços: funcionalismo público e profissões liberais. Ou, então, vivia de rendimentos. Não encontramos maiores referências à entrada de indivíduos africanos entre os recém-migrados para a cidade, no que toca à produção comercial. As referências relativas a africanos incluídos nos setores comerciais luandenses dizem respeito, em primeiro lugar, àqueles que já mantinham essa posição anteriormente. Os proprietários africanos foram transitando, já numa situação urbana, preferencialmente para a área de serviços, fato que os numerosos textos que tratam da chamada elite africana de Luanda refletem. O comércio tende a caracterizar a população ‘branca’ e a administração, segmentos da população africana. Vejamos o que ocorreu. No passado, os ‘mestiços’, e também ‘negros livres’, foram utilizados durante séculos como intermediários do comércio entre o litoral e o interior, razão pela qual os registros de população assinalam os ‘mestiços’ fora da área de Luanda, para onde regressam com a proibição do tráfico. Ocorre que dificilmente encontramos a partir desta nova fase registro da participação dos ‘mestiços’ no comércio. A partir de uma série de histórias de vida levantadas junto a integrantes de velhas famílias tradicionais de Luanda, ‘mestiços’ e ‘negros’, tivemos ocasião de constatar a existência de um ponto em comum: uma pequena participação no comércio. Participam da agricultura, não só como produtores, mas igualmente como proprietários, até que, com o assentamento dos colonos ‘brancos’, estes começam a disputar as terras daqueles, o que a administração, já devidamente instalada, permitia; quando não, estimulava.
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(1) Luanda contava, nessa época, com um Regimento de Infantaria composto por dez companhias, com 476 oficiais e soldados e ainda duas Companhias de Cavalaria, com 136 homens. (COUTO, 1972:109). (2) Documento n46 (FELNER, 1933:442-449). Este interdito foi revogado em 1758. Para Venâncio (VENÂNCIO, 1983:186-187) “(...) os militares incentivavam o processo de aquisição de escravos através de guerras”, enquanto “(...) defendiam antes os comerciantes uma política pacifista (...)”. O mesmo autor indica que nos finais do século XVIII “(...) a maioria das firmas luandenses (...)” possuíam “(...) sucursais no interior, junto às feiras ou povoamentos, que estariam entregues, deduzo, aos aviados”. (3) Uma estatística dos “edifícios, estabelecimentos, e oficinas da Cidade de Luanda relativa ao ano de 1850” (Boletim Oficial n° 303, de 19 de julho de 1851) mostra já um certo crescimento em relação aos dados do levantamento fiscal relativos ao ano econômico de 1845 a 1846. Estes dados, embora devam ser considerados com prudência, são significativos: o aumento foi de 34 sobrados, 113 casas térreas e 1.618 casas de palha. Confrontando estes dados com os mapas da população, que também devem ser lidos com reservas, podemos verificar que esse aumento acompanha o crescimento da população, principalmente do segmento ‘negro’ e ‘mestiço’. Os dados relativos à população ‘branca’ apresentam uma variação brusca: 1.601 (1845); 1.000 (1846); 1.240 (1850); 830 (1851); 930 (1861); 1.368 (1869). Alguns autores atribuem a variação da população ‘branca’ ao fato de que boa parte dos ‘brancos’ ligados ao
tráfico de escravos entravam e saíam da colônia constantemente, sendo que a fixação deste segmento da população só passa a ser uma realidade posteriormente ao fim do tráfico. Os dados de Vogel, inferiores aos do Boletim Oficial, para 1850, como já vimos, registram 150 habitações de pedra e cal e 1.500 casas com cobertura vegetal (VOGEL, 1850:555). O cálculo aproximado de fogos para a cidade de Luanda, de Lopes de Lima, publicado em 1846, indica 1.176 fogos (LIMA, 1846:4A). Anteriormente, em 1823, Mesquita registra: 360 casas de palha; 821 casas cobertas de palha; 2 igrejas paroquiais e 6 ermidas (MESQUITA, 1972:3031). Para 1827, Gomes registra: casas de pedra e cal cobertas de telhas, 418; de barro, cobertas de palha, 1069; as paróquias, 2; ermidas, 6; e conventos, 3 (GOMES, 1964:46). ESTATÍSTICA DOS EDIFÍCIOS, ESTABELECIMENTOS, E OFFICINAS DA CIDADE DE LOANDA RELATIVA AO ANNO DE 1850: Edifícios públicos: Igrejas
9
Aquartelamentos Fortalezas
4
Cazas De sobrado Térreas 4 De palha 4
8
3
Cazas Particulares De sobrado
170
Térreas 385 De palha 2.672
Palacios Do Governo
1
Do Bispo 1
Hospitaes Militar
1
Da misericórdia
1
Estabelecimentos Açougues
5
Bilhares 1 Cazas de fazenda Confeitarias
10
2
Cazas de pasto Cazas de agoa 15
3
Droguistas
1
Lojas de fazendas 40 Ditas de mercearia 18 Padarias 6 Tabernas 90
Officinas Alfaiates, mestres 20 Ditos officiaes
53
Ditos aprendizes
80
Barbeiros mestres 1 IO Ditos officiaes
34
Ditos aprendizes
30
Carpinteiros mestres Ditos officiaes
34
Ditos aprendizes
40
Sapateiros, mestres
11
15
Ditos officiaes
22
Ditos aprendizes
32
Funileiros mestres 4 Ditos aprendizes
12
Ferradores mestres 1 Ferreiros mestres 3 Ditos officiaes
14
Ditos aprendizes
17
Boticas Do hospital militar 1 Quitandeiras De fazenda
180
Carros e cavaluaduras Carrinhos
16
Cavallos 80
Marceneiros, mestres Ditos officiaes
3
Ditos aprendizes
6
Ourives mestres
5
Ditos officiaes
6
1
Ditos aprendizes
10
Pedreiros mestres 18 Ditos officiaes
62
Ditos aprendizes
105
Pintores, mestres
8
Ditos officiaes
1
Ditos aprendizes
6
Tanoeiros, mestres 11 Ditos officiaes
18
Ditos aprendizes
28
Torneiros, mestres 2 Ditos officiaes
1
Ditos aprendizes
2
Particulares
1
De carnes
20
Muares 16 Jumentos 20
(Secretaria do Governo-Geral da Província de Angola, 1 de janeiro de 1851 — Francisco Joaquim da Costa e Silva, Secretário-Geral do Governo, in Boletim Oficial n 303, 19 de julho de 1851) (SANTOS, 1970:167-169).
Se confrontarmos os dados de Lopes de Lima publicados em 1846, constantes das tabelas de ns 1 e 2 com aqueles da tabela 4, que apresenta estatística da população de Luanda para 1850, verificaremos que a população 'branca’ passou de 1.601 indivíduos (135 mulheres) para 1.240 (420 mulheres); isso traz um saldo negativo de 361 ‘brancos’, em geral, embora as mulheres tenham um saldo positivo de 285. A população ‘mestiça’ e ‘negra’ que era, respectivamente, de 491 e 3.513 elementos, passa em 1850 para 2.055 e 9.270. Com o fim do tráfico de escravos, uma boa parte dos ‘mestiços’ que viviam nas áreas dos presídios e distritos do interior, assim como um bom número de ‘negros’ envolvidos com o tráfico e com o comércio em geral regressam a Luanda. O aumento, em números absolutos, da população ‘negra’, mostra que ela, independentemente de participar diretamente no tráfico, preferia migrar para Luanda, onde possivelmente sentia-se mais segura. Com a ocupação militar e administrativa do interior, houve um aumento do controle sobre a vida dos africanos. Encontramos ainda uma informação publicada em Panorama (jornal literário e instrutivo), vol. XI, terceiro da série, n° 47, 1854. Na página 370 aparece uma informação estatística sobre as construções e sobre moradores de Luanda, oferecendo números superiores aos anteriores: “(...) a população da província sobe a 500:000 habitantes e a da capital a 14:335, distribuídos por 6:334 fogos, em 10 praças, 13 ruas, 26 travessas, 2 largos, 12 becos, 9 calçadas, nas quais há 173 casas de sobrado, 291 térreas e 2.683 cubatas”. Nesta estatística, a população é mais numerosa: o conjunto de armamentos é igualmente superior, embora a distribuição por tipo de armamento certamente não tenha obedecido ao mesmo critério; quanto às habitações o número de sobrados e cubatas é equivalente, mas o de casas térreas é bem menor: 291 para 389 apontadas na estatística de 1850. Trata-se, pois, de mais um elemento estatístico que mostra que a cidade cresceu neste período: “(...) mas até pode afiançar-se que é hoje muito mais opulenta e importante do que nos dourados tempos do nefando tráfico da escravatura, perdendo com a declinação deste o caráter de acampamento, que a distinguiu (...)”, segundo Teixeira de Vasconcelos (Panorama, 1854:369).
(4) Em 1875 a cidade contava já com 23 ruas, 25 travessas, 29 praças e largos, 9 calçadas e 10 becos. (5) É curioso que, em 1874, surge uma relação de cabos da regedoria da freguesia de Nossa Senhora dos Remédios, dividindo a área em dez seções, abrangendo não só a ‘cidade baixa’ tradicional, como a área de transição, o Carmo, como as Ingombotas, o Alto das Cruzes, etc. (Boletim Oficial n° 31.874, pp. 41-42). Embora se trate de divisões diferentes, uma de natureza administrativa, outra sanitária, aproximam-se na delimitação de algumas seções. A divisão em dez seções sanitárias e seus limites constam de uma ata da Câmara, de 9 de junho de 1864, mês em que a epidemia “assumiu proporções mais vastas e aterradoras”. As dez seções abrangiam a ‘cidade baixa’ e a ‘cidade alta’ (SANTOS, 1970:483-484). (6) “Quando aqui grassou a epidemia de varíola, na segunda metade do século XIX, aí por 1864, a população nativa distribuía-se pelos seguintes bairros: Coqueiros — que se estendia da Praça do Peixe, ou do Falcão, onde hoje é o Largo do Infante D. Henrique, até a Calçada Nova, denominação que tinha então a Calçada do Pelourinho. Era o bairro mais populoso, pois, em 1848, já contava com 227 cubatas. Sangandombe (...) Carmo — abrangendo o casario que se concentrava em volta do convento de Santa Teresa dos Carmelitas Descalços — hoje paroquial de N.Sr.“ do Carmo — que se estendia pela encosta sobranceira até o Alto das Cruzes; existiam 137 cubatas em 1848. Era o mais habitado a seguir do bairro dos Coqueiros. Passou, posteriormente, a designar-se Ingombota (...)” (Manuel Bento Ribeiro). (7)
ANEXOS Tabela IA: Luanda: População segundo o tipo somático (1)
Tabela IB: Luanda: População segundo o tipo somático (1)
a) BRASIO, A. Monumenta Missionária Africana. Lisboa, 1955, vol. V, pp. 389-390. b)
BRASIO, A. Op. cit., vol. VI, p. 477.
c)
Dados do Senado da Câmara.
d) COIMBRA, Carlos Dias. Livros de “Ofícios para o Reino”, do Arquivo Histórico de Angola — 1726-1801 —, Luanda, 1959, p. 47. e) VIEIRA, Maria Eugenia M. Registro de Cartas de Guia de Degredados para Angola, 1714-1757. Lisboa, 1966, p. 27. f) Guia Ilustrado da Cidade de Luanda. Edição comemorativa do 299 aniversário da Restauração de Angola. Edição de José Pedroso Botas. Luanda, 1947. g) OLIVEIRA, Aguedo de. “Sobre Colonização Branca...”, Intervenção na Assembléia Nacional. Diário das Sessões, n° 38. Lisboa, 18 de abril de 1950. & CÂNDIDO, Armando. Emigração e Povoamento do Ultramar. (Discurso proferido na Assembléia Nacional em 18 de abril de 1958.) Lisboa, Diário das Sessões, n° 39. h) Mapa da população de Luanda, “em todo o ano de 1817 até 10 de janeiro de 1818”. A.H.U., Angola, Caixa 65. Para o ano de 1818 o Brigadeiro J.R. da Cunha Matos, op.cit., reportandose às memórias do Almirante Feo, dá para Luanda uma população total de 4.518, p. 331. i) LEMOS, Alberto, 1940, p. 6. No entanto, o Brig. J.R. da Cunha Matos, op. cit. p. 332, dá uma população total de 4.648. j)
A.H.U. Angola, caixa 71.
k) PIRES, Rui. Luanda cidade portuguesa fundada por Paulo Dias de Novais em 1575. Luanda, Edição da Direção dos Serviços de Economia, s.d., p. 8. l)
LIMA, J.J. Lopes de. 1846, Livro III.
m) MENEZES, J.A. de Carvalho. 1848, Rio de Janeiro, p. 27. n) AMARAL, Ilidio. Ensaio de um estudo geográfico da sede urbana de Angola. Lisboa, J.I.U., 1962. p. 24. o)
MONTEIRO, José Maria de Sousa, 1950, p. 331.
p) VOGEL, Caries. Le Portugal et ses Colonies. Paris, Guillaume et Cie. Librairies Ecriteurs, p. 55. q) Mapa estatístico da população da província de Angola. In: LEMOS, Alberto. 1940, p. 11. r) Mapa estatístico da província de Angola. In: LEMOS, Alberto. 1940, p. 12. s)
PERRY, Geraldo A. 1875, p. 356.
t) AMARAL, llídio. 1968, pp. 59 e 60, & CARVALHO, Henrique Augusto Dias de. 1892, p. 71. u) CARDOSO, Manuel da Costa. Subsídios para a História de Luanda Luanda, Museu de Angola, 1954, p. 20, & B.O., n? 10, de 09.03.1895 p. 127. v)
Anuário Estatístico de Angola, 1897. Luanda, Imprensa Nacional.
x)
Anuário Estatístico de Angola, 1898. Luanda, Imprensa Nacional.
y) AMARAL, Ilídio. 1968, p. 63, & Anuário Estatístico de Angola, 1899 In: LEMOS, 1940, pp. 17-19.
z)
Anuário Estatístico de Angola, 1899.
aa) LEMOS, 1940, p. 27. ab) Mapa da População da Província de Angola em 1900. In: LEMOS 1940, p. 26. ac) B.O., III série, 23.02.1924. ad) Censo de 1950, vol. I, p. 129. ae) Anuário Estatístico de Angola, 1934. Luanda, Imprensa Nacional 1936. af) Idem. ag) Censo de 1940, vol. I, pp. 78-79. ah) AMARAL, Ilídio. 1968, p. 64. ai) II Recenseamento geral da população de Angola 1950, vol. I, p. 129. aj) Idem, vol. III, pp. 7-8-9 e vol. IV, p. 6. al) III Recenseamento geral da população de Angola 1960, vol. I, p. 36. am) Anexo ao boletim mensal de estatística. Luanda, ano I, n 3, 1973, pp. 1/55. * VENANCIO, p. 85.
Tabela 2: Luanda: População segundo o tipo somático e sexo,1607-1970 (1)
Tabela 2: Luanda: População segundo o tipo somático e sexo, 1607
(1) Adaptação a partir de dados coletados em diferentes fontes. Para os anos 1930 e seguintes os dados s {pagina cortada na digitalização}
Tabela 4: Mapa estatístico da população da cidade de Luanda, e seus subúrbios, relativo ao ano de 1850 — pessoas de ambos os sexos (1)
(I) In Boletim Oftcial (do Governo da Província de Angola, n° 303, de 19 de julho de 1851, pp. 1 e 2).
VII. Um Momento Especial nas Relações Brasil- Angola: Do Reconhecimento da Independência aos Desdobramentos Atuais José Flávio Sombra Saraiva
O capítulo tem o objetivo de abordar um momento mais recente nas relações do Brasil com Angola: de 1975 aos dias atuais. Depois de séculos de contatos atlânticos, o Brasil renovou seu interesse estratégico na África Ocidental, nas últimas décadas, por meio da construção de um relacionamento especial entre os dois continentes. Angola ocupa papel central na reafirmação da dimensão atlântica da política exterior do Brasil. O aceno brasileiro veio acompanhado de frutífera reação positiva do governo e da sociedade angolanos. Iniciado pelo esforço da diplomacia, o novo relacionamento com Angola foi consubstanciado nos intercâmbios comerciais e pela retomada das velhas rotas de convivência cultural que haviam animado a vida do Atlântico Sul em períodos anteriores, como foi discutido nos capítulos precedentes. E, decorridas mais de duas décadas de sangrenta guerra civil em Angola, o Brasil continua a participar da vida política daquele país nos anos noventa. A presença das tropas brasileiras no monitoramento da paz, os esforços comuns pela construção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a retomada dos investimentos e a ampliação do comércio são manifestações de um relacionamento especial que continua.
Para discutir as grandes fases desse relacionamento, o capítulo está dividido em duas partes. A primeira aborda o papel do reconhecimento brasileiro da independência de Angola como um fator fundamental para a compreensão da aproximação que existe até hoje com expressiva continuidade. A segunda discute alguns desdobramentos recentes do relacionamento entre os dois países à luz da globalização, das duas décadas de guerra civil em Angola e da perda gradual de importância estratégica da África para a política exterior do Brasil dos anos noventa.
1. O Renascimento das Relações Brasil-Angola O reconhecimento brasileiro da independência de Angola em 11 de novembro de 1975, no momento em que Portugal dali se retirava, em contexto de profundas indefinições políticas no novo país independente da África, levou o Brasil para o coração da história mais recente de Angola. Angola: o núcleo de tensões internacionais A Revolução dos Cravos, em Portugal, não trouxe a paz para Angola. Muito ao contrário, o cenário construído com o 25 de abril de 1974 trouxe incertezas para a delicada vida política da colônia portuguesa na África. O crescimento do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) era fato notório nos primeiros anos da década de setenta. Agostinho Neto, seu líder, recebeu ajuda militar e apoio financeiro da União Soviética, mas tinha pela frente a tarefa de compor as diferentes tendências dentro do seu movimento. A Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), liderada por Holden Roberto, recebia ajuda norte-americana e do Zaire. Angola vivia, assim, o tardio embate da Guerra Fria. Um terceiro movimento, a União Nacional pela Independência de Angola (UN1TA), liderado por Jonas Savimbi, ligava-se às pretensões imperiais da África do Sul na região austral do continente. A UNITA, originada de uma dissidência da FNLA em 1966, tinha forte apoio na província de Huambo, na região central de Angola. Havia, finalmente, a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC), que era apoiada pelo Gabão e
por Uganda. A FLEC queria a autonomia de Cabinda, e o MPLA insistia em que Cabinda era parte de Angola (1). Como um dos desdobramentos do 25 de abril em Portugal, o Movimento das Forças Armadas (MFA) decidiu encaminhar a criação dos governos de transição nas colônias africanas. No caso de Angola, o Acordo de Alvor, firmado em 15 de janeiro de 1975, organizou a transição política por meio de negociações entre o novo governo português e os representantes dos três movimentos principais. Em julho de 1975 o governo de transição foi formado em Luanda, com a representação do MPLA, FNLA e UNITA. A data acordada para a independência, a da própria retirada da administração portuguesa de Angola, foi a de 11 de novembro de 1975. Eleições foram anunciadas em outubro. Muitos países africanos, a Organização da Unidade Africana, e mesmo Portugal, recomendavam um governo de unidade nacional em Angola. Era uma saída para enfrentar a explosiva convivência dos três movimentos. Mas depois de meses de lutas, o MPLA criou um governo independente unilateral, sem a participação dos demais movimentos, no dia da independência (2). O caso angolano era uma questão internacional com repercussões na própria relação política entre as grandes potências. O interesse dos Estados Unidos em Angola ficou claro na autorização do pagamento de US$ 300 mil ao FNLA, em 22 de janeiro de 1975 (3). Em março, a União Soviética mandou um grande número de armas para o MPLA, em Luanda (4). O conflito tornava-se global e se incluía na equação das relações LesteOeste. Nos Estados Unidos, a crise angolana tomou-se matéria de relevo. Henry Kissinger, então Secretário de Estado, coordenou as posições americanas na questão. Em meados de 1975, na ânsia de derrotar a possibilidade de governo comunista em Angola, foi aprovado o valor de US$ 40 milhões para equipar a FNLA e a UNITA. O problema enfrentado pela administração Ford (1974-1977) era o fato de que qualquer política de intervenção direta não teria sustentação depois da retirada do Vietnã. A diplomacia teve que ser conduzida de forma secreta, e os fundos de apoio aos grupos de direita tinham muita dificuldade de serem aprovados pelo Congresso (5).
A guerra secreta encabeçada pelos Estados Unidos em Angola, que se intensificou no segundo semestre de 1975, tinha o objetivo de se opor à cooperação entre o governo que instalara em Luanda, sob a direção de Agostinho Neto, e a União Soviética. A tensão se agravou quando o primeiro contingente de tropas cubanas chegou em Angola em outubro de 1975, às vésperas da independência (6). A África do Sul, para preservar seus interesses sobre a Namíbia, aceitou e estimulou o pedido de ajuda da UNITA pela intervenção militar em Angola, fato que se confirmou em 23 de novembro de 1975. A presença cubana em Angola aumentou a tensão na região. Castro negava que as armas e os contingentes eram para a guerra. Argumentava que a ajuda era uma questão de solidariedade ao Terceiro Mundo. As acusações mútuas de soviéticos e norte-americanos punham em xeque as negociações internacionais da détente. Após a declaração unilateral da independência de Angola, formulada pelo MPLA, Henry Kissinger solicitou imediatamente que a CIA preparasse plano para “ganhar” a guerra em Angola (7). O Presidente Agostinho Neto tentou estabelecer relações diplomáticas com os Estados Unidos. O último alegou que não normalizaria relações sem a retirada das tropas cubanas de Angola. Um novo problema, de linkage entre a presença cubana em Angola e a intransigência norteamericana na região, viria esquentar ainda mais o quadro de tensão. O Brasil diante da Guerra Angolana: rupturas e querelas domésticas Nesse contexto, é interessante observar a evolução das percepções e atitudes do Brasil. O primeiro aspecto foi a degradação da chamada Comunidade Luso-Brasileira, que vinha se desenvolvendo desde os anos cinquenta e fora retomada pelo primeiro governo militar de Castelo Branco. A perda de importância da Comunidade, no início dos anos setenta, abriu novas possibilidades para o Brasil em Angola e ensejou a possibilidade de construção de uma política própria para a ex-colônia. O ponto de partida para a mudança de percepção acerca da independência angolana ocorreu entre 1972 e 1973, antes da Revolução dos Cravos. Foi uma reformulação lenta e pouco publicitada, para não ferir as
suscetibilidades do governo português. Foi uma mudança repleta de reveses e controvérsias no invólucro do processo decisório brasileiro. O momento culminante foi o reconhecimento informal da independência de Angola ainda em março de 1975, antes da sua formalização em novembro do mesmo ano. A diplomacia desempenhou papel singular nesta mudança de rumo ao apressar o processo decisório no caso da independência de Angola, antes mesmo de outros setores do governo compreenderem a necessidade de redefinição nas relações do Brasil com Angola. Era o início de uma relação privilegiada que persiste até os dias atuais. No governo Médici, o Itamaraty possuiu maior autonomia no interior do Estado autoritário que nos dois governos anteriores. Apesar das características fechadas do regime, a Presidência da República e o Conselho de Segurança Nacional não foram os únicos formuladores de política externa. Em primeiro lugar, o governo Médici tinha um estilo de administração descentralizada. Em segundo lugar, um diplomata de carreira, Gibson Barboza, foi apontado para o Ministério das Relações Exteriores. Ele já tinha sido Secretário-Geral do Ministério no período Costa e Silva e era um árduo defensor da “Diplomacia da Prosperidade” e de uma política exterior sem fronteiras ideológicas. Considerado um nacionalista, Gibson Barboza encarnaria, ainda que com certas hesitações, a própria ruptura do tradicional alinhamento com Portugal no caso das colônias africanas (8). A confiança de Gibson Barboza na idéia de que a diplomacia estava a serviço do desenvolvimento, e que o Brasil deveria ter liberdade de tomar iniciativas próprias no caso da África, foi apresentada em sua notável conferência à Escola Superior de Guerra em 23 de outubro de 1970. Ao afirmar que o Itamaraty necessitava renovar seus métodos para o mundo dos novos mercados, Gibson Barboza insistiu em que novos caminhos implicavam redefinições de alianças tradicionais e compromissos anteriormente estabelecidos (9). Essa era uma lição que a diplomacia levaria adiante na questão de Angola e da África Portuguesa como um todo. Durante sua visita aos países da África Negra Atlântica em 1972, Gibson Barboza compreendeu perfeitamente que os interesses econômicos do
Brasil na África seriam feridos se o Brasil permanecesse ligado a Portugal na questão angolana. A visita, que se iniciou em 25 de outubro e só terminou em 20 de novembro, foi o marco nas novas percepções brasileiras na África Atlântica. Os países visitados (Senegal, Costa do Marfim, Gana, Togo, Daomé, Nigéria, Camarões e Zaire) manifestaram-se no sentido da inclusão dos territórios portugueses, de forma livre, na política africana do Brasil (10). Durante a visita a Nigéria, Barboza recebeu pressão direta do Chefe de Estado nigeriano, General Gowon, e do seu Ministro das Relações Exteriores, Okoi Arikpo. O comunicado conjunto assinado pelos dois países em 18 de novembro de 1972 não fez qualquer referência ao assunto, como seria de se esperar em um documento do gênero. Entretanto, ao contrário de todos os outros comunicados conjuntos assinados na viagem de Gibson Barboza, não houve menção ao conceito de autodeterminação dos povos, já que a Nigéria não aquiescia à ambiguidade brasileira para o caso da África Portuguesa (11). Sabe-se que o Acordo Comercial de 1972 só foi assinado entre Gibson Barboza e o Ministro Arikpo depois da explicitação brasileira de apoio à independência de Angola. Em janeiro de 1974, ao visitar o Brasil, Arikpo chegou a dizer que o petróleo só estaria disponível para os “amigos da liberdade no continente africano” e para aqueles que apoiassem a autodeterminação de todos os povos do seu continente (12). Recado mais claro era impossível. O interessante é que desde o final de 1972 já estava definido para o alto escalão do Itamaraty que não havia mais condições de cortejar Portugal e a África Negra simultaneamente. O êxito da visita de Gibson Barboza e as perspectivas de cooperação técnica e expansão comercial do Brasil no continente africano pareciam mais promissores que a tradicional amizade com Portugal. Esse foi o núcleo da reformulação política empreendida na época. Gibson Barboza voltou da África declarando o ano de 1972 o “Ano da África”, seguindo os avanços da campanha anticolonial empreendida pelas Nações Unidas naquele ano. Salvo raras exceções, as manifestações foram calorosas ao ministro que havia “redescoberto” a África. O Congresso
Nacional, ainda que limitado em suas prerrogativas pelo sistema político fechado, manifestou-se sobre a viagem de Gibson Barboza. O Deputado Geraldo Guedes (ARENA) referiu-se à viagem como uma “vitória diplomática” (13), enquanto o congressista negro Adalberto Camargo (MDB) discursou sobre os benefícios mútuos que a viagem trazia para o Brasil e para a África (14). Outro congressista, Cláudio Leite, do MDB, achou que a melhor forma de elogiar a visita de Gibson Barboza era citando os comentários do pai da teoria lusotropicalista. Gilberto Freyre havia declarado ao Diário de Pernambuco que, com a visita do ministro, o Brasil “reconquistava o tempo perdido” (15). O principal mérito da viagem de Gibson Barboza foi o de ter fortalecido as percepções que o Itamaraty vinha defendendo desde a Missão Comercial à África, de 1965. Os diplomatas que acompanharam Gibson Barboza na viagem de 1972, entre eles o então Ministro André Mesquita e os Secretários Rubens Ricúpero e Alberto da Costa e Silva, voltaram ao Brasil convencidos de que uma maior presença do País na África era preciso, mesmo em detrimento da mudança das posições brasileiras no caso da África Portuguesa e da questão angolana, em especial. Um testemunho daquele momento, o hoje Embaixador Alberto da Costa e Silva, delineou muito bem o espírito daquele ano em sua excelente descrição da missão de 1972 (16). Mas havia dificuldades na implementação de uma política africana que rompesse com Portugal no caso de Angola. A primeira advinha da resistência dos setores mais ideologizados do estamento militar. Como poderia um regime autoritário de direita apoiar os movimentos de libertação em Angola, como o MPLA, que defendiam o marxismo? Essa era uma questão imponderável sugerida por áreas mais conservadoras, especialmente presentes no Conselho de Segurança Nacional. A segunda dificuldade, associada à primeira, era a presença, no governo Médici, de outros setores do governo que preferiam uma escolha liberalizante de inserção internacional, sem a consideração do caso das colônias portuguesas em processo de libertação. A tônica, para o Ministro da Fazenda Delfim Netto, seria a retomada das relações especiais com os
Estados Unidos e a defesa da Comunidade Luso-Brasileira. Gestor da pasta mais importante do governo em momento de reinserção internacional, Delfim Netto defendeu a prioridade do relacionamento com Portugal e a África do Sul em detrimento das novas escolhas na África Negra. Desconsiderava o ministro qualquer envolvimento brasileiro em Angola (17). Essa rejeição à possibilidade de uma ligação direta do Brasil com Angola, como dois países independentes, foi apresentada pelo seu portavoz, Villar de Queiroz, ainda durante os preparativos da visita de Gibson Barboza à África Negra (18). A querela no interior do governo teve repercussões em setores da sociedade civil. O lobby português aproveitou para declarar o ano de 1972, o mesmo que havia sido declarado pelo Itamaraty como o “Ano da África”, o “Ano da Comunidade Luso-Brasileira”. Além disso, várias concessões entre os dois países foram estabelecidas, como a cidadania comum aos brasileiros e portugueses que viviam em ambos os países. O Presidente Américo Tomaz visitou o Brasil em abril de 1972, no sesquicentenário da independência, e trouxe os restos mortais de Dom Pedro I. Em maio de 1973, Médici e Gibson Barboza visitaram Lisboa, em retribuição à atenção portuguesa no ano anterior. Mas gestos de amizade dirigidos pelos dois lados não dirimiam a contenda. Os próprios portugueses temiam que o Brasil pudesse mudar de posição e reconhecer os movimentos de independência em Angola. Temiam também que o Brasil viesse a substituir Portugal, econômica e politicamente, na África (19). As percepções do Itamaraty terminaram dominando. As pressões arábicoafricanas, associadas ao empenho dos diplomatas brasileiros, terminaram inclinando o processo decisório a favor da aproximação brasileira a Angola, antes mesmo da Revolução dos Cravos e da guinada portuguesa na questão colonial. Médici chegou a reunir Gibson Barboza e Delfim Netto para resolver as diferenças internas e os ameaçou de demissão se persistissem na querela em torno do tema africano (20). A decisão pelo caminho próprio brasileiro em Angola já estava tomada. O próprio governo Médici começaria a desenvolver uma política de convencimento junto a Portugal para que este mudasse sua acepção sobre o caso de
Angola. O Brasil mediava, o que foi aceito por vários países africanos, como o Quênia, no final de 1973 (21). Marcello Caetano não gostou da proposição brasileira de mediação, que já era de equidistância quando comparada às posições tradicionais de alinhamento do Brasil a Portugal. No mesmo dezembro de 1973, o primeiro-ministro português afirmou que também se oferecia como mediador entre o governo brasileiro e a guerrilha de esquerda que se instalara no Brasil (22). A troca de insultos já configurava o incidente diplomático e a inclinação brasileira para o apoio às independências da África Portuguesa. Foi o governo Geisel, entretanto, que recebeu os louros da inflexão brasileira para Angola. O Ministro Azeredo da Silveira, também diplomata de carreira, tinha servido, na juventude, ao lado de Araújo Castro. Defendia a ampliação de espaços para política externa do Brasil no Terceiro Mundo e o término de qualquer restrição ideológica na aproximação brasileira às colônias portuguesas (23). Um jogo espetacular: o reconhecimento brasileiro do governo de Angola (1975) Foi com Azeredo da Silveira que o Brasil reconheceu a independência da Guiné-Bissau em 16 de julho de 1974, mesmo antes das conclusões das negociações entre Portugal e os líderes do movimento de libertação. Mário Soares criticou o reconhecimento unilateral brasileiro, sem qualquer consulta prévia a Portugal. O Brasil rompia o Tratado de 1953. Victor Saúde, Ministro das Relações Exteriores do novo país independente, visitou o Brasil na segunda metade do ano e agradeceu o reconhecimento brasileiro. Em setembro daquele mesmo ano, na sessão de abertura da Assembléia Geral das Nações Unidas, Azeredo da Silveira afirmou que o Brasil acreditava, “sem restrições, que não há justificativa para o adiamento do processo de descolonização” da África Portuguesa (24). Naquela mesma ocasião, o ministro brasileiro condenou o apartheid sul-africano e deu as boas-vindas à delegação de Guiné-Bissau (25).
Um pouco antes da Assembléia Geral das Nações Unidas, a imprensa brasileira noticiava a petição da Organização da Unidade Africana (OUA) para que o Brasil fosse o negociador da independência de Angola. O colunista Carlos Dunshee de Abranches, do Jornal do Brasil, informava aos leitores que o Itamaraty estava se preparando para aquela missão (26). Mas O Globo, mais vinculado aos interesses portugueses, afirmava que não era bem uma oferta de mediação, mas de mera compreensão humanitária da questão (27). Em novembro de 1974, durante a viagem ao Senegal, Azeredo da Silveira falou acerca da necessidade da independência de Angola (28). Em sua visita oficial de quatro dias a Dacar, o ministro brasileiro encontrou o Presidente Léopold Senghor e o Primeiro-Ministro Addou Diouf. Quando consultado sobre as posições brasileiras no caso angolano, Azeredo da Silveira informou que estava preparado para estabelecer contatos com os movimentos de libertação. O Brasil, afirmou o ministro, estava preparado para ajudar economicamente o novo Estado angolano, não interessava quem chegasse ao poder (29). Essa era uma questão difícil, inclusive para a diplomacia brasileira. O então Ministro das Relações Exteriores da Nigéria, Joseph Garba, comentou em seu livro de memórias que a Nigéria, Tanzânia, Zâmbia e outros países africanos progressistas preferiam um governo de unidade nacional em Angola, com os três maiores movimentos dividindo o poder (30). Mas na prática alguns deles apoiavam abertamente um movimento de libertação contra os outros. Era o caso dos Presidentes Bongo, do Congo, e de Idi Amin, de Uganda, que apoiavam a independência em separado do Enclave de Cabinda. Ou do ditador do Zaire, Mobutu Seko, que apoiava o FNLA. O Brasil também começou a tomar um partido já no final de 1974. Exatamente no final do ano alguns diplomatas brasileiros discutiram com o MPLA, FNLA e UNITA sobre as possibilidades de cooperação no novo contexto da Angola independente (31). Ítalo Zappa, um dos mais qualificados diplomatas do Itamaraty nos assuntos africanos e chefe do novo Departamento da África, Ásia e Oceania, foi mandado para a Tanzânia, Zâmbia e Etiópia para conversar com os exilados angolanos e
moçambicanos. Zappa argumentava que o Brasil estava convencido de que as relações de poder tinham que ser alteradas na África Austral, criticou o apartheid e defendeu a inflexão da política africana do Brasil para a África Negra. Seu relatório foi mandado para o Presidente Geisel no início de 1975 (32). E hoje não resta dúvida de que o relatório de Zappa teve primordial relevância no processo decisório brasileiro na questão angolana (33). Em março de 1975 o Brasil foi o primeiro país a estabelecer relações diplomáticas com Angola. Uma representação do Itamaraty foi mandada para Luanda mesmo antes da independência formal do País. A fórmula jurídica encontrada foi a criação de uma Representação Especial acreditada junto ao governo de transição de Angola. Ovídio de Andrade Melo, diplomata de carreira que servia no Consulado-Geral do Brasil em Londres, foi indicado Representante Especial perante o Conselho Angolano dos Presidentes, que incluía os três movimentos de libertação (34). O gesto brasileiro foi visto em Angola como o início de uma relação privilegiada e o término de um longo período de ambiguidades da política brasileira para a África de expressão oficial portuguesa. Mas não só em Angola houve repercussão para a decisão brasileira. A imprensa no Brasil elogiou a audácia do Itamaraty e descreveu a Representação Especial como uma “embaixada, que cultivará o melhor relacionamento entre brasileiros e angolanos, sem perda de tempo” (35). O clímax da iniciativa brasileira deu-se com a visita dos representantes dos respectivos movimentos ao Brasil em abril de 1975. Como convidados do Itamaraty, eles estiveram em Brasília para apresentar suas razões para a independência e as formas de governo que pensavam implementar no País que nascia. A partir de maio de 1975, o Brasil começou a mandar alimentos, equipamentos e roupas para Angola (36). O mais importante, entretanto, foram as descobertas recentes sobre o apoio secreto do Brasil ao MPLA naqueles dias. Apesar das declarações de Azeredo da Silveira em Dacar em novembro de 1975, afirmações de membros do SNI, dez anos depois, indicam que o Brasil teria mandado
secretamente armas para Agostinho Neto e o MPLA na sua luta contra a FNLA e a UNITA (37). Mas a matéria é controversa. Ovídio de Andrade Melo, em seu recente e intrigante depoimento acerca do reconhecimento brasileiro de Angola, fala da dubiedade da política brasileira naqueles dias. Ao mesmo tempo que fazia os acenos ao MPLA, o governo brasileiro permitia que “alguns brasileiros, alguns até fardados com o uniforme do exército, aparecessem como ‘conselheiros’ de Holden Roberto, em Kinshasa, depois na invasão de Luanda” (38). A controvérsia acerca das posições brasileiras envolveu a CIA, pois incomodavam aos Estados Unidos as relações que o Brasil vinha mantendo com o MPLA. Essa revelação foi feita pelo próprio chefe da operação da CIA na guerra de Angola, John Stockwell (39). Quando o Brasil reconheceu a independência de Angola sob a governança do MPLA, em 11 de novembro de 1975, foi o primeiro país a fazê-lo. Seguiram-no a Suécia e o Conselho Mundial das Igrejas. Ovídio de Andrade Melo foi nomeado Embaixador Especial para a solenidade de independência, e seguiu do Brasil o Conselheiro Cyro Cardoso para acompanhar também os festejos da independência de Angola. Temporariamente ficou Ovídio Melo respondendo pela Embaixada em Luanda, mas a presença das tropas cubanas deu nova dimensão ao conflito do governo com a UNITA e a FNLA. Como lembrou apropriadamente o Embaixador Especial:
“O que começara como luta civil financiada e estimulada do exterior, e continuara como pura e simples invasão estrangeira disfarçada por todos os meios publicitários, transformava-se agora, cruamente, em mais um episódio da Guerra Fria. As pressões internacionais e internas sobre o Itamaraty certamente aumentariam.” (40)
E aumentaram. A própria saída de Ovídio de Andrade Melo de Luanda e sua substituição pelo Encarregado de Negócios Affonso Celso Ouro Preto foram atribuídas às pressões da CIA sobre o governo brasileiro. Stockwell declarou que Andrade Melo apoiava abertamente a facção de Agostinho Neto. E isso não era bom nem para o Brasil nem para os Estados Unidos (41). Sabe-se também que a decisão do reconhecimento de Angola foi tomada sem unanimidade no Conselho de Segurança Nacional (42). A chamada linha-dura dos militares não ficou satisfeita com a performance do Itamaraty em encaminhar o reconhecimento precoce de um país comunista. Solicitaram, na Escola Superior de Guerra, explicações do Ministro Silveira. Afirmou Silveira que o Brasil tinha informações suficientes para saber que o MPLA estaria controlando o governo. O reconhecimento expressava, nas palavras de Silveira, a promoção dos objetivos estratégicos e econômicos do Brasil na região e a defesa das relações sadias entre os países de expressão oficial portuguesa (43). Vitória do Itamaraty e repercussões domésticas Configurava-se a vitória do Itamaraty sobre a política externa ideologizada tão desejada por setores mais conservadores do espectro político do regime militar. Apesar das dificuldades, e da penalização imposta à carreira de Ovídio de Andrade Melo (que nunca foi perdoado por ter agilizado o processo de reconhecimento do governo do MPLA), o Brasil mostrara flexibilidade diplomática e afirmava sua política africana. Em 3 de maio de 1976, já em um ambiente menos tenso para o Itamaraty, foi nomeado Rodolfo Godoy como embaixador plenipotenciário do Brasil para Angola. O novo contexto exigia um nova política para a área africana de expressão portuguesa, longe da falecida Comunidade Luso-Brasileira. Portugal era posto à margem diante das pretensões brasileiras na África Portuguesa. Em 15 de novembro de 1975, Moçambique e o Brasil estabeleciam relações diplomáticas. O líder do Partido Comunista, Luís Carlos Prestes, foi convidado pelo governo moçambicano para participar das cerimônias de independência em Moçambique. Depois, o Embaixador ítalo Zappa foi mandado como o primeiro embaixador brasileiro para Moçambique.
No Congresso Nacional, muitos defenderam o reconhecimento de Angola e as novas relações entre os dois países atlânticos. Fernando Lyra, do MDB, citou José Honório Rodrigues, que havia declarado, ainda em 1961, que o “anticolonialismo brasileiro deveria ser coerente e defender a independência de Angola” (44). O estilo “Silveirinha”, ao se referir ao Ministro Azeredo da Silveira, foi elogiado pelo Deputado Norton Macedo, da ARENA, que caracterizou a ação do ministro no episódio de Angola como o caso do “homem adequado no tempo certo” (45). Mas não houve somente manifestações de elogio ao Itamaraty. Forças mais à direita, no próprio governo e no Congresso tutelado, sentiram-se traídas pelo novo curso da política africana do Brasil. O reconhecimento de um governo marxista na África, sustentado por tropas cubanas e armas soviéticas, era dose excessivamente forte para o núcleo mais “duro” do poder. O Deputado Milton Steinbruch, da ARENA, censurou Azeredo da Silveira pelo reconhecimento “prematuro” de Angola. Para ele, era um absurdo o Brasil ter sido “o único país não comunista a ter reconhecido um governo apoiado por tropas comunistas estrangeiras” (46). Era uma traição à “filosofia defendida pelas Forças Armadas” (47). A imprensa também tomou partido no assunto. O Estado de S. Paulo dedicou uma série de editoriais, no ano de 1975, a criticar o Itamaraty e ao pragmatismo na política externa brasileira. Em um editorial intitulado “Mexicanização da Diplomacia”, publicado em 12 de novembro de 1975 (48), o jornal acusava o chanceler de ter tido interesse pessoal na “sedução de setores da esquerda” no Brasil e no mundo. Seguindo a mesma linha de acusação da linha-dura do estamento militar, o mesmo editorial afirmava que o Brasil havia reconhecido diplomaticamente, em Angola, um “fato criado por Moscou e Havana”. E esse era um fato grave para uma área de vital importância geopolítica para o Brasil como o Atlântico Sul. A matéria, “de segurança nacional”, tinha sido resolvida com açodamento (49). A questão angolana foi, certamente, tratada como uma questão de segurança nacional, bem ao estilo das forças políticas instaladas no Palácio do Planalto. Houve rumores de que Silveira foi repreendido privadamente por altas hierarquias militares. O General Sílvio Frota,
Ministro do Exército e membro do Conselho de Segurança Nacional, foi certamente contrário ao encaminhamento dado pelo Itamaraty ao reconhecimento de Angola. Um dos líderes da chamada linha-dura, Sílvio Frota, atacou a liberalização política liderada pelo Presidente Geisel e chegou a coordenar plano, envolvendo outros oficiais, como o General Jayme Portella (ex-chefe da Casa Militar do Presidente Costa e Silva), para se tomar o sucessor de Geisel e congelar o que ele chamou de “decomposição” do regime encaminhada pelo presidente no poder (50). Sílvio Frota atacou, abertamente, a decisão do reconhecimento de Angola, como o faria com a China. Em um manifesto mandado para todas as guarnições militares em 12 de outubro de 1977, às vésperas da sua demissão pelo presidente, o ministro general acusou o governo de “complacência criminosa com a infiltração comunista nos altos níveis do governo” (51). Acusava o Itamaraty e Silveira pelos “desatinos” cometidos na questão angolana. Em 1980, outro oficial da linha-dura, General Andrada Serpa, também criticou a política externa brasileira no que se referia ao reconhecimento do governo marxista em Angola. Mas já não havia mais espaço político para aquela manifestação. O próprio General Golbery do Couto e Silva, um dos ideólogos do anticomunismo e formulador principal da dimensão geopolítica do Atlântico, concordara com o sentido pragmático que a política externa dera à questão angolana. O mesmo aconteceu com o General João Batista Figueiredo, o sucessor de Geisel, e que naquele momento ocupava a chefia do Serviço Nacional de Informação (SNI). A cooperação dos militares a favor da desideologização da política exterior foi descrita como uma espécie de “aliança tácita” com o alto escalão do Itamaraty, representado por Silveira (52).
2. Da Independência aos Dias Atuais: Uma Relação Privilegiada Com o reconhecimento do governo do MPLA em Angola, o Brasil desafiou a política dos Estados Unidos para a África Austral. O Secretário
de Estado Henry Kissinger criticou, publicamente, o reconhecimento brasileiro da independência angolana, nos termos em que ela foi encaminhada (53). Angola e o universalismo brasileiro Na verdade, o reconhecimento da independência angolana também operou como um sinal para os Estados Unidos no jogo de força que vinculava esta questão ao projeto nuclear brasileiro, ao desenvolvimento da indústria bélica e à própria busca de autonomia energética via a construção de grandes hidroelétricas. Procurava o Brasil desenvolver certos níveis de autonomia nas relações internacionais, e para tal eram necessários sinais diplomáticos desse esforço. A questão angolana garantiu muitos refletores para a diplomacia brasileira. Na África, o reconhecimento brasileiro também gerou repercussões. A Comissão de Conciliação, da Organização da Unidade Africana, havia recomendado para Angola um governo de unidade nacional formado pelos três grandes movimentos de libertação (54). Mesmo as políticas externas mais progressistas, como a de Murtala Muhammed, da Nigéria, defendiam a prudência. Até o dia 23 de novembro de 1975 (12 dias depois da independência e do reconhecimento brasileiro), o Ministro Nigeriano das Relações Exteriores, Joseph Garba, defendia o governo de unidade nacional. A posição nigeriana só mudou em 23 de novembro quando as tropas sul-africanas começaram a avançar na direção de Luanda. A definição brasileira em 11 de novembro foi contemplada como um dado concreto no processo decisório nigeriano (55). O Diplomata Marroni de Abreu argumenta que o Brasil pagou um preço não só em Angola, com a inimizade da UNITA de Jonas Savimbi, mas também em vários países africanos da chamada linha moderada. O Zaire e o Gabão, países com os quais o Brasil tinha interesses econômicos, ficaram descontentes com a rápida definição brasileira no caso angolano (56). O resultado de todo esse difícil processo foi a relação privilegiada entre o Brasil e Angola até os dias atuais. Depois de 1975, o comércio entre os dois países não floresceu como o sugerido pela retórica diplomática. Os
problemas políticos domésticos em Angola, como a tentativa de golpe de Estado de Nito Alves em 1977, e o desarranjo econômico causado pela permanência da guerra civil dificultaram a desejada ampliação comercial. Somente sob a Presidência de José Eduardo dos Santos, depois de 1981, o comércio cresceu consideravelmente. Angola, na África Austral, e a Nigéria, na África Ocidental, tornaram-se os grandes parceiros atlânticos do comércio brasileiro. O petróleo, obviamente, ocupou capítulo central em ambos os casos. A África do Sul foi, assim, substituída por Angola na condição de maior parceiro brasileiro na região. As condições internacionais restritivas ao apartheid também estimularam essas mutações de interesse. Fato relevante foi a proposição do Ministro Joseph Garba, do Eixo Angola-Brasil-Nigéria, de uma relação triangular privilegiada no Atlântico. A idéia de Garba, depois realizada justamente pela determinação diplomática de brasileiros e nigerianos, foi a de transformar o Atlântico ao sul do equador em região de paz e de comércio livre preferencial entre o Brasil e os países africanos progressistas da costa atlântica. Em 1977, Garba agradeceu, no Brasil, a atuação brasileira na aproximação a Angola. Para ele, o Brasil tinha sido “o melhor amigo da Nigéria nas lutas de libertação na África” (57). Vale lembrar que a mesma Nigéria havia cobrado do Chanceler Gibson Barboza, ainda em 1972, a atuação brasileira a favor da independência de Angola. O Brasil cumprira a promessa. O certo é que o reconhecimento da independência de Angola fortaleceu a imagem do Brasil no sistema internacional, particularmente entre os países, já naquela época, do chamado Terceiro Mundo. Isso implicou grande receptividade às propostas mercantis brasileiras no sul em geral. A dimensão sul da cooperação internacional do Brasil viveu, a partir da resolução do caso angolano, gradativo crescimento. A expansão do comércio com os árabes do Oriente Médio foi uma das principais consequências da resolução da questão angolana pelo Brasil. Do lado angolano, o Presidente Agostinho Neto reconheceu a contribuição da diplomacia brasileira. Ofereceu toda a cooperação econômica possível. Recebeu, com interesse, a presença da PETROBRAS na exploração de
petróleo. Após sua morte, em 1979, seu sucessor encaminhou os acordos comerciais e de financiamento para o desenvolvimento angolano. O Brasil se tornou, então, um dos poucos contatos com o Ocidente. O Ministro Paulo Jorge, das Relações Exteriores de Angola, afirmou certa vez o caráter independente da política externa angolana e sua amizade ao Brasil (58). Embora a ação externa não tenha sido tão independente naqueles anos duros do final da década de setenta, o Brasil foi certamente um dos poucos amigos confiáveis daquele país, que nascia com a esperança de romper verticalmente o jugo colonial que lhe fora imposto por Portugal. Foi o capítulo mais dramático dos anos dourados da política africana do Brasil. Os anos noventa: dificuldades e continuidades As dificuldades internacionais dos Estados nos anos noventa, especialmente aquelas provocadas pela gestação do mundo da globalização e da corrida tecnológica, tomaram-se uma prova da força das relações entre os dois países. Apesar do contexto de perda de importância relativa do continente africano no conjunto das relações externas do Brasil, Brasília tem mantido alto nível de interação com Luanda (59). Vários exemplos da continuação da política africana do Brasil, de forma mais seletiva e menos continental, levam o Brasil a Angola. O Brasil esteve presente na normalização das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e aquele país africano. Desde 1995 o Brasil vem participando do esforço do gerenciamento da paz em Angola, sob os auspícios das Nações Unidas (UNAVEM), no sentido de garantir o acordo firmado entre o governo do Presidente José Eduardo dos Santos e o líder da UNITA, Jonas Savimbi. Coube à engenharia do Exército brasileiro a tarefa difícil do desmonte de minas terrestres, calculadas em torno de 20 mil, em solo angolano. Foram 1.200 militares brasileiros em Angola em um esforço efetivo orçado em tomo de US$ 150 milhões. Do ponto de vista financeiro, há uma relevante dívida angolana para com o Brasil, acumulada ao longo desses anos de relação privilegiada, que
justificou a visita do presidente Eduardo dos Santos a Brasília em 1995 e a visita do Presidente Cardoso a Luanda em 1996. A fatura angolana chegou a US$ 800 milhões. A conta, que vinha sendo amortizada mensalmente com a remessa de 20 mil barris de petróleo para o porto do Rio de Janeiro, foi suspensa em julho de 1994. As remessas foram normalizadas, finalmente, no início de 1996. A presença das empresas estatais e privadas brasileiras em Angola não cessou ao longo da guerra civil, mas foi drasticamente reduzida. De Furnas à Norberto Odebrecht, vários conglomerados vêm participando do esforço de reconstrução econômica de Angola. Os desafios para a segunda metade dos anos noventa são, no entanto, enormes. Das dificuldades estruturais anotadas por Franz-Wilhelm Heimer acerca do endividamento das economias africanas ao crônico problema da construção democrática naqueles países, passando pelas novas opções de reinserção internacional do Brasil no mundo da competição internacional e da regionalização dos mercados, tudo parece conspirar contra a continuação de uma política brasileira de aproximação maior a Angola. Mas há igualmente outros fatores que animam a continuação da política angolana do Brasil. Das razões pragmáticas da oferta do petróleo angolano às razões estratégicas da defesa de um ambiente de paz e cooperação no Atlântico Sul, os elementos para a continuação de uma agenda com Angola estão vivos e parecem demonstrar que há algo mais profundo, historicamente enraizado nas rotas do Atlântico Sul em vários séculos, nos intercâmbios que vinculam brasileiros e angolanos.
(1) Para compreensão do apoio internacional aos diferentes movimentos de libertação em Angola, ver publicações como West África (Londres) e L’Ouest African (Dacar) entre 1974 e 1975. Uma boa descrição do MPLA, FNLA e UNITA está no L’Oest African, 18 de abril de 1975, pp. 1-4. Uma análise acerca da FLEC e da relevância estratégica de Cabinda no processo de libertação de Angola pode ser lida no L'Ouest African, 18 de julho de 1975, p. 11, e 8 de outubro de 1975, p. 5: “Cabinda: Une enclave
convoitée”. Ver também Thomas H. Henriksen, “People’s War in Angola, Mozambique and Guinea-Bissau”, The Journal of Modem African Studies, 3, setembro, 1976, pp. 377-400. (2) Ver Gerald Bender, Angola under the Portuguese: Myth and Reality, Londres, Heinemann, 1978; Franz-Wilheim Heimer, O Processo de Descolonização de Angola, 1974-1976, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980. Ver também Basil Davidson, Joe Slovo e Anthony R. Wilkinson, Southern África: The New Politics of Revolution, Harmondsworth, Penguin Books, 1976, pp. 76-95; e Michael Wolfers & Jane Bergerol, Angola in the Frontline, Londres, Zed Press, 1983, parte 1, pp. 9-62. O papel de Portugal na África depois do 25 de abril pode ser visto em Ruth First, “Southern África After Spinola”, UFAHAMU, 3, 1974, pp. 88-108; Gerald Bender, “Portugal and Her Colonies Join the Twentieth Century: Causes and Initial Implications of the Military Coup”, UFAHAMU, 3, 1974, pp. 121-163; Eduardo de Souza Ferreira, “Portugal and Her Former African Colonies: Prospects for a Neo- Colonial Relationship”, UFAHAMU, 3, 1975, pp. 159-170. (3) Garrick Utley, “Globalism or Regionalism? United States Policy Towards Southern África”, in Robert Jaster (ed.), Southern África: Regional Security Problems and Prospects, Aldershot, Gower/International Institute for Strategic Studies, 1985, p. 24. Boa avaliação sobre o envolvimento dos Estados Unidos em Angola no final de 1975 foi preparada pelo coordenador da ação da CIA na região. John Stockwell, In Search of Enemies: A CIA Story, Londres, Andre Deutsch, 1979. Ver também René Lemarchand, “The CIA in África? How Central? How Intelligent?”, The Journal of Modem African Studies, 3, 1976, pp. 401426. (4) O envolvimento da União Soviética em Angola pode ser visto em Arthur Jay Klinghoffer, The Angolan War, a Study in Soviet Policy in the Third World, Boulder, Westview, 1980. (5) Garrick Utley, op. cit., p. 25. (6) Idem, ibidem.
(7) Idem, p. 26. (8) Idem, p. 26. (9) Gibson Barboza, “Conferência do Ministro Mário Gibson Barboza, pronunciada na Escola Superior de Guerra, em 17 de julho de 1970”, Documentos de Política Externa, 4, 1969/1970, p. 169. (10) Os textos de todos os comunicados conjuntos e acordos assinados pelo Brasil com os países africanos visitados estão publicados em Documentos de Política Externa, 6, 1972, pp. 140-340. (11) “Declaração Conjunta Brasil-Nigéria”, Documentos de Política Externa, 6, 1972, pp. 330-331. (12) Jornal do Brasil, 26 de janeiro de 1974. (13) Diário do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, 1972, sessão de 27 de novembro, p. 5327. (14) Diário do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, 1972, sessão de 12 de dezembro, p. 5.660. (15) Diário do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, 1972, sessão de 30 de novembro de 1972, p. 5.618. (16) Alberto da Costa e Silva, O Vício da África, Lisboa, Sá da Costa, 1989. Ver também seu artigo “Um Domingo no Reino de Dangomê”, ADB-Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, 19, 1995, pp. 1013. (17) A existência dessa tensão entre Gibson Barboza e Delfim Netto foi confirmada pelo então Ministro da Educação Jarbas Passarinho em entrevista à revista Playboy, 4 de abril de 1989, p. 48 e seguintes. (18) Jornal do Brasil, 20 de fevereiro de 1972. Para a compreensão das visões de Delfim Netto sobre o comércio com a África e sua defesa da cooperação com a África do Sul, que vinha desde a década de cinquenta,
ver D. Netto, “Esperança e Realidade sobre a Concorrência Africana”, Revista dos Mercados. 98, 1959, pp. 5-8. (19) Wayne Selcher, “Brazilian Relations ..., op. cit., p. 30. (20) Jarbas Passarinho, op. cit., p. 48. (21) Jornal do Brasil, 15 de dezembro de 1973. (22) O Globo, 28 de dezembro de 1973. (23) “Diplomacia: A Descoberta da África”, Veja, 14 de julho de 1976, pp. 2425. Ver também Olga Nazário, “Pragmatism in Brazilian Foreign Policy: the Geisel Years, 1974-1979”, tese de doutorado, Florida, Universidade da Florida, 1983, p. 41, e Jacques D’Adesky, “Brasil-África: Convergência para uma Cooperação Privilegiada”, Estudos AfroAsiáticos, 4, 1980, p. 6. (24) “Discurso do chanceler brasileiro Antônio F. Azeredo da Silveira, na abertura da XXIX Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas”, Resenha de Política Exterior do Brasil, 2, 1974, pp. 39-41. (25) Idem, ibidem. (26) Carlos A. Dunshee de Abranches, “Missão do Brasil na África”, Jornal do Brasil, 15 de junho de 1974. (27) “Itamaraty não Oferece Mediação mas Quer Colaborar com Portugal e África”, O Globo, 9 de junho de 1974, p. 2. (28) “Chanceler Silveira no Senegal: Independência Deve Ser Conquistada de Dentro para Fora”, O Globo, 26 de novembro de 1974, p. 6. (29) “Chanceler Silveira no Senegal: Independência Deve Ser Conquistada de Dentro para Fora”, O Globo, 26 de novembro de 1974, p. 6. (30) Joseph Garba, Diplomatic Soldiering. Nigéria Foreign Policy, 19751979, Ibadam, Spectrum Books, 1987, pp. 15-36.
(31) “Diplomacia. Agora, a África”, Veja, 4 de dezembro de 1974, p. 25. (32) “Relatório da África Vai ao Presidente”, Jornal do Brasil, 12 de fevereiro de 1975. Ver também a conferência do Embaixador Ítalo Zappa no Painel de Assuntos Internacionais, organizado pela Comissão de Relações Exteriores, da Câmara dos Deputados, em 10 de outubro de 1975, na Resenha de Política Exterior do Brasil, 7, 1975, pp. 122-126. Ver também Ítalo Zappa, “Nova Ordem Mundial: Aspectos Políticos”, Revista Brasileira de Política Internacional, 18, 1975, pp. 83-88. (33) Marrom de Abreu, “L’Évolution de la Politique Africaine du Brésil”, mé- moire, Paris, Universidade de Paris I (Sorbone), 1988, p. 75. (34) “Angola e África”, Jornal do Brasil (editorial), 3 de março de 1975. Ver também o impressionante relato de Ovídio de Andrade Melo, “O Brasil e o Reconhecimento de Angola” (separata sem data). (35) “Angola e África..., op. cit. (36) Esse foi o caso da empresa Pão de Açúcar, que manteve suas lojas trabalhando em Luanda durante toda a guerra. O governo brasileiro deu cerca de US$ 5 milhões para ajudá-la a manter Angola abastecida. Ver “Itamaraty. Afinal, qual o problema com a China e Angola?”, IstoÉ, 26 de outubro de 1977, pp. 8-9. (37) IstoÉ, 5 de junho de 1985, p. 30. (38) Ovídio de Andrade Melo, op. cit., pp. 69-70. (39) Idem, p. 70. (40) Idem, p. 58. (41) Jornal de Brasília, 22 de agosto de 1978; J. Stockwell, op. cit. Ovídio de Andrade Melo, op. cit., pp. 70-71. (42) Andrew Hurrell, "The Politics of South Atlantic Security: A Survey of Proposals for a South Atlantic Treaty Organization”, International Affairs, 2, Spring, 1983, p. 187.
(43) Andrew Hurrell, “The Politics of South Atlantic Security: A Survey of Proposals for a South Atlantic Treaty Organization”, International Affairs, 2, Spring, 1983, p. 187. (44) Diário do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, 1975, sessão de 11 de novembro de 1975, p. 10369. (45) Diário do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, 1975, sessão de 24 de outubro de 1975, p. 9397. (46) Diário do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, 1976, sessão de 6 de abril de 1976, pp. 2079-2080. (47) Idem, ibidem. (48) “Mexicanização da Diplomacia”, O Estado de S. Paulo, 12 de novembro de 1975. (49) Idem, ibidem. (50) Thomas Skidmore, The Politics of Military Rute in Brazil, 19641985, New York-Oxford, Oxford University Press, 1988, pp. 108-109. (51) O manifesto de Sílvio Frota apareceu na imprensa no dia seguinte. Ver Folha de S. Paulo, 13 de outubro de 1977. Sobre as diferenças entre os militares acerca da política interna e externa, ver o livro do chefe do gabinete militar do Presidente Geisel, General Hugo Abreu, O Outro Lado do Poder. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979. Ver também “Itamaraty. Afinal, qual o Problema com a China e Angola?”, IstoÉ, 26 de outubro de 1977, pp. 8-9; “Diplomacia. Assim Conversam os Militares”, IstoÉ, 27 de julho de 1977, p. 12; “Queda de Frota. Geisel Mostra quem Manda”, IstoÉ, 19 de outubro de 1977, pp. 5-7; “No Itamaraty, Mais Ação e Menos Solidão”, IstoÉ, 16 de novembro de 1977, pp. 36-37; “Os Militares e o Controle do Estado”, IstoÉ, 14 de março de 1979, pp. 45-46. (52) Moniz Bandeira, Brasil-Estados Unidos: A Rivalidade Emergente (1950-1989), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989, p. 256. Ver também sobre esse tema, Amado Luiz Cervo & Clodoaldo Bueno, História
da Política Exterior do Brasil, São Paulo, Ática, 1992, pp. 358-385. Moniz Bandeira, oportunamente, define o relacionamento entre os militares e o Itamaraty de “aliança tácita". Mas igualmente reconhece a existência de uma “diplomacia militar paralela” que apoiara os golpes militares de direita na Bolívia (1971), Uruguai (1971-1973) e no Chile (1973). Ver Moniz Bandeira, op. cit., p. 199. Pode-se reconhecer que essa mesma “diplomacia militar paralela” esteve presente em Angola quando alguns militares brasileiros prestavam apoio à FNLA de Holden Roberto, dentro da operação coordenada pela CIA. Ver Ovídio de Andrade Melo, op. cit., pp. 69-70. (53) “O Itamaraty e o Mundo. O Reconhecimento da China, a Aproximação da África, o Acordo Nuclear e as Pressões de Jimmy Carter”, IstoÉ, 21 de fevereiro de 1979, pp. 85-87; Moniz Bandeira, BrasilEstados Unidos..., op. cit., p. 228. A estratégia secreta dos Estados Unidos de apoio à UNITA e à FNLA, bem como de desestabilização do governo do MPLA, pode ser vista em Gar- rick Utley, op. cit., pp. 24 e seguintes. Ver também John Stockwell, op. cit., e United States Government, Foreign Relations of the United States, Washington, Government Printing Office, 1976. (54) Chuks Illoegbunam, “OAU Special. Evolving African Policy”, West Africct, 27 de maio—2 de junho, 1991, p. 845. (55) Joseph Garba, op. cit., pp. 21-22. Ver também A. O. Sotunmbi, Nigéria Recognition of lhe MPLA Government of Angola — A Case Study in Decision-Making and lmplementation, Lagos, NIIA, Monograph Series 9, 1981; A. Bolaji Akinyemi (ed.), Nigéria and the World Readings in Nigéria Foreign Policy, Ibadan/Oxford, NIIA, 1978, p. ix; Timothy M. Shaw e Olajide Aluko, Nigerian Foreign Policy. Alternative Perceptions and Projections, Londres, MacMillan, 1983; e Joseph Wayas, Nigeria’s Leadership Role in África, Londres, MacMillan, 1979, pp. 48-80. (56) J. F. Marroni de Abreu, op. cit., pp. 75-76. (57) “O Nigeriano. A África Confia no Brasil”, IstoÉ, primeiro de junho de 1977, p. 11.
(58) “Angola: Relações Exteriores. Relatório do Comitê Central do Primeiro Congresso do MPLA. Luanda, dezembro de 1977”, Estudos AfroAsiáticos, 3, 1980, p. 105. (59) José Flávio Sombra Saraiva, O Lugar da África: A Dimensão Atlântica da Política Externa do Brasil (de 1946 a nossos dias), Brasília, EDUnB, 1996, pp. 250-260.
OS AUTORES
JOSEPH C. MILLER é professor da Universidade de Virgínia (EUA), doutor em História da África pela Universidade de Wisconsin. Integra o grupo que dirige o Journal of African History. É autor de King and Kinsmen-Early Mbundu Stades in Angola (Clarendon Press Oxford, 1975) e de Way of Death: Marchant Capitalism and the Angolan Slave Trade (Madison University of Wisconsin Press, 1988). Tem vários artigos e ensaios sobre a escravatura e o tráfico de escravos na África Central Ocidental. JOSÉ C. CURTO é instrutor de História no Vanier College em Montreal, doutor pela Universidade da Califórnia. Especialista do tráfico de escravos e seu impacto em Angola. Tem vários artigos publicados com esta temática. Co-autor de Bibliography of Canadian Master ’s Theses and Doctoral Dissertations on África (Montreal, Canadian Association of African Studies,1994). SELMA PANTOJA é professora da Universidade de Brasília e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. É autora de vários artigos sobre Luanda, ilha de Moçambique e Rio de Janeiro no século XVI11. Seus temas de interesse nos estudos africanos são a história dos centros urbanos e a história social de mulheres. ROSA CRUZ e SILVA é diretora do Arquivo Histórico de Angola e como historiadora tem publicado vários artigos sobre os séculos XVII e XVIII em Angola com a temática do tráfico de escravos. Dirige, atualmente, Fontes e Estudos revista do Arquivo Histórico Nacional.
ROQUINALDO AMARAL é pesquisador do Centro de Estudos AfroAsiáticos do Conjunto Universitário Cândido Mendes e mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem publicado artigos, em periódicos especializados, sobre o tráfico de escravos no século XIX. FERNANDO AUGUSTO ALBUQUERQUE MOURÃO é professor titular e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo. É autor de Sociedade Angolana (São Paulo, Atica, 1978) e de uma série de capítulos de livros e artigos em periódicos especializados. JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA é professor e foi coordenador do curso de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Doutor (Ph.D.) em História da África pela Universidade de Birminghan (Inglaterra). Além de vários artigos publicados em periódicos especializados na América Latina, Europa e África, Saraiva é autor de A Formação da África Contemporânea (São Paulo, Atual, 1987) e de O Lugar da África (Brasília, EDUnb, 1996).